Quem e o povo brasileiro nas ruas?

June 2, 2017 | Autor: Javier Blank | Categoria: Movimentos sociais, Estado, Repressão, Junho 2013, Crítica Do Valor, Jornadas de Junho de 2013
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23 de junho de 2013, Rio de Janeiro

Quem é o povo brasileiro nas ruas? (Por Javier Blank)

Como manifestado na maioria dos textos que circulam, a velocidade e complexidade dos acontecimentos obrigam a qualquer um que queira fixar as ideias em palavras escritas uma advertência: escrevo sem (tanto) medo de errar pois estou certo de estar errando em algumas afirmações ou ponderações. Temos que escrever, nos ler e nos criticar entre amigos, companheiros, camaradas, vizinhos, para podermos avançar coletivamente no conhecimento dos próprios acontecimentos e na sua explicação.

Que a realidade avança muito rápido nesses dias no Brasil ficou evidente da segunda-feira (17/06) para a quinta-feira (20/06). O balanço subjetivo dos participantes das passeatas da segundafeira era de emoção por estarem ocupando novamente as ruas. Inclusive, por sentirem que estava sendo alcançada uma vitória importantíssima na medida em que em algumas cidades do país já estava sendo anulado o aumento das tarifas de transporte público. Na mesma segunda-feira, militantes do Movimento Passe Livre (MPL) insistiam na entrevista do programa de televisão Roda Viva que a demanda central que tinha levado milhares de pessoas às ruas era especificamente essa anulação do aumento do transporte. Os entrevistadores sugeriam que talvez houvesse outro tipo de demanda motivando essa participação, como a denuncia da brutal repressão policial nas passeatas anteriores, a corrupção, etc. E os militantes do MPL mantinham-se incólumes: a demanda que unificou as manifestações era a do transporte. Parece existir consenso em torno da afirmação de que a demanda em relação ao transporte público foi a detonante da série de protestos que se sucedeu. Por que essa demanda e não outra? Difícil responder. Por um lado, o transporte público, elemento sensível para amplos setores sociais, foi o catalizador de um mal-estar difuso e generalizado. É muito significativo que isso não tenha acontecido, por exemplo, com a greve de três meses realizada no ano passado pelos professores das universidades federais do país. Ou com os protestos contra a construção da usina Belo Monte. A gota d'agua que transborda o copo não é diferente de qualquer outra gota, só chega num momento determinado. Me parece que outras demandas em relação às condições de vida nas cidades poderia ter cumprido a mesma função (por exemplo, o preço dos aluguéis). Já para aquele momento, a insistência em afirmar que a luta contra o aumento do transporte era não só o detonador, mas o que levou efetivamente as pessoas às passeatas parecia mais uma compreensível tática discursiva para tentar direcionar uma manifestação já visivelmente heterogênea do que uma fiel leitura da realidade. Mas, o MPL aparecia ainda como a cabeça da manifestação. Assim como quase obrigatoriamente as pessoas mudam de modelo de celular ou baixam aplicativos novos, a participação nas passeatas virou um fenômeno viral. Já para a quinta-feira, tinha se tornado quase uma obrigação para setores da classe média. Mesmo sem estar muito a par das pautas que unificariam a passeata, a pergunta era imperativa: “você vai na passeata, né?”. Ou, mais direta: “com quem você vai?”. A heterogeneidade de demandas e de perfis políticos dos manifestantes – visível, mas entocada nos protestos da segunda-feira – saíram à luz, violentamente,

nos protestos da quinta-feira. Os setores da esquerda organizada que participaram das manifestações viveram uma situação aterradora: não só tiveram que se enfrentar com a violência da repressão policial, mas também com a hostilidade física e verbal de parte dos manifestantes. Na passeata da quinta-feira em São Paulo, as organizações de esquerda partidárias e não-partidárias, nas quais se encontrava o MPL, foram expulsas da manifestação. A violência física de grupos organizados de direita foi apoiada (silenciosa ou explicitamente) por parte das massas desorganizadas. Muitos militantes tiveram que esconder suas camisas vermelhas ou com insígnias partidárias para poder voltar para casa. A esquerda, ao mesmo tempo em que curava suas feridas físicas produto dos enfrentamentos, deixava de se reconhecer na maioria das pautas que a massa difusa tinha levado à passeata: foco na corrupção como causa de todos os males, pedido de diminuição da minoridade penal, fortalecimento de pautas, bandeiras e estética nacionalistas. Dentre as pautas, uma rejeição pouco elaborada, mas muito sentida das formas de organização política parece esconder na verdade um debate de conteúdo. Me explico. É cada vez mais evidente que as formas tradicionais de organização política como sindicatos e partidos estão obsoletas como formas de incidir profundamente nos rumos da sociedade. O anti-partidarismo é em parte um claro sintoma dessa obsolescência. Todas as demandas das passeatas apontam para ações ou omissões por parte do Estado, mas deixam intocado o lugar do Estado como eterno pai protetor. Não vejo que demandas de mecanismos de democracia participativa direta sejam expressivas nas pautas atuais. Portanto, a pauta “sem partido” parece propor o fim das mediações políticas de intervenção no Estado, sem as substituir por outras mediações, e ao mesmo tempo mantendo o Estado como entidade primordial de resolução de conflitos (por isso, a identificação dessa pauta, tal como aparece nas passeatas, com tendências anarquistas é equivocada; até onde eu sei, em São Paulo os grupos anarquistas articularam-se com as outras forças de esquerda e ficaram, portanto, no campo contrário daqueles que gritavam “sem partido”). Eu disse que uma rejeição pouco elaborada das formas de organização política esconde na verdade um debate de conteúdo entre direita e esquerda. A crítica espontânea à forma partido que circula nas manifestações é a forma na qual hoje está se exprimindo um rechaço (perigosíssimo) de tudo que cheire a valores e princípios de esquerda. A crítica espontânea à forma partido pode ser funcional à direita partidária, que curiosamente não é ferida por essa crítica. Talvez porque não abusa de sua identidade partidária para levar adiante suas políticas (nas passeatas, por exemplo, manifestantes com pautas de direita não levaram insígnias de partidos de direita). O lugar das esquerdas exige um desafio enorme. O conteúdo de esquerda deve ser reelaborado para o momento histórico atual. Em lugar de defender conservadoramente as formas obsoletas de organização política, isso implica realizar uma crítica radical dessas formas, mas compreendendo sua obsolescência como manifestação da própria incapacidade do Estado para resolver as contradições em curso. O Estado depende do processo de acumulação de capital para financiar suas ações, basicamente pela via dos impostos. As ações do Estado são ao mesmo tempo fundamentais para o processo de acumulação de capital. E são também fundamentais para que esse processo se realize em condições pelo menos mínimas de coesão social. Ao longo da história, essa dupla função de acumulação e legitimação foi mais ou menos tensa, de acordo com os diferentes contextos econômicos. Hoje a dupla função de acumulação e legitimação entra em contradição explosiva. A acumulação de capital que o Estado pode acompanhar e promover não inclui imediatamente a sociedade toda na possibilidade de acesso à riqueza social, pela via de um emprego formal e um salário. Para amplos setores da população, realiza-se uma inclusão mediada pela expansão de

programas sociais assistenciais. Para o resto, sobra a repressão, que ao mesmo tempo segura revoltas potencias e legitima essa sociedade para os mais confortavelmente incluídos – o Brasil é o terceiro país do mundo em número de presos, com cerca de 500.000. A repressão que escandalizou a classe média nas manifestações foi tão truculenta, embora menos letal, quanto a que suporta as populações pobres e majoritariamente negras do Brasil. Para o Estado resulta já impossível compatibilizar demandas contraditórias dos diferentes setores sociais que hoje se manifestam nas ruas. Por um lado, uma classe média porta-voz de demandas universais (por exemplo, o MPL e sua luta de curto prazo pela anulação dos aumentos das passagens, e a médio prazo pela tarifa zero do transporte público); por outro, uma classe média que em suas demandas reacionárias não deixa de exprimir sintomaticamente contradições reais (repúdio por financiar um Estado que financia assistencialmente a vida dos pobres; demanda por aumento do encarceramento para resolver a violência urbanas, etc.). E mais impossível é para o Estado considerar as demandas implícitas, explícitas ou potenciais dos grandes ausentes nas passeatas dos últimos dias: as periferias pobres e negras (sua participação, quando existiu, foi minoritária). Ou estiveram presentes? Aprofundou-se nos discursos dos últimos dias uma distinção entre os violentos, vândalos, e os pacíficos, civilizados, dispostos ao diálogo. O discurso da presidente Dilma, inclusive, apontou nessa direção. Quem são os vândalos? Existem indícios da existência de grupos pagos para levar adiante e incitar esse tipo de destruição de patrimônio (curiosamente, nas passeatas da quinta-feira, a polícia estava mais focada em reprimir os manifestantes que protestavam com algum tipo de pauta do que em reprimir os chamados vândalos). Permito-me perguntar se não tem algo a mais. Podem ser esses vândalos indivíduos que viram suas vidas inviabilizadas nos últimos anos e que devolvem a violência que sistematicamente recebem por parte do Estado? Rodrigo Pimentel, ex-capitão do BOPE, lamentou o excesso de alguns policiais na contenção das passeatas e afirmou que o fuzil, necessário para a ação policial nas favelas, não devia ser usado nesse tipo de manifestação, que a ação da polícia deve ser proporcional à ameaça dos manifestantes. A clareza do argumento dispensa comentários. A pulsão de morte desses indivíduos que se enfrentam de maneira caricatamente desigual com as forças policiais e que fazem ouvidos surdos aos pedidos de “sem violência” da massa de manifestantes, poderia estar materializando a pulsão de morte dessa sociedade mórbida que aceita a repressão, o encarceramento e a aniquilação como único meio disponível de coesão social? Sejam ou não esses vândalos fiéis representantes ou um sintoma da mencionada ausência nas passeatas, o risco latente é agora nós, civilizados, fecharmos o cerco e blindarmos a sociedade em relação à violência que, julgamos, não nos pertence. Os violentos podem se tornar o bode expiatório das contradições gritantes que estão saindo à luz. E socialmente pode se legitimar mais uma vez o que já vem sendo legitimado: aquelas demandas dos pobres (como habitação, comida, emprego, etc.) que mais claramente mostram a insustentabilidade dessa sociedade, devem ser respondidas com violência estatal. As respostas ferozes e ao mesmo tempo titubeantes dos governantes são amostras da dificuldade para superar as contradições atuais. A decisão de anular o aumento das passagens, por exemplo, foi um ato desesperado por conter a erupção social. No entanto, não ficou claro de onde sairiam os recursos que compensariam a ausência do aumento. O governo federal já anunciou que não pode fazer mais contribuições para isso. Poderá ser forçada uma redução no lucro das empresas de transporte? Os recursos para o não aumento do transporte implicariam numa falta de investimento em outras áreas sociais? Nesse último caso, para os manifestantes terá sido quando

muito um empate trasvestido de vitória. Um saldo positivo é que o debate sobre os acontecimentos e, de forma geral, sobre os problemas do país e suas possíveis soluções, invadiu as ruas e casas de uma maneira impensável há duas semanas. Impossível saber agora a profundidade a qual isso pode alcançar. Por enquanto, espaços de debate de setores de esquerda estão previstos para essa semana para esclarecer pautas e unificar lutas e forças.

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