QUE HORAS ELA VOLTA?: A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NA PÓS MODERNIDADE

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Universidade Federal Fluminense Escola de Arquitetura e Urbanismo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo

Disciplina: Tópicos especiais em espaço e cultura II - Estudos avançados II: Seminário interdisciplinar de estudos contemporâneos Professora: Sonia Ferraz Aluno: Luis Gustavo Rosadas Campos

QUE HORAS ELA VOLTA?: A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO NA PÓS MODERNIDADE

Introdução “A totalidade da classe capitalista de um país não pode se aproveitar de si mesma” 1.

“O antigo possuidor de dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o possuidor de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com um ar de importância, confiante e ávido por negócios; o segundo, tímido e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e, agora, não tem mais nada a esperar além da... despela”2.

Impossível não notar que as relações de trabalho e caráter permeiam o filme “que horas ela volta?”, da roteirista e diretora paulistana Anna Muylaert. O trabalho de “domestica” remete a um passado onde os senhores de engenho utilizavam a força de trabalho escrava, que utilizavam não só para os serviços pesados do campo, mas também para o serviço na casa grande. Passaram-se os séculos e essa cultura de ter um “empregado para os serviços de casa” permanece, onde a figura da “empregada doméstica” acompanha as famílias da classe média.

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Marx, Karl. (2015) O Capital. Crítica da economia política, Livro 1, p. 308.

2

Ibid., p. 323.

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Outra forma de trabalho que aparece no filme é o da proprietária da casa. O trabalho flexível da patroa, blogueira de moda, fica explicitado quando esta se acidenta e o “trabalho” passa a acontecer em casa, ou em qualquer lugar em que um computador possa ser utilizado, junto a um funcionário subordinado. Entretanto, esta não é a única fonte de renda desta família de classe média alta da capital paulista.

Provavelmente o real dono da casa seja o único que não trabalhe, contudo, isso não significa que seja dependente da esposa. Ao contrário, já que outra forma de relação de trabalho surge na trama: os rentistas do mercado financeiro. Essa forma toma força durante as décadas de 1970 e 1980, ao início da pós modernidade, com a especulação do mercado de ações e qualquer outro tipo de investimento sem retorno à sociedade, garantindo ao “homem da casa” a renda suficiente – conquistada por herança – para que ele não desperdice seu precioso tempo.

Surge então, a fim de quebrar a rotina da família, a figura da filha da empregada, que desejava ingressar na faculdade, acirrando a polarização entre as classes. A chegada da menina traz novos assuntos e a trama passa a ter questões de formação de caráter. Ela então passa a ser assediada pelo dono da casa, a ser desprezada pela dona da casa por não pertencer a tal mundo, a ter conflitos com a mãe devido à sua submissão. Contudo, a formação do caráter – mais explicado adiante – se torna interessante devido ambas, mãe e filha, terem migrado para São Paulo e deixado para traz não só suas cidades, mas terem deixado seus filhos a fim de fazerem a vida na capital. A naturalização dessa pratica faz com que a ruptura dos laços das famílias afete a formação do caráter pessoal, já que sair de uma região mais pobre em busca de uma vida melhor ou um modo de sustentar as famílias em seus estados de origem não é algo novo.

A Pós modernidade

As imagens bombardeiam nossas mentes em qualquer lugar que estejamos, basta ter um smatphone que ninguém está livre dessa enxurrada. Imagens cheias de significado, ou esvaziadas dele. Uma cena do filme muito interessante, que ilustra esse

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esvaziamento e um (re) significado, segue ao lado da imagem de uma funpage 3 de loja da banda “punk” The Ramones 4 em questão.

Daí, partimos para uma análise onde a pós modernidade é explicada como a mudança do paradigma da linha de montagem verticalizada, dada com a mudança do fordismo para um modo de acumulação flexível, que gerou – e gera - grandes estoques de capital, onde as subcontratações fazem parte desta nova lógica produtiva e de organização, onde a agilidade produtiva e de consumo aconteciam em tempos antes impensáveis. Como visto em HARVEY (2013), mesmo com a centralização financeira, o fracionamento da produção e a expansão das sedes globo a fora, não afetaram há a centralização do capital. (...) uma aplicação teve muito que ver com a superação da rigidez do fordismo e com a aceleração do tempo de giro como solução para os graves problemas do fordismo-keynesianismo, que se tornaram uma crise aberta em 1973. A aceleração na produção foi alcançada por mudanças organizacionais na direção da desintegração vertical - subcontratação, transferência de sede etc. que reverteram a tendência fordista de integração vertical e produziram um curso cada vez mais indireto na produção, mesmo diante da crescente centralização financeira. (Harvey, 2013. p. 257)

Entretanto, não se tratava apenas de uma nova forma de produzir e distribuir mercadorias. Era esquematizar um modo de fazer com que o consumo dos bens produzidos fosse ampliado. Com isso, a moda e os estilos de vida popularizam dada cultura e que sufocam outras tantas culturas menos globais e mais locais, passando a ser uma estratégia na pós modernidade a fim de se alcançar mais e novos mercados consumidores. Tais medidas facilitam a circulação e o tempo, agilizam e alteram a velocidade de consumo. Além disso, encontramos em HARVEY (2013) que o espetáculo passa a se transformar num modo de vida:

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https://www.facebook.com/JoeyRamonePlaceRio https://pt.wikipedia.org/wiki/Ramones

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Dentre os muitos desenvolvimentos da arena do consumo, dois têm particular importância. A mobilização da moda em mercados de massa (em oposição a mercados de elite) forneceu um meio de acelerar o ritmo do consumo não somente em termos de roupas, ornamentos e decoração, mas também numa ampla gama de estilos de vida e atividades de recreação (hábitos de lazer e de esporte, estilos de música pop, videocassetes e jogos infantis etc.). Uma segunda tendência foi a passagem do consumo de bens para o consumo de serviços - não apenas serviços pessoais, comerciais, educacionais e de saúde, como também de diversão, de espetáculos, eventos e distrações. (p. 258)

Esse modo de viver pós-moderno, onde a criação e propagação de modelos, utilizando-se diversas ferramentas, criando símbolos e imagens, manipulando gostos e desejos, tem como fim de dominar e controlar o comportamento das massas de maneira ora sutil, ora escancarada, mas sempre planejada, feitas pelas diversas mídias e usando a cultura. Essa avalanche de imagens e de notícias, repletos de símbolos e significados, é amplamente explicado dentro do conceito de pós modernidade. Em mais uma crise capitalista, dessa vez na década de 1970, a necessidade de novas formas de acumulação de capital, implicando um modo de produção menos vertical e mercados de consumo que absorvessem todo o tipo de mercadorias. Dominar ou intervir ativamente na produção da volatilidade envolvem, por outro lado, a manipulação do gosto e da opinião, seja tornando-se um líder da moda ou saturando o mercado com imagens que adaptem a volatilidade a fins particulares. Isso significa, em ambos os casos, construir novos sistemas de signos e imagens, o que constitui em si mesmo um aspecto importante da condição pós-moderna, aspecto que precisa ser considerado de vários ângulos distintos(...). Além disso, a publicidade já não parte da ideia de informar ou promover no sentido comum, voltando-se cada vez mais para a manipulação dos desejos e gostos mediante imagens que podem ou não ter relação com o produto a ser vendido. HARVEY (2013, p. 259)

Como existe uma velocidade em se acumular, espaço passa a ser suprimido pelo tempo. Com isso, a cultura do descartável, sem analisar o destino do que é descartado. Favorece assim a necessidade de se pôr no lugar do que vai embora outras coisas, mantendo ou aumentando o consumo. Harvey (2013) traz à tona a ideia da sociedade do descarte, explicada por Alvin Toffler na década de 1970, que significa: (...) mais do que jogar fora bens produzidos (criando um monumental problema sobre o que fazer com o lixo); significa também ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego a coisas, edifícios, lugares, pessoas e modos adquiridos de agir e ser. (HARVEY, 2013. p. 258)

A vida corrida imposta na pós modernidade como cultura, como coloca Sennet em a corrosão do caráter, onde a velocidade e efemeridade no emprego - cultura, lazer, férias, tempo de estudo - favorecem a acumulação capitalista. Harvey continua a explanação do conceito de Toffler, onde o "impulso acelerador da sociedade mais ampla" golpeou "a experiência cotidiana comum do indivíduo" (Toffler, p. 40, apud

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Harvey, 2013 p.258). Por conseguinte, esses mecanismos interferem na vida das pessoas, forçando-as a conviver com descartabilidade, a novidade e a obsolescência programada. "Em comparação com a vida numa sociedade que se transforma com menos rapidez, hoje fluem mais situações em qualquer intervalo de tempo dado - e isso implica profundas mudanças na psicologia humana". Essa efemeridade, sugere Toffler, cria "uma temporariedade na estrutura dos sistemas de valores públicos e pessoais" que fornece um contexto para a "quebra do consenso" e para a diversificação de valores numa sociedade em vias de fragmentação. (Harvey, 2013. p. 258)

Neste processo, a imagem possui um papel fundamental de eixo condutor. Ela, imagem, acelera o consumo devido a sua efemeridade, sendo sua produção instantânea. Sua absorção no ambiente virtual é rápida, contribuindo cada vez mais para a acumulação de capital em grande velocidade. Com isso, o mercado da criação de imagens se põe em constante construção, pois precisa manter este conjunto de características unidas e interligadas numa rede de lógica a fim de perpetuar um significado que se adapta e se flexibiliza.

A produção desse processo, segundo

HARVEY (2013, p.260), é sofisticado devido a necessidade de se conservar “a continuidade e a estabilidade da imagem enquanto se acentuam a adaptabilidade, a flexibilidade e o dinamismo do objeto, material ou humano, da imagem”. Dadas as pressões de aceleração do tempo de giro (e de superação das barreiras espaciais), a mercadificação de imagens do tipo mais efêmero seria uma dádiva divina do ponto de vista da acumulação do capital, em particular quando outras vias de alívio da superacumulação parecem bloqueadas. A efemeridade e a comunicabilidade instantânea no espaço tomam-se virtudes a ser exploradas e apropriadas pelos capitalistas para os seus próprios fins. (Harvey, 2013. p.260)

Soma-se a isso, a imagem como elemento de confiabilidade e respeito, de pertencimento a um grupo ou classe social e na ostentação de um status social. É usada como forma de dar voz a grupos marginalizados, com suas culturas, mas tais imagens podem ser usadas a fim de dar lucro à capitalistas, na valorização de áreas. A imagem serve para estabelecer uma identidade no mercado, o que se aplica também aos mercados de trabalho. A aquisição de uma imagem (por meio da compra de um sistema de signos como roupas de grife e o carro da moda) se toma um elemento singularmente importante na auto apresentação nos mercados de trabalho e, por extensão, passa a ser parte integrante da busca de identidade individual, auto realização e significado na vida. (p.260)

Entretanto, já sabemos que a pós modernidade não é apenas imagem, cultura e modo de produção. Como coloca Smith (2015), não podemos esquecer que a globalização de imagens culturais na era dos computadores é muito forte, sendo que seria difícil afirmar que este processo seja uma novidade dentro da pós modernidade e da globalização, já

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que acontece muito antes do fim do século XX. Contudo, SMITH (2015) mostra que o “capital produtivo” seria a grande novidade na fase seguinte que estudaremos: a Globalização. Esto nos deja con el capital productivo; creo que hay buenas razones para pensar que en la medida en que la globalización no anuncia nada nuevo, el nuevo globalismo puede estar originado por la escala crecientemente global (o al menos internacional) de la producción económica. Hasta los años setenta, la mayor parte de las mercan-cías de consumo eran producidas en el marco de una economía nacional para ser, o bien consumidas allí, o bien exportadas a un mercado nacional diferen-te. Hacia los años noventa, este modelo estaba obsoleto, cada vez resultaba más difícil identificar lugares de producción determinados para mercancías concretas, el viejo lenguaje de la geografía económica ya no tenía sentido. Smith (2015, p.252)

Globalização e globalismo

Globalização é um termo que cruzou o final do século XX e o início do século XXI com tanta importância, mas que não se sabe realmente o que ela define. Será que se perguntarmos para a primeira pessoa que encontramos ela saberia definir, ou se arriscaria a tentar defini-la? Ao digitarmos “globalização’ num dos maiores sítios de buscas online encontramos aproximadamente cinco milhos de citações, páginas, blogs, etc. Ainda no mesmo sitio, encontramos em seu dicionário instantâneo um significado, como vemos no recorte abaixo:

Se fizermos uma busca por imagens, em qualquer ferramenta de busca, o resultado beira à esquizofrenia, com imagens sintéticas, ricas em cores, luzes, vibrações, com fotomontágens bem e mau feitas, também de maneira a tentar explicar algo extremamente complexo com meia duzia de palavras e a imagem do globo terrestre. Entretanto, não conseguem dar uma resposta que exprima seu profundo significado, já que a imprecisão ou a vulgarização do termo globalização está disseminado.

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No mundo dos personagens de Ana Muylaert, o prêmio por não se passar no vestibular é fazer um intercambio para algum destino da moda, afim de aprimorar uma língua estrangeira e uma troca (ou absorção) de uma cultura.

Para Santos (2001) a globalização possui três formas de se apresentar, entre elas a globalização como fabula “erige como verdade um certo número de fantasias, cuja repetição, entretanto, acaba por se tornar uma base aparentemente sólida de sua interpretação (p.18)”, onde a ideologia exerce um papel fundamenta na manutenção e na propagação do sistema. Santos (2001) diz que através da propagação do conceito de mercados globais, e apesar da tentativa de homogeneização dos mercados, as desigualdades se acentuam e “o mundo se torna menos unido, tornando mais distante o sonho de uma cidadania verdadeiramente universal (Santos, 2001,p.19)”, logo, as fábulas se tornam necessárias, como visto adiante: (...) no lugar do fim da ideologia proclamado pelos que sustentam a bondade dos presentes processos de globalização, não estaríamos, de fato, diante da presença de uma ideologização maciça, segundo a qual a realização do mundo atual exige como condição essencial o exercício de fabulações (Santos, 2001, p.19).

A segunda forma que Santos (2001) aborda é a globalização como perversidade, onde todas as dificuldades como trabalho precário, baixos salários e desemprego se tornam presentes na maioria dos países. Daí acarreta-se o acirramento do conflito entre as classes devido ao aumento da distância, originando um abismo intransponível. A perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa da humanidade tem relação com a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as ações hegemônicas. Todas essas mazelas são direta ou indiretamente imputáveis ao presente processo de globalização. (Santos, 2001, p.20)

Entretanto, Milton Santos não é de todo pessimista. Ao entender que o capitalismo se funda também nas bases técnicas para se organizar e desenvolver, daí também pode surgir a oportunidade de “uma outra globalização”. Por isso o autor entende que a

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globalização também possibilita a reorganização de movimentos sociais, na utilização dessa rede a fim de reagirem: Trata-se da existência de uma verdadeira sociodiversidade, historicamente muito mais significativa que apropria biodiversidade. Junte-se a esses fatos a emergência de uma cultura popular que se serve dos meios técnicos antes exclusivos da cultura de massas, permitindo-lhe exercer sobre esta última uma verdadeira revanche ou vingança. (Santos, 2001, p.21)

A globalização tem um carater de mercado dito global, por ações que dao forma a um mercado que possibilita processos políticos eficazes, tem como pilares cosntitutivos “ a unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do planeta e a existência de um motor único na história, representado pela mais-valia globalizada” como coloca Santos (1999).

Como visto acima, o termo globalização remete a um significado génerico, de sentido esvaziado devido ao uso diversificado e sintetizando significados. Com isso, IANNI (2014) se utiliza de um termo que explica mais profundamente a atual fase do capitalismo, definindo o globalismo como “realidades sociais, econômicas, políticas e culturais que emergem e dinamizam-se na globalização do mundo, ou a formação da sociedade global. (IANNI 2014, p.184)” onde também pode ser visto como: O globalismo é uma configuração histórico social abrangente, convivendo com as mais diversas formas sociais de vida e trabalho, mas também assinalando condições e possibilidades, impasses e perspectivas, dilemas e horizontes. Tanto é assim que no âmbito do globalismo emergem ou ressurgem localismos, provincianismos, nacionalismos, regionalismos, colonialismos, imperialismos, etnicismos, racismos e fundamentalismos; assim como reavivam-se os debates, as pesquisas e as aflições sobre a identidade e a diversidade, a integração e a fragmentação. Mas o que se desenvolve e predomina, recobrindo e impregnando as mais diferentes situações, é o globalismo. (IANNI 2014, p.183)

Mas o globalismo é um processo que está em formação, muitas vezes não evidente e variável ao ponto de vista do qual se observa. Ianni (2014) afirma que este é resultado “de um jogo complexo de forças atuando em diferentes níveis da realidade, em ambito local, nacional, regional e mundial (IANNI 2014, p.185)”. O autor explica que algumas essas forças nascem junto ao capitalismo, outras ao imperialismo e ao colonialismo. Este processo em constante desenvolvimento, se alastra absorvendo e desenvolvendo seus

metodos

em

diferentem

momentos

da

história,

inclusivem

com

o

desmantelamento de nações socialistas na Europa, Asia e Africa. Com isso, percebemos que o capitalismo atravessa os seculos se reinventando e se apropriando e modificando estruturas socio culturais existentes:

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O capitalismo se apresenta como um modo de produção e um processo civilizatório. Além de desenvolver e mundalizar as suas forças produtivas e as suas relaçoes de produção, desenvolve e mundializa instituições, padróes e valores em conformidade com as exigencias da racionalidade, produtividade, competitividade e lucratividade indispensáveis à produção de mercadorias, sem as quais não se realiza a mais-valia. (IANNI, 2014, p.187)

Partimos para uma outra questão que é difundida com a pós modernidade, sendo parte fundamental do globalismo e da globalização, e sem a qual o capitalismo não existiria.

Trabalho e caráter A mãe deixa a filha na terra natal, geralmente nas regiões mais pobres dos países (no caso do Brasil é no Norte e Nordeste), e parte para tentar a vida nas regiões onde o eldorado reluz faz séculos (o Sudeste). A perpetuação dessa dinâmica, que passa de geração em geração, no caso do filme quando a mãe (empregada doméstica) reencontra a filha depois de anos e (no decorrer da trama) descobre que a jovem havia feito o mesmo, com o mesmo objetivo de oferecer uma vida melhor ao filho. O modo de produção capitalista, que se reinventa a cada crise, altera as relações do ser humano com o trabalho e, daí, molda os caráteres para a tal perpetuação. Com isso, buscamos compreender na obra de Richard Sennet e Ricardo Antunes como funciona esse mecanismo.

A reinvenção do capitalismo necessita de um aparato ideológico a fim de, paulatinamente (e as vezes de maneira mais incisiva), minar o poder crítico da mudança. Corrompe a formação do caráter, como Sennet (2009) coloca, vendendo seus modelos de vida transitória sem vínculos sociais com os lugares, precarizando o trabalho e minando os direitos trabalhistas adquiridos durante as lutas do século XX. Essa passagem para a pós modernidade não é apenas cronológica, como as eras geológicas, mas sim ideológica e de extrema precarização da vida humana, como coloca Antunes (2009) ao comentar citação de Ellen Wood em seu artigo “Modernity, Posmodernity or Capitalism?” para a review of International Political Economy: Opondo-se ao contrapoder que emergia das lutas sociais, o capital iniciou um processo de reorganização das suas formas de dominação societal, não só procurando reorganizar em termos capitalistas o processo produtivo, mas procurando gestar um projeto de recuperação da hegemonia nas mais diversas esferas da sociabilidade. Fez isso, por exemplo, no plano ideológico, por meio de um culto do subjetivismo e de um ideário fragmentador que faz apologia ao individualismo exacerbado contra as formas de solidariedade e de atuação coletiva e social. (...) “trata-se da fase em que as transformações econômicas, as mudanças na produção e nos mercados, as mudanças culturais, geralmente associados ao termo pós modernismo, estariam, em verdade, conformando um momento de maturação e universalização do capitalismo, muito mais

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do que um transito da modernidade para a pós-modernidade (Wood, 1997: 539-40 apud Antunes, 2009, p. 50).

Buscando compreender o significado do termo ‘flexível’, empregado tanto por Sennet (2009) e por Antunes (2009), encontramos no dicionário Michaellis 5, dentre outros significados, o mais adequado que diz: ‘submisso, que não mantém a integridade’. Talvez esta seja a combinação mais apropriada quando se trata de Modo de Produção Capitalista.

As mudanças estruturais em seu processo produtivo, com a flexibilização da produção e da acumulação, têm como destaque o modelo japonês conhecido como o Toyotismo, como coloca Antunes (2009, p. 49). A partir daí, o capitalismo flexível oferece aos trabalhadores uma nova maneira de se relacionar no mundo do trabalho: “Pede-se aos trabalhadores que sejam ágeis, estejam abertos a mudanças a curto prazo, assumam riscos continuamente, dependam cada vez menos de leis e procedimentos formais (Sennet, 2009, p. 9)”.

Antunes coloca que tais mudanças no mundo do trabalho, “especialmente no chão da fábrica, são resultado de fatores históricos e geográficos, e não somente das novas tecnologias e do processo de desenvolvimento organizacional (2009, p. 51)”. Tais mudanças teriam como primeiro motivo o aumento dos direitos trabalhista que possuía o empregado (cidadão), em detrimento da margem de lucro para o capitalista. Analise feita pelo autor em seu quadro crítico da “crise do taylorismo e do fordismo como expressão fenomênica da crise estrutural”: Queda da taxa de lucro, dada dentre outros elementos causais, pelo aumento da força de trabalho, conquistado durante o período pós-1945 e pela intensificação das lutas sociais dos anos 1960, que objetivavam o controle social da produção. A conjugação desses elementos levou a uma redução dos níveis de produtividade e do capital, acentuando a tendência da taxa decrescente de lucro; (Antunes, 2009, p. 31)

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http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=flex%EDvel (9/12/2015)

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O início da flexibilização da vida, e não só do trabalho, está também no sistema educacional. De maneira doutrinária, incute conceitos e exemplos a fim de que se aceite as frequentes mudanças e trocas de emprego (Sennet, 2009, p.17), coibindo as relações com o lugar que se vive, já que tal flexibilidade torna o endereço cada vez menos recorrente. Com a fragmentação de grandes instituições a partir da década de 1960, a vida de muitas pessoas passa a sofrer alterações. O modo como trabalham exigiu novo comportamento, alterando também as suas vidas em família. Sennet (2006, p. 12) mostra que “a migração tornou-se o verdadeiro ícone da era global, e a palavra de ordem é antes seguir em frente que estabelecer-se”. O autor afirma que não se conseguiu um senso de comunidade com o desmantelamento dessas grandes instituições, como acreditava a geração combativa dos anos 1960. Entretanto, tal ato fortalece o afastamento entre as pessoas e o não envolvimento com os lugares onde se mora e trabalha. Notamos também que a mutabilidade do sentido do trabalho, a fim de atender a necessidade de acumulação de capital, o torna cada vez mais flexível e fragmentado, movendo trabalhadores de um segmento econômico para outro. Sennet (2009) coloca que a alteração do sentido das palavras também é flexibilizada, a fim de transformar o significado real das coisas: “Essa ênfase na flexibilidade está mudando o próprio significado do trabalho, e também as palavras que empregamos para ele. "Carreira", por exemplo, significava originalmente, na língua inglesa, uma estrada para carruagens, e, como acabou sendo aplicada ao trabalho, um canal para as atividades econômicas de alguém durante a vida inteira. O capitalismo flexível bloqueou a estrada reta da carreira, desviando de repente os empregados de um tipo de trabalho para outro. A palavra "job" [serviço, emprego], em inglês do século quatorze, queria dizer um bloco ou parte de alguma coisa que se podia transportar numa carroça de um lado para o outro. A flexibilidade hoje traz de volta esse sentido arcano de “job”, na medida em que as pessoas fazem blocos, partes de trabalho, no curso de uma vida. ” (Sennet, 2009, p. 9)

A velocidade das mudanças faz com que busquemos estar atualizados, a fim de não sermos arrastados pelas forças do mercado. Num ritmo mais acelerado, é preciso que se esteja qualificado, buscar tais especializações para se estar inserido. Estas forças ditam que saber fazer bem um ofício, e apenas ele, no ‘ser artesão’, em produzir em menor escala, não fazem parte da atual cultura global. A ordem social que vem surgindo milita contra o ideal do artesanato, de aprender a fazer bem apenas uma coisa, compromisso que frequentemente pode revelar-se economicamente destrutivo. No lugar do artesanato, a cultura moderna propõe um conceito de meritocracia que antes abre

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espaço para as habilidades potenciais do que para as realizações passadas. (Sennet, 2006, p.13 e 14)

Com um exemplo de que nenhum trabalhador tem seu emprego garantido, que nenhum trabalho é eterno, Sennet (2006, p. 14) questiona “como reagir a semelhante afirmativa de maneira positiva?” e busca responder analisando o caráter. Para tal modo de produção, seria necessário que houvessem pessoas com uma personalidade especifica

“uma

personalidade

disposta

a

descartar-se

das

experiências



vivenciadas”. Uma postura de trabalhador semelhante a de quem consome as mais novas tendências, descartando os “bens antigos, embora ainda perfeitamente capazes de ser úteis”.

Dentro desta dinâmica, definir caráter passa a ser fundamental, já que a sua deterioração, a sua corrosão ou sua perda, torna-se evidente. Não somos mais leais aos nossos semelhantes, mas o que mais impressiona é que não somos mais leais a nós mesmos. Sennet (2009) coloca que o capitalismo flexível põe em confusão e impacta diretamente o caráter pessoal, definindo este como “o valor ético que atribuímos aos nossos próprios desejos e às nossas relações com os outros (p. 10)”. Além disso, coloca que: “O termo caráter concentra-se sobretudo no aspecto a longo prazo de nossa experiência emocional. É expresso pela lealdade e o compromisso mútuo, pela busca de metas a longo prazo, ou pela prática de adiar a satisfação em troca de um fim futuro. Da confusão de sentimentos em que todos estamos em algum momento em particular, procuramos salvar e manter alguns; esses sentimentos sustentáveis servirão a nossos caracteres. Caráter são os traços pessoais a que damos valor em nós mesmos, e pelos quais buscamos que os outros nos valorizem. ” (p. 10)

Se o capitalismo se torna flexível, a partir da década de 1970, o trabalho também precisa se tornar flexível, ou seja, o trabalhador precisa se adequar ao (maldito) mercado. Com isso, a formação de seu caráter, ou seja, o conjunto de conceitos e valores que fará que a pessoa aceite ou recuse, se adapte ou não, a esse novo ritmo da vida, se torna fundamental nessa dinâmica. Para que isso aconteça de forma eficaz ao modo de produção capitalista, temos a mídia, os falsos intelectuais que professam essa falácia do livre mercado e de que é o empresário quem oferece e cria trabalho.

Entretanto, a fragilidade da relação está posta para a ‘classe-que-vive-do-trabalho’. Antunes (2009) define que sua maior característica é a venda de sua força de trabalho, mas que ela não necessariamente produz algo material, uma manufatura ou que vivam

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de um trabalho manual. Entretanto, o trabalho produtivo ainda é o grande gerador de mais-valia, mas isso não exclui outras formas de trabalho que também gerem maisvalia. Entretanto, é geradora de ‘antivalor’, pois seu trabalho não gera um produto, uma manufatura. Seu trabalho é medido em custos acessórios e despesas que maquiam balancetes financeiros, de modo a gerar daí mais ganhos para os capitalistas. Constituem-se em geral num segmento assalariado em expansão no capitalismo contemporâneo – os trabalhadores em serviços –, ainda que algumas de suas parcelas encontrem-se em retração, como veremos adiante. São aqueles que se constituem em “agentes não produtivos, geradores de antivalor no processo de trabalho capitalista, [mas que] vivenciam as mesmas premissas e se erigem sobre os mesmos fundamentos materiais. Eles pertencem àqueles ‘falsos custos e despesas inúteis’, os quais são, entretanto, absolutamente vitais para a sobrevivência do sistema” (Mészáros, 1995: 533 apud Antunes, 2009, p. 102)

Antunes (2009) explica que é a classe que gera mais-valia e que vive do salário, ou seja, a pequena burguesia urbana, os executivos de salários elevado e que controlam o processo de trabalho dentro das empresas e a reprodução do capital nelas, está excluído da ‘classe-que-vive-do trabalho’. Essa classe também é formada por trabalhadores dos países do centro do capitalismo, originados da era taylorista-fordista afetados pelo desmonte do ‘Walfare State’, do crescente desemprego estrutural e “e da crise do capital, são obrigados a buscar alternativas de trabalho em condições muito adversas, quando comparadas àquelas existentes no período anterior (Ibid, p. 105)”. Com isso, tais postos de trabalho – precarizados tanto na relação empregado x patrão quanto em condições de trabalho – e que antes eram ocupados imigrantes como “os gastarbeiters na Alemanha, o lavoro nero na Itália, os chicanos nos EUA, os decasséguis no Japão (Ibid, p. 105)” passam a ser ocupados por esta leva de trabalhadores.

Entretanto, essa classe-que-vive-do-trabalho é mais complexa do que se pode imaginar. Ainda fazem parte desta discussão a divisão sexual do trabalho. Antunes (2009) aponta que para as mulheres, tudo parece muito mais difícil e precarizado. Desde as diferenças salariais, a falta de voz nos sindicatos, até a ocupação de postos de trabalhos onde os índices de qualificação são menores e para trabalhos temporários. Vimos que nas últimas décadas o trabalho feminino vem aumentando ainda mais significativamente no mundo produtivo fabril. Essa incorporação, entretanto, tem desenhado uma (nova) divisão sexual do trabalho em que, salvo raras exceções, ao trabalho feminino têm sido reservadas as áreas de trabalho intensivo, com níveis ainda mais intensificados de exploração do trabalho, enquanto aquelas áreas caracterizadas como de capital intensivo, dotadas de maior

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desenvolvimento tecnológico, permanecem reservadas ao trabalho masculino. (Antunes, 2009, p. 102)

Um dos efeitos negativos da precarização estrutural do trabalho, nos países centrais, é a não absorção da mão-de-obra proveniente da era fordista e dos jovens. Isso leva os jovens, como diz Antunes (2009), ao engrossamento dos grupos neonazistas, e os com mais de 40 anos que não conseguem se (re) inserir por não conseguirem se requalificar. Isto ocorre devido ao mundo do trabalho capitalista moderno hostilizar “diretamente esses trabalhadores, em geral herdeiros de uma ‘cultura fordista’, de uma especialização que, por sua unilateralidade, contrasta com o operário polivalente e multifuncional (...) requerido pela era toyotista (p. 112)”.

Entretanto, não é inerente ao ser humano o desapego de suas conquistas e histórias, de deixar para trás suas lembranças. largar isto de maneira impositiva é viver um conflito constante. Uma individualidade voltada para o curto prazo, preocupada com as habilidades potenciais e disposta a abrir mão das experiências passadas só pode ser encontrada - para colocar as coisas em termos simpáticos - em seres humanos nada comuns. A maioria das pessoas não é assim, precisando de uma narrativa continua em suas vidas, orgulhando-se de sua capacitação em algo específico e valorizando as experiências por que passou. Desse modo, o ideal cultural necessário nas novas instituições faz mal a muitos dos que nelas vivem. (Sennet, 2006, p. 14)

Ainda que com tempos exíguos, busca-se laços de amizade, que também são perdíveis nessa relação flexível, e a rede eletrônica se torna a maneira de tentar manter esses laços. No passado isso acontecia nos sindicatos, nas reuniões de bairro e classes. A flexibilização das vidas faz com que tais laços se mantenham de forma sutil e frágil pela internet.

Conclusão

De maneira surpreendente, Muylaerte finaliza a história com a empregada abandonando o trabalho de anos e indo morar com a filha. Enquanto a filha teria a oportunidade de estudar, ela Val, ajudaria a cuidar do neto recém-chegado do Nordeste do Brasil. Mas, talvez esse não seja o destino de muitas outras famílias, já que na era do globalismo, o capital se torna ainda mais presente.

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O modo de produção capitalista permeia toda a abordagem aqui utilizada. Pudemos notar que o ‘capitalismo’ conduz a formação do caráter – ou sua corrosão – para que o ritmo das vidas seja ajustado ao ritmo da sua produção. De forma aviltante, este sistema de produção voltado unicamente ao seu próprio bem-estar, exclui uma parcela da sociedade que sequer possui o básico. Acirra a competição e favorece a quem possui meios de melhor se adaptar ao modo de trabalho desse sistema.

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Infelizmente não podemos concluir se há saída ou não. O modo de produção capitalista age como um vírus letal e mutante, se adequando, se apropriando se aproveitando de cada situação, se reinventando, agindo muitas vezes – ou sempre – de maneira parasitária. Com a cultura globalizada desse ‘modus operandi’ em vigor, resta-nos perguntar se: estamos fadados a viver desse modo eternamente? É inevitável que a exploração da força de trabalho continue a engordar contas e emagrecer corpos? A precarização do trabalho pode ser revertida dentro da lógica de produção capitalista? Somo realmente seres competitivos ou temos por característica essencial a colaboração mutua?

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Bibliografia ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo, SP: Boitempo, 2009. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. Rio de Janeiro: Loyola, 2013 IANNI, Otavio. A era do globalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. SANTOS, Milton. O dinheiro e o território. in – Conferência de inauguração do Mestrado em Geografia da Universidade Federal Fluminense e abertura do ano letivo de 1999. Rio de Janeiro, Niterói. SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. – 6 ed. – Rio de Janeiro: Record, 2001 SENNETT, Richard. A corrosão do caráter: as consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2009 SENNETT, Richard. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006. SMITH, Neil. Nuevo globalismo y nuevo urbanismo. La gentrificación como estrategia urbana global. In – El mercado contra la ciudad: globalización, gentrificación y políticas urbanas. Madrid: Ed. Observatorio Metropolitano de Madrid, 2015.

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