Que evolução para o mundo contemporâneo?

Share Embed


Descrição do Produto

QUE EVOLUÇÃO PARA O MUNDO CONTEMPORÂNEO?

Introdução
As previsões do futuro constituem habitualmente o campo de atividade de
astrólogos, cartomantes e afins, com os resultados – ou a falta deles – que
se conhecem.
Todavia isso não significa que, a partir da situação atual, não se possa
extrapolar sobre uma possível evolução para o mundo contemporâneo, no que
se poderia chamar um exercício de pesquisa histórica inversa, isto é,
iniciando-se no presente e caminhando para o futuro ao invés de rever o
passado. E, no entanto, é com base nesse mesmo passado que se pode criar
essoutro hipotético futuro.
Por outro lado, a ficção científica sempre teve a virtude de antecipar de
algum modo o futuro. Veja-se o caso de Júlio Verne e a suas obras Da Terra
à Lua ou Vinte Mil Léguas Submarinas, clássicos da literatura que
imaginaram o que é nos nossos dias uma realidade perfeitamente comum.
Deste modo, recorrendo à informação que nos é diariamente debitada pelos
media e juntando-lhe a especulação literária da ficção científica, tentou-
se construir um quadro daquilo que poderá vir a ser o mundo contemporâneo
quando se tornar pós-contemporâneo. Não será um retrato lisonjeiro mas
antes um perfil que reflectirá uma possível evolução das tendências atuais
– políticas, económicas, culturais – e suas consequências na sociedade
mundial.

A situação atual[1]
Tem-se verificado que o que comanda atualmente a política dos países mais
poderosos são os interesses económicos, regra geral pensados para o tempo
imediato. O princípio democrático de que o poder político, por ser
resultante de sufrágio popular, está acima do poder económico é, nos dias
de hoje, encarado com certo cinismo numa sociedade mundial em que o
principal valor é o mercado e, por conseguinte, o dinheiro. Tudo o resto se
torna secundário para os grandes decisores políticos, sejam valores morais
ou de sobrevivência humana.
O mundo contemporâneo está incerto, desregulado. Durante a "guerra-fria"
esteve perfeitamente definido em dois blocos antagónicos: de um lado uma
sociedade democrática e livre – ainda que com imensas lacunas – composta
pelos EUA e pela Europa; de outro, uma sociedade dita igualitária mas que
era tão-somente totalitária, o grupo dos países comunistas. Ambos
disputavam entre si a primazia mundial. Existia ainda um grupo de países
chamados não-alinhados, que não se reviam em nenhum dos blocos, mas que
faziam um certo jogo entre os dois. Nos dias de hoje, o mundo tal como era
conhecido, desabou.
Com o desfazer da "cortina de ferro" e o colapso do sistema comunista,
deixou de existir um mundo bipolar, emergindo uma única e grande potência:
os Estados Unidos. É uma potência com um poderio militar sem rival, aliado
a uma enorme capacidade económica, o que lhe permitiu autoassumir um papel
de defensora da democracia e da liberdade, vistas pelo prisma do mercado-
livre, isto é, só aqueles países que optaram por uma economia de mercado
são verdadeiramente democráticos. Estava assim criada a ideia de que
democracia e mercado-livre são conceitos convergentes e que se fundem num
único.
Todavia, se é possível dizer-se que sem a economia de mercado não se chega
à democracia – como ficou demonstrado após o colapso da economia
centralizada comunista em que tudo e todos dependiam do Estado, logo tinham
a sua liberdade circunscrita o que não é compatível com um regime
democrático –, não é correta a afirmação contrária, pois a democracia não
se obtém através da economia de mercado – veja-se o caso das ditaduras sul-
americanas, em que os milhares de mortos e desaparecidos por discordarem da
política oficial não impediram o florescimento de uma economia liberal.
Surge então o conceito de globalização, que embora não seja exatamente novo
– pois tem sido utilizado desde o séc. XV quando Portugal, Espanha, e, por
fim, a Inglaterra passaram a dispor de vastos impérios coloniais – conheceu
uma aceleração e um aprofundamento sem par na última década do séc. XX e
nestes primeiros anos do séc. XXI. Tendo beneficiado sobretudo da revolução
tecnológica trazida pela informática – que também esteve na origem da queda
do bloco soviético, dado que a rigidez da sua economia impedia a livre
circulação de capitais proporcionada pela era dos computadores (Francis
Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem) – a globalização fez-se
sentir não apenas a nível económico mas também na transmissão de informação
e conhecimento.
Ora informação e conhecimento são importantes formas de poder que, como
seria de esperar, atraem a atenção dos poderosos que, controlando a sua
transmissão, adquirem um ótimo veículo para a implementação dos seus
interesses (como brilhantemente descreveu George Orwell em 1984), sejam
eles de índole meramente comercial ou de índole eminentemente política.
Sintomaticamente, porém, tem-se verificado uma grande convergência das duas
– a ponto de a primeira servir como condutor da segunda – nas relações da
única superpotência existente com o resto do mundo ou não fosse pela via
comercial que se tem estabelecido a hegemonia dos povos nos sucessivos
impérios que já existiram ao longo da História.
Assim sendo, qual poderá ser a evolução a partir daqui? Os EUA certamente
buscam a manutenção da liderança mundial a nível político – por vezes com
"tiques" imperialistas – e a melhor forma de conseguir esse objetivo é a
manutenção de uma hegemonia comercial. Suponha-se então um mundo em que
vender se tornou um fim em si mesmo e em que as agências de publicidade
tudo controlam, inclusive os órgãos de governo. Não será substancialmente
diferente daquele em que vivemos, quando se sabe a influência que os
lobbies económicos têm sobre o poder político nos dias de hoje, mas antes
um seu corolário lógico.

Evolução para um capitalismo selvagem[2]
Este "admirável mundo novo", para citar o título da famosa obra de Aldous
Huxley, será tudo menos admirável quando comparado ao atual. O capitalismo
selvagem, de que tanto se fala atualmente como tendência que se quer
evitável a todo o custo, tem aqui plena realização. As agências de
publicidade dominam a sociedade a todos os níveis, determinando o
comportamento humano. O planeta Terra já pouco pode oferecer de tão
exaurido que foi. Impera a indiferença em relação a um provável colapso
futuro devido à sobre-exploração, existindo a convicção cega de que, caso
necessário, a ciência poderá criar novos "recursos naturais" para
substituir os que entretanto se forem esgotando. Desencorajando-se a
leitura e proporcionando-se lares de ambiente deprimente, as pessoas são
induzidas a consumir freneticamente para aliviar o tédio que sentem.
A água corrente nas torneiras é salgada, já que a escassez de água doce
obriga a preços só compatíveis com os quadros superiores das grandes
companhias de publicidade, os quais constituem os privilegiados – com um
número da segurança social baixo, da ordem das dezenas de milhão, em
relação à restante população, da ordem dos triliões – de uma sociedade com
um excesso populacional dramático. Este excesso populacional levou a que o
conceito de habitação se tenha tornado obsoleto: a multidão de empregados
nos escritórios citadinos pernoita nos degraus das escadas dos arranha-
céus, alugados em cada noite; o reduzido número de habitações que ainda é
construído – e que constitui o sonho de uma vida para o comum dos cidadãos
– não passa de uma fina estrutura de plástico pré-fabricado. Nos
dormitórios existentes as camas nunca chegam a arrefecer, pois há um
esquema rotativo de dormidas em que um utente é acordado pelo outro quando
chega a vez de um de ocupar o leito e de outro o ceder.
Todos os produtos consumíveis pelo ser humano são conhecidos apenas pela
sua designação comercial, contendo um alcaloide simples que produz
habituação e uma necessidade específica de consumir outro produto da mesma
marca. É assim que a uma oferta de cigarros surge a necessidade de fumar
aquela marca específica, que, por sua vez, gera a necessidade de comer um
chocolate daquela marca específica, que, por seu turno, faz pensar em
consumir uma bebida daquela marca específica, originando o desejo de fumar
novamente um cigarro daquela marca específica, repetindo o ciclo duas ou
três vezes antes de chegar à saciedade. Além do alcaloide, os anúncios
publicitários – tridimensionais, com projeção de visão-sabor-cheiro-audição-
sensação diretamente nos órgãos sensoriais humanos – cumprem também a
função de fidelizar irrevogavelmente o consumidor às marcas, a ponto de
este ao pensar em fumar um cigarro, comer um chocolate ou tomar uma bebida,
repetir de forma reflexa a mensagem publicitária associada ao produto que
está a consumir. Ingerir comida natural, como um assado nos moldes
tradicionais, tornou-se um ato repugnante.
Continuam a existir trabalhadores não especializados que se encarregam das
tarefas mais árduas, com contratos de trabalho vitalícios, na prática, já
que embora tenham uma duração fixa, o trabalhador não pode abandonar a
companhia sem pagar as dívidas que contrair; acrescente-se que todo o
sistema está montado para que seja impossível não contrair dívidas, pois os
produtos são vendidos a preços exorbitantes em relação à quantidade dos
mesmos que é dispensada – escassa, que gera a necessidade de obtenção de
nova dose – e ao salário que se recebe. De cada vez que se adquire um
produto das inúmeras máquinas de venda automática, esse produto leva
inexoravelmente ao consumo de outro, que, por sua vez, leva ao consumo de
um outro e, como o crédito é extremamente facilitado, a dívida cresce de
forma exponencial.
Todos os produtos são fabricados a partir de compostos sintéticos de
substituição de elementos naturais agora esgotados na maioria do planeta.
Alguns deles viciam instantaneamente quer pelos alcaloides que contêm quer
mediante a utilização de apelos publicitários em forma de projeções
subliminares e subsónicas, sendo extremamente difícil, senão mesmo
impossível, a revogação do hábito. A religião tornou-se acima de tudo um
negócio extremamente lucrativo, dado o pequeno investimento necessário –
pois fideliza o consumidor sem necessidade de recurso a sofisticadas
tecnologias para vender o produto – e o comparativamente elevadíssimo lucro
– resultante da devoção conseguida, que se traduz na compra obsessiva de
todos os artigos com ela relacionados, e da consequente publicidade, a
custo zero, do produto pelo consumidor.
As fábricas deixaram de ter filtros nas chaminés para retenção do enxofre e
dos gases industriais, porque deixou de interessar proteger a saúde dos
cidadãos uma vez que a morte era muito mais lucrativa: tornou-se mais
barato pagar seguros de vida que pensões; os seguros de doença movimentam
muito dinheiro, pois quem passou cinquenta anos da sua vida a respirar os
fumos tóxicos sabe que irá estar doente grande parte do tempo e se morrer
em pouco tempo, o lucro das seguradoras é quase total; as agências
funerárias também levam o seu quinhão, obtendo elevados proventos na
disposição dos mortos; e, por fim, quando o consumidor ultrapassa a idade
de poder trabalhar, dispõe de muito pouco dinheiro para adquirir bens de
consumo, pelo que deixa de ter utilidade.
Embora continuem a existir potências como os EUA, o Governo deixou de ser
uma entidade com vontade própria, gerindo o país com maior ou menor
sucesso, para se tornar o órgão que dá forma de lei aos interesses das
grandes agências publicitárias, não mais que um banco central de
influências. O Congresso é dominado indiretamente pelas companhias de
publicidade, através dos congressistas que constam das respetivas folhas de
pagamento e o Presidente, destronado do lugar de vértice da nação, tem de
solicitar respeitosamente uma abertura nas preenchidas agendas dos
delegados publicitários ao Congresso. A política, como nunca o fora até
então, tornou-se um declarado campo de batalha das agências de publicidade,
remetendo para plano secundário os candidatos – ensinados, vestidos,
maquilhados, ensaiados e dirigidos – que mais não fazem que debitar apelos
publicitários em formato de slogans políticos vazios de conteúdo. Também
mais do que nunca os aspirantes a candidatos não faltavam, pois os
políticos ganhavam quase tanto como um publicitário principiante, em termos
de salário base, a que acresciam diversas avenças, abonos, consultorias e
afins ao longo da carreira, fazendo ascender os proventos ao nível de um
executivo publicitário médio; para todos os efeitos, era um importante
salto da inferior condição social de consumidor para outra em que se
detinham alguns privilégios.
A política externa americana, tal como a dos outros países desenvolvidos –
em termos mercantis –, pautava-se pela mais ostensiva ingerência nos
destinos dos escassos e ínfimos recantos da Terra, tradicionalmente mais
atrasados, que ainda não tivessem optado por abraçar os benefícios da
economia de mercado, isto é, que ainda não se tivessem constituído como
mais um grupo de consumidores obedientes. Para isso, recorre-se,
naturalmente, ao Exército, mas os métodos empregues diferem
substancialmente; as metralhadoras e os canhões foram substituídos por
projeções de visão-sabor-cheiro-audição-sensação, simplesmente químicas,
subsónicas ou estridentes, mas sempre subliminares, dirigidas diretamente
aos órgãos sensoriais onde penetram à força e os soldados foram
substituídos por técnicos de publicidade e abastecimento. Os resultados são
tão satisfatórios que, logo depois de terminarem as campanhas militares, as
populações visadas acorrem em massa aos pontos de abastecimento desejando
adquirir e consumir produtos de que, horas antes, nunca tinham
experimentado qualquer necessidade, lutando mesmo entre si para os
conseguirem; líderes surgem nos noticiários televisivos fumando dois
cigarros, bebendo uma chávena de café e entornando metade no fato novinho
em folha, tudo das principais marcas comercializadas e também tudo no
espaço de vinte segundos, agradecendo profusamente terem sido libertados da
"escravidão" em que viviam antes.
É este o mundo em que o capitalismo selvagem impera. Todavia, poderá surgir
a dúvida sobre se será realmente esta uma evolução de alguma forma
inevitável. É possível que se possa evoluir para um sistema totalitário nos
moldes tradicionais, em que o Estado ou uma oligarquia concentram em si o
comando exclusivo relativamente a todos os aspetos da vida do país; é
possível mas não provável, pois a História tem demonstrado que os sistemas
totalitários são incompatíveis com o desenvolvimento económico. Não terá
sido por acaso que os regimes de ditadura militar da América Latina
soçobraram ou que a "cortina de ferro" caiu; estes regimes chegaram a um
ponto da sua existência em que não conseguiam dar resposta a uma
movimentação de capitais muito mais intensa (Francis Fukuyama, O Fim da
História e o Último Homem).

Uniformização da sociedade
Para se atingir este estádio em que a população sente a necessidade e é
compelida a consumir, há que modificar o seu comportamento desgarrado e
torná-lo uniforme e previsível. A solução não é nova, tendo já sido testada
– e por algum tempo conseguida – pelos regimes totalitários do séc. XX:
nazismo e estalinismo. Em ambos os casos, procedeu-se a um
redireccionamento da sociedade, alterando os seus padrões comportamentais
através da repressão e, sobretudo, da propaganda.
Como George Orwell demonstrou em 1984 a propaganda é o método mais eficaz
de influenciar a opinião pública, desde que se controlem os meios
emissores. E a propaganda serve os mais diversos fins, desde a publicidade
comercial comummente aceite até à mobilização de massas com objetivos
políticos.
Neste contexto surge como paradigmática a história do Instituto para a
Análise Propagandística (Institute for Propaganda Analysis), criado em 1937
nos Estados Unidos, numa altura em que a propaganda nazi atingia o seu auge
(Aldous Huxley, Regresso ao Admirável Mundo Novo). Tinha por missão efetuar
uma análise da propaganda não racional com preparação de vários textos para
estudantes liceais e universitários. Veio então a II Guerra Mundial, uma
guerra total em todas as frentes, desde a frente de combate até ao conflito
surdo, mas não menos determinante, pela posse de informações estratégicas e
pelo ludibriar dos esforços inimigos na sua obtenção, além da ação
psicológica levada a efeito quer para levantar o moral das próprias
populações quer para desmoralizar as populações inimigas. Assim sendo,
analisar a propaganda emitida tornara-se contraproducente em relação ao
esforço de guerra e o Instituto seria encerrado em 1941.
Contudo, ainda antes do começo da guerra, já muitos setores punham
profundas objeções à sua atividade. Muitos educadores desaprovavam que se
ensinasse a analisar a propaganda, por considerarem que isso tornaria os
educandos indevidamente cínicos. As autoridades militares também não viam
com bons olhos a análise propagandística, por recearem que os soldados
começassem a examinar melhor as ordens dos sargentos instrutores. A grande
maioria dos religiosos também era contra, considerando que tendia a
enfraquecer a fé e a afastar as pessoas dos cultos. Os publicitários, por
seu lado, opunham-se veementemente a que se analisasse a propaganda pois
podia minar a fidelidade à marca e a reduzir as vendas.
Não serão de surpreender estas reações "alérgicas" quando se falava de
analisar a propaganda. Um exame demasiado pormenorizado, levado a cabo
pelas pessoas, daquilo que é dito pelos seus líderes, sejam políticos,
militares ou religiosos, poderia tornar-se extremamente subversivo. A ordem
social depende, para a sua manutenção, da aceitação sem demasiadas questões
embaraçosas da propaganda posta a circular pelas autoridades, embora seja
de evitar a postura acrítica perante as informações veiculadas.
No entanto, faltará ainda o catalisador que terá a função de impelir a
profundas modificações na ordem social vigente de modo a torná-la uniforme
e previsível. Tanto em 1984 de George Orwell como em Admirável Mundo Novo
de Aldous Huxley, como em muitas outras obras que descrevem uma sociedade
futura[3], o catalisador é uma guerra ou, melhor dizendo, uma última Grande
Guerra, imensamente mais aniquiladora que todas as anteriores, de tal forma
que produziu um profundo impacto na mente das populações, criando terreno
fértil para a aceitação de uma nova ordem social.
As sociedades superpovoadas
Contudo, talvez não seja preciso haver uma guerra a nível global. Durante o
séc. XIX os sucessivos progressos da tecnologia foram acompanhados de
correspondência no campo organizativo. À maquinaria complicada tiveram de
ser opostas complicadas disposições sociais, destinadas a funcionarem tão
suave e eficazmente como os novos meios de produção. Por outro lado, as
indústrias ao expandirem-se exigiram uma proporção cada vez maior de
trabalhadores, encorajando indiretamente a natalidade, até que,
presentemente, dado o magnífico sucesso da medicina em prolongar a vida
humana e em aguentá-la quando esta ainda é incipiente, a superpopulação é
cada vez mais uma realidade palpável.
A quantidade rapidamente crescente da população pesa cada vez mais sobre os
recursos naturais. Cerca de três mil milhões de seres humanos exigem
atualmente dos seus governos o provimento de boas condições de vida. A
pressão do crescimento demográfico e dos progressos tecnológicos levarão a
um incremento dos processos organizativos, que terá reflexo na legislação
que rege as comunidades. Certamente que as Constituições e as leis de
defesa do cidadão não serão abolidas, mas serão subordinadas às novas
realidades tendo em vista o funcionamento regular das instituições de cada
país.
Quando a vida económica de uma nação se torna periclitante, compete ao
governo encontrar soluções para enfrentar essa situação crítica, impondo
restrições aos seus governados; ora isto traz como consequência um clima de
intranquilidade política ou mesmo rebelião declarada, ao qual as
autoridades respondem com medidas visando salvaguardar a ordem pública e a
sua própria existência, concentrando cada vez mais poder e, finalmente,
ainda que não o tenham procurado, tomam-lhe o gosto. São as Constituições
democráticas que impedem que demasiado poder se concentre em poucas mãos,
mas em qualquer sociedade em que a população começou a exercer intensa
pressão sobre os recursos disponíveis, surgem inevitavelmente tentações de
governo totalitário.
Assim, a superpopulação conduz à insegurança económica e à intranquilidade
social que, por sua vez, levam a um maior controlo governativo e a uma
maior concentração do seu poder. Quando os sistemas democráticos são
fracos, a tendência é para se instalar um governo ditatorial, conforme tem
sido abundantemente demonstrado pela História. No entanto, observando os
países ocidentais em que democracia e liberdade constituem património
coletivo e que, altamente industrializados, são obrigados a sustentar uma
população muito maior do que a que seria possível a partir dos recursos
naturais disponíveis, a viragem para um regime totalitário com a
consequente centralização económica no Estado ou numa oligarquia, iria
quebrar as atuais relações de produção que, mal ou bem, têm vindo a servir
de suporte a um bem-estar de modo geral superior ao do resto do globo. Além
disso, para a sua própria manutenção, o totalitarismo necessita de subjugar
as populações mantendo-as num estado de tensão permanente, o qual, por seu
turno, não é favorável ao desenvolvimento económico, já que desvia o
esforço das pessoas concentrando-o na sobrevivência individual ao invés de
o concentrar na busca de melhores condições de vida.
Deste modo, o corolário lógico da vivência que nos alvores do séc. XXI é a
existente no mundo ocidental e que, inevitavelmente, tem tendência a
propagar-se a nível global por constituir sinónimo de invejável sucesso –
ainda que esse sucesso tenha sido conseguido à custa dos países menos
desenvolvidos, fornecedores de matérias-primas e mão de obra barata –, não
poderá ser uma qualquer forma de totalitarismo que iria pôr em causa uma
globalização económica paulatinamente construída desde o final da guerra-
fria.
Tem maiores probabilidades de ser tal como foi descrito no capítulo
anterior: um capitalismo desenfreado que exauriu por completo os recursos
do planeta Terra e que vê os cidadãos apenas e só como consumidores
compulsivos que desenvolvem os maiores esforços para tudo adquirirem. Em
que o desenvolvimento industrial deixou de ter como objetivo o incremento
do bem-estar das populações para passar a perseguir a criação de novos
produtos mais vendáveis que os anteriores, subordinado às diretrizes das
agências de publicidade tornadas todo-poderosas. Em que os governos têm
apenas uma função decorativa, subordinados aos ditames dos presidentes das
companhias publicitárias que almejam antes de tudo o aumento dos seus
lucros.

Conclusão
Naturalmente, esta poderá considerar-se uma visão demasiado pessimista ou
demasiado fantasiosa do futuro. Porém, colocando-a contra a luz da
atualidade, torna-se bastante plausível. Alguns exemplos podem estabelecer
essa relação: o presidente George W. Bush tomou unilateralmente a decisão
de abandonar o Protocolo de Quioto – uma tímida iniciativa para diminuir a
emissão de gases poluentes pelos países industrializados, da qual cerca de
25% é da exclusiva responsabilidade dos EUA (informação recolhida dos
media) – por considerar que tal acordo era prejudicial à indústria
americana; o abate de floresta virgem é cada vez mais intenso, pela
incessante procura de madeiras exóticas; a invasão do Iraque tendo em vista
– apesar de todos os discursos humanitários acerca da implementação dos
Direitos Humanos – a apropriação e posterior divisão entre si dos recursos
petrolíferos do país – de que estarão apenas explorados cerca de 10%
(informação recolhida dos media) – entre as potências ocidentais; a pesca
excessiva que impossibilita a reposição das populações piscícolas –
estimando-se que o bacalhau, por exemplo, que sofreu uma redução de 70% no
Mar do Norte, chegue à extinção dentro de quinze anos a manter-se o ritmo
atual de pesca (informação recolhida dos media) –, motivada pela crescente
demanda de alimento pelas populações humanas em aumento constante. Os
exemplos abundam e poderiam multiplicar-se.
Por tudo isto, a realidade ficcionada que foi anteriormente descrita tem
grandes possibilidades de poder vir a tornar-se uma realidade concreta, a
menos que se encontrem formas de regular a globalização que rege as
sociedades ocidentais e que, não há que ter ilusões, veio para ficar, dadas
as avassaladoras vantagens do ponto de vista económico. De evitar que essa
globalização não se venha a traduzir numa uniformização da sociedade,
nivelada pela mediocridade ou pela superficialidade, num mundo superpovoado
que, pela busca incessante de recursos, tornará o planeta que lhe serve de
guarida num deserto estéril.
Cá estaremos para ver…


Bibliografia

FUKUYAMA, Francis, O Fim da História e o Último Homem, Lisboa, Gradiva,
s.d.

HUNTINGTON, Samuel, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial,
Lisboa, Gradiva, 2001, 2ª edição.

HUXLEY, Aldous, Admirável Mundo Novo, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, 2001.

HUXLEY, Aldous, Regresso ao Admirável Mundo Novo, Lisboa, Ed. Livros do
Brasil, 2001.

ORWELL, George, 1984, Ana Luísa Faria (trad.), Porto, Público Comunicação
Social, S.A., 2002, colec. Mil Folhas, n. 25.

Osborne, Richard, Homem Demolidor, I. Mafra, H. César, M. J. Bento,
(trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1993.

POHL, Frederik, KORNBLUTH, C. M., Os Mercadores do Espaço, João Miguel
Carvalho (trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1952 (1ª edição).

POHL, Frederik, KORNBLUTH, C. M., A Guerra dos Mercadores, Olga Fonseca
(trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1984 (1ª edição).

SOARES, Mário, Um Mundo Inquietante, Mafra, Círculo de Leitores, 2003.

Revista História, Ano XXV (III Série), setembro 2003, nº 59.

-----------------------
[1] Cf. Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, Mem-Martins,
Publ. Europa-América; Samuel Huntington, O Choque das Civilizações e a
Mudança na Ordem Mundial, Lisboa, Gradiva, 2001, 2ª edição; Mário Soares,
Um Mundo Inquietante, Mafra, Círculo de Leitores, 2003.
[2] Cf. Frederik Pohl, C. M. Kornbluth, Os Mercadores do Espaço, Mem-
Martins, João Miguel Carvalho (trad.), Publ. Europa-América, 1952 (1ª
edição); Frederik Pohl, C. M. Kornbluth, A Guerra dos Mercadores, Olga
Fonseca (trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1984 (1ª edição).
[3] Cf. Richard Osborne, Homem Demolidor, Mem-Martins, Publ. Europa-
América, 1993. Adaptação do argumento de filme com o mesmo título,
protagonizado por Sylvester Stallone e Wesley Snipes, em que se descreve um
mundo após uma guerra global com elevadíssimos custos em vidas humanas e na
destruição da propriedade e das instituições, do qual emerge uma sociedade
absolutamente pacífica em que as pessoas ficam simplesmente nauseadas com a
mais leve sugestão de violência.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.