“Que nunca te faltem couves suculentas e fresquinhas”: cartas de Monteiro Lobato a Artur Coelho

September 11, 2017 | Autor: Emerson Tin | Categoria: Literatura brasileira, Monteiro Lobato, Letter-writing
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“Que nunca te faltem couves suculentas e fresquinhas”: cartas de Monteiro Lobato a Artur Coelho

Emerson Tin1

Não é muito numerosa a correspondência ora existente entre José Bento Monteiro Lobato e Artur Coelho2, que era tradutor da Paramount e morava nos Estados Unidos, onde possivelmente Lobato o conheceu. São apenas oito cartas, que cobrem os anos de 1936 a 1948, ano da morte de Lobato. É, contudo, uma das mais interessantes justamente pelos jogos e trocadilhos que Lobato faz com o nome do destinatário. Na primeira delas, de 21 de junho de 1936, Lobato abre a carta da seguinte maneira: Coelho: Recebi as histórias que o Coelhão conta à coelhinha. Ótimas. Estão merecedoras de que um editor daí se encarregue de dá-las a todas as crianças americanas. Chego até a achar que você tem queda especial para literatura infantil, gênero em que os bons são poucos. E como tens em casa Mrs. Coelho para apurar a forma, não há razão para que você não tente interessar o público americano. Pense no que digo.3

Num jogo com o sobrenome do destinatário, todos aparecem como membros de uma família de coelhos: o pai, o “Coelhão”, a filha, a “coelhinha”, a mãe, “Mrs. Coelho”. A alegoria ganha mais força ao lembrarmos que Lobato estava falando de literatura infantil, em que não é incomum a presença de famílias de animais com características humanas. Na carta seguinte, sem data, mas que Cavalheiro, nas Cartas escolhidas, anota ter sido “escrita provavelmente em 1938”, temos novamente trocadilhos com coelhos na abertura da carta, que conferem um tom leve e jocoso a uma censura velada:

1 Emerson Tin é doutorando em Teoria e História Literária no IEL/UNICAMP, onde desenvolve pesquisa sobre a correspondência de Monteiro Lobato, sob a orientação da Profa. Marisa Lajolo e que contou com financiamento da FAPESP. 2 São bastante escassas as informações a respeito de Artur Coelho. Diz a Enciclopédia da Literatura Brasileira (direção de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa. Rio de Janeiro: FAE, 1990, v. 1, p.441): “COELHO, Artur (A. Roberto C. de Sousa, Sapé, PB, 1889 – ), poeta, contista, dir. do departamento de propaganda e trad. de filmes da Paramount Pictures para o Brasil. BIBL.: Versos. 1978 (poes.); O brasileiro da Sing-Sing e outros contos da América. 1978 (contos).” 3 Todas os excertos das cartas de Monteiro Lobato a Artur Coelho foram transcritos de Cartas escolhidas (São Paulo: Brasiliense, 1964, t.2).

Coelho: Desconfio que não te chegou uma minha, pois que na de 15 de junho hoje recebida fazes perguntas já respondidas. Nela eu te dizia que foste com muita sede ao pote; que a linha da UJB não comporta senão águas panadas e em dosezinhas breves: são jornalecos avaros de espaço. Nem comporta a tua prodigiosa coelhice. Sim, Coelho, porque tens, mentalmente, a soberba fecundidade dos coelhos. Pares artigos com o fácil da coelha a despejar no mundo ninhadas de coelhinhos...

Novamente na abertura da carta de 11 de fevereiro de 1940 encontramos novo trocadilho, agora com o ditado popular “matar dois coelhos com uma cajadada só”: Coelho: Recebi duas cartas e um cartão amarelo. Mato-as duma cajadada, como é de uso para os coelhos. Tive prazer em saber que afinal V. defrontou o Helmuth. Trata-se de um homem maravilhoso, a melhor alma que esse país produziu – um homem que me faz mal... Faz-me mal porque sua presença, quando eu aí, e suas cartas, estando eu aqui, acentuam a minha falta de língua para com ele trocar idéias.

Demonstrando alegria com a notícia do estabelecimento de relações entre Artur Coelho e Louis Helmuth4, Lobato então aconselha: “cultive-o, que essa amizade fará de V. o maior coelho da Austrália, uma raça nova no mundo: coelho helmuthizado. E eu poderei corresponder-me com ele através de você”. Já na carta de 1º de fevereiro de 1946 a brincadeira aparece na despedida: “e adeus, Coelho. Que nunca te faltem couves suculentas e fresquinhas.” Noutra carta, de 12 de fevereiro de 1947, o trocadilho aparece no corpo da carta, em forma de exclamação: “você é o mais feliz dos coelhos, Coelho!” Na última carta de Lobato a Coelho, escrita, segundo Cavalheiro, “em princípios de 1948”, Lobato elogia-lhe a filha, que estava no Brasil: Tua carta de 30 dezº. veio encontrar a Ann aqui em casa, com a Joyce. Encantadora a tua coelhinha. Está falando português tão bem... Nem parece coisa de alguns meses apenas. Todos em cada de Marta apreciamna e tudo fazem para agradá-la nestes dias aqui passados. Diante da Ann eu me revolto contra a tua parcimônia procriativa. Um Coelho que dá tão bons resultados não tinha o direito de parar no número um. Devia revelar-se realmente coelho. 4 Há, no Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio, na UNICAMP (CEDAE/UNICAMP), uma carta de Louis Helmuth a Monteiro Lobato escrita de Nova Iorque e datada de 1º de novembro de 1946 (MLb 3.2.00453 cx9). Na carta, Helmuth alude ao “nosso mútuo amigo Coelho” e menciona uma carta anterior de Lobato (“sua última carta”), o que faz crer que a correspondência entre Lobato e Helmuth possa ter sido assídua.

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Mas as cartas não se resumem a essa brincadeira, que confere leveza ao texto e revela uma informalidade do remetente para o destinatário. Assim como noutras de suas cartas, Lobato aqui também reflete sobre o gênero epistolar e algumas de suas limitações. Na carta de 21 de junho de 1936, por exemplo, é o tempo e o volume de trabalho que delimitam a extensão e detalhamento da carta: Em petróleo V. está atrasado. Não sabe do colosso que estamos fazendo aqui e não há tempo para contar em carta – sobretudo a um que não embarcou na canoa a tempo. [...] Não repares não te escrever comprido. Tenho serviço demais, de modo que o que é conversa fiada vai ficando de banda. E estou cansado, Coelho. Meu sonho de petróleo tem um objetivo secreto: não escrever mais nada, nem cartas; nem ler nada. Cair nas delícias do analfabetismo absoluto e consciente. Que maravilha!

Como vemos, Lobato recorre ao absurdo – “não escrever mais nada, nem cartas; nem ler nada. Cair nas delícias do analfabetismo absoluto e consciente” – como argumento para comover e convencer o destinatário do seu cansaço, que justificaria a brevidade da carta. Novamente Lobato se utiliza do absurdo – o elogio de Hitler como o grande instrumento para a destruição da humanidade – ao abordar a 2ª Guerra Mundial, na carta de 11 de fevereiro de 1940: E a guerra? Leia a Shape of the Things to Come, do Wells. Aquilo é profecia melhor que a dos profetas hebraicos. Vamos assistir ao soçobro da Europa – e de nós se o rodamoinho das coisas que afundam nos atrair! Meu gosto é que estou perto dos 60 anos e pois da morte. Ah, regalo! Ficar livre da estúpida coisa que é viver num mundo de macacos pensantes que por mais que façam não conseguem realizar a grande coisa necessária: destruírem-se completamente para gáudio do resto da natureza animal. Ando envergonhado com a ciência bélica. Depois de tantos progressos dos laboratórios, de tantos segredos novos da matéria descobertos, inda estão com as mesmas armas de 1914, e parece que degeneradas, porque andam a matar muito menos gente. Não aparece o Raio da Morte, não aparece nada fulminante, que arrase um país inteiro num minuto. Positivamente é de se descrer dos sábios, essa gente que dava a impressão de ser poderosa. A esperança é que com a vinda da primavera os alemães, que são o único povo realmente eficiente na arte das artes, que é a de matar, façam qualquer coisa de sensação – esmagamentos de Holanda e Bélgica, desmonte da Suíça, uma onda de lewisite que não deixe escapar nem a Duquesa de Windsor. Só eles têm a coragem dos grandes lances. Hitler entusiasma. Está criando coisas novas, é um gênio. Criando uma loucura nova, e meus votos são para que vença e tire ao resto da humanidade o gosto de viver. Para que humanidade? Quantos milhões de anos viveu o Cosmos sem a pulga humana?

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Espero a morte, minha e de todos, e distraio-me lendo a Bíblia. Que livro! Como está tudo ali! A estupidez humana, e a humana crueldade nunca, jamais encontrarão historiadores maiores do que os escribas que organizaram aquele scrap-book. E estou também traduzindo a “História da Bíblia”, do van Loon. Minha esperança é que com a publicação deste livro uns dez mil leitores fiquem de miolos transtornados. Quem trabalha para o mal dos homens trabalha em prol da restauração da velha natureza.

O mesmo raciocínio seria aprimorado anos mais tarde, na carta escrita em 1º de agosto de 1943 ou 1944. A estrutura dessa carta é muito semelhante à da carta anterior. O mote é novamente um livro de H. G. Wells – neste caso, O destino do Homo Sapiens –, a partir do qual Lobato tece considerações sobre a guerra, novamente recorrendo ao absurdo: A desgraça da guerra atual é matar muito pouca gente e destruir muita “coisa feita”. A coisa feita é que constitui a riqueza do mundo, como obra do aturado trabalho das gerações. Destruir isso é o maior dos crimes imagináveis – ao passo que destruir gente é apenas sangria aliviadora do grande mal que é o excesso de gente. Imagine estas duas hipóteses. Sobrevém uma calamidade qualquer aí em Nova Iorque e morrem todos os seus habitantes sem exceção, inclusive você; mas não há o menor dano na cidade material; fica tudo perfeitinho, apenas sem gente. Que sucede? Imediatamente começará a correr gente de toda parte e em poucos dias Nova Iorque estará tão cheia como hoje. E toda gente de fora que acorreu, saiu ganhando; todos melhoraram de sorte. Houve um enriquecimento do país per capita. Se a riqueza total que era distribuída por 130 milhões de almas passa a ser distribuída por 123 milhões de ditas, o lucro per capita é evidente. Agora a hipótese contrária. Um cataclismo destrói totalmente toda a Nova Iorque material, mas não mata ninguém. Que acontece? Esses 7 milhões de criaturas desnewyorkadas assim de súbito têm que fugir daí e espalhar-se pelas outras cidades, agravando os eternos problemas de todas elas – de habitação, de alimentação, etc. E como a destruição de Nova Iorque significa a perda duma grande riqueza, o nível da riqueza geral baixa e diminui o per capita americano. Eis porque acho esta guerra de Hitler horrendamente calamitosa; mata muito pouca gente e destrói muita coisa feita. O balanço dessa guerra vai ser catastrófico devido à intensidade do empobrecimento. A guerra de 1914 foi uma guerra enriquecedora, porque tendo matado 20 milhões de criaturas e destruído relativamente muito pouca coisa feita aliviou o mundo de 20 milhões de bocas e pois melhorou a situação de todos os que escaparam. Vem daí o progresso em que entrou o mundo depois que a paz se consolidou. Minha tese é: se morre um simples mendigo, alguém sai ganhando, pois um outro mendigo se aumentará de alguma coisa que lhe pertenceu – um sapato velho que seja. Mas se uma casa é destruída sem que também o sejam os seus moradores, o Todo sai perdendo – fica desfalcado de alguma coisa, e a quota que cabe a cada um torna-se menor. O crime de Hitler, para mim, é esse: destruir coisas feitas em vez de matar gente, como o Kaiser. O número de franceses que morreram na guerra atual é grotescamente insignificante – e o que houve de destruição foi 4

tremendo. Já na guerra anterior a França se beneficiou com a eliminação duns 3 milhões de franceses, isto é, 1/10 da população total. Daí o automático enriquecimento da França de após-guerra. Minha esperança está na guerra química. Fatalmente há de haver alguns terríveis gases novos que venham salvar a situação. Porque, meu caro Coelho, se nesta guerra não morrerem de 30 a 40 milhões de homens, a bancarrota do mundo será inevitável e a miséria excederá à da China e alcançará até os States. Escreva o que estou dizendo.

Essas considerações sobre a guerra só podem ser analisadas, na minha opinião, sob a ótica da sátira, do absurdo – na mesma chave da Modest proposal (1729)5, de Jonathan Swift que propunha que os pais engordassem as crianças para vendê-las como gado e servirem para a alimentação –, escritas por um Lobato que se mostrava cansado de presenciar tantos conflitos e revoluções. Assim se lê na carta de 18 de novembro de 1944, em que Lobato possivelmente responderia a uma carta de Coelho falando sobre o tema: Guerra, guerra, guerra... Ando arquifarto dessa porcaria sem esperança de vê-la tão cedo fora do cartaz. Os inimigos são dos mais duros, e tenho a impressão de que o inimigo amarelo vai ser ainda mais duro de roer que o ariano. E nem sequer podemos comentar os fatos como queremos, porque há na eterna fiscalização. Felizmente estou com 62 anos e breve morro e fico livre de tudo – desta terra, destes governos, da luta armada e da futura paz, que você vai ver, sairá uma porcaria tão grande como foi a de depois de 1918. O Homo sapiens faliu. Estou com Wells naquele livro que traduzi com o título de “O Destino do Homo Sapiens”. Esse macaco glabro vai falir no governo do mundo. Destruir-se-á totalmente nas guerras futuras – e a mais bicharia ficará livre da peste. Teremos então, com grandes probabilidades, outro “rei dos animais”. Que bicho será? Voto no besouro. Acho o besouro singularmente bem apetrechado para a dominação do mundo. É um safadinho que usa “asas dobráveis e guardáveis”, como diz a Emília, aperfeiçoamento que não vemos em nenhuma outra espécie animal.

Lobato aparece nessas cartas a Coelho, falando sobre a guerra, recendendo pessimismo. A tríade guerra – morte próxima – livros de Wells é constante nessas cartas sobre a 2ª Guerra. Contudo, é importante assinalar que no mesmo dia 18 de novembro de 1944, em que escreve essa carta tão pessimista a Artur Coelho, vemos que Lobato escreveu uma outra carta, também publicada em Cartas escolhidas, a três meninas do Rio de Janeiro, Nilda, Margarida e Rute, em que nenhuma sombra de pessimismo e nenhuma lembrança do conflito mundial aparecem:

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O título completo era Modest proposal for preventing the children of poor people from being a burden to their parents or country, and for making them beneficial to the public (ou seja, modesta proposta para evitar que as crianças filhas de pessoas pobres se tornem um peso para seus pais ou para o país, e para torná-las benéficas ao público).

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S. Paulo, 18,11,1944 Meninas Nilda, Margarida e Rute: Em mãos a cartinha de 25 do mês passado, sobre a falta de gabinete dentário aí. Que vergonha! Uma escola da Prefeitura do Distrito Federal em que as crianças precisam andar pedindo esmolas para cuidar dos dentes! Vergonha das vergonhas – mas eu não me admiro, porque uma prefeitura que chegou ao ponto de mandar retirar das bibliotecas das suas escolas os meus livros infantis e queimou-os é naturalíssimo que não pense nos dentes das crianças. É uma prefeitura amiga da Carie. Asinus asinum fricat6, diz o latim. Qui ressemble s'assemble7, diz o francês. Para tal Prefeitura, só mesmo a Cárie Dentária. Querem vocês que eu contribua... Pois não. Vou mandar uma caixa de fósforos para vocês porem fogo nessa escola da Prefeitura – venham todos brincar no Sítio do Picapau Amarelo. O Quindim virou dentista e bom dentista. Ele trata dos dentes de vocês todas, de graça... Do amigo velho MONTEIRO LOBATO

Acabada a Guerra, Lobato passa a cuidar da edição das Obras completas pela Editora Brasiliense e sofre uma cirurgia para retirar um quisto de seu pulmão. Parece, literalmente, recuperar o fôlego. Na carta que escreve em 1º de fevereiro de 1946, desaparece o pessimismo das cartas anteriores, e ressurge a imagem do Lobato pilheriador como, por exemplo, ao falar da revisão das Completas: eu, meu caro, estou atracado com a revisão duma coisa enorme: as OBRAS COMPLETAS DE MONTEIRO LOBATO. Consta de 30 volumes com mais de 300 págs. em média, ou um total de 10.000 páginas ao todo. Abrange o que escrevi para adultos e o que fiz para as crianças. Tudo encadernadinho para vender em bloco por mil cruzeiros – como faz o Jackson com o “Tesouro da Juventude” e o mais. Exploração do público, em suma. Ora, eu tenho de rever 3 provas de cada volume, e a primeira eu revejo duas vezes. Tenho pois de ler 4 vezes as provas de cada volume. Totalizando, são 40 mil páginas lidas atentamente e por obrigação. Vê que trabalho de Hércules? Depois duma coisa assim, não 6

“Um asno coça o outro. Esse provérbio, em latim vulgar, ainda é usado (como seus equivalentes nas várias línguas européias modernas) para indicar – sobretudo jocosamente – a ajuda recíproca. É conceitualmente semelhante a Uma mão lava a outra, ainda que costume ser usado em contextos menos sérios e com conotação mais irônica.” (TOSI, Renzo. Dicionário de sentenças latinas e gregas. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000, sentença nº 1343, p.608). 7 Provérbio francês, cujo significado é: aqueles que se assemelham se reúnem. “Este provérbio, tão vulgar, porque é tão verdadeiro, remonta a uma muito alta antigüidade. Ele se encontra na Odisséia de Homero (cap. XVII, v.218), na primeira epístola de Aristeneto, numa peça de Menandro, em muitas passagens de Platão, em Aristóteles, no Tratado da velhice de Cícero, e na quarta epístola de Plínio, o Jovem, que o cita a partir de Eurípides.” (QUITARD, Pierre-Marie. Dictionnaire étymologique, historique et anecdotique des proverbes et des locutions proverbiales de la langue française en rapport avec des proverbes et des locutions proverbiales des autres langues. Paris: P. Bertrand, 1842, p.629. Disponível em: http://visualiseur.bnf.fr/CadresFenetre?O= NUMM50844&M=pagination&Y= Image Acesso em 20 março 2005).

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acha você justíssimo que me dessem um prêmio Nobel por tour de force de revisão?

Lobato desmonta a imagem do escritor consagrado ao pilheriar sobre a edição das Obras Completas, apresentando-as como “exploração do público”. Essa imagem de um Lobato explorador do seu público leitor, enganado por sua suposta falta de talento, já aparecia numa carta bastante anterior, de 08 de setembro de 1916, escrita a Godofredo Rangel, sobre suas primeiras idéias acerca da literatura infantil: “como tenho um certo jeito para impingir gato por lebre, isto é, habilidade por talento, ando com idéia de iniciar a coisa.”8 E numa carta mais antiga ainda, de 10 de outubro de 1911, também enviada a Rangel, Lobato desfaz a sua própria identidade de escritor: Minha literatura não é de imaginação – é pensamento descritivo; não cria – copia do natural. Em suma, sou pintor; nasci pintor e pintor morrerei – e mau pintor! Nunca pintei nada que me agradasse. Quando escrevo, pinto – pinto menos mal do que com o pincel. Copista portanto, e só. Talvez seja capaz dum livro de viagens, de impressões e até de pensamentos, porque meu cérebro pensa – mas é só. E não tenho fôlego. Escrever aborrece-me – mas quando estou desenhando ou pintando, esqueço de mim e do mundo.9

Quanto ao “prêmio Nobel por tour de force de revisão”, não se trata de uma pilhéria gratuita. Havia um movimento entre os intelectuais para que Lobato fosse indicado ao Prêmio Nobel de Literatura. Um deles, inclusive, viria a se tornar anos depois um dos seus maiores opositores: Mário da Silva Brito. Numa entrevista publicada no Jornal de S. Paulo, Brito chegou a afirmar: Na rua, no ônibus, em casa, e agora nesta máquina de escrever tirânica, o repórter martela uma idéia: Por que não se fazer uma campanha para a concessão do Prêmio Nobel a Monteiro Lobato? Não é ele talvez o maior escritor da América? O que tem, indiscutivelmente, obra já definitivamente julgada pela crítica? Não é ele também o escritor infantil de nossa época? O renovador das letras para as crianças? Um Andersen caboclo? E aqui se confundem as emoções do repórter, que se perde na revivescência de sua infância.10

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A Barca de Gleyre, São Paulo: Brasiliense, 1964, t.2, p.104. Id., t.1, p.315. 10 Quando era proibido entrevistar Monteiro Lobato – Entrevista de Mário da Silva Brito para o “Jornal de S. Paulo”. In: LOBATO, Monteiro. Prefácios e entrevistas. São Paulo: Brasiliense, 1964, p.289. 9

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Numa carta escrita de Buenos Aires em 15 de janeiro de 1947 ao poeta taubateano Cesídio Ambrogi, Lobato parece arrematar, de maneira bastante irônica e escatológica, a questão do Nobel: Essa história do Prêmio Nobel só serve para uma coisa: botar contra mim todos os literatos do Brasil. A inveja é um fato, meu caro. O ano passado tive prova disso no Jurandir Campos. Como é um pintor que vende todos os quadros que pinta, na exposição do ano passado os pintores que não vendem ou vendem mal, concentraram no rabo dele os raios da inveja – e em plena exposição produziram-lhe uma hemorróide terrível. O coitado teve de deixar o salão e ir a um sanatório operar-se. [...] Meu rabo ainda está virgem de hemorróides; mas se você e outros insistem no tal Prêmio Nobel, não dou nada para essa virgindade.11

Na carta seguinte, de 12 de fevereiro de 1947, a pilhéria se volta para o amigo, que lhe havia enviado alguns versos. Para Lobato, os versos e as cartas longas indicavam falta de serviço na Paramount, onde Coelho trabalhava. Importante recordar aqui que Lobato, na carta de 21 de junho de 1936, deixava de “escrever comprido” justamente pretextando o volume de trabalho. Esse é um tópico constante nas cartas de Lobato: a extensão e a assiduidade das cartas é fruto do ócio. Esse deveria ser o caso, portanto, para Lobato, do amigo Coelho, como lemos na abertura dessa carta de 1947, estando o remetente em Buenos Aires: Acho que a Paramount anda em período de vazante de serviço. A abundância com que você faz versos e se alonga nas cartas indica pouco serviço no escritório. Estás um perfeito amazonense, dos que dormem à sesta e ficam com o espírito a banzar duma idéia a outra, e a bocejar, e até a notar falta de letras nas cartas dos amigos, e troca de “s” por “x” em asfixia. Apesar de americanizado (e ser americano é viver eternamente short de tempo), você esparrama-se epistolarmente, espreguiça-se, revelando que isso de americanização de brasileiro é aparência.

Nessa mesma carta, Lobato usa de um artifício bastante interessante de suspensão do fio na narrativa, interrompida por um acontecimento no momento da escrita, que é depois retomada: Você é o mais feliz dos coelhos, Coelho! Ter nascido no norte e ter conseguido localizar-se aí, e ter conseguido adquirir uma segunda natureza, uma segunda língua uma segunda alma, ter conseguido

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In: MOREIRA, Dalton. Os últimos inéditos de Lobato. Folha de S. Paulo, 16 de setembro de 1984, p.59 (artigo disponível na Hemeroteca do CEDAE – IEL – UNICAMP).

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americanizar-se quase que organicamente, é absolutamente uma felicidade!... (Acabo de receber cartas do Brasil. Tenho de interromper para ir-me aborrecer com as inevitáveis más notícias da pátria). Continuo. As notícias não são boas nem más. As coisas lá não se decidem. Tudo cozinhando na água fria – o sistema que o Getúlio introduziu e o brasileiro pegou no ar, como um achado.

Sendo a carta, por definição, uma conversação escrita, Lobato sustenta a conversação e pede licença, no trecho entre parênteses, ao seu ouvinte, para depois retomar a conversa. É claro que essa interrupção – se efetivamente existente, teria ocorrido no momento da escrita da carta – não precisaria vir expressa no texto, podendo o remetente retomar o fio da narração do ponto em que a havia interrompido. O registro da interrupção, contudo, reforça o efeito de presentificação dos correspondentes por meio da carta, como se se tratasse de um amigo que pede licença na sala para se ausentar por alguns instantes.12 A carta se encerra de forma abrupta, num interessante contraponto com a abertura da carta: “bom, Coelho, eu pretendia hoje bater com V. um papo mais longo, mas as 6 cartas vindas do Brasil me obrigam a racionar-me. Pegue lá a sua ração, que me vou atirar aos outros.”

Bibliografia COUTINHO, Afrânio , SOUSA, J. Galante de (dir.) Enciclopédia da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: FAE, 1990. LOBATO, Monteiro. A Barca de Gleyre, São Paulo: Brasiliense, 1964, 2t. _____. Cartas escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1964, 2t. _____. Prefácios e entrevistas. São Paulo: Brasiliense, 1964, p.289. MOREIRA, Dalton. Os últimos inéditos de Lobato. Folha de S. Paulo, 16 de setembro de 1984, p.59 (artigo disponível na Hemeroteca do CEDAE – IEL – UNICAMP). QUITARD, Pierre-Marie. Dictionnaire étymologique, historique et anecdotique des proverbes et des locutions proverbiales de la langue française en rapport avec des proverbes et des locutions proverbiales des 12

O mesmo procedimento pode ser observado em outros missivistas como, por exemplo, na carta de Fernando Sabino a Hélio Pellegrino, datada de 23 de novembro de 1943: “Bem, soube agora que o capitão acaba de chegar. Tenho de ir lá em cima tomar a bênção. Depois eu acabo esta carta, ou mando assim mesmo, ou escrevo outra e rasgo esta. § Já fui. Cheguei lá, fiz continência, falei: – Bom dia, meu capitão. E ele: – Bom dia, tenente. Dei meia volta e tornei a sair. Essa vida até que é bem gozada, Hélio.” (SABINO, Fernando. Cartas na mesa. Rio de Janeiro: Record, 2002, p.16-7).

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autres langues. Paris: P. Bertrand, 1842, p.629. Disponível em: http://visualiseur.bnf.fr/ CadresFenetre?O=NUMM50844&M=pagination&Y=Image Acesso em 20 março 2005. SABINO, Fernando. Cartas na mesa. Rio de Janeiro: Record, 2002. TOSI, Renzo. Dicionário de sentenças latinas e gregas. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

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