\"¿Qué será de mis hermanos que están lejos de esta tierra?\": o selo Le Chant du Monde e a produção discográfica latino- americana no exílio

May 28, 2017 | Autor: Caio de Souza Gomes | Categoria: Latin American Studies, Latin America, Protest Songs, Exilio
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Anais do XI Encontro Internacional da ANPHLAC 2014 – Niterói – Rio de Janeiro ISNB 978-85-66056-01-3

“¿Qué será de mis hermanos que están lejos de esta tierra?”1: o selo Le Chant du Monde e a produção discográfica latinoamericana no exílio Caio de Souza Gomes *

Introdução

Desde a década de 1960, artistas ligados à canção engajada conceberam projetos de integração da América Latina a partir da canção. Tais projetos foram se esboçando de maneira assistemática e fragmentária e se cristalizaram a partir das próprias canções, tanto no campo estritamente musical, a partir do cruzamento de referências sonoras de distintas partes do continente, no sentido da construção de um repertório comum capaz de expressar uma “sonoridade latino-americana”, quanto nas letras, que trataram de, a partir de caminhos variados, propor a unidade continental e reafirmar a identidade latino-americana. Esses projetos de integração conheceram diversas tentativas de materialização a partir da intensa circulação dos artistas e de suas obras ao longo das décadas de 1960/70, período em que se estabeleceram uma série de “conexões transnacionais” que resultaram na constituição de uma complexa rede de diálogos e intercâmbios que aproximaram as experiências artísticas que vinham se desenvolvendo simultaneamente em diferentes países do continente 2. Os golpes civil-militares que tomaram a América Latina, principalmente a partir da década de 1970, inevitavelmente impactaram estes projetos. No entanto, embora os golpes civil-militares tenham sido rupturas cruciais na crescente mobilização dos músicos, intérpretes e compositores comprometidos latino-americanos, não representaram o fim dos projetos de integração da América Latina por meio da canção que vinham sendo formulados e propostos desde início da década de 1960, mas sim provocaram sua reformulação. Isso

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porque a reflexão sobre o “engajamento” que serviu como elemento comum aos artistas dos vários países do continente e que marcou a primeira fase do processo de construção de conexões transnacionais acabou dando lugar à ideia da “resistência”, num processo que se intensificava no mesmo ritmo em que crescia a repressão, a censura, a violência. Para além dessa reformulação dos projetos de integração, os golpes civil-militares também resultaram em um adensamento e complexificação das redes transnacionais ativas desde o início da década de 1960, que punham em diálogo os artistas das várias partes do continente. Isso porque se os golpes significaram, para uma parte dos artistas que permaneceram em seus países, a necessidade de se adequar a um novo contexto dominado pela repressão e a censura, para tantos outros eles significaram o exílio. Esse processo de exílio dos artistas impulsionou a inserção de novos polos aglutinadores nos circuitos que articulavam a produção e circulação da canção engajada na América Latina. Se até o início da década de 1970 podíamos identificar claramente alguns eixos principais que articulavam esses diálogos transnacionais – como aquele que articulava os países do Cone Sul (Argentina, Chile e Uruguai) em torno do projeto da nueva canción; ou aquele que articulava esse universo da nueva canción com Cuba, que pretendia se firmar como polo fundamental desses diálogos; ou ainda aquele que aproximava as experiências da nueva canción com a produção musical engajada brasileira – no período pós-golpes esses eixos se transformaram e novos circuitos foram inseridos nessas redes.

“Los que la represión golpea por igual unieron la unidad”3: os golpes civil-militares e a canção engajada latino-americana

O ano de 1973 significou um corte radical nos projetos de integração continental e no processo de construção de pontes e conexões que pusessem em diálogo os artistas de toda a América Latina. O golpe militar no Uruguai significou o fechamento final do país após um longo processo de escalada autoritária, e o golpe militar no Chile, sob a liderança do general Augusto

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Pinochet, representou o fim da tentativa de construção de uma “via chilena” para o socialismo proposta pela Unidade Popular. Os impactos dos golpes militares se fizeram sentir imediatamente pelos artistas engajados nos dois países. No Uruguai, a música dos integrantes da canción protesta foi imediatamente proibida. Braulio López, do duo Los Olimareños, partiu para o exílio em 1974, se instalando primeiro em Córdoba, na Argentina, onde acabou preso, e partindo depois para a Espanha. Pepe Guerra, seu companheiro de dupla, resistiu algum tempo no Uruguai, mas acabou também se exilando na Espanha, onde o duo se reencontrou. Alfredo Zitarrosa também resistiu algum tempo, mas partiu para o exílio, primeiro na Argentina, depois Espanha e México. Daniel Viglietti, que já havia sido alvo da repressão, também partiu primeiro para a Argentina e depois para Paris. No Chile, o golpe desarticulou completamente o núcleo central da nueva canción. Rolando Alarcón morreu pouco antes e foi poupado de assistir aos horrores da repressão. Ángel Parra acabou preso no Estádio Nacional, que se tornou um enorme campo de concentração, e posteriormente no campo de prisioneiros de Chacabuco, até que em 1974 conseguiu ser libertado, partiu para o México, e acabou se exilando na França. Isabel Parra se refugiou na Embaixada da Venezuela, de onde partiu para Cuba e depois Berlim, até se instalar definitivamente em Paris, em novembro de 1974. Patricio Manns conseguiu sair do país e viajar para Cuba, onde permaneceu até 1974, ano em que se instalou em Paris. Os integrantes do conjunto Quilapayún foram surpreendidos pela notícia do golpe durante uma turnê internacional e, impedidos de retornar a seu país, também se radicaram em Paris. O mesmo se passou com os integrantes do Inti-Illimani, que estavam na Itália quando receberam a notícia e permaneceram no país. Víctor Jara não teve a mesma sorte dos demais: foi preso no Estádio Nacional, torturado e assassinado poucos dias depois do golpe, se tornando um grande símbolo dos efeitos da violência e do terror das ditaduras do Cone Sul. Para chilenos e uruguaios, o cerco havia se fechado completamente, e eles trataram de, a partir do exílio, se reestruturar e, de algum modo, voltar a atuar, articulando movimentos de solidariedade aos países que estavam vivendo sob ditaduras e de denúncia das atrocidades destes regimes. 3

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A Argentina, outro palco importante do movimento da nueva canción, e que já havia vivido uma experiência autoritária com o golpe de 1966 liderado pelo General Juan Carlos Onganía, apareceu nesse momento como um espaço onde ainda se vivia relativa liberdade, e serviu de rota de fuga para muitos no momento imediatamente posterior aos golpes uruguaio e chileno. Mas, em 1976, novo golpe no país conduziu ao poder o general Jorge Rafael Videla, o que fechou o cerco completamente e atingiu de modo irreparável a nueva canción no Cone Sul. Os artistas estrangeiros que haviam se refugiado na Argentina tiveram que mais uma vez partir, e muitos artistas argentinos conheceram o mesmo destino de seus vizinhos: o exílio.

“Quiero volver a mi tierra, mas no como prisionero”4: o exílio e a canção engajada latino-americana

Deste modo, uma das consequências importantes dos golpes civilmilitares, principalmente entre artistas e intelectuais, especialmente visados pela repressão, foi a necessidade de deixar o país. Diante das atrocidades cometidas pelos novos donos do poder e da perseguição crescente, muitos intelectuais e artistas (ao lado de tantos outros grupos) optaram pelo exílio. Deste modo, a produção artística desenvolvida ao longo do período de domínio das ditaduras na América Latina foi fortemente marcada pela questão do exílio que, como afirma Denise Rollemberg, “assim como a prisão e os assassinatos políticos, cumpriu o papel de afastar e eliminar as oposições identificadas a projetos de mudança, fossem eles de reforma ou de revolução” 5. Mas se por um lado os exílios deixaram uma marca dolorosa indelével na experiência de tantos que, diante da violência, perseguição, repressão, censura, tiveram que deixar suas pátrias (e também daqueles que ficaram), por outro eles representaram um momento crucial no processo de construção de “conexões transnacionais”. Isso porque ao se instalarem em diferentes países, muitos na Europa, os artistas estabeleceram uma série de novas conexões nas redes de produção e circulação de ideias e obras, ampliando ainda mais o

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processo de construção de pontes que havia se iniciado na década de 1960. Como aponta Denise Rollemberg:

É comum se falar em exílio (...) como sofrimento, dor, perdas, luto. O exílio é tudo isto. Mas é também aprendizado, eliminação

de

fronteiras,

aprendizados,

ampliação

de

horizontes. No exílio, cabem a morte e o nascimento. 6

Com a saída massiva de artistas de seus países de origem e a fixação de muitos deles em países europeus, se desenhou um novo mapa da produção e circulação da música engajada latino-americana. Países como o México, a Itália, a Espanha e, principalmente, a França, se tornaram novos polos articuladores da produção de artistas latino-americanos. Os países que sofreram as ditaduras viveram um processo progressivo de fechamento dos canais de produção e circulação de cultura e arte, de aumento do controle, da censura e da repressão a tudo o que fosse considerado perigoso pelos novos regimes. Deste modo, a produção engajada nos países latino-americanos minguou progressivamente, e aqueles que ficaram tiveram que, cada vez mais, se adaptar às novas realidades e transformar suas obras de modo a encontrar meios (ainda que sutis e metafóricos) de transmitir suas mensagens. A “linguagem da fresta”

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se tornava regra para todos aqueles artistas

comprometidos em resistir e que tentavam se manter produzindo. Já outro processo se deu com aqueles artistas que acabaram exilados, pois estes encontraram novas possibilidades de produzir e divulgar suas obras. Paris e Milão, por exemplo, se tornaram importantes polos divulgadores da produção musical latino-americana ao longo das décadas de 1970 e 1980. Deste modo, os golpes civil-militares, ainda que tenham significado, em muitos casos, a interrupção violenta das carreiras dos artistas, inclusive com prisões, torturas e mortes, não significaram necessariamente um fim para os projetos de integração da América Latina pela canção que vinham se construindo e consolidando desde inícios da década de 1960. Ao atingir diretamente a vida dos artistas, os golpes significaram na verdade um redimensionamento de suas atividades artísticas e, consequentemente, 5

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colocaram novas questões a seus projetos, problematizando suas propostas estéticas e, principalmente, seus posicionamentos políticos. Deste modo, a onda de golpes civil-militares que se espalhou por todo o continente marca um momento de inflexão fundamental dos movimentos de integração e diálogo da América Latina por meio da canção popular.

A produção musical engajada no exílio: o caso Le Chant du monde

Uma vez instalados no exterior, a maioria dos artistas buscou viabilizar a continuidade de suas carreiras, o que implicou também na continuação da edição de discos, agora em gravadoras estrangeiras. No sentido de divulgar essa produção dos artistas da nueva canción latino-americana no exílio, um selo discográfico localizado em um polo central de exilados latino-americanos na Europa ganhou um papel importante: o francês Le Chant du Monde. A companhia discográfica Le Chant Du Monde é a mais antiga ainda em atividade na frança. Foi fundada em 1938, pelo crítico de cinema Léon Moussinac, como casa de edição de partituras de música erudita, e se tornou uma gravadora de discos quando retomou suas atividades após a Segunda Guerra Mundial. Ao fortalecer sua atividade como editora de discos, a empresa logo ampliou sua atuação para além da música erudita, se celebrizando pela edição de um impressionante catálogo de “música do mundo”. A partir dos anos 1960, a gravadora se tornou verdadeiro reduto de artistas engajados dos mais variados países, passando a ser uma das principais responsáveis pela difusão da música folk e da nueva canción latino-americana no contexto europeu 8. A principal proposta da gravadora era colocar à disposição de um público amplo, com a venda de discos a preços bastante baixos, o grande repertório musical de várias partes do mundo. A identidade da editora musical era calcada na proposta de servir às transferências culturais, a partir de uma inserção particular no mercado de discos. Mas uma das marcas fundamentais de Le Chant Du Monde está na sua política artística bastante singular, já que há uma aproximação intensa da gravadora com o campo socialista francês, 6

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especialmente com o Partido Comunista Francês (PCF), tendo inclusive membros do partido participando de maneira bastante direta da tomada de decisões dentro da empresa. Segundo o pesquisador francês Vincent Casanova, que tem estudado a história de Le Chant Du Monde, “devemos associar a história de Le Chant du Monde àquela das relações entre Moscou, o PCF e a Internacional Comunista durante a Guerra Fria” 9. Vincent Casanova propõe pensar Le Chant du Monde como uma base importante de difusão na França de uma “cultura musical comunista”. Após a reabertura da gravadora, com o fim da Segunda Guerra, o primeiro disco editado é uma gravação do “Hino da Internacional Comunista” interpretado pelo Coro e Orquestra da radiodifusão francesa, dirigido por Manuel Rosenthal, em disco de 78 rotações que contém a “Marselhesa” no “lado b”. Nesse período, a gravadora editou diversas versões diferentes do hino comunista, além de editar discos com o hino nacional soviético e as primeiras edições na França de gravações de obras de grandes autores soviéticos de música erudita como Chostakovitch e Prokofiev, que estabeleceram acordos pessoais com a gravadora. Em 1947, a gravadora adquiriu ainda direitos de execução pública e de edição das trilhas sonoras de filmes soviéticos. Mas para além da difusão de música erudita, Le Chant Du Monde realizou

um

trabalho

fundamental

de

difusão

de

material

folclórico,

principalmente do repertório folclórico francês e soviético. Essa difusão da canção popular tem um forte caráter ideológico, pois nas palavras dos diretores da gravadora o folclore “exprime as alegrias e tristezas do povo. Ele canta o nascimento, a morte, as festas, as paisagens, as reivindicações, a guerra e a paz com originalidade e emoção natural”. Mais do que representar um internacionalismo musical, a publicação de canções populares significava um posicionamento ideológico, já que esse cancioneiro deveria ser composto apenas de canções provenientes de “democracias populares” ou de “países do terceiro mundo colonizado” 10. É, portanto, justamente esse posicionamento político de Le Chant Du Monde e sua estreita ligação com o Partido Comunista Francês que faz com que os artistas engajados latino-americanos exilados em Paris encontrem ali um verdadeiro reduto. Todo o processo de saída de seus países de origem, 7

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viagem e instalação na Europa normalmente era mediado por pessoas ligadas aos partidos comunistas, que trataram de promover uma rede de apoio aos exilados. E a existência de uma gravadora de discos estreitamente ligada ao PCF abre uma grande oportunidade à comunidade de músicos latinoamericanos exilados em Paris de dar continuidade à edição de suas obras. Os catálogos de Le Chant Du Monde e de alguns outros selos europeus como o italiano I Dischi Dello Zodiaco

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são, portanto, importantes

instrumentos para acompanhar a atividade dos artistas latino-americanos no exterior e também para pensar a inserção desses artistas no cenário artístico europeu e o lugar que suas obras encontraram nesse universo, abrindo um período de mudanças importantes nos parâmetros que até então haviam definido a produção da nueva canción latino-americana. Essa série de processos de circulação de ideias, obras e indivíduos, da constituição e redimensionamento de redes de diálogo, extrapolam e muito os limites nacionais, e pensar a constituição dessas redes transnacionais que articulam distintos países implica a adoção de novas abordagens e perspectivas teóricas e metodológicas. Neste sentido, as recentes discussões em torno das propostas de construção de “histórias conectadas” “história transnacional”

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12

ou de uma

são particularmente interessantes para refletir acerca

desses fenômenos culturais que extrapolam limites e fronteiras, já que, como afirmam Peggy Levitt e Sanjeev Khagram, os estudos transnacionais:

(...) englobam discursos, fluxos materiais, interações culturais e gêneros artísticos que foram produzidos e intercambiados através de fronteiras. Eles estão preocupados com o que circula, com como isso se move, e com o que explica como certas ideias e práticas se enraízam enquanto outras são ignoradas. 14

Neste início do século XXI, com a crescente percepção da diluição e multiplicação das identidades e da porosidade de fronteiras e limites, nos defrontamos mais do que nunca com um desafio de encarar os fenômenos que 8

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se constituem “transnacionalmente”. É preciso ampliar o foco das análises para além da nação, dando espaço para a análise de processos que se constroem no fluxo entre fronteiras, e o campo cultural é um espaço privilegiado para captarmos este tipo de dinâmica. A canção popular é um espaço privilegiado para pensar a constituição de “conexões transnacionais” que permitiram o compartilhamento de experiências e projetos artísticos e políticos por parte de uma série de músicos, intérpretes e compositores latino-americanos que sofreram as consequências da implantação de regimes ditatoriais autoritários e violentos em seus países. Mas para além dessa busca em mapear e analisar a construção destas novas pontes que amplificaram ainda mais as conexões transnacionais que caracterizaram os movimentos de canção popular engajada latino-americanos, é importante também atentar para como essas novas experiências e o redimensionamento das perspectivas políticas e também estéticas impactaram as obras. A produção musical dos principais artistas engajados no período pósgolpes civil-militares carrega claramente as marcas dos processos vividos, e a repressão e perseguição sofridas viraram temas das canções. Neste sentido, dois temas podem ser apontados como centrais no conjunto de canções produzidas ao longo da década de 1970 por artistas vitimados pelas ditaduras: o exílio e a resistência. Com

o

aprofundamento

da

repressão

e

a

radicalização

dos

procedimentos de perseguição política impostos pelas ditaduras no Cone Sul, a questão do “engajamento” em uma causa política e a luta por determinado modelo político ou a defesa de caminhos de transformação começou a dar lugar progressivamente a uma outra perspectiva de atuação sintetizada na ideia da “resistência”. Diante do fortalecimento do poder das ditaduras, não se tratava mais de convocar a ação, de incitar a luta revolucionária; tratava-se agora de unir forças em nome da “resistência”, no sentido de construir uma defesa e se opor aos horrores que começavam a ser praticados. O universo da produção cultural é um ótimo caminho para verificar as tensões que perpassam os projetos de “resistência” no contexto das ditaduras, pois através dele é possível verificar a multiplicidade de práticas e visões distintas sobre o que significaria “resistir”. No entanto, o progressivo 9

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endurecimento dos regimes autoritários e a impressionante escalada de violência faz com que essas diferenças e a complexidade das propostas fossem atenuadas diante da ideia de que seria necessário unir forças para combater o inimigo que se fortalecia. Passava a ser uma espécie de “imperativo” para as esquerdas latinoamericanas a denúncia em todo o mundo das atrocidades que vinham sido cometidas pelas ditaduras e a constituição de movimentos de solidariedade às populações dos países que passavam por essa experiência. Como lembra Denise Rollemberg:

(...) eram tarefas urgentes a denúncia e o esclarecimento da realidade – desmascarar a ditadura, como se dizia nas campanhas das diferentes tendências em diferentes partes do mundo, denunciando a violação dos direitos humanos e as manipulações de um povo oprimido e vitimizado. 15

Palavras finais

Deste modo, as conexões que articularam a produção musical comprometida politicamente de artistas latino-americanos ganharam novas dimensões com a experiência do exílio, que inviabilizou a continuidade de muitos dos principais circuitos de produção e circulação que haviam predominado ao longo da década de 1960, mas que articularam novos e amplificaram de maneira inédita essas redes ao ultrapassar os limites continentais. A produção musical comprometida latino-americana das décadas de 1970 e 1980 só pode ser compreendida plenamente quando consideramos a influência de polos como Cidade do México, Paris, Milão e Madrid, por exemplo. Se desde o início de sua configuração os movimentos de canção engajada na América Latina tiveram como característica a busca de construir laços e diálogos que ultrapassassem os limites nacionais, nesta sua nova fase 10

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esse projeto ganhou outras proporções, ampliando ainda mais seus limites e adquirindo de forma mais clara e intensa um formato transnacional. Além disso, a ocorrência dos golpes civil-militares em Argentina, Chile e Uruguai significaram também o estreitamento das experiências de canção engajada daqueles países com a experiência brasileira, marcada já desde a década de 1960 pelos impactos de um regime ditatorial autoritário no poder. Questões como a repressão, a censura, a necessidade de articular estratégias de resistência, já faziam parte dos horizontes dos artistas brasileiros desde 1964 e, fundamental, de 1968, quando o AI-5 impôs o fechamento definitivo do regime. Deste modo, o processo de constituição da canção engajada brasileira foi marcado desde o início pelos signos que, a partir da década de 1970, passaram a ser impostos também em outros países do continente. Criavam-se novos elos e aproximações entre a experiência brasileira e a dos países vizinhos, o que, no campo da canção popular, significou a consolidação de uma série de conexões que haviam começado a se esboçar timidamente na década de 1960. A década de 1980 assistiu ao processo de desmantelamento das ditaduras, e o contexto de “abertura” política significou um importante momento de retomada de muitas das discussões e projetos que haviam sido abandonados diante da repressão. A esperança criada com a possibilidade de retorno à democracia trazia também uma expectativa de que muito do que se concebera desde a década de 1960 poderia, ainda que de outras formas e enfrentando

novos

desafios,

ser

retomado.

Nos

processos

de

redemocratização ocorridos nos vários países da América Latina ao longo da década de 1980, os projetos de integração do continente por meio da canção foram mais uma vez repensados e reformulados, agora num contexto de retomada das liberdades democráticas, de volta paulatina das condições de produção artística livre e do retorno dos artistas exilados para seus países.

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Verso da canção “Qué será de mis hermanos”, do compositor chileno Ángel Parra, gravada no álbum Ángel Parra de Chile (1976): ¿Qué será de mis hermanos / que están lejos de esta tierra? / En esta tarde de agosto / se me enredan en las cuerdas. / ¿Qué color tendrán sus noches? / ¿Cómo será aquella espera? / ¿Cómo serán esas calles / llenas de brumas ajenas? /

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Yo quisiera partir, / pero nunca dejarlos. / Quisiera ver el rostro / de mi hermano exilado/ ¿Qué será de mis hermanos? / ¿Tendrán techo, tendrán pan? / Me aflige, solo, el recuerdo. / ¿Quién me dice dónde están? / ¿Cuánta nostalgia y tristeza / van a juntar en el alma? / ¿Habrá tiempo en esta vida / para que encuentren la calma? *

Doutorando no programa de pós-graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Este texto apresenta alguns resultados iniciais do projeto de doutorado em desenvolvimento sob orientação da Profa. Dra. Maria Helena R. Capelato. E-mail: [email protected]. 2

Esse tema da elaboração de projetos de integração continental por meio da canção e da constituição de “conexões transnacionais” entre os músicos engajados latino-americanos nas décadas de 1960 e início da década de 1970 foi trabalhado na minha dissertação de mestrado. GOMES, Caio de Souza. "Quando um muro separa, uma ponte une": conexões transnacionais na canção engajada na América Latina (anos 1960/70). 2013. Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. Disponível em: . Acesso em: 2014-08-30. 3

Verso da canção “Chile resistência”, gravada pelo conjunto chileno Inti-Illimani no álbum IntiIllimani, de 1977. 4

Verso da canção “Quiero volver a mi tierra”, do compositor chileno Ángel Parra, gravada pelo músico no álbum Ángel Parra à Paris, de 1978. 5

Denise ROLLEMBERG. “Memórias no exílio, memórias do exílio”. In: Jorge FERREIRA; Daniel AARÃO REIS. (Orgs.). As Esquerdas no Brasil. Revolução e democracia (1964...). Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. Sobre a questão do exílio, ver ainda Denise ROLLEMBERG. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999. 6

Denise ROLLEMBERG. “Memórias no exílio, memórias do exílio”. In: Jorge FERREIRA; Daniel AARÃO REIS. (Orgs.). As Esquerdas no Brasil. Revolução e democracia (1964...). Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 7

Essa ideia da “linguagem da fresta” foi desenvolvida de modo pioneiro por Gilberto Vasconcellos em seu livro Música popular: de olho na fresta. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1977. 8

Para o histórico do selo discográfico Le Chat Du Monde, ver o site oficial da empresa: http://label.chantdumonde.com. 9

Vincent Casanova, “Jalons pour une histoire du Chant du monde à l’heure de la guerre froide (1945-1953)”. Bulletin de l’Institut Pierre Renouvin, n°18, 2004. (tradução minha). 10

Ibid.

11

I Dischi Dello Zodiaco é um selo da casa discográfica italiana Vedette Records, criada em Milão em 1962, pelo violonista, maestro e compositor Armando Sciascia, e que esteve em atividade até 1986. No fim da década de 1960, Sciascia buscou ampliar o campo de ação da gravadora e se dedicar à edição de música engajada, o que o levou a criar dois novos selos: Albatros, especializado em música folk, e I Dischi dello Zodiaco, criado em 1969 e que tinha como diretor artístico o músico Antonio Virgilio Savona, do Quartetto Cetra, e se tornou uma grande arma de divulgação da produção da nueva canción latino-americana na Europa. 12

Há uma ampla bibliografia a respeito da ideia de “histórias conectadas”. Uma boa introdução ao tema é apresentada em Maria Ligia Coelho PRADO. “Repensando a História Comparada da América Latina”. Revista de História, São Paulo, nº 153, p. 11-33, 2005. Ver ainda o dossiê

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especial apresentado nos tradicionais Annales. Histoire, Sciences Sociales, n. 1, 2001, especialmente os artigos de Sanjay SUBRAHMANYAM, “Du Tage au Gange au XVIe siècle: une conjoncture millénariste à l'échelle eurasiatique”, e de Serge GRUZINSKI, “Les mondes mêlés de la Monarchie catholique et autres ‘connected histories’”. 13

Há hoje uma verdadeira explosão da discussão sobre a “história transnacional”. Para uma primeira aproximação com as principais discussões que vêm sendo travadas, ver o fórum “On Transnational History”, apresentado na seção “AHR Conversation” da American Historical Review, dezembro de 2006. 14

Peggy LEVITT; Sanjeev KHAGRAM. “Constructing Transnational Studies”. In: Peggy LEVITT; Sanjeev KHAGRAM (ed.). The Transnational Studies Reader: intersections and innovations. New York: Routledge, 2008, p. 5. (tradução minha) 15

Denise ROLLEMBERG. “Memórias no exílio, memórias do exílio”. In: Jorge FERREIRA; Daniel AARÃO REIS. (Orgs.). As Esquerdas no Brasil. Revolução e democracia (1964...). Vol. 3. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.

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