QUEIROZ, Francisco / PORTELA, Ana Margarida - A casa de José da Silva Santos, em Leiria: percurso histórico de uma habitação burguesa do Romantismo.

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ANA MARGARIDA PORTELA FRANCISCO QUEIROZ

A CASA DE JOSÉ DA SILVA SANTOS, EM LEIRIA: PERCURSO HISTÓRICO DE UMA HABITAÇÃO BURGUESA DO ROMANTISMO

Separata da Revista Museu IV SÉRIE - N.O13 • 2004 PUBLICAÇÃO DO CíRCULO DR. JOSÉ DEFIGUEIREDO

2004.1311

p.IOH I9

A CASA DE JOSÉ DA SILVA SANTOS, EM LEIRIA: PERCURSO HISTÓRICO DE UMA HABITAÇÃO BURGUESA DO ROMANTISMO 1

Ana Margarida Portela 2 Francisco Queiroz 3

Aconstrução da casa deJosé daSilva Santos

osé da Silva Santos era natural do Lugar dos Carvalhais, emLavas, concelho da Figueira da Foz (fig. 1). Seu pai, Manuel da Silva Santos, foi um pequeno comerciante ambulante. José da Silva Santos aprendeu os ofícios do comércio com o pai, tendo demonstrado já em tenra idade uma grande vocação para o negócio. Por essa razão, seu pai resolveu adiantar-lhe 600S000, das parcas economias que possuía, para que ele se estabelecesse. E de facto, assim o fez, tendo aberto casas comerciais na Vieira e na Marinha Grande. Mais tarde, estendeu o negócio a Leiria, tendo a sua casa de fazendas sido aqui fundada em 1856 4.

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,

fig. 1 - José da Silva Santos (frontispício do periódico Commercto e lndustria, n.2 128, 1889)

Para que este trabalho fosse possível, contámos com o valioso contributo do Eng," Henrique Pereira do Vale, do Armazém de Tecidos Teixeira & Costa, Lda. e da Casa Episcopal de Leiria. Historiadora de Arte. [email protected] Historiador de Arte. francisqueirozêclix.pt http://franciscoeanamargarida.planetaclix.pt Commercio e lndusttia. n.9 128. 1889.

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II · Sabemos que, entre Agosto de 1864 e Maio de 18655, José da Silva Santos casou com uma jovem chamada Maria da Luz Cabeleira, bem mais nova do que ele. O casamento terá sido celebrado fora de Leiria, possivelmente na terra da noiva. Ela era natural do Lugar das Lapas, freguesia de Santa Eufémia (Torres Novas), filha de Manuel Rodrigues Cabeleira e de Ana de Assis Cabeleira (proprietários, do dito Lugardas Lapas) 6. Não apurámos ainda seJosé da Silva Santos já estava a residir em Leiria quando casou. Contudo, em caso negativo, José da Silva Santos ter-se-ia estabelecido definitivamente em Leiria pouco tempo depois, para onde veio residir também o seu irmão Manuel Maria da Silva Santos. Efectivamente, terá sido pouco tempo após o casamento que José da Silva Santos planeou a construção de uma casa digna da posição social que já ocupava na cidade. O negócio crescera e José da Silva Santos começava a ser um dos principais comerciantes da sua província. Aprobidade que demonstrava granjeava-lhe boa fama, pelo que os fabricantes do Porto e de Lisboa "se compraziam" em negociar com ele 7. Depreende-se, pois, que José da Silva Santos fosse amiudadamente ao Porto ou a Lisboa, onde tomava contacto com as mais recentes novidades, a todos os níveis. Foi mesmo um comerciante inovador. Para além do negócio inicial das fazendas, José da Silva Santos (mais conhecido por José dos Calvalha is) dedicou-se ao comércio por grosso de vários outros produtos, como o bacalhau ou o vinho, no que foi o primeiro a fazê-lo em Leiria8. Em 7 de Julho de 1869, na sequência da decisão tomada pala Câmara Municipal de Leiria de ocupar parte do Rossio com edificações, José da Silva Santos requereu a cedência de terreno público para construir um prédio. Este ficaria contíguo à casa onde já habitava, no Largo do Moita, "para dar maiores proporções à mesma casa"9. Previa-se, pois, uma ampliação da casa onde José da Silva Santos residia, casa essa que certamente não tinha sido por ele edificada. O novo prédio a construir ficaria com frente para o Rossio e 18,5 metros de extensão (de norte a sul). Em contrapartida, José da Silva Santos propunha-se ceder uma parte do terreno que ali possuía para alargamento da actual Rua Almeida Garrett. ARQUIVO DISTRITAL DE LEIRIA (A.D.U , Paróquia de Leiria, Casamentos. 1860-1 871 . fl. 781'. e lbidem, fls. 881'.-

89, n.º 6. (,

Devemos esta referência ao Eng.? Henrique Pereira do Vale.

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Commercio e Industria, n.Q 128, 1889. lbidem.

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ARQUIVOMUNICIPAL DE LEIRIA (A.IvI.L.), Actas, L.º 26, fls. 19-20.

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Refira-se que, onze anos antes, um tal Manuel Joaquim Afonso recorrera da deci-o da Câmara Municipal de Leiria em permitir a construção de casas no Rossio, entre a antiga Ponte de S. Martinho e a antiga Ponte dos Defuntos. Veio a ser-lhe dada razão, porque provou ser ali dono de terrenos. Por outro lado, vários outros leirienses tinham alegadamente servidão dos terrenos junto ao Rossio (ou direitos sobre eles) 10. Por esse motivo, também José Adríão Xavier Negreiros votou contra o aforamento da parte do Rossio, até porque era "quase impossível acharfo reiros que possam consnuir prédios

em todo aquele comprimento e prôprio: daqueles sítio, o principal da cidade' II . José Adrião Xavier Negreiros tinha uma certa razão. Contudo, as alegações apresentadas podem explicar melhor porque José da Silva Santos pretendia manter ali a sua residência, com uma nova casa. Ao contrário de famílias da cidade que ostentavam títulos, as quais há muito se tinham ido instalar no Terreiro e ruas confinantes, José da Silva Santos procurava impor-se como o típico burguês que se fez a si próprio. O Rossio era o espaço mais comercial que tinha Leiria. Só não era o mais nobre por, durante séculos, ter sido espaço vazio e sem frente urbana nobilitada. As casas viravam-se quase todas para o interior da cidade. Faceando o Rossio existiam sobretudo algumas traseiras e casas baixas, lembrando que outrora por ali tinha passado o primitivo leito do Rio Lis. Aliás, sabe-se hoje que no logradouro do sítio onde José da Silva Santos erigiu a sua nova casa existiu mesmo um moinho, vários séculos anterior, cujos vestígios foram encontrados há cerca de três anos. José da Silva Santos pretendia, pois, dar o exemplo de um fenómeno urbanístico que foi muito comum em Portugal nesta época, assim como já tinha sido em menor escala em épocas anteriores: o virar definitivo da cidade para os espaços vazios confinantes, transformando-os em novas centralidades. É claro que as motivações de José da Silva Santos eram sobretudo económicas. Infelizmente, José da Silva Santos padecia de uma doença, que progressivamente se agravou, ao que se dizia, talvez por causa da sua dedicação excessiva ao negócio. Assim, José da Silva Santos foi forçado a ausentar-se, em Outubro de 1872, para a Ilha da Madeira. Esta solução era corrente na época, por parte dos mais abastados. Aideia era "mudar de ares".José da Silva Santos foi coma sua mulher e o seu único filho José da Silva Santos (Júnior). Porém a gravidade da doença viria a provocar a sua morte na

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CABRAL. J. CABRAL, J.

- Aliaisdo Municipio de Leiria. \'01. II, p. 38. - AliaisdoMunicipio de Leiria. \'01. II, p. 38. 10 7

fig. 2 - Figuras alegóricas na casa de José da Silva Santos (fOlOS de Ana Margarida Portela)

Madeira, com cerca de 52 anos, a 17 de Janeiro de 1873 12. Os seus restos mortais vieram para Leiria apenas em Maio de 1873. Uma monumental capela sepulcral foi mandada erigir no cemitério da cidade, um ano depois, pela viúva, Maria da Luz Cabeleira 13. O risco desta capela é de Francisco Maria Teixeira 14 e a sua monumentalidade é notória, sendo uma das mais espectaculares construções fúnebres portuguesas da sua época. Apesar de tudo, nâo temos qualquer indício claro que aponte para Francisco Maria Teixeira como autor da casa deJosé da Silva Santos.

Breve análise arquitectónica da casa deJosé da Silva Santos

Éevidente queJosé da Silva Santos possuía um grande bemestar económico. Quer o seu túmulo, quer a sua casa em Leiria são reflexo disso mesmo. José da Silva Santos 12 1.\

Ij

Commercioe Industria, n.º 128, 1889. Sobre este assumo veja-se PORTEIA. Ana Margarida / QUEIROZ, Francisco - O Cemitério de SantoAntóniodo Carrascal: A/te, História e Sociedade de l eiria 110 Sécúlo XiX. Estudo realizado entre 1998 e 2000, patrocinado pela Câmara Municipal de Leiria (versão polícopiada com 3 volumes e 600 ilustrações). Sobre Francisco Maria Teixeira veja-se PORTEIA, Ana Margarida / QUEIROZ, Francisco - O Cemitériode Santo Antóniodo Carrascal: A/te. História e Sociedadede Leiria no Século XiX.

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interveio na vida social de Leiria, muito embora fosse bem mais discreto do que outros notáveis da cidade. Aparentemente, dedicava-se sobretudo aos seus negócios. Porém, foi sócio benemérito do Montepio Leiriense e do Montepio de Nossa Senhora da Encarnação, entre algumas outras associações. Foi também Vereador da Câmara Municipal de Leiria em 1870 e 1871. Neste período de tempo terá sido provavelmente erigida a sua casa. Mesmo assim, não temos certezas quanto ao facto da obra ter sido terminada ainda em vida de José da Silva Santos, já que faleceu no início de 1873. Por outro lado, existem também dúvidas quanto à datação de certos elementos artísticos do edifício, mais típicos de finais do século XIX, como as estátuas que coroam a fachada : as alegorias ao Comércio, à Agricultura e à Indústria (figs. 2 e 3). Poderiam não ter sido colocadas aquando da edificação da casa, mas seguramente já ali existiam em 1890 (figs. 4 e 5). Estas três figuras em cerâmica não vidrada serão

fig. 3 - Casa de José da Silva Santos em 1999 (foto de Ana Margarida Portela)

fig. 4 - O Rossio de Leiria por volta de 1890, vendo-se a casa de José da Silva Santos. com a catedral por detrás (foto cedida pelo Eng.º Henrique Pereira do Vale)

fig. 5 - O Rossio de Leiria em vista publicada no ano de 1884, vendo-se a casa de José da Silva Santos

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provavelmente obra da Fábrica de Cerâmica das Devesas, embora com algumas alterações relativamente a figuras de catálogo que a dita fábrica publicitou no início do século XX 15. Efectivamente, o tipo do Comércio existente na casa de José da Silva Santos não está representado nos catálogos da fábrica conhecidos. A Agricultura, tal como se apresenta na casa de José da Silva Santos, também não: foi aqui usada uma mistura entre o corpo de uma das Agriculturas presentes no catálogo e o da Gratidão, com a adição dos habituais atributos da Agricultura - um molho de cereais e um ancinho (este último em material não cerâmico). a mesmo sucedeu para a Indústria, aqui representada como uma mistura de modelos da Fábrica de Cerâmica das Devesas, adicionada dos atributos da Indústria, dos quais vê-se hoje apenas a bigorna. Estas três figuras alegóricas rematam um alçado principal bastante modesto em decoração (fig. 3). Inspirado ainda num neoclassicismo resistente, este alçado remata também com frontão triangular e balaustrada nos flancos, um pouco como na casa dos Oriol Pena 16 em Leiria, cuja datação é anterior à da casa de José da Silva Santos. A casa dos Oriol Pena (hoje uma instituição bancária) apresenta mesmo um portal axial com verga de recorte semelhante ao do portal da casa deJosé da Silva Santos, apesar deste último ser mais trabalhado. Pese embora algumas semelhanças entre a casa dos Oriol Pena e a casa deJosé da Silva Santos, esta última diverge muito mais dos cânones neoclássicos: o frontão não define qualquer ressalto na fachada ou sequer corresponde ao remate de um pano central limitado por pilastras. Afachada da casa deJosé da Silva Santos é lisa, havendo pilastras fingidas apenas na linha do portal axial. É certo que a varanda corrida do piso nobre corresponde um pouco à largura do frontão, mas este frontão possui ainda uma outra particularidade: ao contrário da casa dos Oriol Pena, onde surge a pedra de armas no tímpano, na casa de José da Silva Santos vê-se uma abertura, com a sua sacada e grade. Inicialmente, as pilastras fingidas do piso nobre prolongavam-se mesmo pelo frontão, emoldurando esta abertura (fig. 4). Com o revestimento azulejar li

Sobre este assunto veja-se PORTELA, Ana Margarida - Amónio Almeida da Costa e a Fábrica deCerâmicadas Decesas. Amecedentes.fu ndação e maturação de umcomplexo de artes industriais (1858-1888). Dissertação de Mestrado em História da Arte em Portugal orientada pela Prof. Doutora Lúcia Rosas, concluída em 2003 e apresentada Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 2004, 2 volumes (217+148 páginas, incluindo 315 ilustrações). Família de Torres Novas que teve ramificação em Leiria durante a segunda metade do século XIX. Sobre este assunto veja-se PORTELA, Ana Margarida / QUEIROZ, Francisco - O Cemitério de Santo António do Carrascal: A/1e, História eSociedade de Leiria no SéculoXIX. à

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II que se aplicou no século XX, optou-se por retirar esse elemento vertical ao frontão. Note-se como as pinhas que flanqueiam o frontão, sobre a balaustrada, também não possuem correspondência com qualquer pilastra ou ressalto na fachada. Em suma, José da Silva Santos foi efectivamente capaz de edificar uma casa marcante num local que não possuía edifícios nobres. Contudo, o estilo arquitectónico utilizado é bastante local e vernacular, mesmo tendo-se recorrido a elementos de ornato produzidos fora da cidade, como as estátuas. As grades de ferro fundido são típicas da época em Lisboa, mas em Leiria não eram ainda escolha generalizada no início da década fig. 6 - Abertura na cerca do jardim da casa deJosé da de 1870. O modelo das grades é de ins- Silva Santos (foto de Francisco Queiroz, 2002) píração renascença, com corpo de balaústres e friso inferior de animais fantásticos afrontados e enrolamentos. Fica a dúvida, pois, se estas grades foram trazidas de alguma fábrica lisboeta ou produzidas em Leiria. Na segunda hipótese, faltaria saber se são do início da década 1870 ou alguns anos posteriores. De facto, o muro do jardim da casa de José da Silva Santos possuía grades de modelo mais antiquado, em ferro forjado, embora vedando vãos neogóticos (fig. 6). Ora, não existem elementos neogóticos na fachada principal da casa de José da Silva Santos, embora existam na escadaria interior, onde as grades de ferro são também menos evoluídas que as da fachada, como se verá. As grades nas frestas da cerca do jardim da casa deJosé da Silva Santos eram de modelo idêntico ao do portão da única capela catacumbal ainda existente no recinto do antigo Cemitério da Sé de Leiria (actualmente não visível) e também ao do portão da capela sepulcral do Dr. José Manuel Pereira da Costa, no cemitério da cidade. O modelo das grades nestas frestas da cerca do jardim remete-nos, pois, para uma época ligeiramente anterior ou coetânea da construção da casa deJosé da Silva Santos, já que a capela sepulcral do Dr. José Manuel Pereira da Costa foi erguida no início da década 111

de 1870 17. Assim, muito embora não o defendamos, também não colocamos totalmente de lado a hipótese de este jardim e cerca já existirem um pouco antes da construção da casa deJosé da Silva Santos. Poderia ter sido o jardim e horta da casa que José da Silva Santos ocupou no antigo Largo do Moita (entrada da actual Rua Almeida Garrett) antes de mandar fazer uma outra casa contígua de raiz? Não cremos, tendo em conta os alinhamentos do muro e a intenção deJosé da Silva Santos, em 1869, de ocupar terreno público. Porém, estas frestas configuram-se talvez como aberturas de traseiras e, efectivamente, a casa que José da Silva Santos ocupou ali inicialmente possuía tardoz virado para o Rossio e, por consequência, também para o Rio Lis. Ora, já várias décadas antes, as grandes casas de Leiria possuíam geralmente um logradouro que confrontava, através de alto muro, com uma rua secundária (e não esqueçamos que o Rossio de Leiria foi espaço pouco nobre até à segunda metade doséculo XIX). Ainda hoje podemos constatar esse facto em Leiria, pois foi comum a manutenção - e mesmo a construção - de jardins interiores nas grandes casas românticas de Leiria: na dos Barões do Salgueiro, na dos Costa Guerra, na dos Charters d'Azevedo ou na dos Ataíde (nesta casa, provavelmente um jardim de criação bem mais antiga). As aberturas em arco quebrado na cerca do jardim da casa de José da Silva Santos podem ter sido rasgadas num muro preexistente aquando da edificação da casa, até porque interrompiam o capeado do muro. Contudo, não se notava arranjo no capeado, pelo que defendemos, mais uma vez, que as aberturas e o alinhamento do muro, tal como estavam ainda há três anos atrás, foram obras coetâneas da edificação da casa de José da Silva Santos.

Evolução da casa até à sua demolição Como referimos, a intenção deJosé da Silva Santos era sobretudo económica: a casa que mandou erigir foi parcialmente ocupada com o seu negócio comercial. No seu conjunto, veio a ser uma das mais nobres casas oitocentistas de Leiria, com o seu respectivo jardim e tendo as antigas casas onde José da Silva Santos morara inicialmente

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PORTELA, Ana Margarida / QUEIROZ, Francisco - O Cemitério de Santo António do Carrascal: Arte, História e Sociedade deLeiria noSéculoXIX.

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(notodo ou em parte) como anexo pelo norte. Pelo nascente, a casa levou também um anexo, que seria provavelmente quase da mesma época de construção, pelo menos o portal largo destinado a entrada de serviço (e cavalariças) da casa sê-lo-ia. Sobre esse portal foi colocado um terraço coberto, envidraçado, que já existia em 1890 (fig. 4). Como adiantámos, o estado da casa em 1890 - visível através de uma fotografia antiga - poderá reflectir algumas alterações introduzidas pela viúva de José da Silva Santos. .Após a morte deJosé da Silva Santos, a sua firma comercial passou para a viúva e. em 1875, para o seu antigo caixeiro Joaquim Jorge da Silva Teixeira, por via do casamento deste com Maria da Luz Cabeleira 18. Joaquim Jorge da Silva Teixeira era filho de Miguel Jorge da Silva Teixeira e de Maria do Carmo Teixeira. Seu pai faleceu em 20 de Dezembro de 1884, com cerca de 71 anos, e foi para o 'jazigo do filho"19. De facto, embora edificada para José da Silva Santos, a capela sepulcral passou a ser deJoaquim Jorge da Silva Teixeira por via do casamento deste com a viúva do seu antigo patrão. Aliás, este consórcio permitiu a JoaquimJorge da Silva Teixeira usufruir de grande fortuna, capital que lhe fez obter protagonismo na cidade. Foi Vereador da Câmara Municipal de Leiria em 1878 e 1879 e interveio decisivamente no projecto de criação de uma grande fábrica de fiação e tecidos de algodão em Leiria 20. O processo de criação desta fábrica demonstra claramente quem eram os capitalistas e os empreendedores de Leiria. Foi Joaquim Jorge da Silva Teixeira o principal mentor da criação da chamada Companhia Fabril Industrial, que iria gerir uma fábrica de fiação e tecidos - unanimemente considerado um melhoramento notável em direcção ao progresso. Existiram duas tentativas anteriores para criar a fiação, sendo a egunda de 188421. Quatro anos depois, o projecto parecia avançar, mas acabaria por ucumbir devido a diversos problemas, amplamente relatados na imprensa local. Por outro lado, surgiria entretanto uma fiação em Alcobaça, em Novembro de 1889. Quem entrou neste empreendimento falhado para Leiria? Para além deJoaquim Jorge da Silva Teixeira, também o Visconde de S. Sebastião (Luís), o 2º Barão do Curiosamente, os armazéns que serviam ao comércio por grossode José da Silva Santos foram também adquiridos, após a sua morte, por outro seu antigo caixeiro: Manuel Pinto da Silva. 19 rUI.L., Enterramentos; L.º 2, 11. 271. , CABRAL, J. - AnaisdoMunicípio deLeiria, 1'0 1. III, pp. 234-250 l i Uma companhia de Lisboa pediu a participação de negociantes de Leiria no empreendimento. BERNARDES, J. O. S. - Leiria no Século XIX • pp. 61-63. 15

Salgueiro, o Dr. Vicente Pedro Dias, os Zúquete, José Maria Charters Henriques d'Azevedo, o Dr. António Carlos da Costa Guerra, Joaquim Ferreira de Sousa, o Dr. Joaquim de Oliveira Rino Jordão, José Gaudêncio Barreto, Adolfo Joaquim Leitão e outros negociantes e notáveis da cidade22. Joaquim Jorge da Silva Teixeira assumiu inteiramente, pois, a preponderância económica que José da Silva Santos tivera quando vivo. Aprópria casa fig. 7 - Nesta fotografia, de finais do século XIX, podem de fazendas, que se localizava no prédio ver-se: Joaquim Jorge da Silva Teixeira, sentado, à esquerda. Logo atrás, sua mulher Maria da Luz Cabeleira. do Rossio, perdurou durante muitas À direita desta, o seu filho José da Silva Santos e a sua décadas. primeira mulher Corina Trincào. Desconhece-se a identiJoaquim Jorge da Silva Teixeira dade dos restantes retratados (foto cedida pelo Eng.º faleceu com 65 anos em 16 de Março de Henrique Pereira do Vale) 191 2. Sua mãe, Maria do Carmo, tinha falecido semanas antes, em 24 de Janeiro de 1912, com 94 anos 23. José da Silva Santos (filho) foi também um homem muito popular em Leiria 24. Talvez por ter ficado órfão de pai muito cedo (e como tinha o mesmo nome deste), ficou conhecido pelo diminutivo de Zezinho. Estudou no Liceu de Leiria e foi Vereador da Câmara Municipal de Leiria entre 1893 e 1895 e entre 1902 e 1904 25. Casou primeiramente com Corina Trincão (de Torres Novas). Em 20 de Junho de 1923 casou com Adelaide Salvador Filipe. Faleceu com 64 anos, a 30 de Setembro de 193026. Foi um dos primeiros fotógrafos amadores em Leiria, de quem subsiste ainda um pequeno espólio fotográfico de finais da década de 1880. Tanto José da Silva Santos Júnior 22

A Opinião, n.º 3, 24 de Março de 1889.

Era filha deJosé da Silva e de Maria Joaquina, de Leiria. A.M.L., Enterramentos, L.º 12, fi. 8. Em 1896, um jornal de Leiria noticiou o agradecimento feito a José da Silva Santos por parte da comissào promotora da garraiada realizada no circo tauromáquico de Leiria, "pelo modo inteligente e acertado como a dirigiu epelos auxílios a ella prestadospara o bom êxito da corridd'. A Integridade, n.º 9, 30 de Agosto de 1896, p. 32; CABRAL, J. - AnaisdoMunicípio deLeiria, vol III, pp. 234-250. 26 Após ter enviuvado, Adelaide Salvador Filipe casou novamente, com Luís António Dias. Os filhos deste casamento sãoos actuais proprietários do jazigo de família. 23

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como Joaquim Jorge da Silva Teixeira foram destacados dirigentes do Partido Progressista de Leiria (fig. 7). Maria da Luz Cabeleira, a responsável pela construção do jazigocapela da família e o elo de ligação entre José da Silva Santos e Joaquim Jorge da Silva Teixeira, faleceu a 11 fig. 8 - o que resta da casa de José da Silva Santos, com de Setembro de 1931, com 88 anos. outro edificio acoplado (foto de 2003, Francisco Queiroz) Posteriormente, a casa que foi de José da Silva Santos serviu como paço episcopal, o que é facto digno de nota e que revela também a importância do edifício. Ainda hoje, o pouco que resta da casa é associado pelos leirienses mais velhos ao antigo paço episcopal, o que não impediu a sua destruição, em 2002. Actualmente, encontra-se no fig. 9 - Rua Almeida Garrett, onde existiu a primitiva casa de espaço da casa de José da Silva José da Silva Santos, do ladoesquerdo Santos (e seu jardim) uma grande (foto de 2003, Francisco Queiroz) superfície comercial de vestuário. O centro de Leiria é, efectivamente, naquele local José da Silva Santos sabia onde estava a posicionar-se economicamente no xadrez da cidade. Apressão comercial, que foi crescente desde então até hoje naquele local, e a falta de noção do que a casa representava em termos urbanísticos e arquitectónicos acabaram por precipitar o seu desaparecimento. Que se saiba, a casa não foi objecto de estudo antes da demolição, de tal forma que se destruiu sobretudo o que tinha valor, preservando-se de forma escrupulosa algumas coisas que não o tinham. Foi o caso dos azulejos, que não possuem valor artístico e não são sequer da época de construção da casa. Apesar disso, foram feitas cópias para colmatar as lacunas provocadas pelas obras de demolição. As cópias foram feitas com uma tonalidade mais baça e com o padrão muito ténue, o que confere ao alçado lateral da casa uma imagem "remendada". O edifício contemporâneo que se acoplou à fachada é de tal forma fracturante em termos estéticos que as imagens fotográficas que hoje ali se colhem dispensam outros comentários (figs. 8 e 9). 115

o que foi destruído na casa deJosé da Silva Santos

fig. 10 - Demolição da casa de José da Silva Santos (foto de 2002, Francisco Queiroz)

fig, 11 - Pinturas murais na casa deJosé da SilvaSantos, destruídas em 2002 (foro de Ana Margarida Portela, 1999)

Para além da antiga casa onde morou José da Silva Santos (definidora do alinhamento de uma parte da Rua Almeida Garrett - que é hoje uma "meia-rua", pois num dos lados existe parede alta e cega em toda a extensão), as obras ali efectuadas não pouparam sequer os arcos do moinho secular que se encontraram por debaixo do jardim da casa, os quais foram retirados para não perturbar o processo de construção do parque de estacionamento. O interior da casa também desapareceu (fig. 10). Só restou o alçado principal e as correspondentes figuras alegóricas. É certo que a casa de José da Silva Santos não era um palácio aparatoso, mas possuía no andar nobre alguns estuques interessantes e, sobretudo, uma sala toda

decorada com pintura de paisagem e balaustrada ilusionista, em bom estado, a qual seria uma mais-valia decorativa para qualquer estabelecimento comercial que ali se colocasse. Esta pequena sala era inteiramente preenchida com painéis cenográficos alusivos a paisagens com rios, cidades, edificações, ruínas de castelos e até um comboio a vapor (figs . 11, 12 e 13). Tornam-se evidentes as conotações com paisagens do norte da Europa, embora alguns personagens surgissem com trajes mais ibéricos. Eram pinturas murais que se integravam perfeitamente na estética do Romantismo 27. li

Tivemos oportunidade de ver pinturas semelhantes no chamado Palacete Matos Graça, no Largo de Senhora-aBranca, em Braga, as quais foram também destruídas enquanto decorria a investigação para este estudo, por razões imobiliárias,

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Para aceder a este andar nobre, subia-se a escadaria, típica do século XIX, com marmoreados e a habitual clarabóia. O corrimão era em ferro forjado, de desenho invulgarmente simples e tipicamente local. No vão de escada, as portas do piso inferior apresentavam influências claras do neogótico, apesar da sua simplicidade, o que não sucedia com as do piso superior, Um carácter vernacular localista emergia neste tipo de decoração interior, tipicamente burguesa (fig. 14). Também típicos das casas urbanas ricas deste período eram os estuques decorativos nos tectos de algumas divisões mais nobres, os quais encontravamse quase todos escondidos por tectos falsos aquando da demolição da casa de José da Silva Santos. Os estuques eram maioritariamente vegetalistas, sendo a sala principal do piso nobre a mais decorada, com alegorias ao comércio e às artes: Poesia, Música e Teatro (figs. 15 e 16). Estes estuques na casa de José da Silva Santos poderão ter sido obra do mesmo estucador (ainda incógnito) que executou os estuques da casa dos Charters d'Azevedo, a qual se divide actualmente em quatro partes: uma clínica privada, uma escola de cabeleireiros, a pousada de juventude e a biblioteca municipalê. Todas estas casas contíguas pertenciam à família Henriques de 2$

fig. 12 - Detalhe das pinturas murais (foto de Ana Margarida Portela, 1999)

fig. 13 - Detalhe das pinturas murais (foto de Ana Margarida Portela, 1999)

No caso da actual biblioteca, os estuques foram - infelizmente - destruídos.

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fig. 14 - Escadaria da casa de José da Silva Santos (foto de Ana Margarida Portela, 1999)

fig. 15 - Detalhe de estuques na casa de José da Silva Santos (foto de Ana Margarida Portela, 1999)

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Azevedo e, após a união com os Charters, aos Charters d'Azevedo. A do 1º Visconde de S. Sebastião, por herança do seu pai, seria talvez a que teve uma reforma em 1872 (precisamente o ano em que lhe foi concedido o título de Visconde), ou seja, a actual pousada de juventude. Terá sido também por essa altura que os estuques foram colocados na casa de José da Silva Santos. O artista, ou os artistas, que executaram os tectos das casas de José da Silva Santos e dos Charters d'Azevedo eram certamente do norte do país, como já tivemos ocasião de adiantar em outro trabalho 29. Poderia ser até dos arredores de Viana, com eventual tirocínio feito no Porto. Aliás, há um estucador dessa região minhota que comprovadamente se estabeleceu em Leiria e, quem sabe, pode mesmo ter sido o autor dos estuques da casa dos Charters d'Azevedo ou da de José da Silva Santos: Francisco Ferreira, de Viana do Castelo, que foi casado com Rita do Carmo de Oliveira (das Ameias) e que faleceu em Leiria com cerca de 58 anos a 17 de Julho de 18773°. Outros estucadores activos em Leiria nessa época foramLuís Lopes Gomes (que fez obra na Igreja dos Marrazes, em 1883) e Joaquim Puxe, que fez a obra de estuque da casa dos Verde de Oliveira em 1871 31. Para rematar, refira-se a curiosa louça sanitária que existiu na casa de José da Silva Santos, de origem .ínglesa, tipicamente vitoriana e profusamente decorada (fig. 17). Não sabemos quando foi ali colocada. Infelizmente, tudo foi demolido em 2002.

PORTELA, Ana Margarida / QUEIROZ, Francisco - O Cemitério deSanto António do Carrascal: Al1e, História e Sociedade de Leiria no Século XiX. A.M.L., Bnterramentos; LO 1, fi. 70. BERNARDES, J. - A Freguesia de Sallliago dosMa rrazes, pp. 53-54.

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.\ forma como a casa de José da Silva Santos foi demolida serve de alerta: muito embora esudo da habitação burguesa do Romantismo ~ querer despertar em Portugal, está ainda • ::Iicamente tudo por fazer. Porém, o ritmo de ormaçào da cidade é geralmente mais rápido o ritrno da investigação, esta última quase pre sem qualquer apoio das entidades que elam o património edificado. Sendo a arquítecoitocentista, sobretudo a de carácter mais vercular, ainda geralmente vista como sem grande \ or - especialmente no que diz respeito aos eriores - acabam por desaparecer facilmente •guns exemplares interessantes que outrora se fig. 16 - Detalhe de estuques na casa de José destinaram a nobilitar espaços urbanos não regu- da Silva Santos (foto de Ana Margarida Portela, 1999) b.riz.ados. No caso que acabámos de apresentar, algumas fotos tiradas à pressa no interior do edi000, sem então lhe conhecennos o fatal destino, e uma posterior pesquisa aturada acabaram por evitar que, perdendo-se os objectos materiais, se perdessem também as memórias e os registos. Ganhou-se um edifício moderno e arrojado, é certo. Contudo, o local onde este se implantou está totalmente contra-indicado: a estética do edifício que substituiu a casa de José da Silva Santos é claramente ofensiva, quer ao fig. 17 - Louça sanitária que existia na casa centro histórico, quer mesmo à catedral, sendo de José da Silva Santos, com a marca "manuin England" aparentemente estranho como foi possível que factered (foto de Ana Margarida Portela, 1999) uma obra como aquela tenha sido permitida, já em pleno século XXI, no casco antigo de uma das principais cidades do país. Mais estranho ainda é o facto do Plano de Pormenor do Centro Histórico de Leiria, elaborado em 2003, não ter incluído propositadamente parte daquele quarteirão, o qual ficou assim simultaneamente dentro e fora do centro histórico. Apesar de estranha, esta última asserção pode ajudar a explicar o fim inglório de uma das mais curiosas casas burguesas do Romantismo em Portugal. 119

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