\"Quem são estes Lisboetas? Um retrato da experiência imigrante em Lisboa.\"

May 27, 2017 | Autor: P. Martinho Ferreira | Categoria: Portuguese Culture, Postcolonial cinema
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Annual Meeting of The American Comparative Literature Association (ACLA), New York University, March 20-23, 2014. QUEM SÃO ESTES LISBOETAS? UM RETRATO DA EXPERIÊNCIA IMIGRANTE EM LISBOA

O fim do regime ditatorial em 1974 trouxe consigo o reajustamento do território português às suas fronteiras europeias, assim como diversas alterações demográficas, intensificando-se o fenómeno da imigração, quer através da chegada dos “retornados”1 no período pós-revolução de Abril, quer da chegada de variados grupos étnicos nas décadas seguintes, originários sobretudo da Europa de Leste, Brasil, Ásia e África. A abertura das fronteiras europeias permitiu e (continua a permitir) uma maior mobilidade de pessoas e fez com que Portugal, nos anos 90 e início do milénio, começasse a receber imigrantes que se moviam à procura de melhores condições de vida e, por isso, estavam dispostos a ocupar posições de trabalho menos qualificadas. É esse grupo de imigrantes que Sérgio Tréfaut escolheu retratar no documentário Lisboetas (2004) que será objeto da nossa análise. É imperioso ressalvar que Tréfaut não se debruça sobre a heterogeneidade que caracteriza a população imigrada em Portugal em termos de escolaridade, género, estatuto social e objetivos. A sua escolha recaiu sobre um grupo específico de imigrantes, o grupo de imigrantes que chegou a Portugal à procura de trabalho em qualquer área de atividade. Embora no documentário estejam representados imigrantes brasileiros, africanos (da Guiné-Bissau e da Nigéria), paquistaneses e chineses, são os imigrantes da Europa de Leste (em especial, os imigrantes da Estónia, Roménia, Rússia e Ucrânia) que se destacam. Tréfaut não parece tão interessado em refletir sobre a condição pós-imperial de Portugal, fazendo um retrato da (des)integração das comunidades africanas dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), quanto em mostrar a 1

Usamos aspas porque este termo não é propriamente inequívoco. Os estudos críticos sobre esta questão têm apontado a incoerência que subjaz ao uso deste termo que se popularizou para identificar o fluxo migratório provocado pela descolonização. A maior parte da população tinha, de facto, nascido e, em alguns casos, até crescido em Portugal, nesse sentido, retornavam/ voltavam/regressavam ao seu país de origem. Contudo, essa não era uma situação generalizada, muitos desses migrantes tinham nascido em África e/ou nunca tinham estado em Portugal e/ou não tinham quaisquer laços familiares neste país. Sobre esta questão, ver por exemplo PIRES1999.

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diversidade e as vivências das comunidades imigrantes em Portugal e, sobretudo, em Lisboa. O documentarista propõe-se fazer um retrato de um fenómeno migratório que se iniciou no início do milénio e que continua a marcar a demografia da capital portuguesa, tendo um duplo objetivo, como apontou Joana Passos, “to provide identification with immigrants’s individual stories and to confront Portugal (as an exemple of host nation) with its own practices.” (PASSOS, 2008, s/p.)2 Na página Web do realizador, Lisboetas é descrito como “um documentário político sobre a vaga de imigração que nos últimos anos mudou Portugal. Uma janela secreta sobre modos de vida, mercados de trabalho, direitos, cultos religiosos, identidades, sentimentos. É uma viagem a uma cidade desconhecida, um retrato por dentro.” É sobre esta viagem e sobre as opções cinematográficas usadas por Tréfaut que iremos refletir. Antes de avançarmos, porém, é necessário ressalvar que a realidade apresentada em Lisboetas encontra-se, de certa forma, já um pouco datada, na medida em que a crise económica internacional e nacional dos últimos anos fez com que alguns destes imigrantes já tenham saído de Portugal à procura de melhores oportunidades de vida. De qualquer forma, o fenómeno imigratório continua a marcar a sociedade portuguesa em geral e, em particular, a lisboeta. Apesar de não partilharem nenhuma imagem, o projeto Lisboetas tem a sua matriz num filme-instalação de 30 minutos intitulado Novos Lisboetas, exibido no Parc de la Villette e na Fundação Calouste Gulbenkian em 2003 e, nele, Tréfaut propõe já uma antevisão das temáticas apresentadas em Lisboetas: a receção dos imigrantes em Portugal, os seus direitos, projetos, sentimentos e, sobretudo, a construção da sua identidade enquanto novos habitantes de Lisboa. Quem são, então, os lisboetas? Esta é a pergunta que se impõe ao espectador mesmo antes de começar a ver o documentário. Ao escolher o título Lisboetas, Tréfaut problematiza desde logo a definição dessa palavra, pois, ao contrário do que se esperaria, esses lisboetas não são os portugueses. Tal inversão de expectativas inscrevese justamente no cartaz promocional do documentário, através das perguntas retóricas “Quem és tu?” e “O que fazes aqui?” (perguntas que se repetem em off numa das cenas finais). Preparado para desconstruir a resposta mais óbvia, o espetador percebe que, 2

Servindo-se de alguns conceitos da teoria pós-colonial e de alguns estudos sobre imigração e minorias na Europa, Joana Passos faz uma análise deste filme com o objetivo de desconstruir os estereótipos tipicamente associados aos imigrantes.

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afinal, esses lisboetas não são os portugueses que nasceram e habitam em Lisboa, mas sim os imigrantes que chegam a esta cidade já adultos ou ainda crianças, e também os que acabam por aí nascer. Este documentário assume-se, portanto, como um retrato dos novos habitantes de Lisboa, os imigrantes que chegaram a esta cidade à procura de melhores oportunidades de vida, como explica a voz off no início da segunda sequência. É previsível ver neste trabalho de Tréfaut uma mensagem fortemente política e de crítica profunda à sociedade e às instituições públicas e privadas portuguesas. O documentário abre com uma sequência de quase dois minutos num matadouro. A câmara acompanha um homem (que depois sabemos ser um imigrante brasileiro prestes a completar o processo de legalização) que transporta carne dentro de um matadouro e a coloca numa câmara frigorífica para ser posteriormente transportada. Pode ver-se nesta sequência de abertura uma metáfora da desumanização e da exploração dos imigrantes (e isto está tanto mais evidente se repararmos que a roupa de trabalho do protagonista desta sequência é vermelha e branca, tal como a carne)3. Não se trata aqui de transmitir uma ideia de abundância, mas o oposto, a imagem dos animais mortos e transformados em carne que vai abastecer talhos e supermercados pode servir para causar no espectador um enorme repúdio e, até, um certo distanciamento. O espectador português entra, com esta imagem desconcertante, numa Lisboa que desconhece. Esta sequência vai reverberar nas cenas seguintes: a cena da fila dos imigrantes à entrada dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e, já dentro dos serviços, a longa montagem paralela através da qual se visualiza a heterogeneidade da população imigrante. A insistência da câmara em focar quer os diferentes rostos dos imigrantes, quer as suas mãos (que seguram passaportes e documentos vários) transporta de imediato o espectador para o mundo da burocracia e dos impedimentos jurídicos que entravam a legalização desta população migrante. Tais ideias materializam-se tanto nas falas dos funcionários do SEF, cujo rosto nunca vemos, quanto na dificuldade de expressão verbal dos imigrantes que estão a ser atendidos ou, ainda, no silêncio daqueles que estão à espera da sua vez. A focalização nos rostos e no olhar destes imigrantes visa enfatizar a sua paralisação face aos obstáculos legais e até uma certa

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Na elaboração desta cena, é bem possível que Tréfaut se tenha inspirado num famoso filme de Sergei Eisenstein intitulado “A Greve” e, em particular, na sequência que põe em paralelo a imagem dos operários a sair da fábrica e a dos animais a entrar no matadouro, sequência cujo objetivo era o de criticar a exploração e a opressão promovidas pelo regime soviético.

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fragilidade que advém de se sentirem entregues à sua sorte. A fluência e a assertividade da voz dos funcionários do SEF contrapõe-se às poucas ou nenhumas palavras emitidas por estas pessoas, assim como à tensão que envolve os seus rostos. Em Lisboetas não encontramos qualquer preocupação ou intenção de encenar, por isso, até é possível observar e perceber a tensão sentida pelos intervenientes quando a câmara se encontra mais próxima do seu rosto. De destacar é também a rispidez e a falta de delicadeza que acompanha algumas perguntas mais invasivas por parte dos funcionários, os representantes do Estado e das suas leis sem rosto (por exemplo: “O que é que esteve a fazer tanto tempo na Ucrânia?”). Esta longa sequência dentro do SEF expõe um dos tópicos fundamentais que percorre este documentário: a incomunicabilidade. As dificuldades de comunicação em português são uma barreira à integração social e isso perpassa ao longo do documentário, já que, à medida que este avança, o espectador apercebe-se de que os imigrantes mais bem sucedidos são os que têm algum sucesso na aprendizagem do português. O desconhecimento da língua funciona como um impedimento à integração e inclusão desta população migrante e, consequentemente, quem domina a língua tem uma vida mais facilitada. Tal ideia pode visualizar-se no momento em que os três imigrantes brasileiros falam ao telefone com a família, assim como no momento em que o espectador entra em contacto com o ambiente festivo que rodeia a comunidade imigrante brasileira (cena que funciona, a meu ver, como o ponto mais eufórico do documentário). A questão da comunicação ou a falta dela é um leitmotiv neste trabalho de Tréfaut. Encontramos, por um lado, a impossibilidade de comunicar numa terra estrangeira e, por outro, a fluência da comunicação com os familiares através de telefones públicos (ou, no caso de alguns imigrantes mais estabelecidos, através de telemóveis). O telefone adquire, mesmo, um papel importantíssimo neste documentário, visto que, como observou Isabel Pires de Lima, “é uma espécie de ponte que se lança entre cais de partida e de chegada”, funcionando “como uma metáfora da espera dos que cá estão e dos que lá ficaram.” (LIMA, 2011, p. 76). Em Lisboetas, não temos propriamente uma narrativa única, mas um retrato de várias experiências imigrantes, seja ele feito indiretamente (através de diálogos, gestos, sobreposição de palavras e imagens, etc), seja feito diretamente em forma de

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testemunho (como nos exemplos do imigrante romeno que é pintor, do imigrante russo que surge a passar a ferro ou das crianças da Europa de Leste e da China que confessam os seus sonhos, entre outros). Tréfaut usa a voz off para ajudar o espetador a interpretar as imagens que vão surgindo à sua frente e, ao mesmo tempo, a estabelecer ligações entre as histórias dos vários imigrantes retratados. Através desta técnica, o espectador fica a saber alguns dados relativos à imigração em Portugal e é informado sobre uma rusga policial que denuncia a existência de um mercado negro de mão de obra disponível e barata em pleno centro de Lisboa (note-se que a imagem da carne usada nas primeiras cenas repercute-se aqui como metáfora de um mercado de carne viva). É também em dois momentos em voz off que o espectador fica a conhecer alguns assuntos e preocupações transversais a todas as comunidades imigrantes (através da audição de excertos de uma emissão radiofónica, em russo, dedicada aos leitores do “Jornal Slovo”). É significativo notar que tanto a voz off, quanto os testemunhos em primeira pessoa que compõem o documentário estejam nas línguas dos próprios imigrantes, dando conta da heterogeneidade étnica e linguística da população imigrante a viver em (ou em trânsito por) Lisboa e, eventualmente, causando no espectador português (o público alvo deste documentário) um efeito de estranhamento que, embora de forma ténue, se pode equiparar ao sentimento de se “ser estrangeiro” num país cuja língua não se entende e/ou não se fala. Convém também notar que Tréfaut parece querer acentuar esse efeito de estranhamento ao optar pela não-tradução 4 quando filma o breve momento em que o vendedor de flores do Paquistão se cruza na rua com dois compatriotas seus e todos trocam duas ou três palavras. Esta não é, porém, a estratégia que predomina ao longo do filme. O realizador escolheu traduzir e decidiu incluir legendas nos momentos em que as falas não são em português, cumprindo dois objetivos: oferecer uma imagem realista da diversidade cultural e linguística que se vive em Lisboa e dar espaço a vozes que nunca ou raramente se ouvem. Num artigo dedicado ao “cinema poliglota” e, em particular, a 4

Sobre o uso desta estratégia no cinema documental, leia-se a explicação de Verena Berger: “The use of non­translation is generally restricted to sequences which are intended to evoke a particular atmosphere, creating a 'spoken landscape' which is aesthetically relevant, but less important in terms of content. Nevertheless, although non-translated speech can be considered background sound, the audience excluded from the reception of a part of the documentary can themselves experience the disturbing sensation of non-understanding.” (BERGER, 2010, p. 223)

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documentários espanhóis e portugueses sobre populações migrantes, Verena Berger alude justamente a estas questões, explicitando os objetivos dos realizadores / documentaristas desta forma: By maintaining foreign languages in contemporary cinema dealing with migrants' integration into their host societies, filmmakers are not only creating a distinctive 'spoken landscape', but also uncovering hegemonic discourses while allowing the immediacy of 'subaltern voices' (Spivak 1988) to be heard. Their filmic texts thus maintain the linguistic habits of the speakers in order to confer authenticity on the multicultural societies being visualised. (BERGER, 2010, p. 211) A apresentação da imagem realista das vivências destas comunidades imigrantes passa também, a par das dificuldades de comunicação, por se mostrar outros problemas, tais como o alcoolismo, a exclusão social e o desenraizamento. No que diz respeito às experiências de desenraizamento e de despossessão, elas estão presentes em todo o filme, como afirmou Isabel Pires de Lima, num artigo intitulado “Portugal, Cais de Chegada (Identidades em Trânsito na Imigração Portuguesa)”: (...) o filme visita toda a experiência tipo do desenraizamento e da despossessão: “Esta vida não nos pertence”, desabafa um russo que não pensa voltar à sua terra natal, porque “Provavelmente já ninguém se lembra de mim” ou diz um pastor da igreja nigeriana, partindo do texto bíblico: “Este é o destino dos imigrantes: trabalhar duramente e ser enganado”. Visita ainda a experiência das identidades híbridas: vários rostos mais ou menos perplexos de diferentes etnias passam no écran e em “off” uma mulher russa conta que sonhou com a mãe morta, que a interrogara sobre o que fazia no fim de mundo que é Lisboa e a quem a filha por seu turno pergunta: “Quem sou eu, Mãe? (LIMA, 2011, p. 76) A crítica à sociedade portuguesa é explícita ao longo do documentário, quer seja através do comportamento do empresário que explora a mão de obra barata e que trata os potenciais empregados com bastante paternalismo, quer seja na dificuldade destes imigrantes de terem acesso a um tratamento idêntico aos cidadãos portugueses (lembrese, por exemplo, a história de uma imigrante da Europa de Leste a quem, numa instituição bancária, lhe foram recusados cheques por ser estrangeira). Acrescem ainda

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as observações do pastor nigeriano em torno da exploração exercida recorrentemente sobre os imigrantes, bem como os comentários negativos sobre o sistema escolar português feitos por uma imigrante da Europa de Leste. Ao longo deste filme documental, Tréfaut mostra vários submundos que marcam o quotidiano de trabalho e sobrevivência dos imigrantes em Lisboa, tais como a construção civil, as vendas ambulantes e a limpeza das ruas. Tréfaut não mostra as tradicionais imagens turísticas de Lisboa nem de dia, nem de noite, o seu olhar é o de um observador atento daquilo que está para além da superfície, o que vê e expõe o que o lisboeta comum não conhece ou não suspeita existir. Os ambientes e as situações que se revelam da cidade estão sempre relacionados com a realidade dos imigrantes. Tréfaut dá um destaque especial ao mundo da construção civil, área em que a mão de obra (à data da elaboração do documentário) era essencialmente mão de obra africana e da Europa de Leste. O foco nesta área de atividade justifica-se pelo facto de, no final dos anos 90 e início do milénio, ter havido um boom na construção de imóveis e de infraestruturas públicas, o que potencializou a vaga imigratória para Portugal. A câmara não se preocupa em filmar os espaços (quer sejam interiores ou exteriores) mas as pessoas e, sobretudo, os rostos. A rua funciona como lugar para arranjar trabalho e trocar informações, isto é, serve como um espaço de passagem onde se estabelecem alguns laços de solidariedade. As sequências filmadas na rua são quase sempre cortadas arbitrariamente por transportes públicos, carros e barulhos diversos que compõem a ideia de uma Lisboa escondida para lá da que está à superfície, reforçando, em última análise, a dimensão documental deste filme. O aspecto e a localização dos lugares de culto também concorrem para essa ideia da existência de uma Lisboa escondida, frequentada só por um número restrito de pessoas. A câmara de Tréfaut não tem a preocupação de mostrar as belezas patrimoniais da cidade de Lisboa, mas sim a realidade humana que nela habita, isto é, a própria vida em movimento. É relevante notar que a ideia de movimento emerge várias vezes ao longo do documentário: no plano fixo da imigrante da Europa de Leste com o filho ao colo sentada no autocarro, no plano fixo do imigrante paquistanês sentado no metro, na longa sequência em que a câmara filma, de diferentes ângulos, a viagem de um cacilheiro no Tejo e o desembarque dos passageiros no cais, na montagem paralela que

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filma várias crianças dentro de um autocarro a regressar da praia e, ainda, no travelling pela baixa de Lisboa em que a câmara acompanha um casal a caminho da maternidade. A ideia de movimento e mobilidade encontra-se frequentemente associada às comunidades imigrantes, porém tal ideia pode prestar-se a uma maior problematização e é o que Tréfaut parece fazer ao apresentar diferentes histórias em paralelo através de um único narrador, a câmara. Em Lisboetas são apresentados vários tipos de imigrantes, os que têm intenções de ficar, os que vão ficando, os que (se surgir uma nova oportunidade) não têm nenhuma razão para ficar, os que chegaram há pouco tempo e, ainda, os que já nasceram em Portugal. O ponto de vista que Tréfaut adota em Lisboetas, como em outros trabalhos, é marcadamente crítico e político, no entanto, estamos convencidos de que o propósito do documentarista é mais abrangente e está para além da mera crítica política da integração das comunidades imigrantes em Portugal. Ao contrário do que, numa primeira visualização, se possa pensar5, Tréfaut não falha em mostrar a outra face da imigração: a da esperança, a da solidariedade e a da adaptação. Com efeito, pensamos que Tréfaut está mais interessado e preocupado em ser o mais fiel possível à realidade que foi encontrando e menos em fazer um documentário estritamente político. A realidade que ele retrata apresenta, de facto, aspetos negativos (sobretudo no que se refere às questões da legalização e dos direitos dos imigrantes), mas também oferece uma leitura que pode ser positiva. O filme termina, por exemplo, com um claro sinal de esperança ou, pelo menos, de uma visível mudança – a menina recém-nascida, cujo nome os pais ainda não decidiram, simboliza o desejo destes em apostar no seu futuro em Portugal, esta criança é já lisboeta. Através do travelling pela baixa de Lisboa, a caminho da maternidade onde esta nova lisboeta nascerá, Tréfaut parece enfatizar a ideia de que esta população imigrante já mudou e continua a mudar paisagem humana de Lisboa e, de modo mais geral, da sociedade portuguesa. Tal mensagem, na nossa análise, não se reveste de qualquer dimensão crítica ou negativa, muito pelo contrário. O documentário compõe-se de um crescendo de histórias individuais que, a nosso ver, culmina num tom de esperança. No início temos um retrato de imigrantes ilegais ou com dificuldade em obter vistos, estando à mercê de empresários de construção civil desonestos e prontos a explorar mão de obra barata, sem respeitarem o 5

Ver, por exemplo, os artigos de Andreia Faria e Rita Almeida.

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código do trabalho e sem terem quaisquer preocupações éticas. Gradualmente vamos conhecendo histórias de comunidades mais estáveis, (auto)organizadas e relativamente bem integradas. E mesmo que dessas comunidades o espectador só fique a conhecer informações episódicas, o fio condutor é alimentado por uma mensagem positiva: a de que a integração é possível. Para além das cenas de rua, o documentário é pontuado por várias sequências filmadas em interiores. Em três delas faz-se o retrato dos espaços (mais ou menos improvisados) de culto e práticas religiosas das várias comunidades imigrantes (muçulmanos, católicos ortodoxos e protestantes), espaços em que se vislumbra um sentimento de pertença comum. A religião funciona, deste modo, como forma de combater o desenraizamento e, neste contexto, torna-se significativa a ideia do geógrafo Robert Sack de que, para existirmos, precisamos de transformar o espaço em lugares. Nas cenas em que se mostra os locais de culto destas comunidades, o “velho lisboeta” que visiona o filme não poderá deixar de se sentir estrangeiro na sua própria cidade, ao descobrir no ecrã estes lugares que lhe são completamente estranhos. A sequência em que surge a mesquita é bastante ilustrativa, uma vez que a câmara de Tréfaut leva o espectador a querer descobrir o que há de tão especial naquela rua e casa banais. Em vez de mostrar o local de culto onde a cerimónia decorre (como fez nas sequências relativas aos cultos ortodoxo e protestante), o documentarista opta desta vez por outra estratégia: filma inicialmente vários homens a entrar numa casa antiga (localizada numa rua em plena remodelação) e, em seguida, filma (com alguma demora) os pés dessas pessoas e o ato de se descalçarem, sinalizando um hábito cultural e religioso que é estranho à cultura portuguesa e antecipando o ritual da celebração muçulmana que decorrerá dentro daquela mesquita improvisada. Esta sequência parece retomar a mensagem positiva de que acima falamos, visto que a câmara do Tréfaut se demora a filmar o discurso (em duas línguas, bengali e urdu) do líder espiritual desta comunidade, no qual este invoca a herança cultural árabe de Lisboa e, de certa forma, enfatiza a natureza ecuménica desta cidade. Improvisada é também a igreja ortodoxa em cujo edifício funciona igualmente uma escola de português. Este local, porém, ao contrário da mesquita, parece ser não só um espaço de celebração religiosa e de conforto espiritual, mas também um espaço de manutenção dos laços de solidariedade entre os membros da comunidade da Europa de

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Leste. A sequência de cenas que mostra a entrada do edifício onde os imigrantes colocam e veem anúncios de trabalho e leem notícias dos seus países ou da sua comunidade em Portugal não é uma espécie de muro das lamentações, mas sim uma rede de contactos úteis e solidários, uma forma de comunicação e organização nas suas próprias línguas, quer seja russo ou outra. Fica clara a ideia de que grande parte do sucesso da integração destes imigrantes se deve ao facto de estes se auto-organizarem e auto-ajudarem. O sentido de solidariedade vê-se reforçado na sequência de planos (alternados e fixos) relativa à aula de português que acontece ao mesmo tempo e nas mesmas instalações da igreja ortodoxa improvisada. Se o tipo de verbos estudados (verbos que dão conta da realidade hostil que estes imigrantes enfrentam no dia a dia, como por exemplo “aldrabar”) e o contraste entre a rapidez das falas do professor e a expressão afável dos estudantes (em especial a de Vasile, o imigrante com menor nível de proficiência) podem veicular uma mensagem inegavelmente crítica dos poucos meios que estas comunidades têm ao seu dispor no país de acolhimento, o que sobretudo ressalta na nossa análise é a valorização do enorme esforço que estes alunos-adultos fazem ao aprender uma língua que nenhuma semelhança tem com a sua língua nativa, assim como o sentido de entreajuda e solidariedade existente entre eles (é notável como eles se entreajudam quando um deles não sabe responder imediatamente às perguntas que o professor lhe coloca). O mesmo sentido de solidariedade manifesta-se na sequência em que um imigrante russo é atendido numa unidade móvel de apoio médico e os dois imigrantes que estão na fila não só o ajudam a comunicar-se com a enfermeira, como o lembram de que deve evitar o álcool, fazendo inclusivamente sinais à enfermeira para que esta enfatize tal recomendação (é curioso notar que, ao contrário do que acontece com os funcionários do SEF ou o professor, as duas enfermeiras que surgem neste documentário são apresentadas de forma mais humanizada, o que condiz completamente com a função que desempenham). Isabel Pires de Lima, no artigo já citado, observa que Lisboetas contém um “lado solar”, o da esperança e do sucesso da integração, “veiculado pelas inúmeras crianças afirmativas, confiantes e prenhes de futuro que o atravessam”, tais crianças, continua a autora, são “os novos lisboetas que dominam o seu presente, que têm Lisboa

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como seu chão e o controlam” (LIMA, 2011, p. 76). Lima termina o seu argumento sintetizando as duas cenas que, a seu ver, apontam para a diferença geracional que marca o complexo processo de integração destas comunidades: 1- Um homem negro vestido com uma camisa étnica está preso pelo fio do telefone a um outro espaço e porventura a um outro tempo, mas a criança negra ao lado rapidamente se desinteressa do telefone e abandona-o em troca do mundo que a chama. 2- Na cena seguinte, um outro negro atravessa uma praça de Lisboa carregando uma mala de viagem e subitamente olha a sola dos seus sapatos. Que traz ele agarrado a si? O pó dos caminhos que percorreu? Talvez, mas ao lado, crianças de várias etnias, quase nuas, brincam em total cumplicidade, refrescandose e dessedentando-se numa fonte pública em plena cidade. Ouve-se em “off” uma triste canção popular brasileira na voz de Caetano Veloso que canta os “retirantes”, isto é, os habitantes do sertão brasileiro que fogem à seca e à fome, abandonando terra, gado e casa. As crianças, essas, debatem-se, esfusiantes de alegria, tentando controlar e usufruir da abundância de passagem. Elas são o futuro. São Lisboetas. (LIMA, 2011, p. 76) Concordamos inteiramente com a leitura que Isabel Pires de Lima faz destas cenas e vamos até mais longe ao afirmar que os momentos mais poéticos do filme estão relacionados precisamente com as crianças (que surgem quase sempre acompanhadas pelas mães). A estes dois momentos descritos pela autora, acrescentamos mais três em que a câmara de demora a acompanhar crianças: 1) um bebé a dormir no colo da mãe embalado certamente pelo movimento do autocarro, 2) uma criança a caminhar de mão dada com a mãe a sair do cacilheiro e 3) um grupo de crianças a brincar alegremente na praia e, uns minutos depois, a olharem pela janela do autocarro enquanto atravessam o Tejo de regresso a Lisboa. A construção de significado neste documentário é feita sobretudo através da qualidade estética da fotografia e da sequência de cenas. Tréfaut tem uma preocupação documental, mas não negligencia o valor estético das imagens, e isso manifesta-se em vários pontos do documentário, sobretudo nos momentos de ligação entre cenas. Tréfaut conduz o espectador através de certos fios temáticos ou simbólicos e esta estratégia não só confere mais plasticidade ao seu discurso fílmico, como lhe acrescenta uma dimensão estética que mexe com o espectador, obrigando-o a sair da sala de cinema comovido e capaz de entender a realidade da imigração de uma forma mais humana.

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São vários esses elementos de transição entre cenas e entre sequências. Para além da imagem da carne no matadouro a que nos referimos no início, destacamos três: 1) o jogo entre gesto e palavra – na passagem entre a cena em que uma mãe põe o filho no berço e a cena da sala de aula, onde um imigrante lê uma frase que descreve precisamente esse gesto; 2) o elemento “água” – na passagem entre a sequência das crianças a brincar numa fonte no Martim Moniz e a sequência das crianças na praia; e 3) a janela – na passagem entre a sequência em que as crianças observam o Tejo e Lisboa dentro do autocarro e a cena em que surge um imigrante russo a engomar roupa dentro de casa junto a uma janela com vista para o rio e a ponte. A música, os cânticos religiosos e os sons referentes à vida urbana contribuem igualmente para aumentar a valor estético deste documentário, funcionando como um gatilho que visa acionar o envolvimento emocional do espectador. Cremos que o discurso de um imigrante russo concorre, de certa maneira, para complexificar a análise deste documentário. Ao dedicar quatro minutos do documentário à experiência deste imigrante, Tréfaut parece querer dizer-nos que a sua crítica não é exclusiva ao Estado e à sociedade portuguesas. A realidade que ele pretende criticar não se restringe às fronteiras nacionais, é mais abrangente. O que o testemunho deste imigrante russo demonstra, em última análise, é a ideia de que não é tão importante particularizar as dificuldades de integração dos imigrantes em Lisboa, mas sim chamar a atenção para os entraves que qualquer imigrante enfrenta em qualquer lugar do mundo: Quem sai do seu país para vir para Portugal ou para qualquer sítio não imagina o que o espera realmente. Para o nosso povo o estrangeiro é normalmente associado… a uma certa riqueza, a uma certa estabilidade…Mas os portugueses afinal de contas não são assim tão ricos. Acabamos por perceber isso depois. Depois de vivermos cá algum tempo. (…) Eu trabalho, tenho um bom emprego. Mas nenhum emprego compensa não estar na nossa terra. Acho que isso acontece em qualquer país. (…) Eu acho que o paraíso tem de ser construído onde vivemos, onde queremos viver. Viver, tentar fazer qualquer coisa para ser feliz neste mundo. Temos de o procurar onde nascemos ou onde vivemos.

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Filmografia: Tréfaut, Sérgio. Lisboetas (2004), Portugal. [Youtube] Página Web de Sérgio Tréfaut. Disponível em . Acesso em maio 2016. Referências bibliográficas: ALMEIDA, Rita. “Lisboetas”. Blog Cinemara, 2006. Disponível em . Acesso maio 2016. BERGER, Verena, “Voices Against the Silence: Polyglot Documentary Films from Spain and Portugal”. In Polyglot Cinema: Migration and Transcultural Narration in France, Italy, Portugal and Spain. Berger, Verena; Komori, Miya (Eds.). Berlin: LIT Verlag, 2010, p. 211-225. FARIA, Andreia. “Crítica: ‘Lisboetas’, de Sérgio Tréfaut.”JPN 2006. Disponível em: < http://jpn.c2com.up.pt/2006/04/20/critica_lisboetas_de_sergio_trefaut.html>. Acesso em maio 2016. JÁCOME, Jorge. “Sérgio Tréfaut: ‘Nunca fiz filmes a pensar só em Portugal’.” Disponível em . Acesso em maio 2016. LIMA, Isabel Pires de. “Portugal, Cais de Chegada (Identidades em Trânsito na Imigração Portuguesa)”. In Arquipélagos contínuos: literaturas plurais. Rios, Otávio. (Org.). Manaus: UEA Edições, 2011, p. 65-79. PASSOS, Joana. “Lisbon, Lisboetas and Portugal: Immigrants’ stories and hosts’ prejudice.” Afroeuropa: Journal of Afroeuropean Studies, Vol. 2, nº 3, 2008. PIRES, Rui Pena. “O regresso das colónias”. História da Expansão Portuguesa. F. Bethencourt; K. Chaudhuri (Orgs.), Vol. 5. Lisboa: Círculo de Leitores, 1999. 182-196.

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