Querido senhor: a Religião em A Cor Púrpura

July 5, 2017 | Autor: D. Schmidt | Categoria: Cinema, Ciências da Religião, Historia Do Protestantismo
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Daniel augusto schmidt

QUERIDO DEUS: A RELIGIÃO EM A COR PÚRPURA





São Bernardo do Campo — Julho de 2011
Querido Deus: a religião em A Cor Púrpura


Querido Deus: Eu tenho catorze ano. .. Eu sempre fui uma boa minina. Quem
sabe o Senhor pode dar um sinal preu saber o que está acuntecendo
comigo...[1]




Introdução
A proposta deste pequeno texto é analisar a presença da religião no filme A
Cor Púrpura, uma adaptação de Stephen Spielberg do romance homônimo da
escritora americana Alice Walker. Mais especificamente, procuraremos
responder às seguintes questões: Quais temas religiosos aparecem no filme?
A Cor... pode ser definido como um filme religioso? Como o universo
religioso é abordado na narrativa? Para responder a estas questões
inicialmente faremos um breve resumo da história do cinema, percebendo a
presença de obras relativas à religião já desde seus primeiros takes. Em
segundo, procuraremos determinar os temas religiosos que o filme aborda.
Depois analisaremos as características típicas do filme religioso. Por
último, faremos uma análise da maneira pela qual a religião é mostrada na
obra usando a Teologia como chave de entendimento.



I- Um resumo da História do cinema

1.1 Os precursores do Cinema
O que conhecemos atualmente como cinema é fruto de um longo processo de
evolução. Os precursores da chamada sétima arte podem ser encontrados já
desde tempos bastante remotos: têm sua origem na antiguidade e culminam na
evolução técnica e cientifica do final do séc. XIX.
Um destes precursores foi o teatro de sombras, que data de cerca de 5000 a.
C. Os prováveis locais de sua origem são China ou Índia. Nesta arte ainda
existente, as marionetes - feitas de couro e movimentadas por varas de
bambu- são colocadas entre uma fonte de luz e uma tela. Com as invasões
mongóis, este antepassado do cinema se espalhou pelo Oriente. Sua chegada
ao Ocidente se deu no séc. XVIII, quando missionários vindos da China
fizeram as primeiras apresentações na França. A partir daí, o Teatro de
Sombras se tornou uma forma de diversão muito popular naquele país. Porém,
o cinema teve outros predecessores.
Um deles foi a tradição da Lanterna Mágica. Desenvolvida a partir de outro
aparelho óptico- a câmara escura- a lanterna mágica foi aperfeiçoada no
séc. XVII pelo jesuíta alemão Athanasius Kircher (1601-1680)[2]. Este
aparelho consistia em uma caixa que projetava (à luz de velas ou querosene)
imagens pintadas em placas de vidro numa tela. Para que isso acontecesse
bastava que se passasse a placa invertida no passa-vistas do aparelho. A
partir do séc. XVIII algumas destas placas passaram a ser mecanizadas. Isso
permitiu a exibição de imagens com movimentos e a criação de alguns
espetáculos como as famosas phantasmagorias do ilusionista belga Étienne-
Gaspard Robert (1764-1837) na França. Eram projeções cheias de efeitos como
aparições de espíritos de mortos em ambientes como mosteiros e igrejas
abandonadas.
Entre os precursores do cinema encontram- se também algumas inovações
tecnológicas do séc. XIX: o Panorama e o Diorama.
O Panorama foi patenteado em 1787 pelo pintor irlandês Robert Barker (1739-
1806). Trata-se de uma construção preparada para exibir pinturas
circulares. O visitante perambulava por escuros corredores até chegar ao
meio de uma plataforma. Ele ficava então diante de uma imensa pintura
circular que o envolvia. O grande realismo da obra criava no espectador a
sensação de estar no local retratado. No séc. XIX, o panorama se tornou uma
coqueluche na Europa com a construção de rotundas[3] em diversas capitais.

Os panoramas transformaram- se, ainda na primeira metade do Século XIX, em
um fenomeno mundial. Nas centenas de rotundas construídas desde então, em
diversos países, a perspectiva curvilínea e as ilusões de óptica envolviam
o espectador com cenários multifacetados da cidade, da natureza e da
história. O efeito perturbador desses novos artefatos visivos e as
sensações ilusórias provocadas pela visão panorâmica no interior das
rotundas modificavam a própria percepção da realidade.[4]

Outra inovação tecnológica foi o Diorama. Este tipo de apresentação
teatral teve como criador o francês Louis Jacques Mandé Daguerre
(1787–1851), que ficaria posteriormente conhecido como o inventor de um dos
primeiros processos de obtenção de imagens fotográficas: o daguerreótipo.
Surgido em 1822 - como um desenvolvimento do Panorama – o Diorama era um
tipo de espetáculo teatral composto de painéis transparentes criados por
uma câmara escura e que produziam efeitos através da iluminação. Dispunha
também de cenários rotativos que colocavam os elementos em planos
diferentes, criando uma impressão de tridimensionalidade.
O cinema também teve como precursores alguns tipos de brinquedos ópticos
surgidos no séc. XIX: o taumatrópio, o zootrópio e o fenaquisticópio.
O Taumatrópio foi provavelmente descoberto pelo médico e filólogo
britânico Peter Mark Roget (1779-1869) em 1824. Ele consistia em dois
discos com desenhos diferentes presos por um barbante. Quando eles eram
girados, as figuras pareciam se misturar.
O zootrópio era uma evolução do principio do brinquedo anterior. Também
conhecido como Roda da Vida, foi inventado pelo matemático inglês William
George Horner (1786-1837) em 1834. Era um cilindro oco com cortes laterais
que continha uma tira de papel com imagens em sequência: quando o zootrópio
era girado elas parecem se mover.
O fenaquisticópio também partia do mesmo princípio dos brinquedos
anteriores. Criado pelo belga Joseph Plateau (1801- 1883) consistia num
disco com desenhos nas bordas. Ao ser girado, estes desenhos pareciam se
mover.
O cinema também deve muito a todo o clima de desenvolvimento científico do
final do séc. XIX. Vários cientistas procuraram aperfeiçoar a já conhecida
fotografia, criaram o celulóide e, finalmente, desenvolveram aparelhos de
projeção.
Como já foi dito a fotografia era conhecida desde 1834, data da invenção do
daguerreótipo. Os primeiros negativos eram fixados sobre placas de cobre.
Esse método durou até 1854, quando o escultor inglês Frederic Scott Archer
(1813-1857) descobriu os negativos de vidro.
No ano de 1870, o inventor norte americano John Wesley Hyatt (1837-1920)
descobriu o primeiro tipo de plástico industrial: o celulóide. Em 1889
George Eastman (1854-1932)- criador da Kodak- utilizou o celulóide para
produzir uma base fotográfica flexível. Era o fim dos pesados negativos de
vidro.
Enquanto isso, em 1888, Émile Reynaud (1844-1918) também usava o celulóide
para desenvolver o primeiro filme cinematográfico. Seu aparelho, o
praxinoscópio, se utilizava de tiras perfuradas deste material para
projetar os primeiros desenhos animados que se tem notícia.
As pesquisas sobre a imagem em movimento também continuavam no campo da
fotografia.
Em 1878 Eadweard Muybridge (1830-1904), fotógrafo britânico radicado nos
Estados Unidos, tirou uma série de fotos instantâneas de um cavalo correndo
no hipódromo de São Francisco, Califórnia. Para isso, utilizou vinte e
quatro câmeras com disparador externo. O mecanismo era acionado quando o
cavalo pisava em cordões ligados às câmeras. O objetivo era comprovar que
em um determinado momento do trote nenhuma das patas do animal tocava o
chão. Baseado em sua descoberta, inventou o zoopraxiscópio, baseado no já
citado zootrópio. Esse aparelho acabou sendo um dos precursores do filme
cinematográfico em película. O caminho estava aberto para as primeiras
projeções públicas de imagens em movimento.
Foi quando o séc.XIX chegava a seu fim que isso aconteceu. Embora a memória
coletiva tenha registrado apenas uma, foram duas as primeiras projeções
cinematográficas públicas.
A primeira projeção cinematográfica de fato aconteceu em 1893, quando
Thomas Alva Edison (1847-1931)– o inventor da lâmpada elétrica- apresentou
publicamente seu quinetoscópio.

O quinetoscópio possuia um visor individual através do qual se podia
assstir, mediante a inserção de uma moeda, à exibição de um filme em
looping, na qual apareciam imagens em movimento de números cômicos, animais
amestrados e bailarinas. O quinetógrafo era a câmera que fazia estes
filmetes. O primeiro salão de quinetoscópios... iniciou suas atividades em
abril de 1894em Nova York.[5]

Porém foi a apresentação de dois irmãos franceses dois anos depois em
Paris que acabou ficando famosa. Em 28 de dezembro de 1895 os irmãos
Auguste (1862-1954) e Louis Lumiére (1864-1948) apresentaram seu
cinematógrafo no Grand Café em Paris. A fama desta apresentação pode ser
explicada. Os Irmãos Lumiére possuíam uma boa noção de marketing –
apresentaram seu aparelho na Capital do Mundo. Mas não era só isso:
souberam fazer do cinema um negócio lucrativo: produziam e vendiam tanto
o aparelho quanto os filmes em película. Além do mais possuíam um
dispositivo de projeção bem mais prático do que o de Edison.

Mas parte do sucesso do cinematógrafo Lumiére deve- se a suas
características técnicas. O vitascópio[6] pesava cerca de 500 quilos e
precisava de eletricidade para funcionar, já a máquina dos Lumiére podia
funcionar como câmera ou projetor e ainda fazer cópias a partir dos
negativos. Além disso seu mecanismo não utilizava luz elétrica e era
acionado por manivela. Por seu pouco peso, podia ser transportado
facilmente e assim filmar assuntos mais interessantes que os de
estúdio...[7]

Estava iniciada a Era do cinema e a religião faria parte dela desde seus
primeiros momentos.

1.2-Breve cronologia do cinema
Costuma-se dividir a história do cinema em três grandes períodos: Primeiro
Cinema, Período Intermediário e o cinema pós- Primeira Guerra Mundial.
Primeiro Cinema (1895- 1907): Eram produzidos filmetes curtos para
serem exibidos em cafés, vaudevilles e locais de diversão. A ênfase
na estava nos documentários, filmes de truques - principalmente os
produzidos pelo mágico George Meliés (1861-1938) e bem pouca
narrativa. A presença européia era bastante forte . Principalmente
a da companhia francesa Pathé;
Período intermediário (1907-1913): Os filmes se tornam um pouco
mais longos (10 min.). São feitas as primeiras experiências com
narrativas mais complexas: um exemplo é O Grande roubo do Trem de
Thomas Edison. Surgem nos Estados Unidos os Nickelodeons[8], locais
de exibição voltados para públicos de renda mais baixa;
Depois da I Guerra Mundial-: O cinema europeu sai de cena devido à
guerra. É o início da predominância do cinema norte- americano. A
atividade passa a ser mais industrial com o surgimento de Hollywood
e do star sistem. David Llewelyn Wark Griffith (1875-1948)-
conhecido como D.W. Grifith- cria a linguagem cinematográfica com
filmes como O Nascimento de uma Nação[9] e Intolerância. As tramas
agora são mais longas e psicologicamente complexas.

III- A Religião no cinema
A religião esteve presente no cinema desde os seus primeiros tempos. Os
filmes ou eram religiosos de fato ou tinham a religião como pano de fundo:
Do período do Primeiro Cinema, podemos destacar:
A Paixão de Lear (1896) – O mais antigo filme religioso conhecido.
Dirigido por Kirchner, - também conhecido como Lear- e patrocinado
por uma organização católica a, La Bonne Presse;
A Paixão dos Lumiéres (1897);
Paixão de Oberammergau (1898)- Dirigida pelo americano Henry
Vincent da Companhia Edison. A película documenta uma apresentação
teatral que acontece desde o séc. XVII na cidade de Oberammergau,
(Alemanha) durante a Semana Santa;
Paixão da Pathé (1903)- Dirigida por Ferdinand Zecca (1864-1947);
Paixão da Gaumont (1904)- Dirigida por Alice Guy (1873-1968) para a
companhia francesa Gaumont;
Do Período Intermediário:
From the manger to the cross (1912) – dirigido por Sidney Olcott
(1873-1949) para a Biograph;
Do Período pós- Primeira Guerra, já dominado pelo cinema norte americano:

Rei dos Reis (1927)- Dirigido por aquele que ficaria conhecido por
seus épicos bíblicos: Cecil B. de Mille (1881-1959);
Quo Vadis (1951)- Dirigido por Mervyn LeRoy (1900-1987) para a
Metro Goldwyn Mayer;
Ben- hur (1959)- Dirigido por William Wyler (1902-1981) também para
a Metro Goldwyn Mayer.

E muitos outros mais.


IV – A Cor Púrpura
Rodado em 1985, A Cor Púrpura é uma adaptação- por vezes bastante livre- do
romance homônimo da escritora americana Alice Walker: no filme alguns
personagens têm uma ênfase maior[10] e algumas cenas que não existem no
livro são criadas. Outros aspectos, como a homossexualidade da personagem
principal, foram bastante atenuados. Talvez a intenção tenha sido tornar A
Cor ... mais palatável para o grande público norte americano da época: em
sua forma literária, o tom da obra é bem mais ácido e cru.

Eu deito na cama e puxo meu vistido.Abaixo minha calcinha. Ponho o espelho
entre as perna.Argh.Todo aquele pêlo.Então os lábio da minha xoxota é
preto.Então lá dentro parece uma rosa molhada...[11]

A obra marca a primeira tentativa do diretor Steven Spielberg de sair de
seu gênero característico- a aventura- para trabalhar com o drama. A
segunda foi com A lista de Schindler. Ela é também a produção de estréia de
uma comediante até então desconhecida no cinema: Caryn Elaine Johnson, mais
conhecida como Whoopi Goldberg.
O filme narra a história de Cellie Harris Johnson (Whoopi Goldberg). Depois
de engravidar duas vezes do próprio pai e ter seus filhos vendidos, ela é
dada em casamento ao "Sinhô" (Danny Glover). Maltratada pelo marido, ela
espera consolo nas cartas da irmã- que nunca chegam- e escreve para Deus.

Querido Deus, Eu tava na cidade sentada na carroça quando Sinhô tava no
armazém.Eu vi minha filhinha...[12]

Portanto, a presença da religião, como veremos, é marcante tanto num quanto
noutro.

Querida Nettie: Eu num escrevo mais pra Deus, eu escrevo pra você.O que
acunteceu cum Deus?, a Doci[13] pergunta.Quem é ele?,eu digo.Ela olha pra
mim séria.Diaba assim como você é, eu digo, cum certeza num deve tá
preocupada cum Deus. Ela diz, Um minutinho, por favor.Espere só um minuto
aí.Só purque eu num fico pregando feito umas pessoa que a gente cunhece pur
aí num quer dizer queu num tenho religião...[14]

Porém a análise do filme levanta algumas questões. Quais referências à
religião são feitas na obra? A Cor Púrpura pode ser considerado um filme
religioso? Como a religião é abordada na história? Estas são as questões
que pretendemos responder na pequena análise abaixo.

V- A Religião em A Cor Púrpura
Como foi dito acima, o tema da religião está presente de forma muito forte
tanto no romance quanto em sua adaptação cinematográfica. A obra trata de
temas como:
Sofrimento do justo- Cellie é a inocente que sofre como o bíblico
Jó. Não tendo uma explicação plausível para o que acontece em sua
vida, ela busca respostas em Deus;
Livre arbítrio- Ao encontrar as cartas da irmã- que foram
escondidas durante longos anos por Sinhô- Cellie se vê diante de
duas possibilidades: seguir sua vida, indo para o Tennesee com Shug
Avery, ou matá-lo. Este dilema aparece de forma marcante na cena do
jantar de Ação de Graças: num ato de fúria, a antes temerosa
senhora Johnson pega uma faca e aponta para a garganta de seu
marido algoz. Porém, é chamada à razão por outra importante
personagem da obra, Sofia (Oprah Winfrey), que havia passado anos
na cadeia devido a uma atitude irresponsável[15]: "não queira
passar pelo que eu passei";
Milagre- No correr do filme, uma espetacular reviravolta muda a
vida de Cellie e faz com ela levante sua cabeça e passe a buscar
sua libertação.
.

VI- A Cor Púrpura pode ser considerado um Filme Religioso?
Porém, o fato de abordar temas relativos ao universo religioso não faz de A
Cor Púrpura um filme religioso. Segundo Luiz Vadico[16], este tipo de obra
tem oito características bem definidas.
A primeira delas é possuir um tema ou assunto religioso, que seja
reconhecido assim pelo seu público específico.
A segunda é buscar despertar neste público emoções ligadas ao mundo da
religião (compaixão, esperança) e também fortalecer ou despertar sua fé.
Em terceiro lugar, estas produções possuem certa teologia vinculada a si.
Isto pode aparecer claramente ou através dos desígnios teológicos dos seus
produtores.
Em quarto, estes filmes- devido à delicadeza do assunto tratado- ou contam
com o auxílio de consultores em sua produção ou são vinculados a alguma
instituição religiosa. Isso é necessário para que os produtores não sofram
resistência do público.
A quinta característica é que são obras produzidas com a intenção de falar
do sagrado.
A sexta é que são produções que passam a idéia de algo puro ou adequado.
Em sétimo, são produções cuja qualidade moral é garantida por instituições
religiosas em suas comunidades, publicações ou indicações nas propagandas
dos filmes. .
Em último lugar, estas são obras "militantes". São filmes que pedem por
uma resposta do público. Ninguém fica indiferente. Ou são aceitos ou não.
A Cor Púrpura não apresenta nenhuma destas características. Então, como
poderíamos classificá-lo? Ainda segundo Vadico, poderíamos chamá-lo de um
Filme de Contra Posição:

... estes são produtos que possuem óbvios elementos do Sagrado, no entanto,
também não se coadunam com o Campo do Filme Religioso, mas mantém um
diálogo com essa produção ou com o Campo do Religioso, neste caso estão,
p.ex, o já citado "Dogma", "A Vida de Brian" (Terry Jones, 1979), "L' Age
d'Or"(1930) e "Via Láctea" ( Luís Buñuel, 1969), etc. São filmes que se
propõe como obras de crítica a estes campos, e por isso mantém um diálogo
com eles, no entanto, não querem, e não obedecem, suas regras.[17]

Esta é também a proposta de Alice Walker: o livro foi escrito para quebrar
o que ela chama de Teologia Tradicional[18]. Porém, fica a pergunta: o que
seria esta Teologia Tradicional?

VII- O que seria então esta Teologia Tradicional?
A nosso ver esta Teologia Tradicional a que Walker se refere estaria
vinculada a um movimento religioso surgido na Alemanha do séc. XVIII e que
foi amplamente aceito nas comunidades protestantes dos Estados Unidos-
principalmente nas igrejas negras do Sul, onde a história se passa- o
Pietismo[19]. Surgido com o intuito de romper com a frieza da ortodoxia
protestante pós- reforma, este movimento tinha as seguintes
características:
Sentimentalismo- A conversão é marcada por uma experiência
sentimental e mística, o encontro pessoal com Cristo. No caso do
filme, esta característica aparece de forma marcante na cena da
conversão de Shug Avery (Margaret Avery). Num domingo pela manhã,
a pecadora cantora de blues está se apresentando no cabaré
pertencente a Harpo (Willard E. Pugh), enteado de Cellie e esposo
de Sofia. Porém, o barulho do cabaré está atrapalhando o serviço
matinal da pequena igreja local. Neste momento, o pastor
(interpretado de forma magistral por John Patton Jr) -que está
pregando um providencial sermão sobre o Filho Pródigo- decide
chamar a atenção de sua audiência distraída pelo som vindo de
fora. Pede então que o coral cante um hino de conversão. Agora é
a igreja que atrapalha o cabaré. Shug se desconcentra, tocada
pela letra do hino: Deus quer te dizer algo! Ela interrompe seu
show e segue pela estrada cantando a plenos pulmões o hino que a
havia tocado. Tudo termina com a pecadora arrependida diante do
púlpito abraçada ao pastor que também é seu pai. Porém Cellie
rompe com isso ao aceitar- e amar- Shug sem tentar modificá-la.
Visão negativa do mundo- O Pietismo também tinha uma visão
fortemente dualista da realidade. Ela estava dividida entre o
Mundo mau que levaria ao Inferno e a pura vida cristã, que
levaria à Jerusalém Celeste. Um exemplo clássico desta visão é o
quadro Os Dois Caminhos muito conhecido até mesmo nas igrejas
protestantes brasileiras.

O
quadro Os dois Caminhos[20]

Portanto, se o mundo era mau e levava ao inferno, o cristão
deveria manter-se afastado dele e das pessoas que escolhiam viver
nele. Este é o pensamento do já citado pastor, pai de Shug Avery.
O líder espiritual da comunidade não aceita que sua própria filha
tenha abandonado o rebanho para se tornar uma cantora de blues.
Isso faz com que ele busque romper qualquer contato com ela e o
mundo que ela representa. Esse dualismo aparece de forma bastante
cruel numa cena que não está presente no livro. Já recuperada de
uma doença ("doença de mulher suja"), Shug procura restabelecer
contato com seu pai, visitando-o na igreja. Porém, a separação de
mundos da teologia tradicional que o filme critica por vezes é
insuperável. O pai pastor não se digna a levantar os olhos para
dialogar com sua filha cantora de cabaré. Aliás, tudo o que menos
existe nesta cena é diálogo: enquanto Shug Avery procura
enternecer o coração de seu pai, este continua a varrer
silenciosamente o chão do templo. Este triste monólogo termina
com o pastor virando as costas e deixando a filha sozinha na sala
para se trancar no gabinete pastoral. Porém para Cellie, este
dualismo não existe: ela não hesita em acolher a pecadora doente
em sua casa, mesmo sabendo que ela é a amante de seu marido;
Individualismo- Para o Pietismo, a Salvação era um assunto
individual e a relação com Deus também. Isso implicava em
práticas devocionais individuais, como a leitura da Bíblia, e o
hábito de escrever diários espirituais e até cartas para Deus.
Porém Cellie deixa de escrever cartas para ele quando percebe que
o Deus da Teologia Tradicional pouco se importa com o seu
sofrimento;
Sacralização da ordem- O Pietismo fazia uma interpretação literal
de certos textos bíblicos como a Carta do Apóstolo Paulo aos
Romanos, capítulo 13 versos 1 a 5: Todo homem esteja sujeito às
autoridades superiores, por que não há autoridade que não proceda
de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas.
Portanto, a autoridade é instituída por Deus e deve ser obedecida
cegamente. No caso do filme a autoridade é um conceito amplo: vai
desde a sociedade racista que oprime os negros até o pai que
violenta e o marido que bate. Cellie rompe com isso ao descobrir
seu valor;
Pouco interesse pela realidade- O mundo e seus sofrimentos não
importavam para o Pietismo. O que importava de fato era o Paraíso
vindouro. Esse ponto de vista aparece claramente na cena em que
Sofia questiona Cellie por ter aconselhado seu enteado Harpo a
bater nela. A resposta da pobre Cellie é lapidar: A vida é curta,
o Paraíso é que é eterno... [21]Porém no correr da narrativa,
Cellie se insurge contra isso também: a vida pode ser melhor aqui
e agora. O Paraíso pode começar neste mundo! Na já citada cena do
jantar de Ação de Graças, Sinhô a confronta com o fato de que ela
não vai sobreviver no mundo lá fora: ela é feia, negra, pobre e
mulher. Ela não é nada! Porém Cellie responde com outra frase
lapidar e libertadora: Sou pobre, preta, posso até ser feia. Mas,
Deus, eu estou aqui!
Com sua religiosidade fora do convencional, Cellie é muito mais cristã e
coerente do que a fé estabelecida.













Conclusão

Como foi possível perceber, a religião está presente no cinema desde os
seus primeiros tempos. Ou em obras religiosas de fato, ou em obras que
apenas tratavam do universo religioso.
E ela está presente também na história da sofredora Cellie, a heroína de A
Cor Púrpura. Porém, que religião é esta que Alice Walker imprime com tanta
crueza nas páginas do romance e que Stephen Spielberg transporta para as
telas na famosa adaptação para o cinema?
Analisando as características do cinema religioso, pudemos perceber que
este não é o campo no qual A Cor... se enquadra. Porém o que ficou claro é
que a religião é um dos temas do filme e ele passa uma opinião sobre ela.
Vimos que, na verdade, a adaptação de Spielberg é um filme de contra-
posição. Uma obra que aborda a religião para criticá-la. Aliás, esta também
era a proposta de Alice Walker no livro: ela deseja desmontar o que chama
de Teologia Tradicional. Porém, o que seria esta Teologia Tradicional?
Esta Teologia Tradicional foi identificada com um tipo de religiosidade
muito presente no Sul dos Estados Unidos: o Protestantismo em seu corte
pietista. Esta é uma religiosidade que prega uma piedade apenas
sentimental. Uma separação farisaica do mundo que leva à discriminação de
pessoas. Uma fé individualista que se afasta da realidade humana, e que
ratifica uma ordem injusta como sendo a vontade de um Deus que não responde
aos clamores dos que o buscam. É contra esta fé que Cellie se rebela.
Contra a separação farisaica, ela age com um amor levado às ultimas
conseqüências por Shug Avery. Contra o individualismo, a falta de interesse
pela realidade e o imobilismo diante de uma ordem injusta ela levanta um
grito de NÃO! Aponta a faca para a garganta da subvida que levava e toma as
rédeas de seu destino nas mãos. Talvez Cellie devesse fazer as pazes com
Deus, por que é nessas atitudes que Ele está.





bibliografia


MASCARELLO, Fernando.Org. História do cinema mundial. Campinas: Papirus,
2006. (Coleção Campo Imagético).


TURAZZI, Maria Inez. A Vontade Panorâmica. In: O Brasil de Marc Ferrez. São
Paulo: Instituto Moreira Salles, 2005.


WALKER, Alice. A Cor Púrpura. São Paulo: Círculo do Livro, sd.





Teses e monografias

SCHMIDT, Daniel Augusto. Herdeiros de uma Tradição: uma investigação dos
fundamentos teológico- ideológicos do conservadorismo metodista na crise da
década de sessenta. 2008. 216 fls. Dissertação de mestrado (mestrado em
Ciências da Religião)- Curso de Pós- Graduação em Ciências da Religião,
Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2008.





Na internet

. http://compos.com.puc-rio.br/media/gt10_luiz_vadico.pdf. Visitado em
25/05/2011.


http://www.luziusschneider.com. Acesso em: 15 de maio de 2007.


DVD

A Cor Púrpura. Dirigido por Steven Spielberg. Manaus:Videolar distribuído
pela Warner Home Video, 2004.DVD duplo (140 min.):son, color.Legendado










" "
" "

-----------------------
[1] Cf. WALKER, Alice. A Cor Púrpura. São Paulo: Círculo do Livro, sd.
pág.11
[2] Matemático, físico, alquimista e inventor alemão.
[3] Rotunda era o nome que se dava para os prédios destinados a receber os
panoramas.
[4] Cf. TURAZZI, Maria Inez. A Vontade Panorâmica. In: O Brasil de Marc
Ferrez. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2005, pág. 22.
[5] Cf. MASCARELLO, Fernando.Org. História do cinema mundial. Campinas:
Papirus, 2006. (Coleção Campo Imagético), pág. 18.
[6] Outro aparelho cinematográfico inventado por Edison.
[7] Cf. Idem, pág.20. Enquanto os filmes de Edison eram todos produzidos
num estúdio chamado Black Maria, alguns dos mais famosos filmes dos Lumiére
contavam com cenas externas: A Saída da Fábrica Lumière em Lyon e Chegada
de um Comboio à Estação da Ciotat.
[8] O nome se deve ao preço que era pago para que se pudesse assistir o
filme: 1 níquel, a menor moeda norte americana.
[9] É interessante fazer uma comparação entre O Nascimento de uma Nação e o
filme sobre o qual iremos tratar mais adiante, A Cor Púrpura. O
Nascimento... narra a história de duas famílias, uma nortista e a outra
sulista durante o período da Guerra da Secessão norte- americana (1860-
1865). Paralelamente à trajetória destas famílias, o filme faz uma
cobertura dos principais fatos da época: a guerra, a derrota do sul, o
assassinato do Presidente Lincoln e o surgimento da Ku-Klux-Klan. Numa
postura que reflete os tempos não muito politicamente corretos de então, o
autor se refere a esta instituição coma a "salvadora do sul." Os
personagens "negros" são apresentados de uma forma absolutamente
depreciativa: são brancos com o rosto pintado e uma postura infantil. Já em
A Cor... uma das exigências da autora é que o elenco fosse formado por uma
maioria de atores afro-descendentes.
[10] Um exemplo de personagem que tem uma ênfase maior no filme é o do
pastor da comunidade.
[11] Cf. Walker, pág. 77.
[12] Cf. Idem pág. 22
[13] Na tradução do livro utilizada aqui, este é o nome dado à personagem
conhecida no filme como Shug Avery.
[14] Cf. Idem, pág.174.
[15] É na trajetória do forte personagem de Oprah que o filme trata de
outro ponto bastante importante: o racismo. Antes orgulhosa e irascível,
Sofia desperta a ira dos brancos locais por não querer se sujeitar a ser
empregada da esposa do prefeito. E esta negativa acontece de uma maneira
bastante típica de sua personalidade: ao ser convidada para trabalhar, ela
blasfema (algo impensável para o protestantismo do Sul dos Estados Unidos).
Porém a situação não fica por aí: quando o prefeito vem tirar satisfações,
leva um soco. Como resultado, Sofia vai parar na cadeia. Os anos de
sofrimento fazem dela uma sombra do que antes fora. As marcas estão no
corpo e na alma. Liberta em condicional, Sofia é obrigada a trabalhar
justamente na casa do prefeito e a se sujeitar aos caprichos de sua mulher.
O ato impensado teve um alto preço.
[16] Cf. http://compos.com.puc-rio.br/media/gt10_luiz_vadico.pdf. Visitado
em 25/05/2011.
[17] Cf. Idem
[18] Cf. A Cor Púrpura. Dirigido por Steven Spielberg. Manaus:Videolar
distribuído pela Warner Home Video, 2004.DVD duplo (140 min.):son,
color.Legendado

[19] SCHMIDT, Daniel Augusto. Herdeiros de uma Tradição: uma investigação
dos fundamentos teológico- ideológicos do conservadorismo metodista na
crise da década de sessenta. 2008. 216 fls. Dissertação de mestrado
(mestrado em Ciências da Religião)- Curso de Pós- Graduação em Ciências da
Religião, Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2008.


[20] Cf. http://www.luziusschneider.com. Acesso em: 15 de maio de 2007.
[21] Aliás, com relação a temas como o racismo, este era um pensamento
comum nas igrejas negras norte americanas até o surgimento da luta pelos
direitos civis com Martin Luther King nos anos sessenta. Isso transparece
nas até mesmo nas letras dos spirituals cantados pelas congregações.
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