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May 29, 2017 | Autor: Heliana Conde | Categoria: Análise Institucional
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Quatro platôs à guisa de prefácio

Heliana de Barros Conde Rodrigues

A mim, 2013 soa como "o ano da Análise Institucional": ministro três disciplinas sobre o "paradigma" – assumo inicialmente o eufemismo enganador – da AI na Universidade; prefacio a coletânea Clínica do Trabalho e Análise Institucional, em que institucionalistas e agentes interessados na saúde do trabalhador se fazem intercessores; redijo a apresentação da terceira edição de A análise institucional de René Lourau, prestes a ser lançada como integrante de uma coleção de Psicologia Social.
Disse Michel Foucault que a verdade, em lugar de estar placidamente à espera de um olhar informado e de métodos adequados, é função de lutas e embates que remetem a lugares e temporalidades propícios. Nesse sentido, convidada a prefaciar esta coletânea, intitulada Análise Institucional e Saúde Coletiva, opto por desenhar quatro platôs temático-temporais, no intuito de que possamos problematizar, no presente, os regimes de verdade ligados a essa aproximação.

Saúde e Sociedade, ano 2000
Na alvorada do século XXI, Madel Luz publicou um artigo de caráter histórico relativo à (apenas aparentemente óbvia) associação entre saúde e sociedade. Ali, ela ressalta: "Os numerosos estudos macroestruturais de tendência marxista, realizados por economistas, sociólogos, cientistas políticos e médicos sociais nos anos 70 e 80, em que pese seu brilhantismo e grande contribuição para a formação do campo, frequentemente desconsideraram, como secundárias ou mesmo irrelevantes, questões relativas à instituição e aos movimentos sociais em saúde. Isto [...] enfraqueceu a força analítica do objeto políticas de saúde, em face da complexidade deste objeto, irredutível ao Estado e ao desenvolvimento econômico em suas relações". Logo a seguir, cônscia da hegemonia que a análise "macro" das políticas de saúde alcançara no período mencionado, acrescenta: "Sua força adveio não apenas do tipo de abordagem que desenvolveu, mas também – talvez sobretudo – do papel politico que tais análises representaram na conjuntura, em termos de denúncia das políticas socioeconômicas do período da ditadura".
Contudo, no mesmo artigo, em convergência (provavelmente não intencional) com uma posição expressa por Georges Lapassade – para quem "as correntes antiinstitucionais são institucionalistas"–, afirma Luz: "O movimento antiinstitucionalista mobilizou [...] personalidades europeias carismáticas, em termos de produção intelectual e ativismo político, do nível de Michel Foucault, Robert Castel e Franco Basaglia. A ligação desses líderes com a atividade política da luta antimanicômio [...] no Brasil manifestou-se fortemente na segunda metade dos anos 70, dando origem a um conjunto de trabalhos de pesquisa e de ação com abordagem de análise institucional [...]. Outros autores europeus, geralmente sociólogos, presentes em outra versão da análise institucional, com forte influência no universo psi brasileiro nos anos 70 e 80, foram aqueles ligados ao grupo francês da revista Recherches Institutionelles, liderado pelo sociólogo René Lourau [...]". Ainda segundo a autora, esse momento teria sido fundamental para a configuração do que viria a ser chamado, nos anos 80, campo da "saúde coletiva", no bojo do qual agentes de variadas especialidades (cujas fronteiras disciplinares se viram, com isso, desejavelmente abaladas) tematizaram questões relativas ao exercício de poder institucional médico, especialmente aquelas ligadas ao "papel das práticas e instituições 'de saúde' em relação à conservação de uma ordem social concentradora de poder e autoritária".
Nessas últimas palavras, evidencia-se o quanto a perspectiva da análise institucional, tomada aqui em sentido amplo, parece a Madel Luz imprescindível não apenas em face da produção funcionalista-positivista, tão renitente no campo da saúde, como, inclusive, da própria produção marxista, então voltada para grandes questões estruturais. No entanto, conforme acrescenta a autora, a produção oriunda do enfoque institucionalista "não alcançou consenso no campo da saúde coletiva" nem logrou "influenciar a totalidade do campo com seus novos temas e abordagens". Predominaram, isto sim, nos anos 70 e início dos 80, "os estudos sobre a profissão médica, sobre a organização do setor saúde, da indústria farmacêutica e sobre a previdência social, que privilegiaram sistematicamente o desenvolvimento da economia capitalista em suas relações com o Estado (e vice-versa) como elementos de explicação teórica".
A perspicaz análise de Luz, que faculta apreender, ao menos em parte, as razões pelas quais a análise institucional foi, a princípio, mais acolhida pelos psi e pelos filósofos interessados no problema da subjetividade do que pelo campo das ciências sociais, da saúde estrito senso ou da interrelação entre ambos, nos encaminha, em percurso ziguezagueante, a novo platô.

Medicina individual e Medicina social, ano 1974
Michel Foucault esteve no Rio de Janeiro em meados dos anos 1970, ministrando uma série de conferências no Instituto de Medicina Social (IMS) da UEG (Universidade do Estado da Guanabara), atual UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro). A presença do filósofo envolve, à época, grandes expectativas: encontra-se no auge, embora cercada de prudente silêncio, a polarização entre uma medicina individual-capitalista-reacionária – porto seguro de positivistas e funcionalistas – e uma medicina social-libertária-socialista – utopia do Movimento Sanitário.
No campo médico brasileiro, o conflito entre os agentes que privilegiam o social – geralmente médicos sanitaristas, ligados (em aliança ou conflito) às ações estatais – e os que defendem a prática individual-privada é bastante antigo. Deixando de lado conjunturas remotas, cumpre frisar que, a partir do golpe militar de 1964, estar vinculado a (e discursar sobre) "higiene pública", "prevenção" ou "dimensão social da medicina" torna-se um indício capaz de desencadear ações retaliadoras – restrições, perseguições, cassações, aposentadorias compulsórias, prisões etc.
Quando da vinda de Foucault, já haviam sido criados alguns espaços universitários resistenciais – apoiados, quiçá paradoxalmente, pela política educacional vigente. Voltavam-se à implementação de cursos de pós-graduação em "medicina preventiva", "medicina preventiva e social", "medicina social", "saúde pública" etc. Mediante tais expressões, apontava-se invariavelmente à necessidade de realizar uma análise sócio-política das ações médicas. O mestrado do IMS (inicialmente chamado de mestrado em "medicina social"), por exemplo, deveria formar profissionais com conhecimentos (entrelaçados) de Epidemiologia, Planejamento em Saúde e Ciências Sociais que favorecessem uma ação crítica e transformadora. Quanto ao que nos interessa em especial destacar, tratava-se de reunir dois elementos supostamente separados pela modernidade (capitalista): a medicina e o social.
A segunda conferência pronunciada por Foucault ("O nascimento da medicina social"), todavia, abala radicalmente o arraigado clichê da luta política na saúde: medicina individual, capitalista, defendida pelos profissionais alienados, versus medicina social, adversária do capitalismo, palavra de ordem dos progressistas. Nessa conferência, Foucault convida a pensar diferentemente, ao asseverar que "a medicina moderna é uma medicina social que tem como background uma certa tecnologia do corpo social; a medicina é uma prática social que somente em um dos seus aspectos é individualista e valoriza as relações médico-paciente". Na mesma direção, ele assim prossegue: "Com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina privada, mas justamente o contrário; [...] o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do século XVIII e início do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquanto força de produção, força de trabalho. [...] Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica".
Foucault reconstitui, a seguir, a emergência da Medicina Social: na Alemanha, ela ganha as características de "medicina de Estado" ou "policia médica"; na França, de "medicina urbana"; na Inglaterra, por fim, de "medicina dos pobres" ou "medicina da força de trabalho". Sob a égide dessa análise, inúmeros estudos desenvolvidos (e/ou defendidos) pelos profissionais brasileiros ligados à medicina social – de morbidade e mortalidade; relativos à normalização da prática e saber médicos; voltados ao controle e saneamento dos espaços urbanos; interessados na atenção médica aos trabalhadores etc. – viram-se associados à própria constituição da sociedade capitalista, em lugar de constituírem ações tendentes, se não a destruí-la, ao menos a abalá-la em uma de suas instituições, a medicina, tornando-a "social". Para tanto, evidentemente, a medicina era vista por esses profissionais e pesquisadores como dotada de autonomia relativa, ou seja, como passível de se constituir em espaço de militância ou campo de luta específico.
Atualmente, reconhece-se mais facilmente que Foucault não pretendia invalidar os esforços empreendidos pelos movimentos progressistas no campo da saúde, advogando em seu lugar, por exemplo, a primazia de lutas outras ou o retorno à "vida natural" (sem medicina). Na conferência "Crise da medicina ou crise da antimedicina?", por sinal, ele afirma inúmeras vezes que não propõe uma antimedicina, mas a análise genealógica de um certo modelo de medicina – acerca do qual não deixa de ser extremamente crítico. Adverte igualmente ser inadiável a realização de uma análise histórico-genealógica do advento da medicina moderna com vistas à invenção de práticas efetivamente rupturais, em lugar de inadvertidamente calcadas nos mesmos mecanismos de disciplinamento dos corpos e controle das populações que, há dois séculos pelo menos, marcavam a instituição médica. À época, contudo, embora as conferências foucaultianas tivessem causado grande impacto, sua não-aderência às perspectivas estritamente marxistas do "movimento sanitário" geraram relutância em acatar esse convite analítico-institucional.
Relutância análoga se fez presente entre historiadores e cientistas sociais, tanto que os primeiros escritos históricos brasileiros sob a égide da arqueogenealogia foucaultiana vieram "de fora": "Da(n)ação da norma" (de Roberto Machado, um filósofo, e colaboradores, resultado de pesquisa conjunta do IMS/UERJ e do Departamento de Filosofia da PUC-RJ), datado de 1978, e "Ordem médica e norma familiar" (de Jurandir Freire Costa, psiquiatra, psicanalista e professor do IMS), de 1979.
Conforme apontado por Madel Luz, psis e filósofos mostraram-se mais sensíveis ao antiinstitucionalismo característico da análise institucional (em sentido amplo) do que os agentes da saúde. Mas isso já nos conduz a novo platô.

Institucionalismo e marxismo, ano 1976
Atualmente sabemos, contudo, que a primeira pesquisa de monta desenvolvida no Brasil com apoio em Foucault provém de um médico, Sergio Arouca, ligado ao movimento da medicina social: a tese de doutorado O dilema preventivista: contribuição para a compreensão e crítica da medicina preventiva. Concluído em 1975, o texto ficou guardado durante um ano sob a custódia do então reitor da UNICAMP, Zeferino Vaz, e só veio a ser defendido, sem a presença do orientador (Miguel Inácio Tobar Costa), em 23 de julho de 1976.
O momento dessa defesa lotou o Paulistão, auditório da Santa Casa de Campinas, e foi encarado como relevante ato político, visto que Arouca não só desafiara seu orientador – um preventivista mais ortodoxo, digamos –, ao classificar o preventivismo como desprovido tanto de prática teórica quanto de prática política, como ousara mesclar marxismo (althusseriano) e arqueologia do saber (foucaultiana). Fora demitido, inclusive, do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, onde atuava desde 1971 como professor de medicina social, transferindo-se para a Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), que hoje ostenta seu nome, no Rio de Janeiro.
Somente em 2003 se pôde dispor dessa tese em livro, por sinal em formato bastante original: cada capítulo é seguido de um comentário elaborado por pessoa escolhida pelo autor, então já falecido. No texto de Everardo Duarte Nunes, lê-se: "Foucault e Althusser serão os autores privilegiados dessa tese que, escrita por um homem de esquerda, não teve receio de utilizar, de um lado um filósofo da transgressão e de outro um marxista herético". Hoje, distanciados da emoção que cercou a defesa da tese e sem qualquer intenção de julgar o trabalho, cumpre dizer que Arouca recorre a conceitos foucaultianos extraídos de A arqueologia do saber – enunciado, discurso, arquivo, positividade, estratégia, descontinuidade etc. – para analisar os discursos preventivistas. Nesse âmbito, vê na medicina preventiva uma formação discursiva que emerge em um campo configurado por três vertentes: a velha Higiene do século XIX; a discussão dos custos da assistência médica surgida nos EUA nas décadas de 1930/1940; e a redefinição das responsabilidades médicas no interior da educação médica, datada dos anos 1950. Para dar conta do não-discursivo, no entanto, avalia como insuficientes as postulações de Foucault: conceitos como modo de produção e ideologia são, ao ver de Arouca, indispensáveis para forjar uma versão materialista da arqueologia. Consequentemente, ele apela ao marxismo althusseriano – aspecto em relação ao qual reconhecemos que pratica uma segunda heterodoxia, sabendo-se que o estruturalismo de Althusser era (e eventualmente ainda é) repudiado por inúmeros pensadores e militantes que se arrogam estritos seguidores de Marx.
A defesa da tese de Arouca marca o começo de um novo período no que tange às relações – teóricas e políticas – entre o campo médico e a dimensão do institucional. A partir de então, fala-se não tanto em "medicina preventiva" ou "medicina social" – expressões já sob um bem fundado acúmulo de críticas –, mas em "saúde coletiva". Sem identificar ingenuamente palavras e conceitos, importa ressaltar o caráter diferencial, quanto às práticas efetivas, de cada um desses termos: saúde, e não medicina (pois teremos efetivamente saúde sob uma expansiva medicalização, ou melhor, sob uma biopolítica?); coletiva, e não social (pois teremos mesmo alguma voz e ação, como coletivo, nesse social que é sinônimo de disciplinamento-controle?). É evidente que não só as análises de Foucault, somadas às de Basaglia, Castel, Lourau, Lapassade e outros (anti)institucionalistas contribuíram para essa transformação terminológico-prática. Porém tais análises são, decerto, dela inseparáveis – o que nos permite aceder ao último platô.

Análise Institucional e Saúde Coletiva, ano 2013
Em uma perspectiva apenas descritiva, poderíamos atribuir a proveniência do presente livro a intercâmbios, devidos à frequentação recíproca (visitas, seminários internacionais, estágios de pós-doutoramento) entre pesquisadores brasileiros e franceses, tendo como principal foco as relações entre AI e saúde. No entanto, conforme esboçado, em tom ensaístico, nos platôs anteriores, redes mais intrincadas e transversais certamente configuram as condições de existência da obra, que fala, desde o título, de uma conexão AI-SC: transformações a duras penas realizadas (e jamais asseguradas em definitivo) no campo brasileiro da saúde mental em uma direção desinstitucionalizante; inflexões, apesar de ainda minoritárias em números (nunca em forças), nos programas de pós-graduação em saúde (não à toa, agora qualificada de "coletiva"); inflexões análogas em outros programas – enfermagem, psicologia, educação, história, ciências sociais etc –, não menos arduamente instauradas ou mantidas, em face do produtivismo empreendedorista hegemônico que nos envolve no contemporâneo; experimentos de gestão democrática em municípios ou cidades brasileiros, por mais que permeados de tropeços e/ou impasses; implantação do Sistema Único de Saúde, com sua insistência no (perigoso) termo "humanização", a despeito de certos efeitos objetáveis ou defeitos constatáveis; criação de centros e associações, com seus respectivos periódicos, que procuram privilegiar – não sem dificuldades – temas políticos, éticos, sociais e sócio-históricos no âmbito da atuação e da formação em saúde; crescimento e expansão do movimento editorial brasileiro, não obstante o alto custo das publicações e a eventual concentração regional; conquista de algumas metas apelidáveis "democráticas", embora eventualmente o capitalismo neo-liberal pareça tornar nossos corpos e subjetivações meros índices na gestão biopolítica da vida etc.
Tudo isso, em minúcias impossíveis de abarcar em um prefácio, mas presentes na introdução e nos artigos que compõem este livro, delineia um encontro há muito marcado, mas bastante adiado, entre Análise Institucional e Saúde Coletiva. Não há dúvida de que o panorama se desestratificou, ou melhor, é visível a permeabilização de fronteiras quando comparado ao apresentado em nossos primeiros platôs: se o marxismo não desapareceu (festejemo-lo, é claro!) das análises da saúde no Brasil, tornou-se, desejavelmente, menos "puro e duro", ou seja, mais afastado de centralismos (nada) democráticos; se as disciplinas no âmbito da saúde nem sempre chegaram a criticar, historicamente, a constituição de suas próprias fronteiras, todas elas, independentemente do quão biológico-organicistas ainda se mantenham, criaram porosidades capazes de acolher em seu seio a análise das instituições.
Um breve percurso pelos artigos, que prefere frisar o desvio a expor o detalhe, o evidencia: a vigilância em saúde tenta passar do panóptico ao rizoma; o ambulatório faz-se analisador de relações; ousa-se indagar "o que é uma organização?"; a pesquisa-ação, a pesquisa-intervenção e os diários de pesquisa invadem o santuário dos metodólogos sapientes; a residência médica perde a obviedade de lar formativo-familiarista; a dengue se complexifica para além de caixas dágua sem tampa e indesejadas bromélias; práticas complementares/integrativas ultrapassam, sem receios, a tolerância (invalidadora) dos cientificistas; os conflitos no campo da enfermagem deixam de ser meras idiossincrasias de sujeitos pouco simpáticos ou insuficientemente empáticos para fazer-se questão ético-política; a gestão em saúde transmuta-se em problema muito mais relevante, ética e politicamente, do que aquilo que seria incorporável a organogramas e fluxogramas burocráticos; as doenças crônico-degenerativas, em lugar de impasse e desgaste, fazem-se campo de análise de cronicidades historicamente engendradas; a atenção psicossocial em saúde mental desdobra seu caráter formativo, em lugar de fixar-se como mera (embora bela) palavra de ordem; a psiquiatria biológica e a atenção psicossocial mostram suas armas e eventuais armaduras; o cartográfico, em lugar de disputar hegemonias metodológicas, propõe-se a contagiar-entusiasmar; a pós-graduação em enfermagem pode dizer-se saúde coletiva, sem medo de ser feliz (e quiçá mais parresiasticamente que o antigo refrão); os municípios de pequeno porte reivindicam (e realizam) análises singulares de seus equipamentos e funcionamentos; a medicina comunitária rejeita clichês harmonizantes em favor de análises coletivas; o diabetes é reinventado como nada doce analisador; abre-se caminho à apreciação das conexões e distâncias entre os Centros de Atenção Psicossocial e o Programa de Saúde da Família; foruns colegiados distritais deixam de ser congelados em insípidos relatórios para convidar-nos a uma imersão perturbadora em seus meandros etc. Vale ainda acrescentar que tais problematizações e debates provêm de médicos, psiquiatras, enfermeiros, psicólogos, odontólogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, cientistas sociais, historiadores, linguistas etc., sem que seja a priori óbvia a temática que abordam e sem que se faça necessário, no anexo "Sobre os autores", identificar-lhes a profissão: quanto a todos eles, cabe a menção à saúde coletiva e mais, ou menos explicitamente, à Análise Institucional.
Tudo isso pode-se dizer quanto aos artigos brasileiros. Mas há os franceses: nestes, divisam-se certos efeitos da institucionalização da AI, que parecem obrigar à repetida revisão e contestação dos velhos mestres, bem como à eventual invenção de novos campos de coerência; mas igualmente se percebem inquietações muito atuais, como a análise crítica da razão gráfica (quanto nos custam certos formulários oficiais!) e a reafirmação, sempre indispensável, de que a AI é (e sempre foi) muito mais do que a intervenção institucional a pedido, possuindo virtualidades ainda pouco atualizadas no campo da pesquisa histórica, inclusive (ou particularmente) no âmbito da saúde.
Prestes a concluir, assalta-me a suspeita de que eventuais leitores, com base nos últimos parágrafos, digam "corporativista" este escrito, acusando-o de ver a AI como panaceia para todos os até então "males" da saúde coletiva. Animo-me a responder a tais interlocutores imaginários, quiçá inexistentes. Não se trata disso. Decerto os conceitos de analisador, transversalidade, implicação, institucionalização fundadora e permanente, instituído e instituinte, gênese teórica e social, AI sócio-histórica, contratransferência institucional, cartografia, intervenção institucional etc. trazem um novo estilo de escritura, uma nova ética e, talvez primordialmente, uma nova política a esse âmbito dito "coletivo", libertando-o, ao menos em parte, do que René Lourau apelidou "Estado-inconsciente". Decerto tais conceitos e os modos de ação a eles associados impõem limites ao que geralmente fazem intelectuais e pesquisadores, ou seja: frente à multiplicidade de respostas que a vida cotidiana produz, restringir as perguntas pertinentes, oferecendo-as, via prestígio d'"a" ciência, como as únicas dignas de registro e consumo.
Mas não se forja, como que por encanto, um coletivo unívoco, em que os modos de ser se imanentizam sem qualquer hierarquia previamente postulada. Assim como em minhas próprias práticas em Análise Institucional, no caso afeitas à saúde pela via da formação psi, diagnostico (nietzscheana ou foucaultianamente) alguns limites. Quanto a alguns deles, adoto a fala séria; quanto a outros, a malícia ou a ironia, sem que tal escolha as ordene em importância.
Sou breve a respeito: persiste a oposição quantitativo x qualitativo, eventualmente como se a adoção da última estratégia garantisse, por si só, a inclusão desenssencializada da subjetividade – o velho sujeito cartesiano, kantiano, fenomenológico ou freudiano quase sempre se intromete, mesmo sem ser chamado, nessa brecha favorecida pelos instituídos metodológicos; a transversalidade por vezes configura o que gosto de apelidar "Efeito São Sebastião" – sujeitos e grupos previamente concebidos e "postos" (amarrados à árvore qual a figuração habitual do santo) são atravessados por "flechas" – as ditas instituições –, sem que os contornos prévios se apaguem para que apareçam, efetivamente, como "dobras", como "fundados e refundados pela história"; os analisadores combinam-se de forma um tanto acrítica com os indicadores, como se a biopolítica associada aos últimos pudesse ser combatida por simples acréscimos feitos a suas normalizações, cuja genealogia é estatal (estatística) e policial (condição histórica da estatística e da demografia).
O último ponto é o que me parece mais sério e, por essa razão, quero com ele finalizar estas páginas. No livro O Estado-inconsciente, René Lourau incluiu um perturbador capítulo intitulado "Dos indicadores sociais aos analisadores sociais". Ali, ressalta que dos anos 60 em diante a estatística foi incluída em todos os aspectos da vida. Não se trata, no caso, de uma rejeição global e estéril da quantificação, pois, conforme o autor, ela não está posta em tela de juízo "a não ser quando é autonomizada pelos planificadores ávidos de indicadores"; melhor dizendo, quando configura um "centro de decisão", já que a luta conta o instituído, na AI, é luta contra o conceito de centro e contra qualquer forma de centralismo. Em contraponto a tais eventualidades – centro, centralismo, "religião centralista" que "fabrica a representação como valor supremo" –, justamente, insurge-se a teoria dos analisadores sociais. Em parágrafos extremamente elucidativos, Lourau assim condensa o valor subjetivante, desinstitucionalizante e desmaterializante dos analisadores: "A instituição possui o poder de nos objetivar, de nos coisificar dentro dos estatutos e funções. O analisador 'desobjetiva', desfaz os estatutos e funções, nos restitui a subjetividade. [...] A instituição possui o poder de fixar em normas as relações livres, vivas, interpessoais, tais como se constituem na vida cotidiana mais íntima assim como nos movimentos sociais espontâneos [...]. O analisador desinstitucionaliza, revela o instituinte abafado sob o instituído e, ao fazê-lo, desordena o instituído.[...] A instituição possui o poder de materializar em formas aparentemente neutras e universais, a serviço de todos, as forças econômicas e políticas que nos dominam, fingindo, ao mesmo tempo, ajudar-nos e defender-nos. O analisador desmaterializa as formas da opressão, revelando as forças que nelas se escondem e combate todas as formas materiais".
Mediante a crítica de Lourau aos indicadores, tão estruturais-estatais-centralistas, regressamos em parte aos primeiros platôs – os do circunstancial desencontro entre Análise Institucional e Saúde Coletiva. Ao muitas vezes fazer convergir, sem maiores nuances, indicadores e analisadores, este livro sugere, talvez, o ponto em que hoje nos encontramos. Sua leitura pode, nesse sentido, constituir-se em um potente analisador tanto de nosso desejo de saber quanto de nossa posição no seio das relações sociais. Um analisador de nossas implicações, em suma, o que o torna imprescindível.


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