Quando outros atores vão às ruas: as manifestações de Junho de 2013 e suas múltiplas influências políticas

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ARTIGO QUE COMPÕE O LIVRO “TEORIAS E PRÁTICAS SOCIOLÓGICAS” com a organização de Elaine da Silveira Leite; Guilerme Massau e Willian Hector Gomez Soto. Editora Max Limonad. Ano 2016. 259p.

Quando outros atores vão às ruas: as manifestações de Junho de 2013 e suas múltiplas influências políticas Sérgio Botton Barcellos1 RESUMO Em junho de 2013 manifestações populares eclodiram em inúmeras cidades do Brasil tendo como uma das principais questões mobilizadoras o aumento geral do valor das passagens de ônibus. Não foram poucos os setores da sociedade e grupos políticos que ficaram surpresos diante das inúmeras e grandiosas manifestações convocadas pelas redes sociais e a ampliação dessas reivindicações para questões sociais como o desemprego, a inflação, a violência urbana e rural. Sob essa perspectiva, o objetivo desse ensaio é discutir e trazer à tona as possíveis influências históricas e políticas sobre essas manifestações que ocorreram em 2013, inclusive as marchas internacionais antiglobalização e movimentos mais recentes como a Primavera Árabe, o Ocuppy Wall Street e o SlutWalk. Desse modo, serão trazidos alguns elementos para o debate dessas manifestações a partir de um dos muitos pontos de vista disponíveis para estimular a reflexão relativa às influências e múltiplas interpretações sobre os movimentos sociais no Brasil. Palavras chave: diversidade política, cultura política, manifestações, junho 2013.

APRESENTAÇÃO Atualmente é comum ouvir e ler comentários na opinião pública2, mesmo que tímidos, sobre uma “onda conservadora” que está pouco a pouco se formando e ganhando corpus político no Brasil. Ao mesmo tempo, não se pode negar um nítido cerceamento e repressão das manifestações políticas nas ruas, revoltas contra os constantes abusos policiais em comunidades e favelas nas grandes cidades, e, por outro lado, sem repressão alguma, mobilizações em defesa do governo eleito recentemente e as que reivindicam o impeachment da presidente Dilma. Ou seja, em meio a esse contexto de disputa política, vivenciamos uma realidade com diversas nuances sociais em destaque. Do mesmo modo, as ações do Estado e dos diversos movimentos sociais não podem ser consideradas estritamente antagônicas, apesar de conflituosas, pois surgem em um cenário de interdependência e são fruto de um contexto mais amplo, que é influenciado pelo atual momento histórico e pelo arranjo de forças do capitalismo no Brasil e no mundo, com reverberações socioculturais no campo da política. Em um tempo recente - e com destaque após as manifestações de junho de 2013 -, pelas ruas de diversas cidades do Brasil, pessoas, organizações e movimentos sociais se reagrupam e tentam se organizar politicamente com táticas e estratégias (re) atualizadas e que são acionadas em um tempo histórico recente, enquanto outros estão iniciando sua atuação política em atos públicos na rua. 1

Pós-Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPEL. Doutor em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ. 2 A ideia de opinião pública está ancorada aqui em Habermas. Ele a considera como uma possível deterioração da rede comunicativa por ser algo formulado por “opiniões comuns” e um debate racional, desconsiderando uma série de aspectos subjetivos, entre cidadãos (HABERMAS, 1983).

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Diante desse contexto, discute-se que não é apropriado tentar compreendê-las por uma tradição analítica considerada tradicional e que as analisa sob a lente de relações estruturadas por um sociedade moderna e industrializada. Com esse breve ensaio3 tenho o objetivo de discutir e trazer apontamentos sobre as influências políticas nacionais (partidos políticos e movimentos sociais) e internacionais (marchas antiglobalização, Primavera Árabe, Ocuppy Wall Street, SlutWalk etc.) das grandes manifestações populares no Brasil em 2013. Para auxiliar na elaboração dessa reflexão busco aporte analítico em diversos autores, incluindo Eder Sader (2001). Considero que a obra de Sader (2001), para o período em que foi produzida, teve um caráter inovador e foi um livro pertinente do ponto de vista sociológico para trabalhar o seu objeto de estudo, a constituição de novos sujeitos de mobilização social em São Paulo entre 1970-1980, como os Clubes de Mães do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo e o Movimento de Saúde da Zona Leste. Embora esses atores construíssem suas estratégias de luta no campo da política e enunciassem uma diversidade de discursos, como o da Igreja, do "novo sindicalismo" e dos militantes da esquerda, o estudo não se limitou à formação dessas identidades coletivas naquele período histórico. Sob essa perspectiva, ao me referir às organizações e movimentos sociais, também irei me referir a Thompson (1998), o qual Eder Sader acionou para problematizar os movimentos sociais na época, a partir das motivações de distintos sujeitos e grupos sociais em atuar e produzir conflitos sociais por questões consideradas subjetivas e experiências cotidianas singulares dos atores4. Além disso, para escrever esse ensaio, reporto-me às experiências que tive ao participar das manifestações no Rio de Janeiro, Brasília e Porto Alegre em 2013 e a participação em mais algumas manifestações em Porto Alegre e Rio de Janeiro no ano de 2014. Além de me remeter a essas experiências, também pude acompanhar as diversas notícias e textos que foram publicados nas redes sociais com análises sobre essas grandes mobilizações. Desse modo, inicialmente, mesmo que de forma breve, vou me ater a descrever a conjuntura sócio política em que essas manifestações acontecem e problematizar as influências variadas e as diversas cenas protagonizadas pelo conjunto de movimentos sociais que estiveram nessas manifestações. Ressalto que não tenho como intenção fazer uma descrição literal do conjunto de movimentos sociais que ao longo das décadas possam ter influenciado nas grandes mobilizações ocorridas desde junho de 2013, mas sim destacar uma das facetas do amplo leque de influências políticas nesse fato social. Esse ensaio será composto por duas partes: Da conjuntura ampla para a ampliação dos movimentos que atuam no espectro da política no Brasil; Quando outros atores estão em cena ou (in) conclusões.

1 DA CONJUNTURA AMPLA PARA A AMPLIAÇÃO DOS MOVIMENTOS QUE ATUAM NO ESPECTRO DA POLÍTICA NO BRASIL

As transformações dos Estados nacionais mediante a influência neoliberal ocorreram em diversos países e de diferentes maneiras ao longo dos últimos anos. Contudo, algumas características em comum desse processo estiveram presentes em muitos países, como a reconfiguração do poder mercantilista sobre a força e o mercado de trabalho com as reformas 3

Esse ensaio também é composto por um conjunto de reflexões do autor para sites especializados no assunto. Esses textos estão disponíveis em: www.adital.com.br 4 Thompson não situou apenas a classe social em função de seu lugar na forma social de produção, portanto, em uma condição objetiva, mas a localiza a partir de sua construção histórica, no momento das lutas e movimentos que esta desenvolve em sua experiência, no qual se organizam por causas distintas em diversos momentos e espaços sociais em distintos contextos históricos (THOMPSON, 1998).

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trabalhistas, o agenciamento de muitos sindicatos, a privatização de serviços sociais e de empresas estatais, bem como um maior refluxo das forças históricas e políticas de esquerda. Observa-se, em escala global, como atualmente nos países do sul da Europa (Portugal, Grécia, Espanha e Itália, por exemplo), uma desestruturação crescente dos chamados Estados de Bem-estar social e a dualização do seu papel social, com uma participação cada vez maior dos grupos privados e de uma rede de organizações que em sua maioria cumprem um papel assistencial e filantrópico, o que seria no Brasil conhecido como terceiro setor. No Brasil, em especial no período compreendido entre 1930 e 1970, o país se constituiu em uma economia considerada em processo de modernização. Entretanto, nesse período também foram sentidas as fortes regulações do Estado, como os mecanismos de controle, repressão e intervenção social, subjugadas em grande medida aos interesses norte americanos, o que fica perceptível com a deflagração da ditadura militar a partir de 1964. O sistema de “proteção social” do Estado brasileiro é fortalecido nesse mesmo período, tendo o autoritarismo como uma de suas principais marcas, com a intervenção sobre os sindicatos, aumentando tanto a presença de empresas estatais quanto a abertura ao capital estrangeiro. A partir desse processo, por um lado se constituíram os setores industriais urbanos considerados modernos, por outro, houve a consolidação de uma perspectiva agrícola agroexportadora de bens primários, com grandes monoculturas produzidas em latifúndios. Esse conjunto de inter-relações entre um modelo de exportação agrícola e minerador primário, o sistema bancário formado no país, o financiamento estatal das indústrias privadas e o barateamento da reprodução da força de trabalho devido ao “inchaço” das cidades e ao êxodo rural, podem ser considerados os motores do processo de expansão capitalista no Brasil (OLIVEIRA, 2003). Em um período histórico mais recente, com início no governo Sarney, reconfiguraram-se as formas de relação do Estado brasileiro junto ao sistema global capitalista, continuando com Collor e Itamar e logo em seguida com o governo Fernando Henrique Cardoso, com a marca da reforma do aparelho de Estado em 1995. Os desdobramentos gerais desse período de políticas de ajuste fiscal ao sistema financeiro internacional e privatizações podem ser evidenciados pela inflação galopante até 1993, a desigualdade social registrada em níveis extremos, arrocho salarial, crises econômicas constantes e aumento exorbitante da dívida externa (em 1994 o Brasil tinha uma dívida pública de aproximadamente US$ 38 bilhões, em 2002 essa dívida passou para cerca de US$ 850 bilhões). Em meio a essa conjuntura e como uma das formas de reação a ela ocorreu a mobilização de diversos movimentos e organizações em resistência à forma como o capitalismo foi sendo globalizado, tendo desdobramentos nos mais diferentes lugares do mundo. Nesse contexto, a internet foi um dos canais privilegiados seja para comunicação, para articulação, ou mesmo para organização dessas múltiplas formas de questionamento e resistência. Conforme Castañeda de Araújo (2014), os movimentos e organizações da sociedade civil encontraram na internet um meio capaz de fornecer as condições para a criação de canais informativos e comunicativos alternativos aos grandes meios de comunicação de massa, tornando possível a sua visibilidade no espaço público pela produção e distribuição de informações de forma menos controlada em relação à mídia tradicional. O uso da internet como ferramenta nos conflitos políticos no âmbito do ativismo transnacional pode ser visto nas ações de grupos como o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), bem como no papel desempenhado na organização das manifestações anticorporações e por uma globalização alternativa, da Batalha de Seattle até os dias atuais, com a emergência de formas interativas de lista de e-mails, blogs, wikis e sites de redes sociais, que se tornaram ferramentas de comunicação (CASTAÑEDA DE ARAÚJO, 2014).

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Diante desse contexto global, um dos movimentos que passam a se (re) organizar ao longo dos anos 1990 foram os Black Blocs5, nos Estados Unidos. Mas a tática permaneceu praticamente desconhecida do grande público até que um bloco com pessoas vestidas de preto se organizou para participar das manifestações contra a Organização Mundial do Comércio (OMC) em Seattle em novembro de 19996. Os acontecimentos de Seattle levaram grupos de militantes brasileiros a também se articularem em coletivos para construir no país o movimento de resistência mundial à globalização neoliberal. Assim surgiram os núcleos brasileiros da Ação Global dos Povos, uma rede de movimentos sociais surgida em 1998 que criou os Dias de Ação Global, articulações mundiais para organizar protestos simultâneos em várias partes do planeta contra as reuniões das instituições internacionais que sustentavam a globalização neoliberal (FIUZA, 2013). No ano de 1999, em São Paulo, um grupo entre os manifestantes da Ação Global adotou a mesma tática do black bloc de Seattle e atacaram estruturas que eram consideradas símbolos capitalistas na Avenida Paulista (na cidade de São Paulo), como uma loja do McDonald´s (FIUZA, 2013). De acordo com Fiuza (2013), o primeiro Dia de Ação Global no Brasil foi em 26 de setembro de 2000, em um ato marcado contra uma reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI) que estava ocorrendo em Praga. No Brasil, em São Paulo, um grupo de manifestantes atacou o prédio da Bovespa, o que gerou confronto entre policiais e ativistas. Na época, o incidente não ganhou destaque na imprensa e o termo black bloc não foi mencionado, mas a lógica da ação desses militantes, em sua maioria ligados ao movimento anarcopunk de São Paulo, seguia essa tática. O segundo Dia de Ação Global que contou com atos no Brasil foi 20 de abril de 2001, quando ocorreu uma manifestação na Avenida Paulista, como parte dos protestos convocados em todo o mundo contra a Cúpula das Américas, reunião realizada em Quebec, no Canadá, na qual líderes dos países do continente discutiram a criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Em um tempo mais recente ainda, após a crise do capitalismo financeiro que eclodiu em 2008, também ocorreu a organização do movimento Occupy Wall Street, mais especificamente em setembro de 2011, em Nova York, com origem nas ocupações ocorridas em Madrid e Barcelona na Espanha. O Occupy foi um movimento caracterizado como uma forma de protesto sem coordenação vertical que criticava a corrupção e o sistema financeiro, reunindo em especial um público juvenil tendo como pauta o poder das corporações (a OMC, o FMI e o G-87). Esse movimento rapidamente foi se ramificando para outras cidades dos Estados Unidos e da Europa. O movimento chegou ao seu clímax nos primeiros dois meses, mas depois seus acampamentos instalados no centro das grandes cidades pelo mundo foram desalojados pelas polícias, como no Brasil, no caso do Rio de Janeiro8. Outro evento que chamou a atenção no mundo foi a Primavera Árabe. As revoltas começaram com manifestações na Tunísia em dezembro de 2010. Após, em 2011, teve início uma grande onda de reivindicações relativas à dignidade e à cidadania, fortalecida por protestos intensos e espontâneos. Em 2012 foi considerado um momento em que as lutas se voltaram para si mesmas, para o contexto local e para o ajustamento delas à herança histórica de cada país (ALAOUI, 2014).

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Surgido a partir da experiência da autonomia operária na Itália dos anos 1970, o autonomismo se espalhou pela Europa ao longo das décadas de 1970 e 1980. Os primeiros black blocs surgiram na então Alemanha Ocidental, no início dos anos 1980, no seio do movimento autonomista daquele país (FIUZA, 2013). 6 Mais informações sobre “A batalha de Seattle”: http://mundorama.net/2009/11/30/os-dez-anos-da%E2%80%9Cbatalha-de-seattle%E2%80%9D-licoes-sobre-os-perdedores-no-comercio-internacional-por-gustavoresende-mendonca/. 7 Grupo de países considerados democráticos com as maiores economias e parques industriais do mundo, composto por: Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Canadá, Rússia (foi excluída em 2014, devido ao conflito político envolvendo a Ucrânia). 8 No Brasil, o movimento também foi chamado de Democracia Real Brasil e diversos protestos foram organizados em algumas capitais do País. A mobilização ocorreu, principalmente, pelo Facebook e ocorreram manifestações e acampamentos em diversas cidades do Brasil.

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Nesse evento se destacou o uso das redes sociais pelo Twitter e o intercâmbio das charges do cartunista brasileiro Carlos Latuff como forma de protesto e repercussão internacional do conflito. Em cada país árabe os desdobramentos dessas manifestações tiveram suas peculiaridades, pois na Síria e no Bahrein, as intervenções externas, em particular as sauditas, precipitaram a guerra civil e ação das facções mais radicais. No Egito, considerou-se que o apoio ocidental à política autoritária do novo regime reprimiu motivações democráticas. Já a Tunísia pareceu estar em um processo político distinto, pois parece estar relativamente de fora dos confrontos geopolíticos, religiosos e ideológicos que ocorreram na região. Em 2013, assistiu-se a outra fase dos conflitos e disputas originárias da Primavera Árabe, marcada pela internacionalização e pela ingerência cada vez mais agressiva das potências regionais e ocidentais (ALAOUI, 2014)9. Outro movimento que chamou a atenção em escala mundial e se propagou via redes sociais foi o SlutWalk, que no Brasil foi denominado como “Marcha das Vadias”. Esse é um movimento internacional de mulheres criado em abril de 2011 na cidade de Toronto, no Canadá, em resposta ao comentário de um policial que disse que, para evitar estupros em uma universidade, as mulheres não deveriam se vestir como “sluts” (vadias). Teve início a SlutWalk, no qual mais de três mil mulheres canadenses foram às ruas para protestar contra o discurso de culpabilização das vítimas de violência sexual e de qualquer outro tipo de violência contra as mulheres. A partir daí, diversas manifestações semelhantes (Marcha de las Putas, Marcha das Vadias) ocorreram em mais de 30 cidades, em diversos países – como Costa Rica, Honduras, México, Nicarágua, Suécia, Nova Zelândia, Inglaterra, Israel, Estados Unidos, Argentina e Brasil10. A motivação principal da Marcha das Vadias é a situação, compartilhada por mulheres de todo o mundo, de cerceamento da liberdade e da autonomia, de medo de sofrer violência e da objetificação sexual. Além de questionarem a culpabilização das mulheres em casos de violência por homens, esse movimento pauta o fim da violência doméstica, física, simbólica e sexual o que motivou as mulheres a saírem às ruas e a protestarem contra o machismo e pela igualdade de gênero. Desde então as marchas estão ocorrendo com periodicidade anual em diversas cidades do Brasil também, com destaque para São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, organizadas por diferentes coletivos em cada região ou município, cada uma com suas características quanto à forma de organização e composição. No ano de 2013, no mês de junho, com a chegada da Copa das Confederações e a aproximação da Copa do Mundo, algumas contradições na realidade atual brasileira foram ficando mais latentes com o não cumprimento das promessas feitas para a aceitação da realização do evento e as melhorias infraestruturais nas cidades sede do evento, bem como ficou aquém do desejado a ampliação dos benefícios sociais para a população. Em meio à realização desse evento emergiu um dos acontecimentos de maior vulto no Brasil nos últimos tempos, que foi uma onda de protestos que se espalharam pelo país, tomando grandes proporções em número de participantes e cidades. O que foi considerado o ponto de partida dessa onda de manifestações foi o reajuste das tarifas de ônibus municipais, que chamaram a atenção do país no início do mês de junho em São Paulo, mas cabe lembrar que diversas manifestações com o mesmo objetivo já estavam sendo realizadas desde o ano anterior em Florianópolis e Porto Alegre. Com o lema “Não é só por 20 centavos” (valor do aumento), o objetivo inicial dos protestos era barrar o aumento da tarifa, que em 9

De acordo com o autor, a internacionalização do conflito interferiu na resolução dos conflitos no Bahrein no que tange as suas tensões religiosas e o possível diálogo democrático. Um caso diferente é o do Egito, que em julho de 2013, teve um golpe de Estado militar ao qual derrubou o governo, o que em outros países, poderia ter provocado uma comoção mundial. Entretanto, tal ato obteve a aprovação das chancelarias dos países ocidentais. Os Estados Unidos e seus aliados europeus, mas também a Arábia Saudita e seus vizinhos do Golfo, assim como a Jordânia e Israel, acataram o golpe da força militar. 10 A organização da primeira Marcha no Brasil começou pelo Facebook, com o chamamento para reuniões e a criação do evento para a realização da marcha em si, a partir do contato entre feministas que se conheciam ou tinham se encontrado em outras manifestações, mas que não formavam um coletivo.

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São Paulo passou para R$ 3,20, a mais cara do país, mas logo em seguida passou a incorporar diversos outros temas. Podem ser mencionadas demandas por mais recursos para saúde e educação no país, por um transporte urbano de qualidade, o combate à corrupção e o questionamento dos efeitos da Copa do Mundo, principalmente a remoção forçada de moradores diante das grandes obras voltadas a megaeventos e o volumoso montante de recursos públicos destinados a execução do evento. O processo foi liderado pelo Movimento Passe Livre (MPL) em diversas cidades, com a meta de alcançar tarifa zero e transporte gerido pelo poder público com participação popular. Os protestos logo tomaram as ruas do Rio de Janeiro, Goiânia e Natal. Alguns dias depois, populações de várias cidades foram às ruas, impulsionadas pelas manifestações em curso. Além disso, a partir da reação exagerada e do abuso de autoridade da polícia aos protestos em São Paulo11, diversas outras manifestações ocorreram pelo país e no exterior em solidariedade aos manifestantes reprimidos. A divulgação das imagens da repressão e das causas defendidas pelos participantes foram intensas pelas redes sociais. Outros movimentos sociais se juntaram a essas manifestações para ampliar o conjunto de pautas e denunciar os atos de abuso de autoridade policial, em especial a chamada “Marcha do Vinagre”12. As manifestações tiveram como efeito imediato a redução das tarifas de ônibus em várias cidades, o Congresso Nacional aprovou projeto que tornou corrupção um crime hediondo e derrubou a Proposta de Emenda Complementar Trinta e Sete (PEC 37), que previa redução dos poderes de investigação criminal do Ministério Público. De acordo com Pujol et. al (2014), doze dias após o início das manifestações que tomaram o país no mês de junho, as prefeituras de João Pessoa (PB), Recife (PE), Cuiabá (MT), Porto Alegre (RS), Pelotas (RS), Montes Claros (MG) e Foz do Iguaçu (PR) anunciaram a redução nas tarifas de transporte. Os valores corresponderam de R$ 0,05 a R$ 0,15. Na sequência, foi a vez da prefeitura de São Paulo revogar o aumento do preço das passagens e, em seguida, a prefeitura do Rio de Janeiro também anunciou a suspensão do aumento. As decisões impulsionaram o governo de Minas Gerais que, no dia 21 de junho, declarou a redução das tarifas de 34 municípios da região metropolitana da capital mineira. Mesmo com a vitória, a população continuou nas ruas, com as demais pautas já listadas (PUJOL et al., 2014). Nessa rápida expansão das manifestações, as mídias sociais ocuparam um papel central nessas mobilizações populares de larga escala no país, com um número variado de protestos e com períodos de mobilização distintos. No final daquele mesmo mês, mais de um milhão de pessoas já tinham ido às ruas do país em mais de três centenas de cidades. As mídias sociais ganharam destaque e foram amplamente acionadas como estratégia de aglomeração e mecanismo de organização coletiva. Destaca-se também que em meio a esse processo de mobilização ocorreu a formação de coletivos com discurso autônomo, fazendo coberturas em twitcam e com postagens nas redes sociais em tempo real sobre as ações ocorridas nas manifestações. Pode-se mencionar a formação da Mídia Ninja, Coletivo Mariarchi e Projetação, dentre outros grupos, como a equipe do Jornal “A Nova Democracia”, que se envolveram na transmissão e compartilhamento de notícias instantâneas durante as manifestações. De maneira geral, esses protestos também tinham a influência de manifestações anteriores e de menor vulto motivadas por outros temas vigentes na cena política do país, como: o julgamento de políticos e ex-ministros de Estado por corrupção; os trabalhos da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e a Proposta da “Cura Gay” e a votação da já mencionada PEC 37. Cabe 11

As manifestações contra o aumento das tarifas de ônibus municipais no país tomaram fôlego após o primeiro protesto ocorrido em São Paulo, no dia 06 de junho, que resultou em um confronto entre cinco mil manifestantes e policiais militares. De um lado, a PM argumentava que as pessoas não estavam com o propósito de se manifestar, mas promover danos indiscriminados. Já na época, a Anistia Internacional se pronunciou dizendo que via com preocupação a repressão aos protestos (PUJOL et al., 2014). 12 A Marcha do Vinagre ocorreu em diversas cidades, com destaque para Brasília, com o objetivo de criticar a ação policial que reprimiu manifestantes com violência e prenderam quem estava com garrafas de vinagre.

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destacar que a partir desses protestos os Black Blocs ganharam visibilidade por praticarem atos considerados violentos para a opinião pública (PUJOL et al., 2014). Outro fator dentre esse conjunto de aspectos é que essas manifestações também foram consideradas uma resposta à negligência com as políticas relacionadas à juventude e aos direitos sociais básicos, como a questão das reformas urbana e agrária, da mobilidade e a falta de planejamento diante do atual momento demográfico do país, com a maior população em faixa etária jovem da história do país. Desde junho de 2013 quem vai para as ruas em grande parte são pessoas em faixa etária jovem. Associado a isso, há inúmeras denúncias por parte dos movimentos sociais e até da Organização das Nações Unidas sobre violações dos direitos humanos nessas cidades, em especial o direito à moradia e à cidade, com a desapropriação e desocupação de comunidades inteiras para a instalação de perimetrais e obras turísticas que em diversos casos descumprem legislações como a própria Constituição, além de Leis Orgânicas municipais, o Estatuto das Cidades e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário13. Pela forma de organização e pelas influências históricas desses protestos, dos movimentos sociais e ações coletivas que as constituíram, não é possível afirmar que há novas formas de organização política, ou mesmo novas organizações e formas de luta se consolidando. Considero que a novidade nesse acontecimento social é que outros atores, outras organizações e outras formas de luta, que são constantemente reatualizadas, entraram em cena como forma de questionamento ao atual estágio do desenvolvimento capitalista no Brasil. Dentre as muitas palavras de ordem observadas nas manifestações, uma que chamou a atenção e foi muito acionada no início das mesmas era “o gigante acordou!” querendo passar a ideia de que os sujeitos, organizações e movimentos sociais estavam “sonolentos” ou mesmo sem ação. Entretanto basta recorrer aos livros e notícias cotidianas para perceber que diversos atores já estavam mobilizados e nas ruas há muito tempo no Brasil, como os Movimentos pelo transporte, Movimento dos atingidos pelos grandes empreendimentos (Vale do Rio Doce, Belo Monte etc.) e Copa do Mundo, Movimentos Feministas, Movimento GLBTS, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, Movimento dos Sem Emprego, Comissões Pastorais, Movimento Estudantil e outros movimentos. Dessa forma, as questões que me faço nessa provocação são: essas manifestações são novidade para quem? Havia alguma novidade para quem atuou e organizou essas manifestações ou para determinados grupos acadêmicos e partidários que analisaram essas manifestações? Nesse sentido, tendo a convergir com a ideia exposta em um texto de Jeffrey Alexsander: A política é uma luta discursiva; trata da distribuição de líderes e seguidores, grupos e instituições, ao longo de conjuntos simbólicos altamente estruturados. Conflitos de poder não se referem apenas a quem leva o que e quanto; dizem respeito também a quem será o que e por quanto tempo. Se na ação recíproca entre instituições comunicativas e seu público um grupo é representado a partir de um ou outro conjunto de categorias simbólicas é um fato absolutamente decisivo; muitas vezes, chega a tornarse uma questão de vida ou morte. No decurso de conflitos sociais, indivíduos, organizações e grandes grupos podem ser transferidos de um lado para o outro da classificação social, através de súbitas e muitas vezes desnorteantes rupturas do tempo histórico. Todavia, por mais inovadoras que pareçam ser, essas categorias são variações de temas muito antigos e consolidados (ALEXSANDER, 1998, p.22).

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Alguns tratados foram desrespeitados e não cumpridos ao longo dessas manifestações pelo Estado brasileiro, como a: Convenção contra a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes, pacto internacional dos direitos civis e políticos e convenção americana de direitos humano.

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Da mesma forma, a obra de Eder Sader pode auxiliar na reflexão sobre a formação das organizações e movimentos sociais na atualidade: Os movimentos sociais tiveram de construir suas identidades enquanto sujeitos políticos precisamente porque elas eram ignoradas nos cenários públicos instituídos. Por isso mesmo o tema da autonomia esteve tão presente em seus discursos. E por isso também a diversidade foi afirmada como manifestação de uma identidade singular e não como sinal de uma carência. (SADER, 2001, p.199). Ao mesmo tempo, percebeu-se que muitos que analisaram essas manifestações e tentaram silenciar e ignorar a influência de um conjunto de movimentos anteriores, ou mesmo de outros sujeitos e organizações que deixaram de atuar em partidos, sindicatos e movimentos sociais que estavam em composição política com o governo federal, que se somaram as manifestações marchas a partir de junho de 2013. Observou-se também que os mesmos que tentaram protagonizar análises pejorativas, maniqueístas ou generalistas sobre os sujeitos desse momento histórico são os que passaram à margem da coordenação e do chamamento desses atos, como diversos partidos, sindicatos, intelectuais e até mesmo movimentos sociais com hegemonia na coordenação de grandes protestos em outros momentos históricos e governos anteriores. Observei que havia uma nítida resistência e dificuldade, desses outros grupos considerados “tradicionais”, em conviver com a experiência e as limitações políticas dos outros grupos que se formaram recentemente, ao mesmo tempo que esses movimentos considerados mais atuais renegavam em muitos casos a presença de representantes e a matriz cognitiva de organizações partidárias e de movimentos sociais que em outro momento histórico hegemonizavam a direção política de manifestações em outros momentos históricos. Uma das facetas que essas manifestações também assumiram é que logo depois que a grande mídia “comprou” as manifestações e passou a relatá-las, a presença nelas passou a ser uma espécie de viral nas redes sociais, e muitos (as) resolveram naquele momento ir às ruas com pautas de caráter ufanista e que se somaram a movimentos autônomos que se opunham a presença de partidos políticos nessas manifestações. O estímulo à formação desse tipo de cultura política é bastante influente e se entrelaça com discursos de democracia, fazendo com que diretrizes conservadoras, autoritárias e excludentes se reconfigurem e se apresentem com um revestimento e um viés popular e democratizante (Zizek, 2013)14. Ainda em relação a isso, Boltanski e Chiapello, em o “Novo espírito do Capitalismo”, problematizam a ideologia que justifica o engajamento no capitalismo, descrevendo que o capitalismo é [...] provavelmente a única, ou pelo menos a principal, forma histórica ordenadora de práticas coletivas perfeitamente desvinculadas da esfera moral, no sentido de encontrar sua finalidade em si mesma (a acumulação do capital como fim em si), e não por referência ao bem comum e aos interesses de um ser coletivo, tal como povo, Estado, classe social. A justificação do capitalismo, portanto, supõe referência a constructos de outra ordem, da qual derivam exigências complementares diferentes daquelas impostas pelo lucro. Para manter seu poder de mobilização, o capitalismo deve obter recursos fora de si mesmo, nas crenças que em determinado 14

Desse modo, tendo a considerar que a visão e o estímulo a uma leitura da realidade de forma dual e maniqueísta entre esquerda e direita, no atual estágio do capitalismo, parecem estimular uma cultura política rasa e estática na compreensão da realidade em relação às manifestações ou à eleição presidencial. Esse tipo de postura favorece uma visão idealizada na qual quem parece não estar concordando com tudo que a "esquerda" está fazendo, necessariamente está fazendo o jogo da "direita".

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momento têm importante poder de persuasão, nas ideologias marcantes, inseridas no contexto cultural em que ele evolui (BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009, p. 53). Do mesmo modo, também não é possível ignorar que inicialmente diversas frações da classe média que se denominavam como pessoas de direita se juntaram às manifestações e outros grupos entusiastas, ou aproveitando a cena para engrossar a oposição ao governo, ou mesmo por múltiplas motivações e pautas não vinculadas à pauta central originária desses protestos. Com o arrefecimento e a ação coordenada da polícia de reprimir as manifestações no país, em especial após o dia 20 de julho de 2013, muitos desses grupos, após agressões e o uso de forte arsenal de bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral, foram pouco a pouco se retirando das manifestações. Uma das demonstrações disso é que desde então, a partir da unificação do sistema de segurança nacional nos estados em 2013, foi possível observar as contínuas ações violentas das Polícias Militares, acirrando os ânimos e provocando a reação de diversos grupos de manifestantes15.

2 QUANDO OUTROS ATORES ESTÃO EM CENA E (IN) CONCLUSÕES

Antes das grandes manifestações de junho de 2013, muitas organizações e movimentos sociais já estavam em formação ou em constante organização cotidiana, afastadas dos holofotes midiáticos e dos tradicionais circuitos políticos vinculados à organização partidária, sem se apresentarem em forma de multidão e sem se manifestarem como uma ameaça à ordem estabelecida. Desse modo, as influências para a ocorrência desses protestos podem ser consideradas variadas, pois ao participar delas, ao escutar relatos ou ao ver imagens das ações que ocorrem em meio a elas é possível perceber o entrecruzamento e a simultaneidade de diferentes estratégias e táticas de organização política, de formas de ocupação do espaço público e de dar visibilidade as suas pautas e reivindicações. Em Sader (2001, p. 313) é possível ler uma reflexão sobre essa questão, quando ele escreveu que “Os movimentos sociais não substituem os partidos nem podem cancelar as formas de representação política. Mas estes já não cobrem todo o espaço da política e perdem sua substância na medida em que não dão conta dessa nova realidade.” Evidencia-se que as pautas e os movimentos que ganharam visibilidade nas manifestações de junho de 2013 não são “algo que foram”, são temas e atores que “estão sendo” e estão em processo constante de discussão e organização política. Exemplo disso ocorreu durante a Copa do Mundo, quando outros grupos sociais ganharam destaque nas manifestações em 2014 em diferentes cidades e contextos do Brasil, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, as categorias de trabalhadores em greve (professores, vigilantes, rodoviários) e demais grupos que lutam por mais dignidade nas condições de trabalho, Black Blocs (novamente) e os povos e comunidades

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Isto apesar de escamoteado pela opinião pública, mídia e governo na época, foi um fato que também deve ser analisado nesse contexto. Por exemplo, ação de agentes policiais infiltrados nas manifestações aparentemente trata-se de uma prática tradicional da polícia mundo a fora, na qual há a infiltração de pessoas nos atos para promover atos de depredação e em seguida justificar uma ação policial mais ostensiva e violenta com o intuito de dispersar os manifestantes, ou mesmo, justificar atos de abuso da força policial e fragilizar politicamente as mobilizações perante a opinião pública.

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tradicionais, como os indígenas, que tentaram chamar a atenção internacional sobre a violação dos seus Direitos Humanos. Outra situação que foi corriqueira durante as manifestações em 2014 foi a de criminalização e tentativa de regulação das greves. Demonstrativo disso, é que antes de ser anunciada a greve dos metroviários paulistas no ano passado, a Justiça do Trabalho decidiu liminarmente proibir greve no horário de pico e pela manutenção de 70% dos trens em funcionamento nos outros horários. Como os metroviários de SP, os trabalhadores rodoviários no RJ foram praticamente impedidos de exercer o direito de greve na mesma época. Outro caso, pouco divulgado, foi o dos funcionários federais de Cultura, aos quais foi determinado que se não voltassem a trabalhar teriam os seus pontos cortados, no acender das luzes da Copa do Mundo. Diante disso, percebe-se nitidamente um recuo significativo com relação a conquistas de direitos trabalhistas consolidados, como o pleno exercício do direito a greve, que implicava na convivência entre as diferentes perspectivas de mobilização social – uma das bases da suposta democracia ocidental e capitalista – ao mesmo tempo que se reconfiguram os limites das ações sociais e uma cultura política nos limites do Estado gerencial e capitalista, em consonância com a desregulação gradual do mercado econômico mundial16. Sob essa perspectiva civilizatória, começamos a pensar na acomodação e padronização do ato político quando se fala em projeto de desenvolvimento para o Brasil. Contudo, observaram-se muitas ações políticas por parte de grupos partidários, tanto de esquerda como de direita, na mídia, na blogsfera e nas redes sociais atuando em uma produção discursiva maniqueísta/bipolar que foi enunciada de forma veemente às vésperas das eleições presidenciais e da Copa do Mundo. Esses grupos travavam diversas disputas de sentidos discursivos, desde grupos governistas, que rotulavam os muitos movimentos e manifestantes que estavam nas ruas do Brasil como “coxinhas” ou “quem não quer o bem do Brasil” até a generalização da classificação desses protestos como ação de “vândalos”. A disputa por esses sentidos discursivos e distinções ocorria em meio as reivindicações e denúncias da precária mobilidade da população, a falta de um projeto de reforma urbana e agrária, gentrificação das cidades sede de megaeventos e os casos de abuso da autoridade policial no Brasil. Essas posições, que podem ser consideradas de cunho maniqueísta, tendem a gerar uma superexposição de algumas lutas pela mídia e pelas redes sociais, quase com caráter “sagrado”, e na desqualificação e criminalização cotidiana de outras lutas, criando estereótipos a partir de temas que acabam sendo pouco aprofundados no debate público e acadêmico, como por exemplo, a questão da violência policial. Mais uma vez em Sader (2001) ainda é possível encontrar elementos que auxiliam a pensar esse tipo de relação interdependente entre organizações e movimentos sociais e o Estado no sistema capitalista vigente: [...] estar em desvantagem na relação de poder, não significa entender o popular como idiota; é preciso, antes de fazer colagens interpretativas, se empenhar na tentativa de ouvi-los sobre as aparentes contradições e mascaras que possam eventualmente portar; “Ou seja, os “manipulados” também “manipulam”. Através da absorção de padrões dominantes eles expressam algo de suas vontades e seus sonhos e é exatamente isso que é necessário saber ouvir (SADER, 2001, p.110). Assim, a multiplicidade de pautas e acontecimentos que estavam contidas nas manifestações, além do transporte público e da Copa do Mundo, não permite ter certeza de uma única interpretação sobre como essas mobilizações foram e ainda serão possíveis. Quem acha que 16

Publicado pelo Wikileaks em julho documento secreto que descreve os planos de desregulamentação mundial do mercado econômico ao longo dos anos 1990, disponível em: https://wikileaks.org/tisa-financial/

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consegue captar todas suas dimensões e projeções futuras de imediato, corre um sério risco de ter uma interpretação inapropriada das diversas manifestações que estão ocorrendo, para defender hipóteses dedutivas e previamente elaboradas, sem se permitir ao exercício de participação, de reflexão e disputa do sentido dessas mobilizações em seu lócus privilegiado que é nas ruas. Sobretudo, não é possível visualizar e eleger o principal aspecto que influenciou essas manifestações, nem focar em um único grupo nesse campo social. Considero que esse processo foi formado pela interdependência entre os diferentes atores, isto é, atores que atuam no Estado e no conjunto da sociedade civil, pois um sem o outro não produziriam as ações e reações entre si ou disputaria mudanças nas relações de poder sucessivas vezes ao longo dessas manifestações (ELIAS, 1994; SADER, 2001). As forças políticas que estão no Estado e em protestos podem até ser opostas, mas são componentes de uma mesma sociedade que se reconfiguram e medeiam suas relações em meio ao atual estágio do desenvolvimento capitalista no país. Que as organizações, movimentos e coletivos sociais precisam ter voz, espaço e vez, isso também parece ser consensual e discurso de muitos (as), mas isso ao que tudo indica não será consentido ou dado. Terá que ser disputado e conquistado nas mais diversas esferas da sociedade cotidianamente e tanto a formulação das questões sobre as manifestações massivas que eclodiram nesse momento histórico pautando um governo e um legislativo enrijecidos pelos múltiplos comprometimentos com as forças nacionais e multinacionais que retroalimentam o sistema social, político e econômico vigente no Brasil.

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