Quando menos é mais: \"O céu de Suely\" de Karim Aïnouz
Descrição do Produto
Quando menos é mais Por Daniel Augusto
Falar sobre o longa-‐metragem “O Céu de Suely”, de Karim Aïnouz, dá a
impressão de que cometemos um excesso. Isso, porque é um filme que tira força do silêncio e da simplicidade e faz uma leitura profunda da nossa condição, sem recorrer a expedientes que lhe tirem a exatidão. O diretor já tinha feito uma obra de estréia vigorosa, “Madame Satã”, e -‐entre outros acertos-‐ contribuído para o roteiro de “Cinema, Aspirinas e Urubus”, dirigido por Marcelo Gomes1. Nessa nova obra, faz uma leitura singular da dialética torturada entre o local e o global a que estamos submetidos, deixando-‐a habilmente entranhada na composição geral2. O filme é sobre uma jovem de 21 anos, Hermila, nascida na cidade de Iguatu, no Ceará. No início do longa, ela aparece enlaçada com seu marido, beijando-‐o fervorosamente, como num sonho de felicidade. A fotografia -‐mais uma vez feita com maestria por Walter Carvalho-‐ é extremamente granulada, com pouca definição, sugerindo o quanto há de irrepresentado e irresolvido nesse casamento. Os dois se agarram ao som de “Everything I Own”, uma canção pop que fez sucesso há alguns anos atrás e que comparece aqui numa versão em português, num belo arranjo brega. O uso dessa música atende a duas funções: 1) serve para delinear o universo em que se situa a personagem, seu modo de perceber e se orientar no mundo; 2) indica o modo imanente como a dialética entre o local e o global vai aparecer no filme (não se trata de criar situações que exemplifiquem didaticamente essa tensão difícil, mas de vê-‐la em ato, transformada em signo). A idealização de felicidade dessa introdução logo cede a uma fotografia muito mais definida: Hermila está de volta para sua cidade natal, após morar um tempo em São Paulo e passar por dificuldades financeiras na megalópole. Retornou com seu filho e aguarda que seu marido faça o mesmo. Enquanto isso,
mora na casa da avó e tenta ganhar uns trocados ao rifar uma garrafa de uísque (quem não viu o filme e não quer saber mais detalhes sobre seu enredo deve parar por aqui). A indefinição inicial da imagem cede lugar a um registro realista, com uso eficaz de lentes longas e enquadramentos fechados, que aproximam os atores do espectador, ao mesmo tempo que limitam a profundidade de campo. Estamos diante de um mundo visual reduzido à sua essencialidade: o registro que aqui importa é o do detalhe filtrado do excesso de espessura do mundo ordinário, onde tudo que for dito a menos terá maior ductilidade. O tempo passa, e Hermila descobre que o marido não vai aparecer: ela foi abandonada e vai ter que recomeçar a vida sem dinheiro. Resolve então rifar a si mesma para uma única noite de sexo: chama seu prêmio de “uma noite no paraíso” e inventa um nome para a personagem de ocasião que vai encarnar, a Suely do título do filme. A escolha por um outro nome é a sua maneira de construir uma nova identidade e de tentar se livrar dos desacertos do passado. Todos nós nascemos, envelhecemos e vamos morrer um dia: tudo muda, em nós e ao nosso redor, e poucas coisas nos acompanham a vida inteira. Nosso nome, essa marca significante que nos acompanha inalterável desde a certidão de nascimento até à lápide, talvez seja uma das únicas constantes num percurso no qual assumimos muitas identidades (tal como hiperbolizava o malandro João Francisco dos Santos, tema do filme anterior de Aïnouz, ao ser chamado de Madame Satã, Sheherazade e Janaci, somente no período coberto pelo longa). O nome pelo qual nós fomos chamados pelos nossos pais cria uma ilusão de continuidade na diversidade e costura os diversos fios soltos da existência num tecido aparentemente uno, difícil de acessar por completo, e muito mais ainda se livrar. Não é à toa que os pais de Hermila não aparecem nesse filme: não seria fácil driblar a sua presença para assumir uma nova identidade, e os roteiristas muito provavelmente sabiam disso. Assim, trocar o nome de Hermila por Suely, é o lance de dados da personagem frente a um horizonte que parece negar sua existência. Uma jogada
em sentido contrário ao que ocorreu na composição dos personagens: a personagem Hermila é interpretada por Hermila Guedes, que -‐assim como os outros atores-‐ empresta seu nome real para o ser ficcional que encarna. Opera-‐se deste modo um deslocamento sutil no contrato habitual entre realidade e representação, e se ironiza a identidade -‐ou a ilusão de identidade-‐ que o nome de batismo garante. Aqui, os atores aparecem no universo ficcional com o nome que lhes garante a singularidade entre as várias personalidades que assumem nos filmes, e o resultado dessa operação propicia ao elenco uma aventura parecida com a de Suely, ainda que no caminho inverso: ela se torna outra com um novo batismo, eles se tornam outros mantendo seu batismo. Num caso como no outro, o nome vem para o primeiro plano, explicitando sua relação com uma identidade, e sugerindo como a ficção pode ser a senha para assumir aquilo que de fato queremos para nossa vida, quando não estamos paralisados pela força do poder social. Mas não é somente com a troca de nome que a personagem Hermila inverte a situação a que parece condenada. Num mundo onde as pessoas são coisas, e as coisas são pessoas, que é o mundo da mercadoria, seja em São Paulo ou em Iguatu, ela deixa sua condição de objeto, e passa a ser sujeito quando assume o papel de prêmio. Arrisca, desse modo, uma reviravolta perigosa: assume conscientemente tornar-‐se uma mercadoria, com toda a dor que isso poderá lhe causar. É quando ela se torna o “paraíso” para o outro, livra-‐se da condição melancólica em que se achava, e abre um novo caminho para a vida. Descortina um horizonte que não lhe era possível antes, embora agora carregue uma marca trágica dentro de si: sua construção difícil como Suely implicou em assumir o estatuto problemático do sujeito convertido em mercadoria, ainda que por só um momento, e a possível consciência de como isso tornou-‐se universal. Nunca fomos tão identicamente estrangeiros a nós mesmos, onde quer que estejamos, seja qual for o país onde tenhamos nascido.
Só que há pelo menos uma nota brasileira nessa armação problemática, que dá cor local a uma condição que parece estar em todo lugar. Antes de vender a si mesma por uma noite, Hermila tinha planos de reproduzir CDs e DVDs piratas com o marido e ganhar dinheiro a partir daí. Trata-‐se de um plano -‐assim como suas rifas clandestinas, cujos resultados acompanham os da Loteria Federal-‐ em que torna-‐se possível vislumbrar como no Brasil a vida social se faz à margem do mundo oficial. Não é a mercadoria original (o CD ou o DVD), nem a loteria original, que movimentam sua vida (assim como a de grande parte de nossa população), mas uma versão para uso próprio, onde se altera o sentido de face do poder oficial, revertendo ordem e desordem de acordo com as conveniências e necessidades. Há algo de malandragem nisso, no sentido amplo que já aparecia em “Madame Satã”, e que aqui aparece revisitada em tom seco e contido. Uma reversibilidade estrutural que tem seus aspectos positivos, sobretudo quando a cidade passa a aceitar o céu de Suely sem destratar Hermila: sua nova identidade -‐ainda que provisória-‐ passa a ser acomodada, sem que isso soe inaceitável até para os familiares. Há um tom simpático na maneira como Aïnouz retrata os que são considerados marginais, pois possivelmente compartilha da idéia de que há forças dilacerantes neles que podem nos levar ao renascimento e desarticular o mundo de clichês que organizam nossos filmes e nossa vida. Num dos momentos mais belos do longa, Hermila senta na moto de seu antigo namorado João, e os dois andam em silêncio pela estrada, enquanto ouvimos uma singela música eletrônica. A cena já carrega em si todos os filmes em que já vimos essa representação, sobretudo as cenas dos road movies de motocicleta, onde há uma promessa de liberdade no aventurar-‐se pelo horizonte. Poderia ser um clichê, mas o personagem de João não é uma releitura ingênua de Dennis Hopper e Peter Fonda rasgando os EUA em “Sem Destino”, nem do que fez Marlon Brando em “O Selvagem”: estamos diante de um motoboy encravado num canto distante de um país distante, cuja viagem não vai a lugar nenhum, já que o ponto de chegada é o mesmo da partida (assim como acontece no compasso tecno que se sobrepõe à singeleza inicial).
A situação evidencia a dialética penosa de que somos feitos ao transformar Iguatu num signo paradoxal: um ponto de passagem necessário para a livre circulação de mercadorias e um beco sem saída para seus habitantes. A estrada por onde Hermila e João andam não tem nenhuma teleologia social emancipatória no horizonte, apenas a promessa de uma viagem pessoal, que talvez nem seja bem sucedida. A ausência de uma finalidade última para as coisas é um dos pontos altos da estruturação geral do filme. Tudo é colocado de modo a transformar o que não se mostra em algo prenhe de expressividade: desde o roteiro propositadamente lacunar até à atuação excepcional de Hermila Guedes, todos os elementos do “Céu de Suely” se combinam para fazer justiça à idéia de que não há um sentido último para tudo que experimentamos nessa Iguatu, somente uma perplexidade muda diante dos descaminhos de nossa existência. É por isso que todo comentário sobre o filme talvez pareça ser um excesso diante da sua simplicidade de fachada: a película tira proveito do silêncio e do detalhe, e com eles faz poesia. Um arranjo notável, que interessa tanto aos fãs do cinema moderno como a todas as Hermilas que podem estar em Iguatu, São Paulo ou em algum lugar melhor. “O Céu de Suely” é uma deliciosa e triste viagem pela falta de sentido que nos define, o consolo e o desconsolo de quem visita por dentro e por fora as formas clichês que dão sentido ao nosso mundo. Uma viagem lenta, quase meditativa, longe das padronizações rítmicas a que somos submetidos no cinema e na vida, e cuja fatura desenha ao longe uma promessa de felicidade. (Publicado em 25/11/2006) Daniel Augusto É diretor de cinema. Realizou a série de documentários "Mapas Urbanos".
Lihat lebih banyak...
Comentários