Quem começa com a segunda parte da história...1 Educação para o Desenvolvimento Sustentável pode perpetuar relações de poder no âmbito do conhecimento por Chandra Milena Danielzik com introdução de Beate Flechtker Do alemão para o português por Jess Oliveira - Contato:
[email protected]
A ONU decretou em 2002 a Década da Educação para o Desenvolvimento Sustentável. Desde então, vários novos programas educacionais e métodos têm sido desenvolvidos e aplicados. Pode-se dizer que, com isso nos aproximamos de um modelo de sociedade mais igualitário? Uma crítica pós-colonial sobre as premissas do Programa nos remete a constelações de poder que são já foram criticadas na base do conceito de desenvolvimento sustentável.
1
Tradução de parte do artigo “Wer mit Zweitens anfägt…” Disponível em: https://www.academia.edu/23189581/Wer_mit_Zweitens_anf%C3%A4ngt._Bildung_f%C3%BCr_nachhaltig e_Entwicklung_kann_Machtwissen_tradieren, último acesso 20/05/2016.
Na
Nigéria,
crianças
e
adolescentes
somente a imagem de pessoas do Sul global
aprendem inglês online com a ajuda de um
como
programa de aprendizagem. Assim que
intensificada, como também a de europeus e
eles/elas clicam na resposta correta no teste
europeias privilegiados(as) em seu poder:
de vocabulário, 20 centavos serão doados
afinal eles e elas se imaginam numa posição
pelos patrocinadores, na forma de vales de
onde podem salvar as pessoas da fome.
aulas de reforço para crianças alemãs - para
Eles/Elas
preencher
envolvidos(as), são muito engajados(as) e
as
lacunas
na
formação
“pessoas
ajudam,
marginalizadas”
estão
ativos(as)
é
e
documentadas pelo Pisa2 na Alemanha.
têm o poder de extinguir a fome do mundo.
Esse cenário fictício pode soar absurdo, mas
Os “outros” são transformados em vítimas,
se trocarmos os(as) atores(as) e sua
enquanto a própria responsabilidade e
contextualização global, o exemplo não fica
envolvimento na desigualdade global são
mais incomum: No âmbito do Projeto
retirados do foco. Ao invés de procurar as
“FreeRice”
causas da pobreza, a área de pesquisa para o
da
UNESCO,
estudantes
alemães(ãs) podem doar 20 grãos de arroz
Desenvolvimento
para pessoas pobres no “sul global” por
"pobreza generalizada do mundo, com todas
cada resposta correta em um teste de
as suas consequências" (BMZ - Ministério
vocabulário, e por assim dizer “resolver o
Alemão
problema da fome no mundo[…]”. Uma
Desenvolvimento Econômico - 2007). Seria
realidade absurda. O resultado é um
mais relevante, como o teórico do pós-
empoderamento revertido, uma vez que não
desenvolvimentismo Aram Ziai sugere, pensar
Global
para
no
centra-se
Cooperação
conceito
de
na
e
potencial
2
O Programa Internacional de Avaliação de Alunos (em inglês: Programme for International Student Assessment - PISA) é uma rede mundial de avaliação de desempenho escolar, realizado pela primeira vez em 2000 e repetido a cada três anos. É coordenado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), com vista a melhorar as políticas e resultados educacionais. Na Alemanha, em 2001 houve na sociedade o que ficou conhecido como “Choque-Pisa”, já que os resultados de seus alunos e alunas ficara abaixo da média esperada E ainda pior: um quarto de estudantes de 15 anos não podiam ler nem escrever bem.
desenvolvimento sustentável, bem como em modelos de sociedade [...]. Em vez disso, vozes do Sul são marginalizadas no Norte através
do
discurso
da
globalização
dominado também pelo Norte. [...]
Nada novo no Norte O fato de o Norte global saber o que é bom
para todo o mundo tem história. Relações
imagem, um mito que a sociedade da paz
Norte-Sul e políticas desenvolvimentistas
funda", diz Wolfgang Sachs. O conteúdo
são influenciadas pelo passado colonial. O
ideológico e o poder de criar realidade(s)
colonialismo deixou um campo discursivo
oriunda(s) do pensamento e de ações
de forças que estrutura a Educação para o
político-desenvolvimentistas
Desenvolvimento Sustentável (EDS) como
abordados na EDS. A EDS deve contribuir
parte da política de desenvolvimento e
para que pessoas "[...] dêem forma ao futuro
produz conhecimento. Este conhecimento é
de
um complexo historicamente crescido de
reconheçam as relações globais complexas,
discursos,
e
"tomem decisões sábias para o futuro [...]"
conhecimentos cotidianos. O conhecimento
ela deveria também “[transmitir] valores,
é um bem disputado. Portanto, surgem na
conhecimentos e habilidades." Quem irá
análise pós-colonial da EDS as perguntas de
moldar o futuro, tomar decisões e globalizar
quem cria qual "conhecimento" sobre quem,
o conhecimento não é explicitamente
o "conhecimento" de quem é realmente
mencionado
reconhecido e quais relações de poder são
Muitas formulações e métodos deixam
assim
A
implícito que as capacidades de ação são
contestação do "conhecimento" encontra
atribuídas a sujeitos do Norte global: Disso
pouco espaço no programa da EDS. Isso
consiste uma das dez "competências de
não é surpreendente, pelo contrário, reitera
gestão”,
o discurso dominante e sugere que a
solidariedade
cooperação para o desenvolvimento no Sul
desfavorecidos(as)
global, bem como a EDS são filantrópicas e
Sendo
progressistas:
o
oprimidos(as) não são em momento algum
desenvolvimento ajudariam a melhorar o
associados(as) com o Norte global. Na base
status quo econômico, político e social - na
de dados do portal da EDS encontram-se
verdade, a própria vida - em países do Sul
materiais educativos sobre a África que
Global. E “desenvolvimento", no entanto, é
revelam a visão reducionista e colonial
mais do que um programa socioeconômico:
direcionada ao Sul global: “O material
"O termo se refere a uma visão de mundo
didático contém informações sobre temas
que molda a realidade à sua própria
como a fome, a pobreza, a desertificação,
práticas,
perpetuadas
Ações
instituições
e
produzidas.
políticas
para
maneira
ativa
nos
poder
que
e
não
responsável"
materiais
“mostrar para e
são
e
educativos.
empatia
com
os(as)
oprimidos(as)”
desfavorecidos(as)
e
e
guerras,
AIDS,
e
no caminho do desenvolvimento industrial.
refugiados(as). [...] Os alunos e alunas
Por fim, o mundo inteiro não poderia se
devem conhecer a vida das pessoas na
adaptar aos padrões de vida do ocidente,
África [...] e reconhecer as suas próprias
uma vez que isto teria um impacto negativo
possibilidades de ação. "3 histórias como
sobre o ecossistema global. Contudo, nem a
esta já bastam para formar uma ideia de
causa do imperativo do desenvolvimento
'realidade'”;
Elas fazem parte de uma
econômico foi questionada, tampouco foi
verdade
de
de
mencionado que a instalação de um sistema
conhecimentos brancas e europeias que
capitalista global através do colonialismo
durante séculos inferiorizam ex-colônias a
tem produzido as relações de exploração
lugares subdesenvolvidos em relação ao
existentes entre o Norte e o Sul. [...]
e
crianças
uma
de
rua
produção
europeu civilizado, intelectual e moral. A implicação racista colonial é o sentimento
Primeiro capítulo oculto
de dever moral dos europeus de agir e intervir.
A supressão do colonialismo significa que
A produção europeia de conhecimento
história(s) na EDS sempre começam com
incluiu com isso a universalização das
um "segundo" capítulo - uma estratégia
lógicas capitalistas. Esta foi criticada em
colonial com consequências graves. Mourid
debates sobre desenvolvimento desde o
Barghouti escreveu: "Comece a sua história
final da década de 1980 e isso resultou em
pelo “segundo” capítulo e as flechas dos
adiamentos
nativos
no
discurso
do
crítica
pós-
verdadeiras criminosas e as armas dos
movimentos
brancos se tornarão vítimas. Já é o
ambientais globais revelaram as estruturas
suficiente se sua história começar pela
de
o
metade para que a ira dos negros contra os
crescimento econômico, o consumo, a
brancos pareça bárbara." Quem começa a
degradação ambiental e a escassez de
partir do “segundo capítulo” vira o mundo
recursos. Agora, surgiram dúvidas também
de cabeça para baixo. Assim como no
sobre
do
discurso desenvolvimentista geral da EDS,
desenvolvimento: se os países do Sul global
no qual o racismo e o colonialismo não são
devem obedientemente seguir os europeus
mencionados.
desenvolvimento.
A
desenvolvimentista
e
exploração
o
e
a
os
relação
estabelecimento
entre
político
americanos
Eles
se
estão
tornarão
as
simplesmente
ausentes em documentos oficiais, e na
com o colonialismo, a integração forçada ao
grande maioria de materiais educativos na
(agro-)
Alemanha.
estabelecimento da ideia de propriedade
Há uma fobia regrada, em se mencionar o
privada, mais-valia ou lucro. Por causa dos
racismo e o colonialismo. Somente na
interesses econômicos e da influência
periferia do discurso da BNE eles são
contínua de estruturas coloniais, o regime
abordados por meio de intervenções de
alimentar dominante não é questionado,
algumas associações ou são raramente
outros princípios de organização social são
tematizados por alguns formadores(as),
negligenciados.
apesar de o envolvimento de tais temas ser
descritos e a rubrica de quem eles têm, se
essencial
para
reflete na escolha dos(as) salvadores(as) e
histórico
das
entender
surgimento
Como
e
problemas
ao
são
seu
nas abordagens educacionais. Relações
da
não
existentes são totalmente despolitizadas e
nomeação do colonialismo e do racismo não
relações de exploração não são tematizadas.
atual.
globais
globalizado
e
funcionamento
relações
o
capitalismo
Através
se trata apenas de um simples esquecimento ou uma omissão inocente. Trata-se de um processo ativo de exercício de poder, não no
Nem todos(as) são globais
sentido clássico de repressão, mas sim como momento constitutivo e produtivo no qual,
"Imagine que você vive no Sudão!”- Por
através de um esquivamento ativo, o grupo
que alguém faria isso? A resposta é porque
alvo doa, através de um clique, grãos de
países como Sudão fazem parte do nosso
arroz e vida. É nesse sentido que a
mundo.
tematização ausente do racismo e do
onipresente na EDS. O território do Estado-
colonialismo na EDS é parte da produção
nação, incluindo sua população é cada vez
hegemônica do conhecimento que muda a
mais algo global, uma vez que Estado tem
realidade. Um exemplo é o tema “político
se emaranhado constantemente em uma
desenvolvimentista” da fome.
trança mundial. Desta forma, as ações de
É desta maneira que a falta de segurança
cada indivíduo têm efeitos no todo e,
alimentar justifica o fato das pessoas serem
portanto,
pobres. No entanto, a história não começa
responsabilidade pelo meio ambiente, pelas
com a pobreza delas, mas sim antes disso,
gerações futuras e pela distribuição justa de
O
paradigma
todos
nós
do
global
temos
é
a
recursos.
[...] Para parecer emancipatória, a própria
Entretanto, pode mesmo isso aqui realmente
EDS teve que puxar o próprio tapete
ter a ver com todos(as)? Simplesmente não.
questionado o paradigma de avanço e
Pois nem todos(as) estão envolvidos(as) na
desenvolvimento, bem como a utilização de
atualização da desigualdade econômica e
um monopólio de conhecimento e valores
política, e muito menos na sua criação.
auto reflexivos. Não é o suposto déficit dos
Relações Norte-Sul são assimétricas. O
"outros", mas sim as próprias atitudes e
Global não é um espaço de igual para igual,
interesses que devem ser consideradas
mas sim permeado por relações de poder,
criticamente.
que
observados
derivam
principalmente
do
Assim, "conceitos
poderiam
ser
consistentemente
colonialismo europeu.
expostos como participação, propriedade e
O mito de que o Global é distribuído
empoderamento
que
uniformemente
autodeterminação
e
e
oferece
espaço
de
visam
à
capacidade
de
interação democrática - assim o é em muitos
solucionar problemas das pessoas em
planos da EDS - e que papéis são
questão [...]." (Aram Ziai), por exemplo, a
concebidos como mesas redondas os quais
abordagem de "Educação Crítica para a
pequenos agricultores etíopes, donas de casa
Cidadania Global", que na área de formação
norte-americanas
do
na Alemanha é bastante conhecido, mas, no
governo negociam uns com os outros - pode
entanto, pouco usada. Além disso, o
ser desencantado com a simples pergunta de
conceito de Buen Vivir3 poderia ser
quem realmente se move livremente através
retomado e discutido como uma boa vida
e
representantes
do espaço global e torna-o aproveitável para 3
si mesmo. Ao contrário do motivo básico da BNE, nem todas(os) podem na verdade, ou não deveriam agir no mesmo ritmo global. Especialmente para pessoas oriundas do Sul as
áreas
de
substancialmente
intervenção mais
estreitas
são e
possibilidades de representação são, devido às
condições
minimizadas.
iniciais
desiguais,
Ou Sumak Kawsay é uma expressão originária da língua quechua, idioma tradicional dos Andes. "Sumak" significa plenitude e "Kawsay", viver, e a expressão é usada como referência ao modelo de desenvolvimento que se intenta aplicar no Equador a longo prazo e que implica um conjunto organizado, sustentável e dinâmico dos sistemas económicos, políticos, socioculturais e ambientais, que garantem a realização do bom viver . Este modelo vem a romper com os postulados do desenvolvimento capitalista. Efetivamente, na Constituição do Equador de 2008 pode-se ler que “reconhece-se o direito da população de viver num ambiente são e ecologicamente equilibrado, que assegure a sustentabilidade e o bom viver, sumak kawsay” Fonte: wikipedia.
pode ser concebida para além de lógicas de
heteronormatividade ou o discurso dos
exploração de recursos. De acordo com a
Direitos
prevalecente lógica econômica, que também
estruturalmente contra a implementação de
monopoliza
Social,
uma nova narrativa dominante na educação.
continuarão a ser discutidas na EDS,
No entanto, o Ocidente continua fixado no
entretanto,
“segundo capítulo” e na manutenção do
a
Política
somente
a
e
o
escassez
e
a
Humanos,
e
tenta
atuar
eficiência.
mito da igualdade global e deste modo, a
Em contrapartida, a Educação para a
supremacia do Norte global e a real
Cidadania Global põe fundamentalmente
desigualdade global existente são negadas e,
em xeque formas dominantes de abordagem
consequentemente, mantidas.
utilizadas na produção de conhecimentos e conceitos
já
existentes
como
o
de
Literatura: Mourid Barghouti (2004): I saw Ramallah, London, Berlin, New York. Hans-Jürgen Beerfeltz (2010): Zivilgesellschaftliches Engagement in der deutschen Entwicklungszusammenarbeit, Online-Publikation unter: www.bmz.de/de/presse/reden/Sts_Beerfeltz/2010/Mai/20100506_rede.html Aram Ziai (2010): Zur Kritik des Entwicklungsdiskurses. In: bpb (Hg.): Aus Politik und Zeitgeschichte, Nr. 10. Manifiesto por la educación ambiental (2005), Río de Janeiro. Online-Publikation unter: www.anea.org.mx/Enlaces.htm