Quando o virus causador da doenca e visto como a cura

May 31, 2017 | Autor: Alcídes de Amaral | Categoria: Civic Engagement
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Quando o vírus causador da doença é visto como a cura Por Alcides André de Amaral Permitam-me, antes de tudo, e com alguma vergonha, confessar algo: tenho horror de tratamentos médicos! Lembro-me até de um dia, ainda menino, um certo médico ter-me dito o seguinte: “olhe, tu tens que seguir a carreira de médico... pois tens muito medo dos nossos tratamentos”. Se na altura sorri, hoje me pergunto sobre a relação que existe entre a fobia de tratamentos clínicos e a vocação de médico. Sinceramente não sei. Tanto que me formei em sociologia. Bom, se calhar as palavras do médico não eram assim tão vázias de sentido. É que a sciologia, pelo menos no início da sua formação, principalmente nas linhagens dos clássicos como um Émile Durckheim e um Karl Marx, tinha, ao meu ver, uma função fundamentalmente clínica: identificar a patologia social e diagnosticá-la. O sociólogo, assim, não passava de um outro tipo de médico isto é, um médico que, na pérola do Índico, não faria parte nem da AMETRAMO e muito menos da Ordem dos Médicos mas sim — um pouco próximo do Doutor Assan dos Grandes Lagos — seria aquele que identifica a “doença social” e passa a prescrição. No fundo é este espírito, malígono diga-se de passagem, que agora por ele estou possuído. Porém, como um bom médico que se preze, antes de diagnosticar deve-se ver e ouvir o paciente. Assim, depois de uma rápida observação do que fazem e dizem os moçambicanos portanto, os meus pacientes, diagnostiquei um tumor malígno — a tendência generalizada de uma Síndrome de Imune Deficiência Cidadã (SIDC). Tratasse duma grave doença que é caracterizada pela fraca capacidade crítica que, na sua forma crónica, pode levar ao conflito. Assim, me parece que actualmente nos encontramos neste nível extremo da doença. Mas de repente vejo que são os mesmos pacientes que se viram doentes e, como meros curandeiros, até já descobriram a cura. E qual é a cura que os moçambicanos sugerem como a solução para a doença? O

Acordo Geral de Paz (AGP). Sim. Quando confrotados com o conflito os moçambicanos sugerem, como remédio, ou um novo Acordo entre as partes ou o resgate do AGP de 1992. É contra esta arrepiante tendência que corro em contramão. Quero defender que o problema que nos levou ao conflito encontrasse fundamentado no próprio Acordo de Paz, este mesmo acordo que algumas (mas não poucas) santidades cívicas moçambicanas reparam como a cura para enfermidade que se colocaram. Mas — perguntariam os curiosos — como é que um instrumento que se pretendia para paz tornasse, pelo contrário, uma causa da violência? É o que vou tentar explicar a seguir. Esta questão pode ser respondida a dois níveis inseparáveis. O primeiro, o mais teórico, diz respeito a idéia de um Acordo de Paz ou seja, o que um acordo de paz entre duas forças em conflito geralmente pressupõe. Este é um problema abordado em 1999 por três autores, nomeadamente Georg Elwert, Stephan Feuchtwang e Dieter Neubert. Estes senhores escreveram que quando uma Paz é negociada, assim como foi no Acordo de Roma, a ordem política passa a ser da prerrogativa das partes que a negociaram. Assim, para dizer de forma menos erudita, os indivíduos passam a estar, de certa forma, subordinados a uma bipolarização no campo político a ponto de, no caso de Moçambique, orientarem as suas expectativas somente numa das duas direções já pré-estabelecidas pelo Acordo de Paz. É principalmente neste sentido que o diálogo entre as partes passou a ser visto como a solução do conflito. E uma vez que há uma crença generalizada de uma FRELIMO toda poderosa, o diálogo aqui passa simplesmente a significar, apesar de tudo, a acomodação das “paranoias políticas” da RENAMO. Isso pode justificar não só o aumento das exigências da RENAMO ao Governo desde o dia 1 desta enfermidade como também o apoio que tem tido das várias santidades moçambicanas cobertas de óculos, ternos e gravatas e ondas na cara nas televisões da praça.

O segundo nível de resposta tem haver com o próprio instrumento de gestão da Paz, o AGP (Acordo Geral de Paz). Como alguns intelectuais da praça constataram, dentre eles Luís de Brito e Obede Baloi, os pontos das negociações que se arrastaram até 1992 e os futuros princípios do Acordo não tiveram como fim a criação de um novo tipo de sociedade. Não visavam, isso digo eu, a criação duma sociedade guiada por novos valores que poderiam garantir a ordem e com esta o tão desejado progresso ou, como se diz em Moçambique, desenvolvimento. Visavam, pelo contrário, o simples fim da guerra. A consagração de uma “Paz Negativa” ou, para dizer a moçambicano, visavam simplesmente o “calar das armas”. Este calar das armas falantes seria possível, por um lado, por meio da acomodação das exigências das partes (principalmente da parte rebelde) e, por outro, por meio da redução das potencialidades da guerra como, por exemplo, a desmobilização das forças armadas duma e doutra parte. Neste sentido, acho que não precisa de ser “da área” para notar que a preocupação do acordo tinha mais haver com o fim da guerra (Paz negativa) do que com a consolidação de um critério que possibilite não só o fim da guerra e o não retorno a ela como também o estabelecimento das condições para uma paz positiva ou seja, uma paz onde há condições de gestão de conflitos no quotidiano das pessoas por meio do referido critério e que, para além disso, possibilite a segurança, a confiança e a dignidade humana dos e para os individuos. Chegado até aqui penso que já se pode advinhar o porque do título deste texto. O AGP é o vírus que foi visto como a cura de uma doença: a Guerra civil. Assim, ao invez da cura, vivemos uma sensação de cura. Sensação esta alimentada, possivelmente, pelos comícios, pelas festas, pelos aviões e panfletos que caracterizaram a campanha para as eleições de 2004. E agora a pergunta: sera que desde 1992 até hoje calaram-se as armas? Penso que não! Elas passaram a falar baixo — e olhem que agora voltaram a gritar! Precisamos, agora, como uma

responsabilidade individual, fazer com que elas se calem “para sempre”. Então é preciso resgatar as condições que permitem o seu silêncio. É preciso que procuremos um critério de gestão de conflito na nossa sociedade. Um critério que todos nós, em grupo ou individualmente, para ele nos orientemos e que façamos dele o nosso critério de avaliação de nós mesmos. Senão na esfera privada da nossa vida, pelo menos na esfera pública para onde se convergem uma parte da vida de todos nós. É preciso encontrar um critério de avaliação do comportamento de todos seja Governo, Renamo, MDM, Sociedade Civil e nós mesmos. Ou seja um instrumento que sirva como um crivo o qual todos os nossos comportamentos passam por ele. Que nos permita, enfim, não andar de um lado para outro, entre AKPMs e discursos políticos, sorrindo e chorando. Erra e arredonda-se quem procura este critério no documento que se veio a designar por AGP! Isso seria o mesmo que procurar a cura da malária na picada do mosquito que transmitio o vírus. Então qual é este critério que tanto digo e, para além disso, necessitamos? Resposta: são os valores e princípios democráticos! São os valores da Democracia liberal pasmados, de alguma maneira, na constituição que nos rege. Eis a nossa saída! Eis a nossa bússula perdida há muito mas que é necessário o seu resgate. Logo agora que o nosso barco, e nós como tripulantes, caminhamos desorientados, entre palmas, lamentações e choros, nesta tempestade prevísivel mas, por preguiça ou por cobardia não sei, neligenciámos. Façamos da constituição o nosso critério! Façamos do nosso Estado aquilo que ele é e que, penso, desejamos que ele seja: o Estado de direitos democráticos! Senão for por nós pelo menos pelos nossos filhos e netos! Senão for por meio dos mais velhos pelo menos por meio de nós, jovens, principalmente entre nós que não vivemos a guerra mas que, agora, pelas leituras e pelas bocas dos mais velhos, até sentimos que o tão dito e desejado Acordo Geral de Paz era, na verdade, o veneno e não a cura.

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