Que sentido pode existir na ausência de valores de verdade?

September 30, 2017 | Autor: Teresa Marques | Categoria: Truth, Gottlob Frege, Sense and Reference
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Frege: que sentido pode existir na ausência de valores de verdade?i Teresa Marques, Universidade de Stirling, [email protected] (Intelectu, no. 2. 1999)

O interesse de Frege na área da filosofia da linguagem resulta indirectamente da sua preocupação em encontrar uma teoria semântica formal adequada para o pensamento matemático e científico. Mas tal preocupação permite estender a reflexão sobre linguagens formais à linguagem natural. Do ponto de vista semântico, Frege procurava formular uma teoria que desse conta da composição e forma lógica de expressões de uma linguagem, e de como tais aspectos contribuem para três coisas: (i) o valor semântico das próprias expressões, (ii) o valor semântico de expressões mais complexas nas quais expressões menos complexas ocorrem e (iii) as relações de inferência que obtêm entre diferentes expressões. O valor semântico de expressões simples como termos singulares é a sua referência, o valor semântico de predicados é a sua extensão, e o valor semântico de frases é o seu valor de verdade. Mas Frege não limita a sua teoria semântica ao tratamento da referência e valores de verdade da expressões na linguagem. Frege é sensível aos aspectos cognitivos da linguagem e aos conteúdos informativos que podem ser transmitidos pelo uso da linguagem. A noção de sentido (Sinn) é assim introduzida para dar conta dos aspectos cognitivos e das diferentes atitudes proposicionais que podem ser tomadas face a esses conteúdos. Contudo, a noção de sentido é menos clara que a noção de referência. Frege pretende que esta noção desempenhe diferentes papeis. Uma das teses que é normalmente associada com Frege diz que Frege concebia o sentido de uma expressão de tal forma que uma expressão possui sentido quer refira ou não, quer dizer, quer tenha uma valor semântico atribuído na teoria semântica Fregeana ou não. Portanto, uma expressão pode ter sentido na ausência de referência, uma frase pode ter sentido sendo destituída de valores de verdade. Será justo atribuir a Frege esta tese? E mesmo que haja evidência textual que apoie tal interpretação de Frege, será que Frege desejava levar a sério tal sugestão, e além do mais, podia ele manter tal posição consistentemente? Frege foi já acusado de inconsistência com base neste ponto. Os objectivos deste ensaio são, em primeiro lugar, tentar apresentar o essencial da teoria semântica Fregeana e descobrir a motivação para a noção de sentido. Também pretendemos isolar as teses distintas sobre o sentido que Frege terá mantido. Em segundo lugar, pretendemos identificar as críticas à consistência da posição Fregeana. Finalmente, podemos ver que noção de sentido pode ser preservada para Frege. I

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Frege propõe foi o primeiro a propor uma teoria semântica sistemática para um fragmento da linguagem, analisando frases singulares e frases quantificadas com base na análise de frases singulares. A descoberta da noção de sentido não força Frege a rejeitar a sua teoria semântica, mas a observar que há aspectos cognitivos relacionados com a linguagem que forçam a extensão da teoria semântica original. Uma linguagem tem termos básicos, não analisáveis: termos singulares (também designados como expressões referenciais), entre os quais se incluem nomes próprios, termos contendo pronomes demonstrativos, etc. O valor semântico destes termos consiste em introduzir objectos para a linguagem. Termos singulares podem ser usados para completar outras expressões, termos predicativos. O valor semântico de um termo singular vai assim consistir na introdução de um objecto do qual um predicado pode ser afirmado. Uma expressão completa simples, constituída por um termo singular e um termo predicativo, será uma frase na linguagem. Os valores dos termos componentes da frase permitirão determinar o valor da frase. Se o objecto designado pelo termo singular satisfaz a propriedade ou conceito expresso pelo elemento predicativo da frase, a frase é verdadeira. Caso contrário, a frase é falsa. O valor semântico de uma frase é o seu valor de verdade: Verdadeiro ou Falso. O valor de verdade de uma frase é determinado funcionalmente em virtude dos valores semânticos dos elementos componentes na frase. Frege dirá que o valor semântico de um termo singular é a sua referência, e também que uma frase completa refere o seu valor de verdade. A concepção composicional do valor semântico é simultaneamente simples e económica. Diferentes elementos da linguagem são classificados em categorias diferentes em função do tipo de valor semântico que possuem. O tipo de valor semântico que possuem determina de que forma é que podem entrar na composição de expressões mais complexas na linguagem. O que motiva, então, a noção de sentido? Frege reconhece que o valor cognitivo de uma expressão não pode ser explicado completamente por meio do tratamento dos valores semânticos que a teoria reconhece às expressões da linguagem. Se esse fosse o caso, frases declarativas simples nas quais a mesma propriedade é afirmada do mesmo objecto transmitiriam exactamente a mesma informação. O problema do conteúdo cognitivo transmitido por meio do uso de termos co-referenciais, nomes próprios para o mesmo objecto, revela-se no puzzle sobre afirmações de identidade contento nomes co-referenciais: “a=a e a=b são obviamente afirmações com conteúdos cognitivos diferentes; a=a é verdadeira a priori e, de acordo com Kant, deve ser classificada como analítica, enquanto que afirmações da forma a=b contém muitas vezes extensões importantes ao nosso conhecimento, e nem sempre podem ser estabalecidas a prori (...) A diferença [entre a=a e a=b] só pode ocorrer se à diferença nos sinais corresponder alguma diferença no modo de apresentação da coisa designada. (...) É agora natural pensar que existe em relação com um símbolo (nome, combinação de palavras, inscrições escritas), além daquilo que pode ser chamada a referência do símbolo, também aquilo que eu gostaria de chamar o sentido do símbolo, no qual o modo de apresentação do objecto está contido (...) A referência de “a estrela da tarde” será a mesma que a referência de “a estrela da manhã”, mas não o sentido”. (Frege, On Sense and Meaning, in Translations from the Philosophical Writings of Gottlob Frege, pp. 56-57).

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O facto de nomes co-referenciais diferentes poderem ser usados para transmitir informação em asserções de indentidade, e portanto expressarem sentidos diferentes, implica que não só não é necessário que um utente competente da linguagem e dos nomes saiba que ambos os nomes têm a mesma referência, como força a admissão que tal utente pode ter atitudes proposicionais diferentes quanto a frases que permitem atribuir a mesma propriedade ao mesmo objecto. Uma pessoa pode acreditar que a estrela da manhã é um planeta e não acreditar que a estrela da tarde é um planeta, por exemplo. Uma pessoa pode assim, racional e consistentemente, ter crenças (atitudes) diferentes quanto ao mesmo objecto. A noção de sentido permite dar conta das possíveis diferenças cognitivas entre expressões co-referenciais, e explicar as diferentes atitudes proposicionais que podem ser tomadas em relação a frases que são verdadeiras ou falsas em função do mesmo estado de coisas no mundo. A concepção que os valores semânticos das expressões componentes de frases contribuem funcionalmente para o valor das frases em que ocorrem é adaptada à noção de sentido. O sentido de expressões como “a estrela da manhã” e “a estrela da tarde” contribuem composicionalmente para determinar o sentido de uma frase como “a estrela da manhã é um planeta”. O sentido expresso pela frase, o seu conteúdo, é dito ser o pensamento expresso pela frase. “O pensamento, igualmente, não pode ser aquilo que é referido pela frase, mas deve ser considerado como o seu sentido. Qual é a relação à referência?(...) Será possível que uma frase no seu todo tenha apenas sentido e não tenha referência? Seja como for, podemos esperar que tais frases ocorram, tal como há partes de frases que têm sentido mas não têm referência. As frases que contêm nomes próprios sem referência são frases deste tipo. A frase ‘Ulisses deu à costa em Ítaca adormecido’ tem evidentemente sentido. Mas dado que é duvidoso que o nome ‘Ulisses’ tenha referência, também é duvidoso que a frase no seu todo tenha referência [i.e. valor de verdade]. Contudo, é certo que seja quem for que encare a frase seriamente como sendo verdadeira ou falsa, atribuirá ao nome ‘Ulisses’ um referente, e não só um sentido; pois é da referência do nome que o predicado é afirmado ou negado. Quem não admite que o nome refira não pode aplicar nem negar o predicado. Mas nesse caso seria supérfluo avançar para a referência do nome; poderíamos ficar satisfeitos com o sentido, se não quiséssemos ir mais longe que a expressão do pensamento (...) apenas o sentido, e não a referência, da parte é relevante para o sentido da frase. O pensamento é o mesmo quer ‘Ulisses’ refira ou não (...) O pensamento perde valor para nós assim que reconhecemos que a referência de uma das suas partes está ausente. Estamos assim justificados em não ficarmos satisfeitos apenas com o sentido de uma frase, e em procurarmos também a sua referência. (...) Porque não é o pensamento suficiente para nós? Porque, e na medida em que, nos preocupamos com o seu valor de verdade. É a procura da verdade que nos conduz do sentido à coisa significada.” (Frege, idem, pp. 62-63) Noutros pontos Frege diz: “Imaginemos que nos convencemos, ao contrário da nossa opinião anterior, que o nome ‘Ulisses’, tal como aparece na Odisseia, afinal de contas designa um homem. Poderia isto querer dizer que as frases que contêm ‘Ulisses’ expressam pensamentos diferentes? Eu acho que não. Os pensamentos seriam exactamente os mesmos; seriam apenas transferidos do reino da ficção para o reino da verdade. Portanto o

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objecto designado por um nome próprio não é essencial para o conteúdo-pensamento de uma frase que o contém. (...) Mas podemos inferir imediatamente do que dissemos que algo mais deve ser associado com o nome próprio, algo que é diferente do objecto designado e que é essencial ao pensamento da frase na qual o nome próprio aparece. Eu chamo a isso o sentido do nome.” (Frege, Posthumous Writings, p.191) Aparentemente, Frege alarga a visão composicional do significado de expressões da linguagem à noção de sentido, e permite que frases expressem um pensamento ou conteúdo ao mesmo tempo que falham em ter um valor de verdade verdadeiro ou falso. As razões para admitir esta possibilidade residem em considerar que os elementos que constituem a frase podem ter sentido mesmo que não refiram, em considerar que os sentidos das partes compõem o sentido do todo, e finalmente em identificar o sentido expresso por uma frase com o pensamento que essa frase pode expressar. Noutros locais, Frege esclarece a noção de pensamento de outro ângulo. Pensamentos têm de ser expressáveis por meio de frases diferentes pronunciadas por pessoas diferentes em ocasiões diferentes. Caso contrário, Frege crê, qualquer tarefa científica e lógica é inviabilizada. A tarefa da lógica, numa certa concepção da lógica, é descobrir as regras do pensamento, as “leis da verdade”: “Todas as ciências têm por objectivo a verdade; mas a lógica preocupa-se com a verdade de um modo muito diferente: a lógica tem o mesmo tipo de relação com a verdade que a física tem com o peso ou com o calor. A descoberta de verdades é a tarefa de todas as ciências; à lógica cabe a tarefa de descobrir as leis da verdade (...) Das leis da verdade seguem-se prescrições sobre asserção, pensamento, juízo, inferência. Deste modo podemos também falar de regras de pensamento.” (Frege, Thoughts, in

Logical

Investigations, p.1) Para que o mesmo conteúdo seja expresso por frases diferentes, em ocasiões diferentes, os pensamentos não devem ser identificados nem com entidades mentais particulares, nem com o significado linguístico da frase usada: “O conteúdo de uma frase muitas vezes ultrapassa o pensamento expresso nela, mas o contrário também acontece; o fraseado, que pode ser permanente uma vez escrito ou gravado, não é suficiente para a expressão do pensamento (...) se uma indicação temporal é indicada pelo tempo presente do verbo deve-se saber quando a frase foi pronunciada para compreender o pensamento correctamente. Portanto o momento da elocução é parte da expressão do pensamento. Se alguém quer dizer hoje o que expressou ontem usando a palavra ‘hoje’, deve substituir a palavra por ‘ontem’ (...) em todos estes casos, a formulação da frase, tal como é preservada na escrita, não é a expressão completa do pensamento; o conhecimento das condições que acompanham a elocução, que são usadas como meio de expressão do pensamento, são necessárias para expressar o pensamento correctamente.” (Frege, op.cit., p.10) Frege considera que a expressão do mesmo pensamento pode ser feita por meio de frases distintas, por exemplo ‘Hoje chove’ e ‘Ontem chovia’. Destes, e de outros exemplos, Frege infere que é necessário que os pensamentos sejam entidades independentes da linguagem que os expressa e da nossa capacidade de os apreender em momentos particulares. A existência independente de pensamentos e sentidos para serem apreendidos e compreendidos reflecte a preocupação de Frege com a explicação e justificação das leis da

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lógica ou do pensamento. Frege crê que se não fosse possível que um mesmo pensamento fosse expresso em situações diferentes por frases diferentes, e eventualmente mesmo em linguas diferentes, não seria possível conduzir qualquer tipo de investigação científica, que a tarefa de argumentar não seria possível: “Se outras pessoas podem assentir ao pensamento que eu expresso no teorema de Pitágoras assim como eu faço, então esse pensamento não pertence ao conteúdo da minha consciência, eu não o possuo; contudo eu posso, mesmo assim, reconhecê-lo como verdadeiro. Todavia, se o que é identificado como o conteúdo do teorema de Pitágoras por mim e por outra pessoa não é exactamente o mesmo conteúdo, não devíamos dizer ‘o teorema de Pitágoras’ mas ‘o meu teorema de Pitágoras’, ‘o seu teorema de Pitágoras’ (...)Se todos os pensamentos requerem um dono e pertencem ao conteúdo da sua consciência, então o pensamento só tem esse dono; e assim não há uma ciência comum a muitos na qual muitos possam trabalhar (...) Nenhuma contradição entre duas ciências seria possível, e seria de facto inútil discutir sobre a verdade. (Frege, op.cit., pp.16-17). A noção de sentido é extendida para além da razão que motivou a sua introdução, o reconhecimento da diferença cognitiva entre expressões com a mesma referência. A noção de sentido passou a ser também vista como uma noção composicional, os sentidos de frases são identificados com pensamentos. À noção de pensamento são atribuídas certas características: a noção de pensamento está ligada com os valores de verdade de frases assim como o sentido de um termo se relaciona com a sua referência (sendo o seu modo de apresentação); pensamentos dão conta do conteúdo de atitudes proposicionais; ao mesmo tempo pensamentos são entidades independentes da linguagem e dos conteúdos mentais particulares; a persistência independente de pensamentos está intimamente relacionada com a necessidade de reconhecer conteúdos que entrem em relações dedutivas. Se não fosse possível que o mesmo conteúdo fosse afirmado em frases diferentes, por pessoas diferentes, não seria possível que o que duas pessoas pensam ou afirmam entrasse em contradição, por exemplo. A lógica é assim considerada como o estudo das leis do pensamento ou da verdade. As duas noções de pensamento e de verdade estão intimamente ligadas. Em partes dos seus escritos, Frege parece reconhecer que termos referênciais podem falhar em referir, e ter sentido, o que, dada a teoria da composicionalidade implica que as frases respectivas expressam pensamentos, mesmo sem terem valores de verdade. Todavia, noutros sítios Frege parece contradizer esta ideia: “6. O critério para saber se um modo de ligação constitui um pensamento é saber se faz sentido perguntar se é verdadeiro ou falso (...) 9. Uma frase só pode ser verdadeira ou falsa se for a expressão de um pensamento. A frase ‘Leo Sachse é um homem’ é a expressão de um pensamento só se ‘Leo Sachse’ designa alguma coisa. E assim também, ‘esta mesa é redonda’ é a expressão de um pensamento só se as palavras ‘esta mesa’ não são apenas sons vazios e designam alguma coisa específica para mim.” (Frege, 1906?, 17 Key Sentences on Logic, in Posthumous Writings, p. 174) Frege diz também:

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“As regras da lógica pressupõem sempre que as palavras que usamos não são vazias, que as nossas frases expressam juízos, que não estamos a fazer um mero jogo de palavras. Assim para que ‘Sachse é um homem’ expresse um juízo, a palavra ‘Sachse’ deve designar alguma coisa, e nesse caso não preciso de uma premissa adicional para inferir ‘Existem homens’.” As afirmações de Frege neste ponto parecem contradizer as suas afirmações nas secções anteriores nas quais Frege apresentava a noção de sentido. Normalmente associa-se com Frege a tese que a posse de sentido é independente da posse de referência (e de valor de verdade). Mas até que ponto é que o próprio Frege levava esta possibilidade seriamente e a defende consistentemente, e em que medida é que é consistente para Frege defender que podem haver pensamentos sem valores de verdade? II Há duas linhas de acusação à consistência da tese que Frege defende em vários pontos: que a existência de sentido é independente da existência de referência. A primeira linha de objecção foi apresentada por Gareth Evans (1982, The Varieties of Reference), e questiona a consistência interna, dada a teoria semântica que Frege adopta, da defesa da tese mencionada. A segunda pode ser derivada de argumentos apresentados por Timothy Williamson (1991, Vagueness) contra a possibilidade de admitir que há asserções que podem falhar em ser verdadeiras ou falsas. A primeira objecção é séria para Frege, mas deixa aberta a possibilidade de adoptar uma teoria semântica diferente da fregeana. A segunda é mais séria, pois não depende de uma teoria semântica particular, mas do reconhecimento da validade de alguns princípios de inferência básicos e da adopção de princípios que são normalmente reconhecidos como governando a noção de verdade. O que temos a certeza de ser correctamente atribuído a Frege é a tese que quando nomes próprios ou termos singulares são vazios, não referem, não se pode atribuir qualquer valor de verdade a uma frase simples declarativa em que tais nomes ocorrem. A tese controversa é se se segue que termos singulares vazios podem ter sentido. Por um lado, Frege parece crer que sim, que podem haver termos singulares vazios com sentido, tais como ‘Ulisses’, ou ‘O maior número primo’. Se esse é o caso, então, dada a tese da composicionalidade do sentido, frases que contenham tais termos também têm sentido. Dado, uma vez mais, a identificação do sentido de frases com pensamentos, então tais frases expressam pensamentos que, dado o resto da teoria no que concerne a referência, não são nem verdadeiros nem falsos. Por outro lado, Frege afirma que a existência de um pensamento para ser expresso é uma condição necessária para que uma frase tenha valor de verdade. Além do mais, que o termo sigular na frase refira é uma condição necessária para a existência de um pensamento. Logo, segue-se que na ausência de referente para o termo singular uma frase não expressa um pensamento e portanto não tem valor de verdade. Se Frege encara esta tese seriamente, porque razão haveria de (i) atribuir sentidos a termos singulares vazios, ou, (ii), sustentar que sentidos são composicionais, ou ainda (iii) identificar os sentidos de frases com pensamentos? A noção de sentido é obviamente introduzida para dar conta de diferentes modos de pensar sobre um objecto. Evans questiona a clareza de admitir que haja um modo de pensar sobre um objecto quando não existe nenhum objecto sobre o qual pensar. Isto significa, posto noutros termos, que Frege considerou

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seriamente a possibilidade de admitir que haja frases na linguagem com significado, que podem ser usadas para transmitir pensamentos, às quais a sua teoria semântica não pode ser aplicada, e estava preparado a admitir que partes dessas frases podem contribuir sistematicamente para a expressão de pensamentos sem possuirem o tipo de valor semântico que na teoria fregeana lhes podem ser atribuídos apropriadamente. Evans diz: “Se encontramos frases que aceitamos serem inteligíveis e das quais estamos preparados dizer que não têm valor de verdade, então devemos rever a avaliação dos valores semânticos apropriados das frases. (...) O semântico não tem à sua disponibilidade a possibilidade de dizer ‘existe um lapso na minha teoria, eis um grupo de frases viáveis que podem ser usadas para expressar e transmitir pensamentos, mas às quais a minha teoria não se aplica (...) Em vez de dizer isto, o semântico deve voltar atrás a alterar a sua teoria, especificamente, as atribuições que são apropriadamente encaradas como os valores semânticos das frases” (Evans, op.cit, p.23) Evans vai mais longe e questiona que faça sentido dizer de todo que pensamentos podem falhar em ter um valor de verdade. Se se nega o valor de verdade verdadeiro a uma frase, seguir-se-á certamente que a frase é falsa, e vive-versa. Que sentido poderá fazer acreditar em algo que não é verdadeiro nem falso? O que é uma crença que não é correcta nem incorrecta? Se, como é patentemente o caso, a teoria semântica de Frege foi formulada para permitir a investigação de inferências lógicas, e se a teoria só pode desempenhar tal papel se a linguagem para a qual a teoria é formulada não contém termos singulares ou referenciais vazios, e se ao mesmo tempo, Frege encara seriamente a possibilidade de termos singulares poderem permitir a expressão de pensamentos, porque razão é que Frege haveria de restringir a sua teoria a linguagens nas quais a falha de referência não ocorre? Por outro lado, Frege não parece sugerir qualquer forma de enunciar explicitamente o que o sentido de uma expressão pode ser, ao passo que é possível enunciar claramente aquilo que é a referência e valor semântico de uma expressão. O que poderá desencadiar a crença que termos singulares vazios podem ter sentido, quando esses sentidos seriam modos de pensar sobre objectos não-existentes; quando os sentidos de termos devem dar conta do conteúdo cognitivo de uma expressão, e nestes casos, não há nada que se possa conhecer acerca de objectos inexistentes? Os exemplos que Frege fornece são (na maioria dos casos) nomes próprios ficcionais, ou descrições definidas. É sabido que (depois de Russell) as descrições definidas podem ser tratadas de forma que faça sentido que elas não sejam incluídas na categoria de termos singulares, mas antes na categoria de termos quantificacionais. Daí descrições definidas podem ser coerentemente tratadas numa teoria semântica, contribuindo para o valor semântico de frases que as contenham, quer exista ou não um item que satisfaça a descrição. Quanto a termos ficcionais, o próprio Frege afirma que eles concernem o “reino da ficção” e não o “reino da verdade”. Logo, parece que os casos de termos singulares vazios não são verdadeiras ameaças para a teoria. Por outro lado, se a possibilidade de existência de termos singulares vazios com sentido é séria, então, não parece haver razão para Frege não alterar a teoria semântica de modo a acomodar uma lógica livre, a atribuir o valor de verdade falso a frases que contenham termos singulares vazios, ou a adoptar uma lógica trivalente. Em qualquer caso, Frege parece

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não estar justificado em manter simultaneamente a teoria para os valores semânticos de uma linguagem que mantem e em admitir que há termos singulares vazios que expressam sentidos, e que permitem a expressão de pensamentos. O próprio Frege não parecia sentir-se muito confortável com a admissão que pensamentos expressos por meio do uso de termos vazios são pensamentos genuínos, remetendo tais pensamentos para o domínio da ficção, chamando-lhes pensamentos ilusórios por vezes: “Mas o sentido da frase ‘Guilherme Tell disparou contra uma maçã que estava na cabeça do seu filho’ não é mais verdadeiro que aquele da frase ‘Guilherme Tell não disparou contra uma maçã que estava na cabeça do seu filho’. Não digo que o sentido seja falso, caracterizo-o antes como fictício.” (Frege, Posthumous Writings, p. 175). O perigo de inconsistência é, parece, mais sério, se levarmos em consideração argumentos à la Williamson (ver por exemplo op.cit., pp. 187-189). Se se assumir que uma frase ‘a é P’ expressa um pensamento, então podemos fazer asserções que a é P, onde ‘a’ é um termo singular vazio. O princípio de bivalência (na formulação do princípio proposta por Williamson) diz que se a elocução de uma frase S numa ocasião diz que a é P, então S é verdadeira ou falsa. Além do mais, S é verdadeira só e só se a é P, e S é falsa se e só se não é o caso que a é P. Mas S não é verdadeira (por hipótese, dado que ‘a’ não refere). Logo, não é o caso que a é P. Mas, também, S não é uma frase falsa. Logo, não é o caso que a não seja P. Mas isto é uma contradição evidente. Ambas as consequências não podem simultaneamente obter. Portanto, uma das premissas deve ser rejeitada. Qual delas é que Frege deveria rejeitar?A hipótese de que o princípio de bivalência é válido não seria rejeitada, dado que a lógica de base que Frege adopta na sua teoria semântica é clássica. Os restantes princípios acerca da verdade e falsidade usados não parecem ser questionáveis para Frege. Logo, o que se pode questionar é que uma frase que contenha um termo singular vazio possa ser usada para expressar pensamentos, para fazer asserções. A rejeição desta hipótese pode ser reforçada pelas afirmações que Frege faz em diferentes momentos, algumas das quais mencionadas acima, que levantam dúvidas em relação à plausibilidade de encarar seriamente o (possível) sentido expresso por frases com termos singulares vazios. De facto, como pode uma frase dizer que a é P, se a não existe e não é possível avaliar se a se encontra ou não na extensão de P? III Parece evidente que asserções de indentidade como ‘a=a’ e ‘a=b’ podem conter conteúdos informativos distintos. A noção de sentido é, antes de mais, introduzida para explicar tal diferença cognitiva. Assim, alguém pode acreditar que a é P, e duvidar que b é P, mesmo quando a = b, sem risco de incoerência. Portanto as duas frases podem ser vistas como expressando conteúdos diferentes. Não será tão fácil de explicar em que consiste tal diferença cognitiva, isto é, o que é que alguém sabe ao saber que a é P, e não sabe ao ignorar que b é P. Por outras palavras, não é muito fácil explicar o que são sentidos, nem explicar qual o sentido que ‘a’ expressa e qual o sentido que ‘b’ expressa. Pode-se elucidar o que será o sentido de um nome ao dizer que consiste num modo particular de pensar sobre um objecto, que o sentido é o modo de apresentação do objecto. Esta elucidação metafórica não nos leva muito mais longe, pois não sabemos exactamente o que é um modo de pensar sobre um objecto, ou um modo de ser apresentado a um objecto. Como a explicação da diferença entre os sentidos de dois termos diferentes não é facilmente encontrável,

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para lá de permitir dizer que é em virtude dos sentidos que se pode explicar que uma pessoa possa consistente e racionalmente ter atitudes diferentes em relação a um só objecto, não parece ser fácil explicar o que é que o sentido de um nome fornece para a composição do sentido de uma frase, nem como tal composição de um sentido mais complexo deve ser feita. Isto está em claro contraste com a relativa facilidade com que a referência de um nome pode ser tratada de modo a entrar na determinação funcional do valor semântico -- valor de verdade -- de uma frase contendo o nome. Parece ser em virtude de compreendermos algo diferente numa frase e noutra, que dizemos que duas frases têm sentidos diferentes, e de parecer que compreendemos algo com frases que contêm nomes vazios, que poderíamos ser levados a dizer que tal compreensão se deve fundar na existência de sentidos para nomes vazios. Como parece ser possível compreender frases contendo nomes vazios, e como parece que nomes vazios têm sentidos, dada também a suposição da composicionalidade dos sentidos, parece seguir-se que frases com nomes vazios expressam sentidos, neste caso pensamentos. A admissão desta possibilidade tem resultados dificilmente compatibilizados com aquilo que Frege espera da noção de pensamento, e da relação entre pensamentos e a investigação de inferências lógicas. A noção de pensamento é elucidada em diferentes pontos por Frege como estando intimamente ligada à noção de verdade. A adopção de uma lógica clássica e da teoria semântica Fregeana tem resultados inconsistentes com a suposição que nomes vazios têm sentido. Portanto, ou a suposição é abandonada, ou a teoria é revista. Parecem haver mais razões para manter a teoria que para manter a suposição. Os argumentos que levam à introdução da noção de sentido não parecem ser suficientemente fortes para forçar a revisão da teoria. Por outro lado a teoria semântica de Frege é sistemática, económica e simples para, pelo menos, um fragmento da linguagem. Portanto, a não ser que se apresentem argumentos mais fortes para reconhecer sentidos a nomes vazios, parece que não há necessidade de admitir (antes pelo contrário) que pode existir sentido na ausência de referência. Uma outra alternativa seria questionar a teoria da composicionalidade do sentido, e que da existência de sentido para termos singulares se segue que frases que os contenham expressem pensamentos. Se for possível argumentar persuasivamente para o reconhecimento de sentido para termos singulares vazios, e para a expressão de pensamentos por meio do uso de tais nomes, então a teoria deveria ser revista para não permitir a existência de pensamentos sem valor de verdade. Pelo menos, desde que o princípio de bivalência seja válido. Para responder à questão original: que sentido podia Frege ver na ausência de valores de verdade?, coerentemente, pouco.

Teresa Marques [email protected]

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Bibliografia: Dummett, M., [1973]/[1981], Frege: Philosophy of Language, 2nd edition, Duckworth, London. Evans, G. [1982], The Varieties of Reference, ed. J. McDowell, Clarendon Press, Oxford. Frege, Translations From the Philosophical Writings of Gottlob Frege, ed. P. Geach & M. Black, 3rd Edition, Blackwell, Oxford. Frege [1892], On Sense and Meaning, in Translations From the Philosophical Writings of Gottlob Frege, ed. P. Geach & M. Black, 3rd Edition, Blackwell, Oxford. Frege, Posthumous Writings, Blackwell, Oxford. Frege, Logical Investigations, Blackwell, Oxford. Williamson, [1991], Vagueness, Routledge, London and NY.

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Agradeço o apoio financeiro fornecido pela Fundação para a Ciência e Tecnologia para a realização deste trabalho, sob a bolsa Praxis XXI/ BD/ 9131/ 96.

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