QUESTÕES DA REPRESENTAÇÃO NA MÚSICA ELETROACÚSTICA

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Alexandre Sperandéo Fenerich

QUESTÕES DA REPRESENTAÇÃO NA MÚSICA ELETROACÚSTICA

Dissertação apr esentada a Banca E xaminadora da Escola de Música da Universidade Federal do Rio de

Janeir o,

com o

exigência

parcial

para

a

obt enção do tít ulo de Mestr e em Música, sob ori entação do prof. Dr. Rodolfo Caesar.

Mestrado em Música Escola de Música da UFRJ Rio de Janeiro, 2005.

ii

RES UMO FENERICH, Alexandre S perand éo. Questões da represent ação na músi ca eletroacústica. Ori entador: Rod olfo Caesar. Rio d e Janeiro: UFRJ/EM, 2005. Diss. A m úsica eletroacústi ca trouxe para o d omínio musical todos os son s possíveis de ser em capturados por microf ones, possib ilitando uma rel ação com o r eal si milar à fotografia, uma representação acústica direta do real, ou ao menos a mais próxi ma disso. Essa possibili dade t rouxe questões

e

dicotomias,

musical/extra-musical ,

gerando

musical

e

um a

séri e

sonoro,

de

campos

aut onomia

da

polares: música

e

ref erenci alidade. O métod o usado para exami nar estes termos f oi a análise de obras cuja f orte l igação com este real é notória. Obr as

eletroacú sticas

não

possuem

notação,

sendo

fi xadas

dir etamente no suport e. Obr as acusmáticas não most ram a origem dos son s apresentad os, sendo realizadas som ente por via de al to-fal antes. Por con ta destas caracter ísticas a aproximação co m as obras escolhi das, t odas eletroacú sticas e acusmáticas, se dá somente por vi a da escuta, em um pro cesso analít ico que não garant e objetividade. O método analí tico é ent ão baseado n as idéias de Bachelard acerca do d evanei o poét ico, t ratado aqu i como um mo delo para a escuta musical.

iii

ABSTRACT

Eletroacoustic has brought to music all sounds that microphone can capture, thus establishing a relationship with reality comparable to photography - direct representation of reality, or at least close to it. That possibility revealed questions and dichotomies, thus generating polar fields: musical/extra-musical, music and sound, musical autonomy and refenciality. The method used is the analysis of works which have strong links with this ‘reality’. Eletroacoustic pieces are not notated, being directly fixed on tape or other media. Acousmatic pieces do not present the origin of sound, being performed by means of loudspeakers. Because of both characteristics, the approach to these works can only happen through listening, in an analytical process that cannot guarantee objectivity. The analytical method is therefore based on Bachelard’s ideas on poetic daydream, treated here as a model for musical listening.

iv

Fenerich, Alexandre Sperandéo Questões da Representação na Música Eletroacústica/ Alexandre Sperandéo Fenerich – Rio de Janeiro: UFRJ/E scola de Música, 2005. ix, 140 p. Or ientador : Rodolf o Caesar . Disser tação (mestr ado) – Universidade Federal do Rio de Janeir o, Escola de Música. Mestrado em música. Bibliograf ia: 125- 131. Anexos: CD, Análise, transcrição, lista de exemplos musicais.

1. Música Eletroacústica. 2. E scuta. 3. Representação em música. I . Rodolf o Caesar . II . Univer sidade Feder al do Rio de Janeiro (2005). Pr ograma de Pós-Gr aduação em Música.

v AGRADECIMENTOS A meus pai s, Maria Lui za e Geraldo , e a Ci dinh a, p elo apoi o sereno e pela confiaça que depositaram em meu projeto de linhas tortas. A Rodolfo Caesar, pela enorme paciência, pela generosidade e pela orientação minuciosa. Sobretudo pela amizade. A Lariss a Ps chet z, p ela suav e co nviv ênci a. A Virg ínia Flo res, companh eira de devaneio s. A minha tia Stela, pelo imenso amor. Ao s profes sores qu e me gui aram para es te (e não ou tro) caminho : Ig naci o de Campos, Den ise Garcia, José Aug usto Mannis . A Li liza e Lau, p elo cari nho. A Deni se Mi lfon t, p elas boas lo ucuras q ue me meteu. Ao s no vos e velhos ami gos pra vida int eira: Débora, An anay , Li lian , Bruno, Dud u, Valério, Tâni a, Carin a, Bernardo, Dario, Tiag o, Thomas, Po rres , Ni cole. Ao s primos Mariâng ela, Jo aman e Ricardo, que me acolh eram no Rio. A todos os ramos da minha família, com muita saudade. A CAPES, a Escola de Música da UFRJ, ao CDMC-Unicamp e ao INAGRM, i nsti tuições que deram su port e ao trabalh o.

vi

Para minha irmã Taynah, com muito amor.

vii

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- -

1

CAPÍTULO 1: INVEST IGAÇÃO DA ESCUTA --- ---- ---- ---- ---- --- 10 1.1. ANÁLISE DA MÚSICA ELETROACÚSTICA: UMA CONTRADIÇÃO EM TERMOS? ---------------------------------- 11 1.2. A MEDIDA DA ESCUTA ONÍRICA EM BACHELARD ----- 13 1.3. REPRESENTAÇÕES DO REAL ------------------------------ 17 1.4. UM ENCONTRO DE SUBJETIVIDADES -------------------- 21

CAPÍTULO 2: A CENA ACÚSTICA EM LA TENTATI ON DE SA INT ANTOINE--------------------------------------------------------------

24

2.1. APRESENTAÇÃO --------------------------------------------

25

2.2. ANÁLISE DA OBRA -----------------------------------------

28

2.3. UMA TEORIA DO SOM E SUA ‘ORIGEM’ ---------------

34

2.4.1. ESTRUTURA DA NARRATIVA --------------------------- 37 2.4.2. A ESTRUTURA DA NARRATIVA EM LA TENTATION DE SAINT ANTOINE-----------------------------------------------

40

2.5. CONCLUSÃO ------------------------------------------------

49

viii

CAPÍTULO 3: UMA MÚSICA -CENA ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- --- 51 3.1.1. APRESENTAÇÃO: AUDIO-CENA-------------------------- 52 3.1.2. EXISTE UMA PURA ‘MÚSICA ANEDÓTICA’? --- 56

3.1.3. SONORO E MUSICAL: SERÃO ESTES TERMOS EXCLUDENTES? ----------------------------- -------------

64

3.1.4. A ESCUTA REDUZIDA -----------------------------

69

3.1.5. A “MÚSICA PURA”: EXISTE UM SOM EM SI? --- 72 3.2. PAISAGENS SONORAS? ANÁLISES: C’ERA UMA VOLTA IL WEST, PRESQUE RIEN, DES MAINS INSOMNIAQUES CONDUIRONT LE COUPÉ ROUGE – ESTUDOS DA ESCUTA -- 78

3. 2.1. C’ERA UNA VOLTA IL WES T ----------------- ---- 79 3.2.2. PRESQUE RIEN -------------------------------------- 83

3. 2.3. DES MAINS INSOMNIAQUES CONDUIRONT LE COUPÉ ROUGE ----------------------------------------------- 96

3.3. CONCLUSÃO ------------------------------------------------- 105

CONSIDERAÇÕES FINAIS ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- 115 GL OSSÁRIO --- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- -- 121 BI BLIOGRAFIA ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- - 126

ix

DI SCOGRAFI A - ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- 132 FI LMOGRAFI A - ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- 132 SOFTWARE - ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- ---- - 132 ANEXO 1: ANÁLI SE E AUDIOGRAMA DO PRIME IRO SOM DE LA TENTATI ON DE SA INT ANTOINE - ---- ---- ---- ---- ---- ---- 133 ANEXO 2: T RANSCRIÇÃO E TRADUÇÃO DE LE DÉ SERT , PRIMEI RO QUADRO DE LA TENTATI ON DE SA INT ANTOINE –136 ANEXO 3: FAIXAS DO DISCO DE ÁUDIO EM ANEXO CONTENDO E XEMPLOS MUSI CAIS --- ---- ---- ---- ---- ---- ---- --- 141

1 INTRODUÇÃO

O caso da música concreta encerra, portanto, um curioso paradoxo. Se ela conservasse o valor representativo dos ruídos, disporia de uma primeira articulação que lhe permitiria instaurar um sistema de signos através da intervenção de uma segunda. Mas, com esse sistema, não se diria quase nada.Para se certi ficar di sso, bas ta imaginar o tipo de histórias que se poderiam contar com ruídos, mantendose suficientemente convicto de que seriam ao mesmo tempo compreendidas e emocionantes . Daí a solu ção adot ada de desnaturar os ruídos para fazer deles pseudo-sons, mas entre os quais é impossível definir relações simples, formando um sistema significativo já num outro plano, e capazes de formar a base de uma segunda articulação. Por mais que a música concreta se embriague com a ilusão de falar, ela apenas chafurda em torno do sentido. (Claud e Lévi-Strau ss, O Cru e o Cozido, p. 43)

2

A part ir da música concret a Em 05 de outubro de 1948 a Radio Télévision Française ( RTF) tr ansmitia um insólito Concert de Bruits ( concerto de ruídos), que teve

como

responsável

o

respeitado

Schaef fer. Neste Concerto

homem

de

rádio

Pierre

foram apresentados cinco Estudos de

Ruído (Études des bruits), de sua autoria: Étude Déconcertante (ou aux Torniquets), Étude Imposée (ou aux Chemins de Fer), Étude Concertante (ou pour Orchestre), Étude Composée (ou aux Piano), e Étude Pathétique (ou aux Casseroles). Foi o gesto inaugural da música concreta. Apesar de terem sido compostas no rádio e por ele terem vindo ao mundo, todas as obras foram englobadas dentro de um Concerto contendo em seu título o termo Estudo – uma referência ao gênero, típico da música instrumental radiofônica,



e

por

isso

ligando- se

se

ao

diferenciavam

domínio

da

de

música.

uma Mas

criação foram

realizadas inteiramente com “técnicas de rádio”: utilizavam como material apenas a gravação do som em supor te ( no caso, discos de acetato) e sua composição era feita exclusivamente a partir do e no som gr avado, assim como as obr as r adiofônicas gravadas - f ato totalmente inusitado no domínio da música e até então inédito. Depois

de

recolhidos

os

materiais

e

fixada

a

composição,

dispensavam a interpretação de signos musicais por um músico que seria o responsável por intermediar as idéias musicais escritas pelo c o m p o s i t o r a o p ú b l i c o , t o r n á - l a s r e a i s e i n t e l i g í v e i s 1. E s t a s m ú s i c a s nascentes eram então f eitas diretamente no suporte, concretamente, dispensando também a utilização de uma notação e trabalhando diretamente 1

nos

sons.

Naturalmente

a c u s m á t i c a s 2,

pois

eram

A afirmação de que as músicas concreta e eletroacústica dispensam a interpretação é falsa se se considerar que o intérprete está presente na produção dos sons gravados (Pierre Henry, por exemplo, é um grande percussionista e sua interpretação está fixada em sua música). A afirmação só é válida se se considerar a interpretação como aquilo que traz uma nova e constante renovação ao material musical fixado pela composição. 2 Ou seja, que escondem da visão as origens do som escutado (cf. Glossário).

3

compostas com material gravado em tempo diferido, ou seja, fixado e posteriormente usado e manipulado, e por isso não mostravam a or igem de seus sons. O rádio, este meio acusmático, parecia ser seu habitat natural. No entanto, em 18 de março de 1950 a música concreta “nasceria novamente”, agor a em um outr o ambiente socio- cultural a sala de concertos. Pois esta foi a data do “Primeiro Concerto de Música Concreta” que, como diz o nome, inaugur ou a nova pr ática nascida no rádio em um domínio próprio da música. Com este gesto Pierre Schaeffer e dois colaboradores - o engenheiro de som e inventor Jacques Poullin e o jovem compositor Pierr e Henry – iniciaram uma “celeuma musical”, pois trouxeram ao público da sala de concertos da Ecole Normale de Musique de Paris um espetáculo musical

totalmente

inusitado.

Primeiramente

não

havia

músico

algum tocando no palco, nem nada para ser visto. E m segundo lugar, er a uma música que continha sons das mais diversas origens em contextos impr ováveis: um trem que realiza diversas combinações rítmicas, um brinquedo inf antil que emite uma sinuosa melodia em diversas velocidades, um estranho piano que combina o som de seu ataque em direto com o revés, vozes repetidas alucinadamente ( em loops, diríamos – cf. Glossário) Nunca

a

dimensão

mecânica

formando ritmos entre si, etc.

havia

sido

colocada

com

tanta

contundência em um contexto musical – pois entrava não como sonoridade ou referência, mas como procedimento - e pela primeira vez acontecia um concerto com sons completamente extraídos da realidade – antes recusada como negativo do musical. Por terem tr azido esses elementos seriam músicas? Mas por que não o seriam? Foram feitas para o deleite da escuta, for am apresentadas em uma sala de concer tos. .. paraf raseando Schaef fer, “se não eram músicas, que outra coisa seriam?”

4

Mas a questão não se r esolve de maneir a assim tão simples: por tr azer em para o domínio do musical todo o sonoro estas obr as estariam pondo em evidência o próprio intr ínseco da música - pois esta

não

seria

afinal

uma

seleção

dos

‘sons

or ganizados’

em

oposição a sons “não-musicais”? Mas o que havia naquelas obras de ‘musical’? Justamente a intenção de or ganizar o sonoro trazido de f o r a p o r m e i o d a q u i l o q u e m ai s t a r d e S c h ae f f e r c h a m a r i a d e c r i t é r i o s perceptivos; de cr iar, por via desses critérios, estruturas mais pr opriamente abstr atas que fugissem da ref erencia à or igem dos sons empregados. A música concr eta fez portanto um caminho circular paradoxal,

pois

tinha

como

projeto

partir

de

sons

vindos

da

‘realidade’ para manipulá-los e reorganizá-los de modo que não remetessem a esse real. No entanto nem sempre este “mecanismo de defesa” foi acionado: nestas obras e na maioria das da primeir a fase da música concreta (que vai até 1958, quando Schaeffer compõe os Études aux objets) a maior parte dos sons permanece ref erencial: tr azem a presença explícita de suas fontes, do espaço em que f oram fixados ou do gesto que os ger ou. Mas, se há essa pr esença do ‘anedótico’ – ou seja, do indício referencial

no

som

gravado

(o

termo

‘anedótico’

é

de

Pierre

3

Schaef fer ) há também a constante pr eocupação em transcendê- lo, em organizar a música por via da materialidade do som e com isso distanciá- la

3

mais

e

mais

do

domínio

do

radiofônico.

Por

Cf. por exemplo a seguinte passagem: “Advertidos da disparidade dos objetos sonoros, tanto em função de suas inumeráveis fontes quanto de suas modulações caprichosas, nos damos conta que será melhor nos limitarmos aos objetos mais simples, menos indicativos, menos anedóticos [grifo meu], portadores de uma musicalidade mais espontânea embora mais simples” (Schaeffer, 1966, pp. 337-338). [“Avertis maintenant du disparate des objets sonores, aussi bien en fonction de leurs innomblables sources que de leurs modulations capricieuses, nous sentons qu’il sera bon de nous limiter aux objets les plus simples, les moins indicatifs, les moins anecdotiques, porteurs d’une musicalité plus spontanée encore que plus dépouilée.”] A passagem trata dos critérios para a seleção dos objets convenables (cf. Glossário) em que o termo anedótico aparece em oposição aos objetos mais simples e refere-se à referencialidade trazida pelos sons. Anedota, que em português pode ter um outro significado (refere a uma narrativa cômica – uma piada) aqui tem outro sentido e refere-se a uma narrativa menor, que acontece à margem dos eventos principais – acepção que aparece tanto no dicionário de português (Houaiss, 2001) quanto no de francês (Le Robert, 1998).

5

materialidade4

quero

indicar

aqui

as

particularidades

do

som

extraídas de uma escuta atenta somente ao que ele tem de sonoro, que refere a si mesmo e pr ocur a isolá- lo de tudo aquilo que ele indica:

fenômenos

tradicional



do

escuta

mundo, que

seria

linguagem, chamada

estruturas

da música

mais

tarde,

na

lidavam

assim

com

teoria

schaef feriana, de reduzida. As

primeiras

músicas

concretas

uma

ambigüidade: tinham ao mesmo tempo um compromisso com a utilização musical “de todos os sons” e com a busca de uma poética musical para a composição com este material. Trata-se de uma situação

dramática

que,

como

descr evemos

acima,

beira

ao

paradoxo, e que levou às reflexões de Pierre Schaeffer acerca da escuta reduzida e da busca de uma poética musical que lidasse somente com a materialidade deste vasto campo sonoro. Esta busca não se finalizou de imediato, e enquanto isso não ocorria a produção concreta continuou buscando o musical sem excluir o ‘anedótico’. Foi a depuração desta poética que acabou por criar

uma seleção:

a busca

de “sons convenientes”,

os objets

convenables (cf. também Glossário), ou seja, “os objetos sonoros mais aptos que outros a um emprego como objetos musicais”5 (Chion, 1983, p. 97) – sendo que um dos critérios para uma tal categorização é o de que os sons devem ser facilmente redutíveis, aptos a uma escuta reduzida – e para tal não devem ser anedóticos, ca rreg ados de sent ido ou d e af etiv idad e (i dem, ibi dem) . Esta e scol ha acabou por limitar a poética do próprio Schaeffer e de alguns de seus seguidores na dir eção de uma supr essão de elementos “extr amusicais” – termo que é usado aqui em seu sentido mais estrito, ou seja, os sons referenciais. Tal limitação na obra de Schaef fer se deu

4

Termo que aqui não se refere a um dos lados do binômio fundamental da morfo-tipologia schaefferiana forma/matéria, mas sim segundo a acepção a seguir. 5 “Sont dits convenables les objets sonores qui sembent être plus aptes que les autres a un emploi comme objet musical.” ( C h i o n , 1 9 8 3 , p . 9 7 )

6

na produção dos anos 60, concomitante à sua sistematização teórica, que suprimiu a ambigüidade polissêmica das obr as de sua pr imeira fase em favor dos Études aux objets, de 1958, que consistem em obras compostas exclusivamente a partir da escuta reduzida.6 A

teoria

schaef feriana,

portanto,

esquiva-se

de

tratar

poeticamente a escuta a partir de elementos ‘anedóticos’, e quando o faz busca isolá-los em favor da escuta reduzida. O ref erencial não entra em suas categorias musicais, aptas para o fazer musical: se aparecem

na

música

o

fazem

como

elementos

extra- musicais,

parasitas impr evistos, indesejáveis ou casuais. O foco da criação musical para o Schaef fer do Traité des Objets Musicaux deve estar, assim, neste intrínseco musical. Porém, a criação de imagens persiste no espírito do ouvinte da música acusmática. A

própria condição de escuta acusmática pode

levar a uma recriação imagética, e aqui estamos nos referindo a um conceito amplo de imagem, além da mera visualidade: tr ata- se

de

todo um corpo de sensações que podem ser despertadas pela escuta. Acusmático é o som que tem uma fonte imaginada para além de sua fonte real, o alto-falante. Por exemplo: o som de clar inete tocado por um alto-falante terá como fonte imaginada o clarinete, apesar de provir

do

alto-falante.

Mas

mesmo

sons

cuja

fonte

não

é

identificável também despertam a imaginação do ouvinte, que recria ou

imagina

esta

fonte.

Denis

Smalley

formula,

para

esta

característica do som acusmático, o conceito de source-bounding, ligação à fonte: “As ligações tocam todo o tipo de matéria e de fontes sonoras naturais ou culturais, que são provenientes da ação humana ou não. As ligações às fontes podem ser reais ou fictícias;

6

P ar a u m a an ál i s e p o rm en o ri z ad a d e st e as p ect o n a o b r a sch a efferi an a, cf . C A E S A R , R o d o l fo : A E scu t a co m o o b j et o d e p es q u i sa . S i t e n a i n t ern et : http://acd.ufrj.br/lamut/lamutpgs/rcpesqs/escupes.htm, acessado em 3-9-2003.

7

e m o u t r o s t e r m o s , e l a s p o d e m s e r e l a b o r a d a s p e l o o u v i n t e . ” 7 (Smalley, 1999, p.73). A e s c u t a p o r t a n t o f o r m u l a i m a g e n s , r e p r e s e n t a ç õ e s , n ã o importando se estas se ref erem ao mundo ou se são compostas por formas menos imediatamente associadas ao r eal.

O tema da investigação; o método A questão trazida pela música concreta, a da união entr e o som musical, abordado pela via de sua materialidade, e o som r efer encial – mesmo quando este é transfor mado ou recr iado -

é o que

abordaremos neste trabalho. Daremos ênfase à r epresentação do real, ou seja, às maneir as como esta música remete ao real. Partiremos de duas questões: como se efetua, no imaginár io do ouvinte, a criação de imagens remetentes a uma realidade acústica, a um espaço físico real em que se possa ‘ estar’? E de que formas tal música lida com a tensão entre seu aspecto r epresentativo e seu aspecto ‘musical’ – este tomado no sentido schaef feriano, ou seja, naquilo que constitui a organização interna entr e seus elementos sonoros constituídos? Para uma investigação desses temas analisarei obras que, na minha opinião, melhor traduzem a tensão musical/extra- musical, ao mesmo

tempo

em

que trazem

para

o

tecido sonoro

diferentes

pr opostas de manuseio de r efer ência ao real. Nossa investigação vai se guiar portanto a partir do sensível, da apr eensão que tenho dessas obras,

mas

sua

análise

ser á

balizada

pelos

temas

apontados.

Tentar emos extrair da audição das obras a maneira como estas criam um espaço acústico na imaginação. Como se dá o jogo repr esentativo nestas músicas? Quais são seus objetos r etór icos, seus limites de representação? Estas são as 7

“Les liaisons à des sources peuvent touchent tous les types de matière et de source sonores naturels ou culturels, qui’il proviennent de l’action humaine ou non. Les liaisons à des sources peuvent être réelles ou fictives; en d’autres termes, elles peuvent être élaborées par l’auditeur” (Smalley, 1999, p.73).

8

pr eocupações iniciais da investigação. Outro viés da análise vai se ater em como articulam o dualismo musical/extra- musical da teoria schaef feriana; como esse ‘ campo musical’ se manifesta em meio aos sons r efer enciais. Ocioso dizer, portanto, que as obras musicais aqui estudadas possuem vínculo direto com a tradição iniciada em 05 de outubro de 1948. O

primeiro

capítulo

vai

cuidar

então

de

uma

questão

metodológica: como realizar a análise de obras que não são fixadas por via da escrita musical, que nos chegam exclusivamente pela escuta? No domínio investigativo que estamos propondo – o da imaginação a partir do som – uma análise objetiva se mostr a infrutífer a. É preciso antes desvendar de que maneira

os sons

atingem o imaginár io, que imagens despertam, e par a tal é preciso fazer uma investigação deste imaginário - pois tais músicas remetem antes a uma “realidade de ficção” por via da memória que o ouvinte tem dos sons da obra em contextos reais, uma imagem que pr ovém do real mas que dele se distingue. Par a tr açar um percurso desta pesquisa r ecor remos ao pensamento de Gaston Bachelard na sua investigação do devaneio e na sua descrição da imagem poética como um ponto inicial do devaneio. Efetuamos uma “comparação ar riscada” entre a imagem poética e a imagem sonor a em obr as acusmáticas e com isso nos apr opriamos de seu método. O

segundo

capítulo

vai

finalmente

se

ater

à análise

do

pr imeiro movimento de La Tentation de Saint Antoine, Le désert, de Michel

Chion.

Obra

que,

por

r epresentar

tão

nitidamente

personagens vindos do romance homônimo de Flaubert, pode ser vista como oposta à música concreta, mas que compartilha com ela a mesma ambigüidade com relação à representação do r eal versus musical. E la também se associa dir etamente aos grupos de pesquisa schaef ferianos: seu autor é um importante conhecedor da obra de Pierre

Schaeffer

e

é

um

continuador

de

sua

linha

teórica.

9

Curiosamente, o pr óprio Schaef fer nela atua emprestando sua voz ao personagem principal, Santo Antonio. Esta

obra

distingue-se

das

demais

estudadas

no

capítulo

seguinte por r epresentar uma cena teatral em que personagens atuam. Como estes apar ecem ao ouvinte? Esta é a questão central da análise. O terceiro capítulo, por sua vez, trata de obras cujo foco é a representação do r eal, mas que não apr esentam personagens atuando em um cenário: deslocam a audição par a dentro de uma cena acústica. A representação não está ausente do cenário, como na música de Michel Chion. Par tiremos de uma breve análise do Étude aux chemins de fer, de Schaef fer, par a salientar a escuta bif urcada entre musical e extra- musical na música concreta. Em seguida, duas obras musicais centrais serão abor dadas: Presque Rien, de Luc Ferrar i, e o primeiro movimento de Douze melodies acousmatiques, Des mains insomniaques conduiront

le

coupé rouge,

de Denis

Dufour – obras que representam uma cena acústica r ealista ao mesmo tempo em que tecem um caminho pela mater ialidade do som. Também analisaremos uma cena do filme Era uma vez no oeste, de Sergio Leone, pois sua constr ução assemelha-se com a das músicas estudadas e contribui para uma elucidação dos nossos temas.

10

Ca pítulo 1 INVESTIGAÇÃO DA ESCUTA

Em A Tard e de um Faun o, de Mallarmé, o “personagem” que monologa pergunta-se se existe na natureza, na paisagem sensível, um vestígio possível de seu sonho sensual. A água não testemunharia a frieza de uma das mulheres desejadas? O vento não se lembra dos suspiros voluptuosos da outra? Se é preciso afastar essa hipótese, é porque a água e o vento nada são em relação ao poder de suscitação pela arte da idéia da água, da idéia d o vento (...) Po r meio d a visibilidade do artifício, que é também o pensamento do pensamento poético, o poema ultrapassa em poder aquilo de que o sensível é capaz. (Alain Badiou , Pequen o Ma nual de Inestética, p. 35)

11

1. 1. Análise da Música Eletroacúst ica: uma contradição em termos? O trabalho

de composição de todos

os autores que aqui

estudaremos - todos ligados, em pensamento e obra, à tradição schaef feriana - é totalmente exper imental, ‘feito concretamente’, no e a partir do som fixado em suporte [ver Glossário], baseado inteiramente compositor

na da

escuta música

e

sem

mediação

eletr oacústica

de

ligada

uma a

notação.

esta

O

tradição

é

responsável pelos sons de sua obra, e pode controlar desde a microf onação até a montagem: o som é considerado em todas as suas propriedades

sensíveis



num

gesto

composicional

que

não

pr ivilegia o f azer , mas o escutar. Não importa aqui como se chegou ao resultado, mas o que lá está, e que nos toca, antes de tudo, pelos sentidos. No livro L’ art des sons fixés ou La Musique Concrètement Michel Chion descreve este fazer experimental: Par a ten t armos ex empl ificar aq uil o q ue rep res enta a ‘ou tr a co is a’ q ue so men te a s on o-fi x ação p ermit e atin g ir, p ermita -no s e v ocar u ma p as sagem d e no s so mel o drama eletr oacúst ico A T entaçã o d e S a n to An t ôn io : t rata-s e d e u m cu rt o mo me n to do q u ad r o in ti tulado O N ilo , o nd e Antô nio, e sgo tad o p or cau sa d e su a s alu c in açõ e s, d ei ta-se e ado rmece. No in ício de seu so nh o escu ta -se um ama rrotar /desam arrota r do s om, n u m p roc esso d e toma d a em massa, u m estali d o de fru -fru 8 mu ito p a rticul ar qu e uma p artitu ra ser á inc apaz d e n ota r e u m a in te rp reta ção , s eja lá p o r q u al fo rma de rea lizaçã o, ser á inca p az d e resti tu ir s enão p o r ecl ip ses. Trata -se de u m moment o d e m etamor fo se o n de o crepit ar d is creto d o fog o sim bo liza n do o acampa men to ru dime n tar d e An tô nio se tran s fo rma em u ma espéc ie de on da r ítmica meio líq uid a, mei o só li d a. At é mesm o n ós sería mo s in cap aze s de r efazer esta metamo rfose h oje e m dia, mas o q ue imp orta é que j á está feita , e q u e está na ob ra (.. .). (Ch i on , 1 99 1 , p. 9 ) 9

8

“ru m o r p r o d u zi d o p el o ro çar d e fo l h as o u d e t eci d o , esp ec i al m en t e d e sed a. ” D i ci o n ári o H o u ai ss, v ersão el et r ô n i ca; v erb e t e f ru -f ru ; 2 0 0 1 . 9 “Pour tenter de faire sentir ce que represente cet ‘autre chose’ que la fixation des sons seule permet d’atteindre, nous nous permettrons d’évouquer un passage de notre mélodrame électroacoustique La Tentation de Saint-Antoine: il s’agit d’un court moment du tableau intitule Le Nil, ou Antoine, épuisé par ses hallucinations, s’allonge et s’endort. Au début de son rêve, on entend un froissement/défroissement du son, un processus de prise en masse, un grésillement froufroutant très particulier qu’une partition serait toute à fait incapable de noter et une interprétation, par on ne sait quel moyen d’ailleurs, inapte à restituer autrement que par éclipses. Il s’agit d’un moment de métamorphose où le crépitement discret du feu symbolisant le campement rudimentaire d’Antoine devient une sorte d’onde rythmique mi-

12

O fazer do som por tanto se per deu na seqüência de tentativas: só resta a escolha final do compositor , aquilo que ficou gravado em suporte – o som que nos chega é a própria obra, sem a intermediação de intérpr etes ou de uma possível notação, da qual se possa deduzir uma

estrutura.

E,

portanto,

a

análise

de

uma

tal

obra

deve

necessariamente acontecer a partir da escuta, no tempo da escuta, sem a mediação de qualquer tipo de escrita que não a f ixada em suporte - para uma posterior r eorganização dos mecanismos de sua constr ução, feita fora deste continuum. Este não é, aliás, o caminho i n v e r s o d o c o m p o s i t o r ao r e a l i z a r s e u t r a b a l h o : n ã o s a b e m o s q u a l f o i o seu percurso, pois esse processo se perdeu. É antes a expressão desta vontade de “olhar para o interior das coisas”; de “olhar o que não se vê, o que não se deve ver” (Bachelard, 1990, p.7), a qual tr ansf orma a visão “numa violência (.. .) [ que] detecta a f alha, a fenda, a f issura pela qual se pode violar o segredo das coisas ocultas” ( idem, ibid.) . E esta arte experimental, a qual deixa poucos vestígios sobr e seus mecanismos, guarda um segredo fascinante que aguça uma curiosidade da “criança que destrói seu brinquedo para ver o que há dentro” (idem, ibid., p.8). Pois é esta a violência: f ragmentar, escutar r epetidamente, escutar de per to, esmiuçar seu funcionamento expressivo. Pois para se reter sua mecânica é pr eciso estilhaçar sua unidade e hierarquizar valores. Mas uma análise puramente pragmática, atenta somente às descrições de funcionamento, corre o r isco de se tornar expressão de uma mera “necessidade de destr uir e de quebrar ” (idem, ibid., p.8) . Aqui

se

pretende

buscar

algo

além

daquilo

que

se

oferece

imediatamente à visão, fato psíquico que supre uma vontade ávida de realidade, mas que é estéril e de vida curta. Busca-se, além disto,

liquide, mi-solide. Nous-même serions incapable de refaire cette métamorphose aujourd’hui, mais qu’importe puisque c’est déjà fait et que c’est dans l’oeuvre (...).” (C h i o n , 1 9 9 1 , p . 9 )

13

suas f ormas de evocação de uma realidade, de condução, a partir do ir real, a um r eal: de como ela for mula suas imagens.

1. 2. A Medida da Escuta Onírica em Bachelard A partir deste ponto irei recorrer mais sistematicamente à obr a de Gaston Bachelard para descrever esta condição de escuta, a de uma escuta onírica, a partir de sua série de obr as dedicadas ao estudo do imaginário poético. Em A Poética do Devaneio, por exemplo, o autor traça um percurso a partir da leitura de textos poéticos a fim de estabelecer os limites do devaneio através da manifestação poética. E se a imagem poética, conforme mostra Bachelard, ressoa em um vasto universo sensorial, acreditamos que também a música acusmática, por tocar em objetos sensíveis à percepção, pode fazê-lo. E sta é uma compar ação arr iscada que espero poder por agora traçar. Par a tal ir emos esmiuçar o trajeto analítico de Bachelard pelo devaneio, substância da escuta onír ica. A música acusmática [ver Glossário], então, lida com objetos cuja natur eza se assemelha à da imagem poética, pois se baseia, sobretudo, na escuta do som fixado em suporte, o qual é admitido em todas as suas propr iedades sensíveis. E sta caracter ística leva a uma total aber tura semântica, pois o sentido do som não é mediado por uma notação. O compositor de música eletroacústica, pr imeiro ouvinte dos materiais

que

escolheu,

volta- se para

sua

própria

percepção e dá aos sons um sentido par ticular. Ele abandona, portanto, o auxílio de abstrações, distantes que são da escuta, para fiar-se somente em seus ouvidos. Uma tal música cujo “inventár io sensor ial

é

inesgotável

e

i n f i n i t o ” 10 ( C h i o n ,

1991,

p.9)

torna

ineficaz uma análise que se baseie em critérios objetivos, criando no 10

“(...) le propre de la musique des sons fixés est justement d´offrir au compositeur, par l´enregistrement, la disposition et la maîtrise d´un espace interne à l´oeuvre.” ( C h i o n , 1 9 9 1 , p . 9 ) .

14

observador a mesma per plexidade com a qual se deparou Bachelard ao analisar a imagem poética: Fiel aos nossos hábitos de filósofo das ciências, tínhamos tentado considerar as imagens fora de qualquer tentativa de interpretação pessoal. Pouco a pouco, esse método, que tem a seu favor a prudência científica, pareceu-me insuficiente para fundar uma metafísica da imaginação. Por si só, a atitude ‘prudente’ não será uma recusa à dinâmica imediata da imagem? (Bachelard, 2000, p.3)

O devaneio poético em Bachelard é então uma atividade de uma consciência que se “distende, se dispersa e, por conseguinte, se obscur ece” (Bachelard, 2001, p.5) – e que portanto não é mais uma “consciência”. Analisar um devaneio é uma atividade paradoxal, pois a análise poética per tence ao signo de animus: a alma humana bifurca-se

em

um

feminino

e

um

masculino,

anima

e

animus

(Bachelard, 2001, p.58) , e nessa bifurcação o devaneio poético ressoa em anima, mas o fazer poético é atividade de animus: “o poeta conserva muito distintamente a consciência de sonhar par a dominar a tarefa de escrever seu devaneio” (Bachelard, 2001, p.6). Não é possível efetuar mos a separação entr e sujeito e objeto numa análise de uma imagem poética: “ao nível da imagem poética, a dualidade

do

sujeito

e

do

objeto

é

irisada,

reverberante,

incessantemente ativa em suas inversões” ( Bachelard, 2000, p.4). Pois em devaneios do cosmos o sonhador entra no terreno da fusão pr ofunda entre a consciência de si e do mundo; num devaneio do cosmos o mundo tor na-se o sonhador . Em imagens que remetem a uma lembrança prof unda dos elementos natur ais, como do fogo, da água, do ar e da terra, pode-se tocar nesta unidade pr imor dial da consciência, pode- se atingir o complexo imaginação/lembrança dos pr imeiros devaneios da inf ância. “Os primeiros interesses psíquicos que deixam

traços indeléveis em nossos sonhos são

interesses

or gânicos. (.. .) É na carne, nos órgãos, que nascem as imagens materiais primordiais. ” (Bachelard, 1998, p.9). É no corpo que ressoam as lembranças primordiais.

15

Na inf ância os devaneios são super lativos, atestam a f orça da novidade. Vão ser

mais tar de pontos essenciais do

círculo de

imagens que o sonhador possui. Nesse sentido, a poesia toca esses pontos escondidos da imaginação, evoca uma vida já vivida e tr az de volta impr essões profundas, memórias essenciais das formas do mundo, registr o das sensações primeiras da água, do calor, da casa, do lago; das imagens essenciais. Pois Em sua primitividade psíquica, Imaginação e Memória aparecem em um complexo indissolúvel. Analisamo-las mal quando as ligamos à percepção. O passado rememorado não é simplesmente um passado da percepção. Já num devaneio, uma vez que nos lembramos, o passado é designado como valor de imagem. A imaginação matiza desde a origem os quadros que gostará de rever. Para ir aos arquivos da memória, importa reencontrar, para além dos fatos, valores. (Bachelard, 2001, p. 99)

O sonhador que se abre par a as imagens da poesia é, então, tocado por imagens do mundo, e afinal, pelas suas imagens de um mundo já vivenciado. A per cepção de si mistura-se e conflui com a percepção que tem do mundo. Não há a dúvida metódica, terreno de animus, no campo do devaneio: Para duvidar dos mundos do devaneio, seria preciso não sonhar, seria preciso sair do devaneio. O homem do devaneio e o mundo de seu devaneio estão muito próximos, tocam-se, compenetram-se. Estão no mesmo plano de ser; se for necessário ligar o ser do homem ao ser do mundo, o cogito do devaneio há de enunciar-se assim: eu sonho o mundo; logo, o mundo existe tal como eu o sonho. (Bachelard, 2001, p. 152)

Por vezes basta um só estímulo da percepção para despertar todo um corpo de afetos: O odor musgoso e sonolento das velhas moradas é o mesmo em todo lugar, e muitas vezes, (...) bastava-me fechar os olhos em alguma casa antiga para logo me reportar à sombria vivenda dos meus ancestrais dinamarqueses e reviver assim, no espaço de um instante, todas as alegrias e todas as tristezas de uma infância habituada ao suave odor, tão cheio de chuva e de crepúsculo das antigas moradas” (Milosz apud Bachelard, 2001, p. 132)

Mas aqui o autor toca em um ponto central para a nossa investigação

em direção à música acusmática: “O odor permanece

16

na palavra” (idem, ibidem, p.133) – a palavra restitui ao sonhador o devaneio particular: mas ela não é singular; sendo signo, permanece aberta

ao

sonhador

para

este

apropriar -se

dela

conforme

sua

individualização particular. Apesar de uma tal distinção com r elação à palavra a associação com o “mundo já vivido” ainda se estabelece, pois embor a Bachelard ocupe-se essencialmente de textos poéticos, fato que se observa em suas terminologias, seu conceito de devaneio poético parece abranger todas as áreas: É nessa linha que Novalis pôde dizer claramente que a liberação do sensível em uma estética filosófica se fazia conforme a escala: música, pintura, poesia. Não tomaremos à nossa conta essa hierarquia das artes. Para nós, todos os píncaros humanos são píncaros. Os píncaros nos revelam prestígios de novidades psíquicas. (Bachelard, 2001, p. 179)

Como atuar iam então formas de arte que utilizam objetos para a percepção, como o são as artes plásticas, o cinema ou a música? “A ar te do pintor é a arte de ver belo” ( Bachelard, 2001, p.175). E ste belo é justamente o ‘olhar de devaneio’, olhar de anima capaz de desper tar onirismos arcaicos, em que “o sonhador acr edita que entre si e o mundo há uma tr oca de olhar es, como no duplo olhar do amado e da amada” (Bachelard, 2001, p.175). Mas “se o pintor deve pintar nessa visão mais elevada, o poeta se limita a proclamá- la” (Bachelard, 2001, p. 178). E então o quê difere o olhar de sonho sobre, por exemplo, uma paisagem e sobre uma paisagem pintada? Simplesmente esta seleção, este substr ato que o pintor recolheu de seu olhar liso sobre o mundo, ou seja, do recorte que foi executado com a destreza de animus, mas que foi investigado em um devaneio, sob anima. Portanto, ao nos deparar mos com uma obra que remete a objetos do mundo, ou seja, que representa o real,

adentramos em

um devaneio or ganizado por alguém, que por sua vez conduz a outros devaneios: uma realidade onírica dentro de outr a, sendo a obra mais um f enômeno a ser vivido.

17

1. 3. Represent ações do real Assim é que neste trabalho minhas análises vão seguir uma tr ilha bipartida: por um lado, há o ato de desconstrução violenta para esmiuçar os mecanismos expressivos das obras escolhidas - e a pr ópria seleção destas obr as já indica uma busca pragmática: todas representam a realidade acústica ‘ externa’ à música, o ‘mundo’ . Os mecanismos retóricos’ ,

destas as

formas

técnicas

de

representação,

empregadas

em

seus

associação

‘objetos com

a

expressividade buscada e alcançada – este é o estudo pragmático, uma tentativa de teorização de um procedimento musical que vai contra o pensamento schaef feriano no que diz r espeito a uma escuta reduzida – conceito ao qual iremos permanentemente nos referir neste

trabalho,

como

um

negativo

da

escuta

que

estamos

pesquisando. Pois, segundo ainda Michel Chion em uma obra ‘par a s e l e r ’ o T r a i t è d e s O b j e c t s M u s i c a u x d e S c h a e f f e r 11, o b j e t o s o n o r o é “todo o fenômeno e evento sonoro percebido como um cor po, um todo coerente, e compr eendido a partir de uma escuta reduzida que visa a si mesmo, independentemente de sua proveniência ou de sua s i g n i f i c a ç ã o ” 12 ( C h i o n ,

1983,

p.34)

– sendo

escuta

reduzida a

“atitude de escuta que consiste em escutar o som por ele mesmo, como objeto sonoro, abstraindo de sua pr oveniência r eal ou suposta, e d o s e n t i d o q u e e l e p o s s a p o r t a r ” 13 ( C h i o n , 1 9 8 3 , p . 3 3 ) . P o r t a n t o , objeto sonoro decorre de um método de escuta ( a escuta reduzida), o qual busca excluir do sentido do som as referências externas à sua materialidade (cf. glossário). Iremos freqüentemente abordar este método, mas ele é alheio à compreensão das obr as que selecionamos, 11

Trata-se do Guide des objects sonores – Pierre Schaeffer et la recherche musicale. “On appelle object sonore tout phénomène et événement sonore perçu comme un ensemble, comme un tout cohérent, et entendu dans une écoute réduite qui se vise pour lui-même, indépendentemment de sa provenance ou de sa signification.” ( C h i o n , 1 9 8 3 , p . 3 4 ) 13 L’ecoute réduite est l’attitude d’ecoute qui consiste à écouter le son pour lui-même, comme object sonore em faisant abstraction de sa provenance réele ou supposée, et du sens dont il pout être porteur”. ( C h i o n , 1 9 8 3 , p . 3 4 ) 12

18

centradas que são em uma “repr esentação do real” por via do som. Ele se aplica bem a uma análise desta materialidade, e vamos utilizá-lo

(como

se

utiliza

uma

ferramenta)

para

explicitar

constr uções musicais que não sejam aquelas de referência ao mundo exterior, mas que se atenham à materialidade do som. Como

veremos,

esta

oposição

entre

a utilização

de

sons

“musicais” e “anedóticos” é muito comum desde as primeiras obr as da música concreta (Étude aux chemins de fer, Étude aux casseroles, etc – obras de P. Schaef fer realizadas ainda em sulco fechado (cf. glossário) em 1948 – sendo que o pr imeiro Étude parte de sons que se ref erem a um tr em em movimento, fazendo-os escutar como ritmos abstratos): a abertura para a utilização de todos os sons possíveis de serem capturados por um microfone possibilita este duplo viés de composição. Pois a gravação, apesar de não ser o real, é, conforme descreve Barthes com r elação à fotografia, um análogo perfeito

da

tr ansmite

realidade aquilo

acústica

que

(Barthes,

captou,

e

1990,

portanto

p.12).

A rigor,

proporciona

uma

representação direta do real. Porém, não se trata, neste trabalho, de analisar o “gr au de realismo” que um som possa ter , por ter sido fixado do ambiente. Não se trata aqui de irmos à direção das f ontes reais,

mas

de

um

real

imaginário

ou

imaginado,

de

uma

reconstrução. Por outro lado, vale dizer de qualquer for ma que o som gr avado de uma fonte não é o som r eal desta fonte, tal como escutamos in loco com nossos ouvidos. Para F. Bayle, trata-se de uma imagem de som, ou i- son – “uma r epresentação fixada em suporte”

(Garcia,

1998,

p.46).

Pois

mesmo

o

som

dito

“documental”, fixado aparentemente com um mínimo de intervenção, possui uma sintaxe, é feito sob uma técnica – é uma constr ução realista, pois, como analisa P. Schaef fer, a gravação do som em suporte resulta em um objeto muito distinto da escuta do mesmo

19

pelos ouvidos: o espaço tr idimensional se perde, sendo planificado em um espaço monodimensional ou bidimensional; o som direto e o som reverberado, em uma sala, são fundidos em um mesmo plano – dificultando a localização da fonte; e a seletividade da escuta é destruída, pois o micr ofone capta todos os sons, e estes estar ão mais ou menos presentes conforme sua amplitude, no momento em que sensibilizam sua membr ana. (Schaef fer, 1966, pp. 74-79) A escuta seleciona os sons que quer ouvir, enquanto que o microfone os amálgama indistintamente, conf orme suas pr opriedades acústicas. Para r estituir , portanto, as condições de uma escuta r ealista, o técnico de gravação e de mixagem utiliza-se de uma sér ie de pr ocedimentos estabelecidos com a prática e que constituem uma técnica.

Por

exemplo:

não

se

aceita,

numa

gravação

de

uma

or questra, e por conta da tradição de escuta da mesma, que um dos seus instr umentos seja mixado a partir de uma fixação em close, com o micr ofone pr óximo à fonte – a imagem acústica neste caso não seria realista. Mas é impossível recuperar completamente, na gravação, o ambiente sonor o captado pelos ouvidos. O que ocorr e é que, após uma tr adição de registro para uma repr odução posterior a f im de restituir uma perf ormance instrumental/vocal, ou seja, a gravação comercial e sua massiva distribuição, criou-se um acor do tácito entre gravador as e ouvintes, os quais aceitam o som desta gravação como r eprodução fiel de uma realidade acústica, assim como se aceita a fotografia ou o cinema como reproduções da realidade visual. Mas para que esta identidade se estabeleça na percepção algumas regras for am f ixadas, e a utilização do aparato de gravação é

feito

de

uma

determinada

forma,

em

detrimento

de

outras

possíveis. A música concr eta fez uma investigação da fixação sonora contrária à que acabamos de descrever, e aqui retomamos a idéia de

20

que o compositor desta música tem uma atitude experimental frente aos aparatos de fixação, r eprodução e transfor mação do som. Ocorre que, na composição feita em estúdio, a relação do compositor com os aparelhos que manipula - pelo menos dos compositores ligados à tr adição que estamos estudando - nem sempr e é de previsibilidade entre o gesto de manipulação e o r esultado que a máquina lhe of erece aos sentidos. Pois “apenas uma e a mesma operação no equipamento de estúdio pode determinar transformações tanto na base do ‘mater ial’ quanto em eventos mais estr utur ais. Alterações em apenas um dos parâmetros acústicos pode abr ir possibilidades p a r a a m b o s o s n í v e i s ” 14 ( C a e s a r , 1 9 9 2 , c a p . 1 ) : a i n t e r f a c e d e s t e s aparelhos não tem relação com a percepção, mas com parâmetros acústicos, os quais não são univer sos corr elatos. Assim, Rodolfo Caesar , em sua tese de doutorado, discute a figura do ‘compositor inventor’, atado a um compromisso pela écriture – “em que todos os eventos

sonoros

são

supostamente

c o m p o s i t o r ” 15 ( C a e s a r , 1 9 9 2 , c a p . 1 ) ,

pré-determinados

pelo

distinguindo-o do ‘ compositor

descobridor’ – o qual não espera uma r elação linear entre seu gesto e a resposta dos aparelhos. Seguindo esta trilha, o ‘compositor descobridor’ tem uma atitude exper imental frente a toda a rede de aparatos de manipulação sonora, desde o microf one ao computador, e neste sentido, segundo as palavr as de M. Chion, “cada som nascido de outro, no curso das operações de estúdio, é um som n o v o ” 16 ( C h i o n , 1 9 9 1 , p . 2 3 ) : c a d a s o m n a s c i d o d e s t e f a z e r i m p r e c i s o e entr emeado de descobertas surgidas ao acaso é possível de ser utilizado; por vezes, um r esultado inesper ado pode se tornar a própria obra.

14

“(...) only one and the same operation with studio equipment can determine transformations both in raw ‘materials’ and in more structured events. Alternations in just one of the acoustic parameters can open up possibilities at either level.” ( C a e s a r , 1 9 9 2 , c a p . 1 ) 15 “(...) where all sounding events are supposedly pre-determined by the composer.” ( C a e s a r , 1 9 9 2 , c a p . 1 ) 16 “(...) chaque son né d’un autre, au cours des opérations du studio, est un son nouveau.” ( C h i o n , 1 9 9 1 , p . 2 3 )

21

1. 4. Um encont ro de subjet ividades Para uma inter pretação de uma realidade acústica, portanto, o compositor não precisa necessariamente recorrer a sons oriundos diretamente desta realidade: todos os sons que produz podem ser contextualizados, conf orme o sentido que adquiram na obra. Não se tr ata, desta f orma, de uma procura por um som “natural” – não nos interessa uma busca das fontes reais dos sons, mas de suas fontes imaginadas. Minha análise vai tentar descr ever as representações do real em obras que, de alguma f orma, se propõem a isso; as formas e a diversidade desta representação. Como se dá esta construção no imaginário do ouvinte? Que mecanismos da imaginação a escuta acusmática aciona? Mas esta investigação não está isenta do risco: música e ouvinte aqui são como cúmplices, um construindo o outro, um formando o outro. Uma objetividade aqui é um engodo, pois se trata de uma relação de cumplicidade entre o imaginário do ouvinte e as imagens da música; é como um encontro de subjetividades; é como se fosse a escuta do psicanalista frente ao paciente: “não pode, como Ulisses amarrado ao mastro, ‘gozar do espetáculo das sereias

sem

riscos

e

sem

arcar

com

as

conseqüências’

[...]”

(Barthes, 1990, p. 226) . Mas como inter pretar a escuta, estando mergulhado nela? “O quê é assim revelado é uma escuta não mais imediata, mas defasada, tr ansplantada ao espaço de uma outra navegação ‘feliz, infeliz, que é a narrativa, o canto não mais imediato, mas narr ado’ . A narr ativa, construção mediata, r etar dada: é o que pr atica Fr eud ao descr ever seus casos. ” [Neste sentido é que] “(... )o texto freudiano está carr egado de imagens” (idem, ibidem). Nosso trabalho é, por tanto, além de uma descr ição, uma constr ução nar rativa a posteriori que se fia na memória e que é

22

eivada de imagens as quais falam, como os sons, diretamente aos sentidos. Pois o som considerado em suas pr opriedades sensíveis jamais será entendido, em uma escuta onírica, de f orma impessoal, através de uma ‘atitude pr udente’, como seria próprio em uma análise científica. O som acusmático, da mesma f orma que a imagem poética, leva a devaneios diversos que, embora num primeir o estágio sejam reais e constituam um campo inter-subjetivo comum, são em última análise par ticulares a cada ouvinte. Tais devaneios são impulsionados por caracter ísticas próprias ao som, impressas no suporte e, por tanto, imutáveis; ocorrem no imaginar sua suposta fonte, de sua trajetór ia ou do espaço em que acontece. Tomemos

então

uma

das

caracter ísticas

da

música

eletroacústica, a de “ofer ecer ao compositor, pela gravação, o a r r a n j o e o d o m í n i o d e u m e s p a ç o i n t e r n o à o b r a ” 17 ( C h i o n , 1 9 9 1 , p.50). Ora, espaço interno de um som gravado é aquele que fica impresso no suporte – em oposição a um espaço externo, que leva em conta as condições de sua difusão. São exemplos de parâmetros de um espaço inter no os diferentes planos de presença ou ausência, os graus de reverberação e a r epar tição do som entre os canais (panor âmica). Porém, estes não passam por uma percepção objetiva, mas subjetiva ou inter subjetiva, evocando conceitos de significado pouco

preciso.

Critérios acústicos cor relatos,

como intimidade,

definição (ou clar eza) e presença (ou textura) , usados par a definir a qualidade

acústica

de

uma

sala

de

concertos,

são

de

difícil

mensur ação, pois dependem de uma apreciação subjetiva que é geralmente aferida atr avés de questionários estatísticos r ealizados em ouvintes, em uma metodologia que nem sempre exclui o gosto e s t é t i c o d o s c i e n t i s t a s e m s e u s r e s u l t a d o s 18. 17

“(...) le propre de la musique de sons fixés est justement d´offrir au compositeur, par l´enregistrement, la disposition et la maîtrise d´un espace interne à l´oeuvre.” ( C h i o n , 1 9 9 1 , p . 5 0 ) 18 cf. Beranek, 1996, p. 478.

23

Uma escuta que transite por estes parâmetr os r emete a lugares precisos no imaginário do ouvinte, conduzindo a devaneios de sua relação com o mundo. Assim é que um som sem reverberação, médio- agudo, intenso pouco a pouco e de pouca densidade de massa pode soar para mim ameaçador e hostil; um tal som não existe nem na natureza nem no cotidiano: a ausência de reverberação traz a ele uma ar tificialidade estranha à vivência acústica; sua progressiva aparição pelo acréscimo de intensidade em uma região de fr eqüência que pode f erir dir etamente os ouvidos pode ser descrita como perfur ante, lesiva; em ger al, tal som me traz uma carga semântica de repressão. Este simples exemplo atesta o poder de imagem que tal música suscita. Para salientá-la precisei realizar uma br eve análise poética, tendo a liberdade e a abertura para esmiuçar o devaneio que um tal som me proporcionou. Portanto, a partir da escuta podemos sair do terreno de anima para entrarmos no de animus, a fim de realizarmos um texto, narrativo ou poético, que organize as imagens vivenciadas no campo do devaneio.

24

Capítulo 2 A CENA ACÚSTICA EM LA TENTATION DE SAINT ANTOINE

Vi sual izo e perceb o o mund o. Se eu dissesse com o sensualismo que são ex istentes "es tado s de con sciência", e se eu procurasse distinguir minhas percepções de meus sonhos por meio de "critérios ", eu faltaria q uant o ao fenômeno do mundo. Pois se posso falar de "sonh os" e de "realid ade", interrogar-me sobre a distinção do imagin ário e d o "real", é porq ue esta distinção já foi feita por mim antes da análise, é porque tenho uma experiência tanto do real como do imaginário, e o problema é então não o de procurar como o pensamento crítico pode ter equivalentes secundários dessa distinção, mas de explicar nosso saber primordial do "real", de d escrever a percepção do mundo, como o que fundamenta para sempre nossa idéia da verdade. (M. Merleau-Po nty, A Feno meno logi a da Per cepção. P. 11 -12)

25

2.1. Apresentação La Tentation de Saint Antoine (1984) , de Michel Chion, é uma obra

eletr oacústica

acusmática

baseada

no

texto

homônimo

de

Gustave Flaubert ( da versão definitiva de 1874), música esta que recria sonoramente a r ealidade deste texto – sendo que o trecho que ir ei trabalhar o f az a par tir da percepção de mundo do per sonagem central, Santo Antonio. Dentre as obras que escolhi representa, portanto, uma situação bem par ticular da escuta acusmática – na qual um texto narr ativo está presente e direciona o sentido das imagens de som, cr iando para estas como que um ponto de fuga, um campo comum de significações. A obra apr esenta uma cena teatral em que não aparecem “um narrador ou um leitor, mas um personagem que fala e vive no p r e s e n t e ” 19. T r a ç a a s s i m u m c e n á r i o e m q u e t a l p e r s o n a g e m a t u a , u m espaço

imaginário

determinado

pelo

texto

e

em

certa

medida

‘mater ializado’ pelo som. Recr ia o mundo através do sonoro (com as imagens que este campo pode trazer) e também através das imagens que o texto evoca – sendo esta relação texto-som absolutamente complementar.

Trata-se

assim,

conforme

seu

autor,

de

um

‘melodrama acusmático’, em que a cena visual não existe mas que ressoa no imaginár io do ouvinte. Cabe ressaltar que o romance de Flaubert tem a estrutura de uma peça teatr al ( é concebido como uma “ p e ç a d e t e a t r o i m a g i n á r i a ” 20 ) . N ã o e x i s t e a f i g u r a d e u m n a r r a d o r típico: ele se limita a situar o enredo no espaço e no tempo e a narrar alguns fatos que localizam a ação e o cenár io – assim como as rubricas numa peça teatral – sendo a expressão dos personagens realizada pelas suas f alas. A voz participa, assim, do quadro de representações daquela realidade, pois as mínimas inflexões são 19

“(...) le mélodrame électroacoustique tel que je le conçois met em scène non un narrateur ou un lecteur, mais un personnage parlant et vivant au présent.” (CHION, Michel. La tentation de saint-antoine. Libreto do CD, p. 6) 20 “(...)l’auteur a conçu celui-ci comme une pièce de théâtre imaginaire.” (idem, ibidem)

26

signif icantes

neste

univer so

dramático

acusmático,

trazem

a

expressão corporal e emocional dos per sonagens. Estas mínimas inflexões são aquilo que Roland Barthes identificou como o grão da voz (Barthes, 1990), uma expressão daquilo que está aquém e além da

representação

de

signif icados ‘ comunicantes’

da

linguagem.

Tr ata- se do “corpo da voz que canta” ( p. 244), em que se estabelece uma dupla relação, cuja voz é instrumento, entre o meu cor po e o daquele que canta: uma ligação anterior à linguagem, uma expressão signif icante do corpo na voz. Tal expr essão não conduz a conceitos mas a devaneios, a imagens. O uso da voz é preservado pela própria postura do compositor, o qual busca manter sua expressividade teatral, sem poster iores manipulações após a gravação e a mixagem: As vozes não são consideradas como suporte para transformações sonoras, mas como seres de carne e sangue, e po rtan to n ão s ão ‘mani puladas’ no sent ido habi tual . Eu realizei portanto um substancial trabalho nesta direção – começando pelos lugares de gravação e terminando pela incrustação das vozes na mixagem final, passando pela direção dos intérpretes na gravação e pela montagem – que reconstitui o fraseado de sua dicção – mas este trabal ho n ão v isa chamar p ara si a atenção na escu ta. Ao contrário , v i s a p r o p o r c i o n a r u m a t r a n s p a r ê n c i a d r a m á t i c a . 21 ( i d e m , i b i d e m )

Por conta da especificidade da obra dedicaremos uma atenção especial ao grão da voz nesta análise: ver emos mais adiante que detalhes

de

sua

emissão

podem

significar,

em

um

contexto

específico, uma alucinação, ou simplesmente um sentimento de desespero ou de tr anqüilidade; e o tipo de gravação - se próxima ou distante do microf one, se reverber ada ou seca – também pode adquir ir sentidos específicos.

21

“Les voix n’y sont pas considérées comme des supports à transformations sonores, mais comme des êtres de chair et de sang, et donc ne sont pas ‘manipulées’ au sens habituel. Un travail important n’en a pas moins été effectué sur celles-ci – commençant par le choix des lieux d’enregistrement et finissant par l’incrustration des voix dans le mixage d’ensemble, en passant par la direction des interprètes au ‘tournage’ et par le montage, qui reconstruit le phrasé de leur diction – mais ce travail ne vise pas à sauter aux oreilles de l’auditeur. Il doit s’effacer dans la transparence dramatique.” (idem, ibidem)

27

Cabe notar , neste plano geral e a partir deste aspecto em particular , a possível inf luência de Pierr e Henry na composição desta obra, a qual par ece ser uma homenagem ao compositor por empregar alguns dos mesmos procedimentos de Apocalypse de Jean. Um destes é justamente, e conf orme as próprias palavras de Michel Chion ao descr evê- lo na obra de Henry, em um livro biográf ico em tom de homenagem ( Pierre Henry, 1980), o uso pur o da voz, sem poster iores

manipulações

( Chion,

1980,

p.

135).

Em

muitos

momentos, aliás, há uma citação do Apocalypse de Henry: o narrador inicial no primeir o movimento, que diz o nome e a seção da obr a. O mesmo ocor re no Apocalypse, ainda confor me Michel Chion: No início d a o b ra, o títu lo ‘Ap o calyp s e d e J ean ’ é d ito ‘em b ra nco ’ ( o u sej a, a ca p ella , s em so n s de a comp an hamen t o ), po r u ma voz n eu tra e o bje tiv a, e é re p etid o tal e q ual, no fi n al. O s su b título s e os in ter -títu l o s são inter calad o s ao l o n go d a leit u ra. ‘Séq u en ce 7 , les p re miers cat aclysm es’, a n u ncia friam ente J ean Neg ro ni n o in íc io d e u m d o s Cat a clysm es ma is esp etacu l ares. (Ch i on , 1 9 80, p. 1 3 7). 22

Est e procedimento, em La Ten tation, i rá repetir-se na sexta seção, aqu i

com

um

ar

cômico .

Mas

analisaremos

apenas

o

primeiro

movimento da obra, Le désert, em que o Deserto é repr esentado a partir da percepção do per sonagem central, Santo Antonio, um e r e m i t a c r i s t ã o q u e s e i s o l o u d o m un d o p a r a p u r i f i c ar s u a a l m a e q u e é tentado pelo diabo, o qual o faz sof rer alucinações. A semelhança com o narr ador de Apocalypse é grande: assim como Santo Antonio, João é um eremita cristão isolado na ilha de Patmos, e tem as visões descritas no livro do Apocalipse. No entanto, João é convicto de que aquilo que vê são iluminações, enquanto que Santo Antonio é tentado,

tem

alucinações.

O

tema

de

suas

tentações,

aliás,

é

tr adicional em uma iconogr afia tar do-medieval: Bosch e Gr ünewald 22

Au début de l’oeuvre, le titre ‘Apocalypse de Jean’, est dit ‘à blanc’ (c’est-a-dire a capella, sans sons d’accompagnement), d’une voix neutre et objective, et il est répété tel quel à la fin. Des sous-titres et des inter-titres sont intercalés dans le cours de la lecture. ‘Séquence 7, les premiers cataclysmes’, annonce froidement Jean Negroni ao début d’un des Cataclysmes les plus spectacularies”. (Chion, 1980, p.137).

28

possuem

obras

importantes

sobr e

ele,

que

não

podem

ser

dispensadas como modelo para a construção da música de M. Chion –

obras

estas

que

alternam

seja

entre

uma

repr esentação

das

tentações como algo real, sofr ido fisicamente pelo per sonagem, seja como alucinações. Mas minha preocupação central nesta análise vai ser a de mostrar como a música constrói, no meu imaginário, o deserto de s e u t í t u l o , l u g a r o n d e s e u p e r s o n a ge m a t u a ; e p a r a i s s o m e u p o n t o d e partida vai ser o de que o espaço é representado a par tir da percepção de mundo deste personagem. E sta não ocor re a par tir de uma única perspectiva: pode ser uma mera exposição mimética dos objetos percebidos por Santo Antonio, ou ainda uma representação simbólica de um possível estado de sua consciência, representação esta implausível dentr o do quadro de possíveis da “realidade r eal” e que se dir ige, como informação, ao ouvinte. Imagem realista ou simbólica, são construídas a partir do mundo do personagem, ou de seus diver sos “estados de consciência”. Mas este pressuposto é um dado de minha escuta particular: não é nem pode ser um fato; f oime, antes, sugerido pela escuta da obr a, e vai se sustentar ou não confor me o decorrer da análise. E, como o exer cício de uma ficção, esta r ealidade (a música nos mostr a o mundo a partir do personagem central) me parece plausível, me parece ser uma estratégia de teorização coerente com minha compreensão primeira e anter ior a qualquer f ormulação poster ior. Vamos iniciar por ela. 2 . 2 . A n á l i s e d a o b r a 23 Minha direcionada

23

primeira pelo

seu

escuta

do

movimento

título:

trata-se

de

foi

completamente

uma r epresentação

do

Todas as marcações de tempo desta música referem-se à faixa 1 do CD em anexo. Para uma lista de todas as faixas, ver anexo 3.

29

deserto, e isto é corr obor ado pela sonoridade dos primeiros minutos d a o b r a : o n í v e l g e r a l de a m p l i t u d e , e x c e t u a n d o a i n t e r v e n ç ã o i n i c i a l (désert 1 – faixa 2) e os pequenos ‘insetos’ que aparecem em seguida (tarântulas

– faixa 3) é extremamente baixo; um som

contínuo, de massa complexa, granular, agudo e de pouca amplitude (em 40”) r epresenta certamente uma fogueir a – único indício de pr esença humana: é a de nosso personagem, no deser to e sob a luz do fogo, pois em seguida a entrada de sua voz o confir ma. Além disso



uma

constante

onda

grave

em

forma

de

delta

(ver

Glossário) (14”) que talvez sugira uma respiração. De que se tr ata, do som do alento produzido por Santo Antonio ( portanto exterior a ele) ou de uma respiração imaginár ia e implacável, sempre presente em sua consciência? Não se pode dizer de f orma precisa, mas a segunda hipótese parece ser a mais per tinente: em 3’06” o alento está lá e soa ao mesmo tempo que a voz de Santo Antonio, portanto ou o som da voz ou o da respir ação não são representações realistas. Assim, e excetuando também as intervenções pontuais de ‘insetos’, até 3’56’’ temos a imagem de um homem na imensidão do espaço do deserto. A f ogueira e o prof undo silêncio, além de algumas rajadas de vento ( em 2’39’ ’ e 3’50’’, sendo que a primeira delas pontua dramaticamente a fala de Santo Antonio, pois aparece l o g o a p ó s e s t e d i z e r q u e “ a c r e d i t a v a p o d e r c h e g a r a D e u s ” 24) d ã o - n o s a imagem de uma cena noturna

– pois sentimos frio no deserto

noturno, f ato que justificaria a presença de uma f ogueira. Eis que minha

primeira impressão

é de um

espaço quase

realista: um

personagem no deserto à espera da aurora ( “E é a claridade da aurora, vinda como uma oferenda da lua” – primeira fala do p e r s o n a g e m 25) . E q u a s e - r e a l i s t a p o i s , d e n t r o d a p a i s a g e m r e a l i s t a , alguns elementos não condizem com esta representação. Um deles é

24 25

“E t , j ’av a i s cru , p o u v o i r v e n i r à D i e u ” (t r an scri ção ; v er A n e x o 2 ) “Et c’est la clarté de l’aube, vient, offre de la lune” (t r an scri ção - A n ex o 2 )

30

o som inicial, imediatamente posterior à apresentação da primeira parte, o qual vai se r epetir ao longo desse momento inicial (até 3’ 56”) , seja inteiro, seja em fragmentos ( désert função

de

apresentar

o

deserto

(assim

o

– faixa 1); tem a percebo,

pois

soa

imediatamente após as palavras do “nar rador” inicial, que apresenta o movimento), e o simboliza. Assim, não é uma repr esentação daquela paisagem, nem da paisagem a partir do personagem. É, antes, uma epígraf e sonora, ou, como suger e a forma como é apresentado, uma vinheta. Não possui vinculação clara com uma fonte sonora e tem uma estruturação musical muito nítida ( ver análise no Anexo 1) – fatos que, combinados, enf atizam a função deste objeto dentr o da estrutura da obra: é como se, por destacar este som de outros claramente referenciais e delimitasse sua f orma (caracterizando-o, tipicamente, como um object convenable (ver Glossário) shaeff eriano, pois além disso é de cur ta duração), com isso se enfatizasse sua função e se pudesse tr atá- lo como um “objeto musical” – de fato este som sofrer á variações pois, e contradizendo a idéia de uma vinheta, ressoa mais duas vezes ao longo do trecho inicial (em 1’ 07” e 1’ 41”) , e mais tar de aparecerá muitas vezes. Na segunda vez em que aparece (em 1’07”) ouve-se somente seus pr imeiro e segundo fragmentos (sem o glissando descendente e a ressonância final) em amplitude mais baixa (désert a e désert b, faixas 4 e 5 – ver análise e audiograma no Anexo 1) , e a terceira aparição é quase idêntica à pr imeira: o som se encontr a completo (na verdade, está apenas com a panorâmica invertida) e é seguido por “som-r espiração”, fato que me dá a impressão de um ‘segundo começo’ da obr a, um jogo que consiste num paralelismo entr e a consciência do ouvinte e a do per sonagem, o qual mistura o de fato percebido com delírios e lembr anças. Como ele, posso confundir -me e questionar se a obra iniciou-se novamente ou se estou a imaginar que o fez. Pois até a entr ada da voz do personagem (em 1’52”) a

31

imagem

do

deserto

não

está assim

tão

delineada:

as

entradas

pontuais do som inicial (désert – faixa 2) e de outros sons, como ‘insetos’ (tarântulas – faixa 3), desconcer tam esta imagem, que afinal não teve tempo de ser formada por completo. Temos somente um silêncio pontuado por uma construção musical estática, a qual é dada por um objeto de rítmica aleatória mas constante (‘fogueira’) , de outro de rítmica quase periódica (‘ respiração’) e das entradas pontuais dos outros sons. É a voz que situa minha escuta como a de um espaço real, não-musical: a entonação neste momento é a de um lamento e integra- se com este espaço, ao mesmo tempo em que lhe cr ia o sentido do lugar onde está o personagem, o deserto, pois imediatamente associa- se aos sons anterior es. O quase-silêncio do tr echo inicial (ou seja, de textur a estática, rarefeita e de pouca amplitude) é de sugestão do próprio Flaubert, na voz do narr ador ao descrever a cena, a qual abr e o livr o, e que não está presente no texto selecionado por Chion: A n oite é calma ; nu me rosas estrel as p al p itam; o uv e- se ape n as o ru íd o das ta rân tu l as. (F lau b er t, tra d . Car lo s Ch aves, s.d., p .1 4)

Portanto, um silêncio em que se pode ouvir o andar áspero dos insetos, imper ceptível aos ouvidos em um outro ambiente que não o deserto noturno, ou, mesmo, imperceptível de f ato. Ser ão estes os ‘insetos’ a que me ref eri acima (tarântulas – faixa 3)? T al som só pode ser inter pretado assim ao ler mos este trecho de Flaubert, mas me par eceu conveniente situá-lo aqui desta for ma: vai ser um objeto sonoro

importante

atormentado

por

mais

insetos,

tarde, aves

quando e

Santo

demônios

Antonio

imaginários.

for Neste

contexto há algo de gr otesco nestes sons que me fez associá-los ao andar

de

tarântulas;

principalmente

também

pela

iconografia

associada ao tema. E também o som inicial (désert - f aixa 2) vai mais tarde aparecer num contexto em que os gestos de criaturas

32

oníricas

vão

atormentar

Santo

Antonio,

adquirindo

outra

signif icação. Antecipei a hipótese de uma forma para este movimento - a de três

estágios

de

consciência

do

personagem,

representados

em

momentos distintos (mas não em seqüência), e agora os exponho. Tais estados podem ocorrer mesmo simultaneamente. São eles um plano da r ealidade (pr esente), plano da memória, no qual devaneios se

misturam

a

lembranças,

e

plano

da

alucinação,

no

qual,

claramente par a nós, disto se trata, não o sendo para o personagem. Tais passagens de um plano par a outro são marcadas pela relação entre texto (ou falas) e som. O início (até 3’ 56”) , por exemplo, está em um plano da realidade, pois além da paisagem claramente naturalista as falas do personagem ‘estão no presente’ , ou seja, falam no presente ou nele se situam: “Me sinto cansado, como se tivesse todos os ossos quebrados”

(2’10”) –

em oposição, trata de

sua infância, mas de uma maneira geral, e não de um fato em específico: “Quando eu era um garoto, me diver tia com pedr inhas, a constr uir er emitérios”, etc (3’05”). Mas em uma outr a passagem para um plano da memór ia, ao contr ário de mostrar- nos o mundo sonoro per cebido por Santo Antonio, tal qual em uma câmara subjetiva no cinema (ver Glossário), nos mostra um ícone sonoro que dá a medida de seu estado de consciência, não necessar iamente se ref erindo a uma realidade acústica mas simbolizando um objeto ou uma lembrança. É assim que, quando Santo Antonio passa a lembrar de tempos em que não questionava sua condição de eremita miserável (em 6’16”, e o f az contando lembranças espar sas que vêm à

sua

memória),

escuta-se

uma

canção

com

voz

feminina

evidentemente emitida a partir de um velho fonógrafo ou de um toca-discos

(pois

a

espessura

do

som

é

muito

estreita



predominantemente de freqüências médias – e vem acompanhado de um ruído granular agudo, o chiado caracter ístico da fr icção de

33

sistemas de emissão com contato mecânico). O sentido deste som pode

ampliar-se

conforme

o

ouvinte:

provavelmente

para

o

compositor a escolha daquela canção tenha um significado ao qual não tenho acesso; os ouvintes que a conhecem por sua vez possuem um outro campo de significação, diferente do meu. Mas para mim e de

modo

geral

o

som

remete-nos

algo

antigo,

pois

estamos

acostumados a ouvir gr avações recentes a partir de uma fita cassete ou

de

um

CD,

os

quais

possuem

um

outro

tipo

de

ruído.

Evidentemente este som não poderia estar presente no cenár io de Santo Antonio, mas escutamos, junto a ele, os sons que car acterizam este cenário: o vento e a fogueira, e, a partir da nostalgia do texto naquele momento (“Mais um dia que passou! Outr ora, todavia, eu não

er a assim

tão

m i s e r á v e l ! ” 26,

etc),

e embora esta

aparição

ocasione uma estranheza (por ser totalmente alheia ao ambiente sonoro do personagem), entendemos o pathos da cena. Apesar da alucinação permear todos os sons da percepção de Santo Antonio, há momentos em que é enfatizada, como em 10’13”, em que se escuta, após o lamento do solitário personagem ( “Que solidão, que tédio!” – 10’ 10”) , sons vocálicos de pequenos animais e de f ricção, em loop (ver Glossário), que são, portanto, de f orma absolutamente não- realista (bichos - faixa 7) – por conta das repetições idênticas e mecânicas, de todo incompatíveis com aquelas formas

sonoras

vocálicas,

pois,

como

salienta

H.

Bergson,

o

mecânico é a oposição ao que seria o natur al de um cor po vivo, o qual está em permanente mudança: “Os gestos de um orador, que não pr ovocam r iso separadamente, f azem rir devido à sua repetição. É que a vida bem viva não deveria repetir-se. Quando há repetição, similitude completa, suspeitamos de um mecanismo a funcionar por tr ás do que está vivo. ” (Bergson, 2001, p.25).

26

Ver texto e tradução, Anexo 2.

34

Voltaremos a este momento, mas por agora importa analisar como a nar rativa vai se constr uindo entre o texto falado, que dá aos sons um sentido específico, e os sons,

os quais por sua vez

constr oem

ao

imagens

acústicas

específicas

texto,

fechando

o

sentido das palavr as. A partir deste jogo a música alterna entre os tr ês estágios de consciência do personagem. 2. 3. Uma teoria do som e sua ‘origem’ Mas antes de prosseguir a investigação por um sentido geral da obr a é preciso notar que estes “som de fogueira”, “som de vento”, “som de inseto”, “som de bicho” mencionados acima são, evidentemente, esquemáticos, não são realmente gravações de uma fogueira e de uma ventania (e isso é perceptível para mim, pois, no caso da fogueira, por vezes é possível notaro gesto de fr icção de pequenos objetos, provavelmente de folhas ou gravetos secos, e mais tarde (em 4’05”) este som vai se metamorf osear e remeter também, paradoxalmente, ao ruído de um disco de vinil – muito semelhante ao anterior ), e evidentemente não são sons gravados pelo andar das tarântulas, posto que isso nem se escuta; mas adquir iram tais significações por conta do contexto em que se encontr am, ou por conta também de uma semelhança tipo-morfológica com os sons habituais desses objetos, os quais estão em minha memória e são ‘r esgatados’ no momento da audição desses sons-esquema. Mas um som de uma gravação antiga tem outro r egistro em minha per cepção, pois

sei

material.

sua

proveniência,

A partir

reconheço

imediatamente

sua

fonte

daqui é importante demarcarmos então uma

mudança de registr o na linguagem destas descrições, de for ma a destacar um tipo de outro - confor me aponta Michel Chion: Daí essa nossa pro p os ta (.. .) de distin g u ir b em, me diante u ma formu lação claram en te d iferen te, o caso e m q ue u m so m

35 p ro ven ha rea lmen te , n a med i d a em q ue p o d emo s sab ê-l o , d e u ma cer ta cau sa, e que tr ad uzir emos p o r u m g en iti v o (d i remos en tão so m de pi ano , s o m d e cac ho rro , ru íd o d e máq u in a), d o ca so , q u e n ão é for çosame n te o mesmo, em q u e o so m en ca rn a o tip o d e sua cau sa e c orresp o nd e à imag e m so n o ra típ ica d a q uela: os exp ressar emo s e n tão m ed ian t e um h ífen e direm o s so m -cach o rro , so m -pian o , ru í do -máq uina, etc. A su bst ituiçã o do ‘ d e’ p o r u m h íf en per mite n ão co n fu n dir co m o s caso s q u e co rres p o n dem a n ív eis mu ito in d epen d entes, aind a q u e c o m fre q üênci a se enc o ntrem reu ni d o s. U m so m de pia no (q u e sai de um p ian o ) p o de ser u m so m-pian o (q u e corre spo n de ao ti po d e so m as so ciad o ao p ia n o), m as nem sempr e o é; po r e x emplo , q u an do se trata de u m so m de pi ano qu e arra stamo s , o u d as cor d as qu e são arran h adas. In v ersame nte, u m so m- p iano (no se n tid o de q u e se d á a rec onh ece r) pod e n ão ser u m so m d e p ian o (n o sen tid o d e q u e se faz com u m pian o); p o r ex em p lo , s e é cr iad o p o r u m sin tet izad o r . 27 ” ( Chi o n, 19 99 , p. 15 7).

A

distinção

é

importante

por

enfatizar

que

alguns

sons

representam, por analogia, objetos do mundo, enquanto que outros são associados a uma f onte, mas nem sempre possuem os valores de imagem daquela f onte. Assim é que um som de cordas arranhadas de um piano com pedal acionado pode não ser reconhecível a muitos ouvintes

como

provavelmente

proveniente por

músicos,

contemporânea erudita’ e

de

um

alguns

piano

(ser á

melômanos

reconhecido de

‘ música

afinadores de piano), mas pode adquirir

os mais diversos valor es conforme o contexto. Mas o som emitido por um fonógrafo, como aquele o qual já mencionei, possui, par a uma multidão

de ouvintes que conhecem

o

som

de

fonógrafo

(afirmado, por exemplo, em filmes de época, para aqueles que nunca acionaram um, como é o meu caso), uma imagem distinta, única, de

27

“De ahí nuestra propuesta (...) de distinguir bien, mediante uma formulación claramente diferente, el caso em que el sonido proviene realmente, em la medida que podemos saberlo, de uma cierta causa, y que traduciremos por el genitivo (diremos entonces sonido de piano, sonido de perro, ruido de máquina), del caso, que no es forzosamente el mismo, em que el sonido encarna el tipo de su causa y corresponde a la imagen sonora tipo de aquélla: lo expressaremos entonces mediante um guión, y diremos sonido-perro, sonido-piano, ruido-máquina, etc. La sustitución del ‘de’ por um guión permite no confundir dos casos que corresponden a niveles muy independientes, aun cuando com frequencia se encuentren reunidos. Um sonido de piano (que sale de um piano) puede ser um sonido-piano (que corresponde al tipo de sonido asociado a um piano), pero no siempre lo es; por ejemplo, cuando se trata del ruido de um piano que desplazamos, o del de las cuerdas que rascamos. Inversamente, um sonido-piano (em el sentido de lo que da a reconocer) puede no ser um sonido de piano (em el sentido de que se hace com um piano); por ejemplo, si se crea com um sintetizador.” (Chion, 1999, p. 157)

36

sua fonte. Esta teoria, mais tarde bem desenvolvida em outras obras, é esboçada por M. Chion no livro sobre Pierr e Henry, ao descrever a composição de imagens de Apocalypse de Jean. Neste caso, Chion c o n s t a t a o u s o d e m e t á f o r a s s o n o r a s . 28 A s s i m d i s c o r r e s o b r e o g e s t o composicional de Henry: (.. .) se h á u ma imag é tica n o Ap o ca lyp s e (c av alo s , p áss aro s, mar de fo g o, ve n to , cat aclism as), e la é t ratad a de fo rma pl ana, d e man eira e stiliz ad a, s em p er sp ecti va. Pa ra sig nifica r um s ímbo lo so n oro, é freqü en te o uso d e u m s ó cara ctere [so n or o ]: po r exe mplo u m ritm o d e c avalg a da par a evo c ar os Ca v a leiro s do Ap o ca lips e. T od os e stes s o ns-sí mb olo de tro mbetas e d e an imai s fo r am fei tos em estúd io , a partir d e so n s ele trô nic os o s mais d iv ersos. Não h á u m s ó so m (co m a p en as uma ex ceção : o s lo o ps d a seq üên cia 6, qu e j ustame n te si gn ific am o u t ra coi sa) q u e ten h a sid o g rav ad o da natu r eza. ( ...) A ob ra d e Pie rre He nry n ã o é ma is imi tativa , assi m, q u e a Tet ra lo g i a d e Wag n e r o u o s Pre lúd io s de Deb u ssy. (Ch i on , 1 9 80 , p . 1 37 -1 38 ) 29.

Mas seria então ‘sons- símbolo’ o de fogueira, de vento ou das tarântulas? O som da voz emitida por um antigo aparelho poderia ser assim descrito, mas os sons que se ref erem dir etamente a objetos do mundo talvez sejam por demais plásticos, por demais modelados para um realismo para ader irem a este sentido de metáf ora, de substituição,

que os sons apontados por Chion

em Apocalypse

adquir iram. Os sons de objetos do mundo, neste cenário acusmático, são a presença destes objetos: não são apenas imagens de uma f onte, mas também sua presença concreta na imaginação (ou no imaginár io) do 28

ouvinte,

pois

r epresentam

um

aspecto

físico

real

de

uma

S e é q u e p o d em o s n o s u t i l i z ar d es t e t er m o , q u e se r efere an t es à rel a ção en t re p a l av ras e o b j et o s, e n ão en t re so n s e o b j et o s: as si m d e screv e m et á f o ra o D i ci o n ári o E l et rô n i co H o u ai ss d a L í n g u a P o r t u g u es a: m et á fo ra : d esi g n a ção d e u m o b j et o o u q u al i d ad e m ed i an t e u m a p al av ra q u e d esi g n a o u t ro o b j et o o u q u al i d ad e q u e t em co m o p ri m e i ro u m a rel a ção d e sem el h an ça (p . ex . , el e t em u m a vo n t a d e d e f err o , p ara d e si g n ar u m a vo n t a d e f o rt e, c o m o o ferro ). ( H o u ai s s, 2 0 0 1 ) 29 (...) s’il y a une imagerie dans L’Apocalypse (chevaux, oiseau, mer de feu, vent, cataclysmes), elle est traitée à plat, de façon stylisée, sans perspective. Pour signifier un symbole sonore, un seul caractère est souvent retenu: un rythme de cavalgade, par example, pour évoquer les Cavaliers de L’Apocalypse. Tous ces sons-symboles de trompes et d’animaux ont été faits en studio, à partir de sources électroniques le plus souvent. Pas un seul son de L’Apocalypse (à une exception près: les loups de la séquence 6, qui justement signifient autre chose) n’est pris dans la nature. (…) L’oeuvre de Pierre Henry n’est pas plus imitative, en fait, que la Tétralogie de Wagner ou les Préludes pour piano de Debussy. (Chion, 1980, p.137-138)

37

percepção deste objeto, como o é por exemplo o som-fogo. Mas esta distinção, que cor re o risco de se tor nar estéril por entr ar em minúcias quase improváveis, é no entanto válida para deixar à mostra esta separação: há objetos sonoros que, mesmo se expostos a contextos diversos, vão remeter sempre a um conjunto específico de sensações, e vão possuir uma r elação inequívoca com sua fonte para um número muito gr ande de ouvintes. O análogo do real que a gr avação proporciona ( cf. cap. 1) funciona par a alguns sons, como os de água, de fogo, de passos, de voz, etc (se o técnico de gravação restitui,

mediante

uma

certa

microfonação

e

uma

equalização

pertinente, aquilo que se espera destes sons, conf orme discutimos no capítulo 1). No caso da obra de Henry, no entanto, há sons que remetem a objetos do mundo, sem se relacionarem diretamente com sua fonte. Trata-se de uma composição de sons que busca, pela escuta reduzida dos sons natur ais, capturar alguns de suas imagens referenciais e reproduzi-las em outros sons: assim o é o som que imita, pela rítmica, uma cavalgada, sem no entanto se aproximar de uma associação com o que seria a gravação de uma. Seu sentido específico é dado, no entanto, pelo texto que o acompanha. (ouvir trecho da Séquence 5 de Apocalypse – f aixa 8) 2. 4.1 Estrutura da narrativa Aqui r etomo a descrição a partir de um outro viés, o de uma estrutura narr ativa. Para efetuar a leitur a de uma obr a baseada em um romance que se apresenta como uma peça teatral, recorro ao pensamento de Anatol Rosenfeld que, em O Teatro É pico ( 2002), retoma a teoria de Platão e Ar istotéles dos tr ês gêner os liter ários (Lírico, Épico e Dramático) para enriquecer uma análise do texto teatral. Rosenfeld amplia o conceito br echtiniano de Teatro Épico: para ele, os três gêneros possuem tanto um significado substantivo

38

quanto adjetivo. Substantivo por designar um conjunto de obras cujas caracter ísticas predominantes se adaptam a este ou aquele gênero: Per tencer á à Lí rica t od o p o ema d e ex ten são me no r, n a med ida em qu e n ele n ã o se c ristal izarem p erso n ag en s n ítid o s e e m q ue , ao c o ntrár io, um a v oz centra l – qu ase se mp re u m ‘Eu ’ – nel e exp rimir seu pr óprio estad o de al ma. Fa rá p ar te d a Épica to d a o b ra – p oema o u n ão – d e e xten sã o maio r, em q ue u m narra d o r apr esen ta r pers on ag en s env o lvido s em si tuaçõe s e ev en to s. Per tencer á à Dr amátic a tod a ob ra dialo g ada em qu e a tu arem os p ró prios person ag en s sem se rem, e m gera l, apr esen ta d os p o r u m n ar rado r. (Rose n feld , 2 00 2 , p.1 7)

Mas os três termos podem também designar uma qualidade especial da obra, seja ela lír ica, épica ou dr amática. É, assim, um tr aço estilístico que se acentua: neste sentido pode-se falar em um teatro épico ( ou seja, uma obr a dr amática com fortes características épicas), ou em um romance lírico. A partir daqui cabe- nos entender melhor cada um dos três gêneros, sempr e considerando que, para Rosenf eld, são modelos, coordenadas opostas, tipos teóricos. Não há uma obra ‘ pura’ em cada um dos gêneros, não é uma total sintonia com os modelos do gênero que vai garantir a qualidade de uma obra, talvez, muito pelo contrário. O gênero L írico, então, caracteriza-se por ser a expressão subjetiva

de

um

“Eu”,

organização

poética

de

suas

vivências

imediatas. Mesmo quando recorda, o ‘eu-lír ico’ congela as emoções de sua lembrança em um fluxo inalterável, atemporal: “A Lírica tende a ser a plasmação imediata das vivências intensas de um Eu no encontro com o mundo, sem que se inter ponham eventos distendidos no tempo ( como a É pica e a Dramática)”.(Rosenf eld, 2002, p. 22). O gênero lír ico também tende a uma pura conotação quando se refere a objetos do mundo. Estes adquir em uma significação própria para o ‘eu-lírico’ que os evocou, pois a lírica pura tende a uma total fusão

39

entre sujeito e objeto, a natureza inteira sendo incor porada na subjetividade deste ‘eu-lír ico’ ideal. O gênero É pico, por sua vez, aproxima- se da narrativa e está em outro tempo com relação ao lírico. No épico os fatos possuem uma temporalidade; em geral, já aconteceram, e agora são contados por um narrador. Enquanto que, na lírica, a função primordial é expressiva (a subjetividade do ‘eu-lír ico’ que se expr essa pelo poema) aqui a função é comunicativa: o narrador quer contar uma estória que já aconteceu; há um distanciamento entre ele e aquilo que conta.

O narrador,

de

fato,

conhece tanto

o

destino

dos

personagens quanto seu íntimo, como se fosse “um pequeno deus o n i s c i e n t e ” . 30 H á t a m b é m u m a s e p a r a ç ã o e n t r e s u j e i t o ( n a r r a d o r ) e objeto (mundo narr ado) de forma que a subjetividade do nar rador permanece intacta, sem se misturar com o objeto narrado. Por ser mais comunicativa que expr essiva, a linguagem épica se desenvolve de maneira lógica, descr itiva, ao contrário da lírica, a qual é sintética e metafór ica. Por estar distante do mundo que apresenta o narrador pode comentá- lo, analisá- lo ou ‘montá-lo’ confor me suas necessidades nar rativas. Há, entre o mundo que mostra e os seus ouvintes, a sua individualidade. O gênero Dramático opõe-se aos demais na medida em que não há vínculo algum com um sujeito, seja narr ativo, seja lírico. Aquilo que nos é mostrado é como se f osse um substrato do real. A peça teatral deve ter, assim, uma estrutura orgânica, na qual os fatos se sucedem como causa e efeito. Sua temporalidade é a da vivência do pr esente; a sucessão temporal é linear e sucessiva “como o tempo e m p í r i c o d a r e a l i d a d e ” 31. N ã o h á o i n t e r m é d i o d e u m n a r r a d o r : “ o mecanismo

dramático move-se sozinho, sem a presença de um

mediador que o possa manter funcionando. Já na obr a épica o

30 31

Id., ibid, p. 25. Id., ibid., p. 29.

40

narrador, dono do assunto, tem o direito de intervir, expandindo a narrativa em espaço e tempo, voltando a épocas anteriores ou antecipando-se aos acontecimentos, visto conhecer o futuro (dos e v e n t o s p a s s a d o s ) e o f i m d a e s t ó r i a . ” 32

2. 4.2. A estrutura da narrativa em La Tentation de Saint Antoine

A

diferença

entre

épico

e

dramático

é

central

para

entendermos as nuanças de significação de La Tentation. Pois, apesar

de

se

estruturar

como

uma

peça

teatral

de

cunho

eminentemente dramático (o que ouvimos é a representação de um homem no deser to, que fala e se movimenta, e temos a impressão de pr esenciar o seu mundo) é cheia também de comentár ios épicos, em que um nar rador, seja imaginár io, seja na figura de um per sonagem (aqui, na voz de uma mulher), se coloca. E stes comentários se dão, por vezes, não como expressão verbal, mas como objetos alheios a qualquer r epresentação da realidade de Santo Antonio, seja esta de seu mundo físico, seja de seu imaginár io. Voltamos então par a uma descrição da obra. Aqui se nota que a passagem da situação inicial, de apr esentação de um ermitão na aurora do deserto – da qual as imagens seguintes vão diver gir - para adiante, é marcada por uma intervenção narrativa forte: a entrada de um tema melódico tocado por um instrumento cujo timbre é de um conteúdo

harmônico

muito

homogêneo

(provavelmente

um

sintetizador em FM). T al tema, que dur a de 3’57”a 6’15”, tem a função de um comentário lírico-épico: é como se um nar rador se mostrasse através do som, e nos apontasse, após a exposição do cenário do melodrama e do mundo de seu per sonagem, o início do 32

Id., ibid., p. 28.

41

jogo dramático. Este tema, de caráter lírico, é de todo estranho aos demais objetos que pontuam a realidade da cena. Aparece após termos entendido a contradição do espírito de Santo Antonio, que ao mesmo tempo em que repele ou lamenta sua vida de ermitão esper a pela salvação eter na, e portanto não desiste de suas provações; contradição

que se

expressa

em

duas

falas:

a

de 2’33”,

“Eu

a c r e d i t a v a p o d e r c h e g a r a D e u s . ” 33, e m c o m p a r a ç ã o à ú l t i m a a n t e s d a entrada do tema, em 3’ 48”: “Oh, encanto das or ações, f elicidade do ê x t a s e , p r e s e n ç a d o s c é u s , q u e d e V ó s v i r á . ” 34 –

uma referindo- se a

uma cr ença do passado, talvez já perdida, e outra que justamente reitera esta crença - ou seja, contradição que encontra a causa e o corpo da “tentação”. Assim

como

o som inicial da peça,

este tema tampouco

apresenta qualquer referencialidade além da mais evidente: a de que se trata de um som ‘musical’, proveniente de um instrumento. Deste modo podemos associar que os sons sem uma referencialidade ligada à realidade da cena possuem, nesta música, uma função épica, são pontos de apoio para a narrativa, ou seja, como aponta Anatol Rosenf eld, são como o coro no teatro grego: No coro, po r ma is qu e se at rib uam fu n çõ es d ra mática s, p re pon der a cert o cu n h o fo rt emen te ex pre ssivo (líric o ) e é p ico (n a rrativ o ). At ravés d o co r o pare ce man ifesta r-se, de alg u m mo d o , o ‘ auto r’ , inte rromp e n do o d iálo g o d o s p erso n agens e a aç ão d ra mática , já q u e em geral n ão lh e cab e m fu nç õ es at iv as, mas ape n as co n temp l ativ as d e co men tár io e r eflex ã o . (Ro sen fel d , 2 00 2 , p. 4 0).

A já referida canção emitida por um aparelho antigo (em 6’ 16”) não tem esta mesma função, pois é um signo da consciência 33 34

“E t , j ’av ai s cr u , p o u v o i r v en i r à D i e u . ” C f . e m an ex o , t ex t o e t rad u çã o , A n e x o 2 .

“O h , ch a rm é d es o ra i so n s, fel i ci t é d e l ’ex t ase, p ré sen ce d u ci e l , q u ’ est d e V o u s d ev en u . ” Id e m , i b i d .

42

do per sonagem naquele momento; mas a voz da narradora, a qual não pode ser descr ita como um som sem referencialidade real, constitui também um univer so particular – ao qual irei me reportar em breve. Tanto o som da narradora quanto o tema e a vinheta (désert – faixa 2) possuem portanto uma f unção épica, ou seja, narrativa, e não dramática, ou seja, r epresentativa. Mas

no

trecho

em

que

se

desenvolve

o

tema



uma

sobreposição de uma outra realidade sonora. Tr ata- se de uma voz ao fundo

que

se aproxima

pouco

a

pouco

e

parece chamar

pelo

personagem. Entre uma chamada e outra se escuta uma risada aguda e estr idente ( em 5’02”), e

logo depois o som

de respir ações

of egantes e o gemido de uma cr iança. E stas vozes estão ao longe, em um espaço indistinto e distante, como se fossem provenientes de uma cena ao fundo do campo visual. De onde provêem e quem as pr oduz? Isto não f ica clar o, e é a par tir deste momento que começamos a perceber as alucinações de Santo Antonio: serão aparições reais ou produto de sua fantasia? Pois está no meio de um deserto, e ser ia improvável qualquer outra presença humana. Por outro lado, por serem vozes humanas e se ligar em, pelo grotesco, a outros sons que povoam a imaginação de Santo Antonio, como veremos adiante, se dirigem a ele, são possíveis em sua realidade, estão num plan o dr amático. E p or soarem ao fun do d o tema m elód ico acentuam ainda mais o caráter épico deste, e por conseguinte o contraste entr e ambos os gêner os. Mais à frente (em 8’14”) inicia-se uma construção a partir da narradora, voz feminina que cumpre a f unção (épica) das rubricas, como acontece tradicionalmente nas peças de teatro – ou seja, ela nos informa das ações do personagem as quais não podem ser tr azidas apenas pelo som, bem como descreve acontecimentos seja do

ambiente,

seja relativos às

visões de Santo

Antonio. Uma

pr imeira inter venção épica tão explícita propicia ao compositor a

43

cr iação de um momento mais livre com r elação à representação do real. Assim é que em 8’14” inicia- se, ao f undo da narr ação, que fala sobre uma ação de Santo Antonio e sobr e o ambiente que o cerca naquele momento (cf. tr anscrição no Anexo2), uma valsa em tom menor tocada por um piano desafinado, que tem ao f undo alguns sons vocálicos animalescos que se encaixam com a base rítmica da valsa (valsa – faixa 9). E stes sons vocálicos são importantes na representação dos animais fantásticos que permeiam as alucinações de Santo Antonio, os quais aparecerão mais explicitamente adiante. Alguns deles f azem alusão explícita a um animal, como o morcego (f aixa 10) (8’ 08.176”) , que se assemelha a um morcego; outros remetem a formas vocálicas, sem no entanto ser em muito explícitos. Cr iam as imagem dos animais fantásticos pr esentes na iconograf ia do tema, (pág. 43). Os pequenos animais com braços de homem, bico de pássaro ou cara de peixe, metidos em carapaças metálicas e com uma expressão

cômica parecem

ter

a

tradução

acústica

nestes

pequenos sons desta valsa. A qual, por sua vez, silencia assim que Santo Antonio retoma sua f ala – sem calar, no entanto, o som dos animais, f ato que sugere uma aparição em sua imaginação. De acordo

com

aquilo

que

apontamos

anteriormente,

ganham

esta

signif icação a par tir do contexto, pois não temos idéia exata da fonte real destes sons, mas estes remetem, ao menos, a for mas vocálicas distorcidas e portanto r epresentam os animais das telas de Bosch e Gr ünewald. São, neste sentido, como os ‘sons-símbolo’ de Henry

(aliás,

fazem

referência

explícita

aos

sons

ouvidos

na

Séquence 5 ou da Séquence 13 do Apocalypse de Jean – a f aixa 11, bichos_apo, é um extrato da seqüência 13), pois se tenho a idéia de uma fonte vocálica é por identificar similitudes ou derivações tipomorfológicas de sons vocálicos naturais –ao mesmo tempo em que tenho diante de mim a distorção que me faz imaginar os sons destes animais.

44

La s tentationes de san San to Anton io, óleo sob re tela (70x 51cm) Jerônimo Bo sch, ca . 1 510. Museu d o Pr ado.

45

Mais adiante, em 11’05”, a nar radora parece falar com o ouvinte numa atitude de cumplicidade, como quem assiste de longe, junto a nós, a confusão do per sonagem – numa expressão típica de um distanciamento épico. Pois ela cochicha em nosso ouvido, (ela de fato sussur ra, mas a captação de sua voz é feita muito próxima ao microf one: não há reverber ação alguma e há muita presença (ver Glossário), que sugere uma proximidade do ouvido). Este cochicho narra as ações e as alucinações de Santo Antonio ao mesmo tempo em que acontecem, neste longo momento (de 10’10” a 12’ 20”) em que,

finalmente,

ele

parece

estar

tomado

por

visões

que

o

atormentam. Aqui estabelecem-se os animais em loop aos quais já me ref eri em blocos entremeados por silêncios – numa estrutura que parece ser não a de uma pr esença r eal, mas a de uma aparição intermitente na consciência de Santo Antonio – pois as falas do personagem também sugerem esta aparição incômoda: Em 10’54”, “ E u n ã o p o s s o m a i s , b a s t a , b a s t a ! ” 35 – n u m a e x p r e s s ã o d e q u e m espanta de si um inseto que o ronda, e mais tarde, em 12’03”, “Par a t r á s , p a r a t r á s , v o c ê s s ã o t o d o s m e n t i r a ! ” 36. O trecho precisa de um olhar pormenorizado. Ele sintetiza o tipo de estrutura que, ao ligar-se for temente a uma representação da realidade, cria, neste elo, como que um ponto de f uga para a constr ução

musical,

mais

livre

e

abstr ata,

e

o

duplo

espaço

(musical/sonoro) leva a situações de paradoxo. Tome-se este trecho de

10’09”

a

11’06”

(loops,

faixa

12)

como

exemplo:

nele

estabelecem-se os loops dos sons animalescos, procedimento que em si

possui

um

paradoxo

cômico,

como



apontamos

(um

procedimento mecânico, o loop, em um material cuja imagem é a de um ser vivo). A partir do momento em que os sons em loop se instauram, ser ão inter rompidos por três silêncios, e esta interrupção 35 36

“J e n ’ e n p e u x p l u s ! A s s e z ! A s s e z ! ” – t r a n s c r i ç ã o – A n e x o 2 . “A r r i è r e ! A r r i è r e ! V o u s è t e s t o u s d e s m e n s o n g e s ! ” – t r a n s c r i ç ã o - A n e x o 2 .

46

é também r ealizada de maneira mecânica: o gesto composicional é como se desligasse uma “máquina-loop” e a religasse do ponto em que havia sido desligada; como se houvesse uma fita em que o loop estivesse gravado, o compositor ligasse este toca- fitas, o desligasse, e gravasse este gesto. E entre uma interrupção e outra, após a retomada do ponto em que se parou, muda-se de loop, mantendo-se porém o mesmo andamento. Por cima desta textura estão a voz do personagem e ecos do som

inicial

da

peça

(désert



faixa

2):

o

impulso

inicial

(10’21,180”), desert_a e desert_b sem o glissando (10’ 34,236”) , o objeto

ssic

ssic

ssic

seguido

de

um

breve

impulso,

cortado

(10’56,683”). Estes fr agmentos, pr esentes em muitos momentos da obra, são como que per sonagens autônomos, alheios à cena, e podem ser interpretados como comentários irônicos, eminentemente épicos. Possuem, porém, uma relação musical com os demais sons: na pr imeira aparição neste tr echo, por exemplo, o pequeno impulso, com relação à métrica criada pela repetição do loop, aparece em contratempo, negando ( ou se destacando sobre) aquela métrica. Na segunda aparição, a relação rítmica é de complementaridade, e na terceira integra um curto mosaico de sons, ali montados. Neste trecho ao mesmo tempo soa, ao fundo dos loops de animais, os sons-r espiração (em 10’42, 821”) e o som de tar ântulas, (em 10’50”), sendo que aparecem durante um dos silêncios. Estes sons, ligados que estão ao trecho inicial da peça, ou à representação da “realidade real”, percebida pelos sentidos, evocam o espaço real em que se situa o personagem, em contr aposição aos loops, que na minha interpretação representam o outr o estágio de sua consciência, o

das

alucinações.

Segundos

depois

(11’05”)

entra

a

voz

da

narradora, complementando as f alas de Santo Antonio, justamente sussur rando para nós suas ações: em 11’05’ ’, “Volta-se em direção

47

d a t r i l h a , e n t r e a s r o c h a s ” 37, a o q u e s e g u e a f a l a d e S a n t o A n t o n i o : “Sim! Lá embaixo, bem no f undo, uma massa se movimenta, como p e s s o a s q u e p r o c u r a m o c a m i n h o . E s t á l á ! E l e s s e e n g a n a r a m ! ” 38 ; e segue a narração das visões e das ações do per sonagem. A partir daí o material dos loops passa a ser mais diverso: é f eito de pequenos ataques instrumentais, de fragmentos de vozes, de som de pássaros ao longe, além dos sons-animais; além dos loops, passa-se a pontuar ataques de instrumentos e vozes. Em resumo, no trecho todo se sobrepõem três camadas de signif icação: a da nar radora, exterior à cena, a dos silêncios, sinal da “realidade real”, e a dos loops e demais sons, das alucinações. Esta sobreposição dura até 12’ 28”, com a f ala de Santo Antonio: “ A h ! E r a u m a i l u s ã o ! N a d a m a i s ! ” 39 – e m q u e f i c a c l a r o p a r a o personagem que aquilo que viu e ouviu foram alucinações: a par tir deste ponto retomamos o ambiente sonor o inicial, calmo e r ealista, e a

voz

da

narradora

desaparece.

Este

é

um

momento

muito

importante: o personagem até este ponto sabe distinguir suas visões imaginárias de sua per cepção do mundo. O ouvinte, que a tudo assiste, parece cr er que de fato estávamos no terr eno da alucinação, de que para o personagem as aparições não eram reais ( o trecho todo está na f aixa 13, ilusion). Mas

em

seguida esta

convicção

é

abalada

pela

própria

pr esença do diabo, por uma ação do diabo. A fala de Santo Antonio acentua

esta

presença:

“Entretanto...

tinha

acreditado

sentir

a

aproximação... Mas por que vir ia ele? Aliás, não conhecerei seus a r t i f í c i o s ? ( . . . ) ” 40- e a q u i n ã o s a b e m o s m a i s s e a s a l u c i n a ç õ e s q u e

37

“Il se t o u rn e v er s l e p et i t ch e m i n en t re l es ro c h es” ( t ran sc ri ção - A n ex o 2 )

38

“O u i ! L a b a s , t o u t a u f o n d , u n e m a s s e r e m u e , c o m m e d e g e n s q u e c h e r c h e n t l e s c h e m i n s . E l l e e s t l à ! I l s s e t r o m p e n t ! ” (t r an scri ção - A n ex o 2 ) 39

“A h ! C ’ e t a i t u n e i l l u s i o n ! P a s a u t r e c h o s e ! ” (t r an scri ção - A n ex o 2 )

40

“C e p e n d a n t . . . j ’ a v a i s c r u s e n t i r l ’ a p p r o c h e . . .

48

seguem são, para ele, visões ou elementos reais. Um objeto ter rível, símbolo e causa do ter ror (em 13’11”), pontua a narração: trata-se de um som de cordas gr aves arr anhadas de um piano com pedal acionado, mas aqui não se elucida sua causa, por conta do contexto dr amático. Trata-se de um som muito gr ave, de massa muito ampla, ataque pouco definido e pouca definição de detalhes, e, se associado à fala de Santo Antonio, a qual descreve uma a uma de suas “visões de tentação” ( “Eu repeli o monstruoso anacoreta que me oferecia, rindo, pãezinhos quentes, o centauro que tentava carregar- me na sua garupa, - e esta criança negra aparecida no meio das areias, tão b e l a , e q u e m e d i s s e c h a m a r - s e o e s p í r i t o d a f o r n i c a ç ã o ” 41) , c r i a sentido a partir de um estereótipo de trilha sonor a. Em seguida reinicia-se (em 13’ 36”) , como numa explosão, os sons de animais, a atormentar Santo Antonio. Um tema ao fundo, tocado por um instrumento não identificável, de ataque pronunciado e timbre provavelmente sintetizado (de cor cujo pr edomínio está em uma região média de fr eqüências) parece condensar o momento: de pulso marcado e indefinição tonal, cria movimento e “tensiona o ambiente”. Por ém, segue uma montagem com muitos elementos e como que uma reexposição de todos os pequenos sons ligados à alucinação (ou à tentação, não sabemos mais ao cer to), além de fr agmentos da valsa, do som inicial, do som-tarântula, e de um cur to tema tocado por uma flauta, sinuoso, com pequenos portamentos, de expressão lânguida. Em seguida o movimento se extingue com mais uma fala ambígua, a respeito de uma personagem já mencionada, mas que não sabemos ao cer to que valor tem par a o protagonista: Ammonaria, que, ao que parece, e por conta da proximidade com o Mais po rquo i viendrait-Il? D’ailleu rs, est-ce que je ne co nnais pas ses artifices?” (t r an scri ção - A n ex o 2 ) 41 “J ’ a i r e p o u s s é l e m o n s t r u e u x a n a c h o r è t e q u i m ’ o f f r a i t , e n r i a n t , d e s p e t i t s p a i n s ch auds, le centau re qu i tâchait de me prendre sa croupe, - et cet en fant no ir ap paru au milieu des sables, qu i était très beau, et qu i m’a dit s’ap peler l’esprit de f o r n i c a t i o n ” . (t r an scri ção - A n ex o 2 )

49

tema lânguido, é a causa destas recentes tentações/alucinações. A música se encerra então como num lamento.

2. 5. Conclusão Se observarmos novamente a tela de Bosch salta à f rente a naturalidade

de

Santo

Antonio,

mediante

as

aparições

completamente impr ováveis que o rodeiam. O homem encontra- se tão absorto em sua contemplação, com olhar ao longe e posição de descanso que, ou não se dá conta das aparições, ou estas não são, para ele, fatos a se estranhar . Nesta tela os animais que o rodeiam não parecem o quer er impor tunar. Mas, se sabemos que está em um deserto, o que ser ia a paisagem ao fundo - de uma vila de seres improváveis,

e,

mais

longe

ainda,

de

uma

fortaleza?

Seriam

aparições reais ou enigmas de sua imaginação? A tela instaur a a mesma ambigüidade da música que estudamos aqui: não é possível definir o que é ou não real nesta paisagem, mas nenhum, ou quase, dos sons que escutamos estão alheios a uma relação com o mundo de Santo Antonio. Eles estão dentr o desta ambigüidade, e ref orçam ou uma síntese da realidade (através dos sons r ealistas) ou um escape desta (com os sons-animais em loop, por exemplo). Mas não é possível delimitar aquilo que é de fato percebido por Santo Antonio daquilo que é sua imaginação ou delírio. Por conta de um tratamento entre realista e f antasioso do sentido dos sons, La Tentation transita entr e o simbólico e o representativo, entre o épico e o dramático. Se a compararmos com uma

obra

que

lhe

é

muito

próxima,

o

Apocalypse

de

Jean,

percebemos a difer ença: a obra de Henr y é quase sempre icônica, tr abalha com símbolos de objetos que quer repr esentar; é sintética e constr ói sua narrativa atr avés de caracter es sonor os, construídos

50

pela e na escuta r eduzida seja do som imaginado (como uma cavalgada) seja no som ger ado, no efeito que produz (o ritmo de cavalgada em sons sintéticos, no momento em que se menciona uma cavalgada) . A obra de Chion, por outro lado, lida também com sons imediatamente alegóricos, mas usa, par a uma constr ução realista, sons r elacionamos diretamente a uma fonte. Quase sempr e, porém, estes sons “puros” com relação à sua f onte são embaralhados, mascar ados, fato que contr ibui par a uma ambigüidade. É sobre esta gangor ra de sentidos que, espelhado na confusão entre o percebido e o

imaginado

na

consciência

constr ói sua música.

do

personagem

central,

M.

Chion

51

Capítulo 3 UMA MÚSICA-CENA

De que man eira a música po de d ar-n os belas formas sem o conteúdo de uma determinada emoção é o que já nos mostra à distância um ramo do ornamento das belas artes: o arabesco. Di visamos linh as curvas, o ra s e inclinando suavemente, ora se elevando com ousadia, que se encontram e se afastam, correspondentes a arcos pequenos e grandes, aparentemente incomensuráveis, mas sempre bem proporcionadas, que se contrapõem e se encontram, um conjunto de pequenas unidades e que, no entanto, constitui um todo. Imaginemos, então, um arabesco não morto e imóvel, mas sim um que nasça diante de nossos olhos, numa permanente autoformação. Como as linhas fortes e sutis vão ao encalço umas das outras, como se elevam de uma pequena curva a uma altura suntuosa, depois voltam a descer, alargamse e se encolhem, e surpreendem continuamente o olhar num engenho alternar-se de repouso e tensão ! (...)Imag inemos, por comp leto , esse arabesco vivo como emanação ativa de um espírito artístico, que verte sem cessar a plenitude completa de sua fantasia nas veias desse movimento – em certa medida, não estará esta impressão bem próxima daquela musical? (Eduard Hansli ck, O Belo Mus ical )

52

3. 1.1. Apresentação: audio- cena No capítulo anterior estudamos como o compositor r ecriou, exclusivamente pelo som, a cena do texto de Flaubert, A Tentação de Santo A ntônio. Vimos que na música de Michel Chion as imagens de som são for madas a partir da voz e das ações do per sonagem; que todos os sentidos do som acusmático são criados a partir dessa perspectiva. A relação texto/música ou texto/som é, portanto, de complementaridade, mas é o texto liter ário, sempre presente na voz dos personagens ou dos nar radores, que conduz a narrativa. Neste

capítulo

ser ão

abordadas

obras

em

que

não

estão

pr esentes nem o texto nem a apresentação de personagens. E stas obras,

todavia,

também

criam

imagens

de

um

cenário,

ou

representam um espaço tirado da realidade; podem mesmo per mitir – embora não necessariamente - que neste espaço uma narr ativa mais ou menos explícita se realize. Por tanto são obras que repr esentam uma

realidade

acústica,

mas

não

o

fazem

a

partir

de

um

distanciamento dramático que mostr a personagens que se dão ao olhar do espectador. O que é r epresentado nessas obras é, talvez, uma suposta escuta da realidade. É como uma câmera subjetiva no cinema: o que se tem é a visão da cena vislumbrada por um observador .

Se

(detalhado

no

voltarmos cap.

2),

ao

esquema

podemos

dramático

de

descrevê-las

Rosenfeld

como

uma

representação totalmente dramática. É como se da música de Michel Chion o pr edominante f oco narr ativo em ter ceir a pessoa fosse deslocado completamente para uma primeira pessoa, para aquilo que se per cebe no cenário. Na primeira situação olha-se, de fora, a ação de per sonagens alheios a uma obser vação; na segunda, há um olhar participante da cena, que escolhe aquilo que r epresenta. Mas tanto nas músicas que estudaremos aqui quanto na de Michel Chion tem- se a presença do ilusionismo teatral clássico, a

53

chamada ‘quarta parede’ - dispositivo teór ico que encerra a cena, do ponto de vista dos per sonagens, em três paredes reais e uma imaginária, onde se encontra o público, que a tudo assiste. Tr ata- se de um espaço de representação – como o é na pintur a clássica – fechado em si mesmo: “Como queria Diderot, a ‘ quar ta parede’ signif ica uma cena autobastante, absorvida em si mesma, contida em seu pr óprio mundo, ignorando o olhar exter no a ela dir igido, evitando qualquer sinal de interferência do espectador , pois os atores estão ‘ em outro mundo’” (Xavier , 2003, p. 17). Porém, em Presque Rien, de Luc Ferrar i -

a obra central estudada neste

capítulo - parece haver uma identificação do ouvinte com a cena; é como se a música f osse a r epresentação de sua escuta. Mas, escuta emoldurada, selecionada temporal e espacialmente, representada em uma

obra

com

uma

duração

finita

e

um

número

limitado

de

focalizações do campo acústico representado. Mas esta música emoldurada ou feita em enquadr amento não estaria fugindo da própria especif icidade do f enômeno musical? Este é um questionamento que alguns teóricos e compositores ligados à corrente estética que apregoa uma autonomia da música poderiam me fazer. Tal noção de que a música não deve remeter a nada além dela mesma

foi

formulada

em

meados

do

século

XIX

por

Eduard

Hanslick, que afir ma que o belo da música, aquilo que através dela chega ao sensível é algo que, “sem depender e sem necessitar de um conteúdo exter ior, consiste unicamente nos sons e em sua ligação ar tística. ”

(Hanslick,

[1891]

1989,

p.

61).

A

música,

neste

pensamento, é uma arte cujo “conteúdo são as suas formas”: O belo de um tema [musical] independente e simples se anuncia ao sentimento estético com aquela imediatez que não admite outra explicação a não ser, no máximo, a conveniência íntima do fenômeno, a harmonia de suas partes, sem relação com nada de estranho. Isso nos provoca prazer em si mesmo, como os arabescos, as colunas, ou como produtos do belo na natureza, tais como folhas e flores. (idem, p. 68-69)

54

Assim, a noção de que a música represente algo exterior à sua or ganização ou às suas “formas har moniosas” é inconcebível em tal teoria. A música aqui é algo desterritorializado, ou, como se refere Hanslick,

“não é deste mundo” (idem, p. 65). A idéia da música

pura ou autônoma remete por tanto a uma fluidez de imagens de forma a individualizar completamente a experiência da escuta no campo das imagens; torná-la tão única a cada ouvinte que seríamos incapazes de apontar elementos comuns na imaginação deste ou daquele sujeito. Por não representar nada além dela mesma a música, ainda sob o prisma desta teoria, não remete a espaços ou objetos ‘do mundo’ ou do ‘real’. Barthes a opõe mesmo ao que chama das artes dióptricas (1990, p. 86), como chamou todas as ar tes repr esentativas (a pintura, o teatro, o cinema, a fotografia e a literatura). Ao contrário destas a música não remete a um espaço de representação recortável, como a cena de Diderot, em que este ocorre “enquanto alguém

(autor,

leitor,

espectador)

dirigir

seu

olhar

para

um

horizonte e nele r ecor tar a base de um triângulo de que seu olho ( ou sua mente) ser á vértice” ( Barthes, 1990, p. 96). E la r emete antes a um espaço amplo que não pode ser r estr ito, e esta aber tura talvez decorr a da própria natureza do som que, ao contrár io de outros objetos para a per cepção, não é circunscrito nem espacial nem tempor almente; é um objeto absolutamente f luido e em constante devir. Mas existe uma tal autonomia da música? As próprias obras que selecionamos aqui negam que este seja o único viés da fruição musical. E las focalizam-se na repr esentação de objetos do mundo, remetem às causas dos sons postos em cena e por isso aproximam-se das artes dióptricas de Barthes. Portanto a fr uição destas obr as depende,

ao

menos

em

parte,

do

entendimento

do

objeto

da

representação que cada uma encerra, e nesse ponto não faz sentido

55

referir-se a cada uma delas como música pura, pois nos modelos teóricos desta cor rente, por conta dessas caracter ísticas, não ser iam sequer obr as musicais.

No entanto são feitas tão somente para a

escuta e com a ausência de qualquer texto ou voz narrativa, o que as diferencia de uma criação radiofônica. Além disso, a tendência à qual estão ligadas, a música concr eta, já havia feito o ritual de passagem para o domínio do musical ao apresentarem-se em um concer to, e portanto indicarem ter em sido compostas com o intuito de ser em músicas. Por estes fatores dados consider amos, portanto, ou ao menos aceitaremos tempor ariamente, as obras que estudaremos como musicais. Mas talvez o que ligue essas obras ao domínio do musical é o fato

de que há

representação

nelas uma outra

exterior

(ou

dimensão que foge da mera

extra- musical,

em

oposição

ao

que

Hanslick chamaria de musical). Trata-se de uma construção sonor a baseada em uma escuta reduzida, base par a a criação do musical – e aqui estamos nos r efer indo a uma terminologia e também a um caminho de criação ditado por Pier re Schaef fer. Ou seja, nestas obras há um tr abalho de composição não só a partir ou nas imagens exteriores que despertam ( ou seja, nas imagens que se dirigem ao real), mas também no som em si, nas relações sonor as intrínsecas postas em relevo por esse trabalho – que podem ref orçar as imagens referenciais, mas podem também estabelecer um outr o campo de imagens, paralelo àquele, que não se r efer e ao real. Esta existência bipartida foi bem percebida por Pierre Schaeffer, e mais adiante retornaremos momento

aos

mesmo

dilemas de

sua

do

fundador

criação.

da

música

concreta

no

Também

iremos

discutir

sua

admissão de um musical em si – fato que o aproxima do pensamento de Hanslick, comparação que iremos ef etuar adiante. Por agora porém devemos prosseguir em outra direção: tendo como ponto de referência

as

obras

acusmáticas

que

escolhemos,

seguimos

na

56

descrição

deste

campo

musical

repr esentativo

no

esforço

de

delimitar seus limites. 3. 1.2. Existe uma pura ‘música anedótica’? Mas se não é possível generalizar o conceito de música pura para todas as obras musicais – visto que as obras que estudaremos aqui não o são, apesar de serem músicas - cabe perguntar também se é possível criar, no campo da escuta, uma imaginação do mundo, uma

representação.

Pois,

e

par afraseando

a

teoria

da

música

autônoma, não seria a esta uma arte cujas possibilidades de leitur a são tão múltiplas que impossibilitam qualquer identidade entre a obra

concretizada

e

aquilo

que,

no

seu

projeto,

supostamente

representaria? Em outros termos: uma música que f aça alusão a uma realidade exterior a ela mesma estaria fadada a sempre recorrer às palavras para explicitar seu sentido? Michel Chion coloca a questão a partir de uma divertida citação de Saint- Saëns: A censura que se faz à música por não exprimir nada além dela mesma, sem o auxílio da palavra, se aplica ig ualmente à p intu ra (...). Um quadro jamais v ai represent ar Ad ão e Eva a u m es pect ador que não con heça a Bíbli a; ele não irá representar nada além de um homem e uma mulher n u s n o m e i o d e u m j a r d i m ( . . . ) 42. ( S a i n t - S a ë n s a p u d C h i o n , p.23, 1993).

E Chion, que havia qualificado a comparação de Saint- Saëns como maldosa, em seguida justifica-se: “(. ..) o quadro representa quase inteiramente alguma coisa que se pode identificar sem o auxílio de um título: aqui, ‘um homem e uma mulher nus no meio de um jar dim’ ; enquanto que a música, mesmo para coisas assim 42

“le reproche qu’on fait à la musique de ne rien exprimer par elle-même, sans le secours de la parole, s’applique également à la peinture”. (...) “Un tableau ne répresentera jamais Adam et Ève à un spectateur qui ne connaîtrait pas la Bible; il ne saurait représenter autre chose qu’un homme et une femme nus au milieu d’un jardin”. (Saint-Saëns apud Chion, p.23, 1993).

57

c o n c r e t a s , n ã o p o d e r e c o r r e r s e n ã o a o c ó d i g o e a o s i m b ó l i c o ” 43 (Chion, p.24, 1993) . Pelo menos na música instr umental ou vocal é necessário, portanto, haver, para uma repr esentação do mesmo tipo que a do exemplo de Saint- Saëns, um contrato simbólico que se estabeleça entre a obr a e seus ouvintes. I sto é absolutamente válido para a música instrumental, pois o som de um instr umento ( em situação acusmática) vai sempre remeter à sua f onte. A imitação neste caso vai se limitar a um discurso metafórico ou alusivo. Mas a música acusmática pode fazer uso de sons referenciais, ou seja, daqueles sons gravados em que se reconhece sua or igem. Pois enquanto que as músicas instr umentais e vocais empregam, como supor te de fixação, a escrita, e como meio de realização, as pr óprias f ontes sonoras, e disso não podem se desvencilhar , a música acusmática tem a gravação sonora como suporte de f ixação e os alto-falantes como meios de realização. Os alto-falantes então pr ojetam estes sons; é neles que esta música se realiza: [o alt o-falant e] (...) é capaz de real izar uma imensa quantidade de sons distintos; boa parte desses sons chegam ao ouvinte por intermédio de uma outra função assumida pelo alto-falante que eu denomino de ‘buraco’. Por este buraco, podem entrar sons de diferentes lugares e momentos, sejam reai s ou imaginados. (Ao abo rdar i-som, ou a imagem de som, François Bayle diz que ele ‘não é som de nada. Pois sucessivamente encontrado, perdido, reencontrado, dotado desse atributo alado de leveza e de economia radical: vindo de outro lugar!’). É aqui que uma primeira ambigüidade funcional se revela: ele deve soar em determinado ambiente, e ao mesmo tempo trazer sons de outros ambientes. (Freire Garcia, p. 113 , 20 04)

As fontes imaginadas dos sons estão assim além do altofalante,

pois

esta

música

pode

trabalhar

com

todos

os

sons

diretamente captados das fontes que quer evocar, no espaço que quer 43

(...) le tableau répresente tout de même clairement quelque chose qu’on peut identifier sans le secours d’aucun titre: ici “un homme et une femme nus au milieu d’un jardine”; tandis que la musique, même pour des choses aussi concrètes, ne peut recourir qu’au code et au symbole”. (Chion, p. 24, 1993).

58

representar. E nquanto que na música vocal- instrumental a imagem da fonte dos sons conf unde-se com o suporte de realização, na música

acusmática,

pela

opacidade

dos

alto-falantes,

isto

não

acontece, a imagem das fontes distingue-se de seus ‘pr ojetores’. Mas

será

este

fato

suf iciente

para

a

criação

de

um

cenário

imaginário no ouvinte? Além disso: uma mer a gr avação de uma cena sustenta-se enquanto r epresentação da mesma? Claro que estas músicas não se atêm a um r ealismo assim estrito: vimos que, na música de Chion, este possui gradações, conforme a percepção do real do protagonista. Por outro lado, a realidade como é captada por um par de microfones tem pouco em comum com aquela percebida pelos ouvidos. Em primeiro lugar, a cadeia de fixação e reprodução não é ‘neutra’ com relação ao som que se escuta diretamente. Não há sistema de gravação capaz de fixar de f orma total todas as propriedades do som em meio aéreo, nem



sistema

algum

de

alto-falantes

que

não

imprima

sua

coloração, ou sala de escuta que seja acusticamente neutra. O microf one não capta a espacialidade dos sons que me chegam; ele a tr aduz por relações de amplitude, as quais não são suf icientes par a cr iarem uma imagem na minha percepção. Um som vindo de for a de minha janela é distinto para mim de um som que está dentro de minha sala; se um mesmo cenário, antes composto por sons vindos de todas as direções, for gravado, os sons de fora ser ão traduzidos como menos intensos que os outros (mesmo havendo sons dentro de minha sala que me chegam com a mesma ou com menor amplitude), e ambos serão amalgamados em um único espaço bidimensional. A suposta

neutralidade

do

aparato

eletroacústico

deve

relativizada e a noção mesma de ‘f onte’ sonora em

ser

então

um meio

acusmático tor na-se assim mais complexa, pois entr e o som captado e o som gr avado há todo o apar ato de gravação que deixa vestígios de seu trabalho, por mais realista que uma captação queira ser .

59

Mas

a

principal

quebra

com

um

sistema

realista

de

representação nestas obras decorre justamente do f ato delas serem acusmáticas. A situação acusmática supõe um ouvinte separado do lugar onde as supostas fontes reais f oram emitidas. No som de um cenário há somente... o som

– sem a presença dos outr os aspectos

que compõem a cena (visualidade, cheir o, temperatura,

etc)



característica do som fixado que f oi chamada de esquizofonia por Murray Schafer (Schafer, 1992, p. 176) . Uma pr imeira conseqüência desta situação resulta no fato de não se ver a fonte dos sons, e por isso se dar conta de que, para um mesmo som, há várias causas interagindo – aquilo que Michel Chion chamou de Pluricausalidade do Som ( Chion, 1999, p. 161-162; 1994, p. 27). Tome-se o seguinte exemplo, seguido da explicação de seu autor: Demos um p equeno g olpe seco co m uma caneta sob re uma mesa. Qual é a cau sa d esse som? Es ta p ergu nta, seg undo o que se entenda por causa, deixa aberta uma dezena de respostas possíveis. Podemos dizer que é a caneta, mas também que é a mão; que são a mesa e a caneta, uma contra a outra; ou a ponta da caneta. Podemos dizer que a causa deste breve choque é a onda vibratória que chega ao ouvido, mas também nosso movimento, ou inclusive o desejo de fazer u m a d e m o n s t r a ç ã o . ( C h i o n , 1 9 9 9 , p . 1 6 1 ) 44.

Assim, conforme as condições e as intenções de escuta se tira esta ou aquela interpretação da causa desse som. Diríamos até, por outro lado, que neste exemplo não se pode deduzir apenas pela escuta (se este som for, por exemplo, gravado) qual seja sua f onte: se a caneta, se a mesa, etc. T rata-se de um som inespecífico, e discer niríamos apenas que se trata de um som seco, percussivo, talvez deduzir íamos ser o som de um objeto metálico contra outro de madeira, etc. 44

Demos un pequeño golpe seco con una estilográfica sobre uma mesa. Cuál es la causa de este sonido? Esta pregunta, según qué entendamos por causa, deja abierta uma decena de respuestas posibles. Podemos decir que es la estilográfica, pero también que es la mano; que son la mesa y la estilográfica, uma contra outra; o la punta de la estilográfica. Podemos decir que la causa de este breve choque es la onda vibratoria que llega al oído, pero también nuestro movimento, o incluso nuestro deseo de hacer uma demonstratión. (Chion, 1999, p. 161).

60

Agora, aliás, acabamos de esboçar uma segunda categoria de escuta causal, decorrente da situação acusmática, e que Michel Chion chama de indício sonoro materializador ( Chion, 1994, p.114; 1999, p. 135). Assim é def inido: Os ind ício s so noro s materi alizadores s ão o s detalh es do som que nos fazem ‘sentir’ as condições materiais da fonte sonora, e referem ao processo concreto da produção so nora. El es p odem nos dar informações sob re a sub stân cia causadora do som – madeira, metal, papel, pano – bem como a maneira pela qual o som foi produzido – por fricção, impacto, oscilações desiguais, movimentos periódicos de vai e v e m , e a s s i m p o r d i a n t e . ( C h i o n , 1 9 9 4 , p . 1 1 4 ) . 45

Evidentemente,

estes

indícios

estão

presentes

no

som

independentemente de uma situação acusmática, mas são postos em relevo à medida que não se vê sua causa. Por outro lado, são vestígios necessár ios para que o ouvinte f ormule uma imagem dessas causas; são elementos significantes para que r ecrie ou imagine a cadeia causal do som, e não só isso, como também todo o ambiente ou a cena em que esse som f oi produzido

– e isso não r efer e

necessariamente a um ambiente ou uma causalidade real, mas a uma imaginária, conveniente confor me o contexto narrativo ou musical, e realizável conforme certa perícia composicional. Este pr ocesso de imaginação necessita da memória para se estabelecer, pois, pela escuta, um som com for tes indícios materializador es vai induzir todo um campo de imagens ligadas às fontes imaginadas - no pr ocesso de imaginação/lembrança que descr evemos no pr imeiro capítulo através do pensamento de Bachelard e que denominamos de escuta onírica. Mas para que uma identidade se estabeleça o compositor deve selecionar os sons que conduzam à imagem que quer criar; caso 45

The materializing indices are the sound’s details that causes us to ‘feel’ the material conditions of the sound source, and refer to the concrete process of the sound production. They can give us information about the substance causing the sound – wood, metal, paper, cloth – as well as the way the sound is produced – by friction, impact, uneven oscillations, periodic movement back and forth, and so on. (Chion, 1994, p. 114).

61

contrário, esta pode f icar dispersa. Pois o microf one é uma janela pela qual passam, indistintos, todos os sons, ao contr ário da atenção do ouvinte, que hierarquiza (voluntária ou involuntariamente) os sons que lhe chegam: (...) se Mendel ssoh n pu dess e ter ti do u m gravad or p ara registrar os sons da gruta de Fingal e reescutá-los em seguida, ficaria muito decepcionado com a inexpressividade do resultado, e mesmo de sua ‘narrativa vaga’. Da mesma forma, os ruídos captad os n os l ugares reais que ins piraram Oliv ier Messiaen em su a ob ra Des ca nyon s au x ét oiles n ão resul tari am, como nós mesmos fizemos a experiência, em nada de específico: é mais provável que se ouça mais a passagem de carros de turistas e, em horas determinadas, algum canto de pássaros e o cricrilar dos insetos do que a majestade muda da paisagem e do esplendor m u l t i c o l o r i d o d a s r o c h a s . ( C h i o n , 1 9 9 3 , p . 3 3 3 ) 46.

Desta colocação de Michel Chion deduzo então que par a as obras que iremos analisar a realidade acústica objetiva interessa pouco: em uma situação de escuta cotidiana jamais se está atento a todos os aspectos do som, e nem se está atento por todo o momento. É a noção mesma de tempo que está em questão: em uma situação de escuta nor mal a atenção hierar quiza objetos a serem percebidos em detrimento de outr os durante o fluxo temporal. Mas a gravação capta todos os sons a todo instante, e quando se escuta uma repr odução já se induz a uma intencionalidade que é a de uma atenção a todos os eventos captados, sem distinção hierár quica para a per cepção. Tal situação

é

artificial:

ocorre,

por

um

lado,

por

conta

das

características do aparato técnico, e por outr o, por conta da escuta acusmática, que retira os sons de seus contextos originais. O real portanto aparece, nas obras que abordaremos, como representação. Para o senso comum a gravação sonora é apenas um 46

“ (...) si Mendelssohn avait pu avoir um magnétophone pour enregistrer les sons de la grotte de Fingal et les réécouter ensuite, il aurait été très déçu de l’inexpressivité du résultat, et même de son ‘flou narratif’. De même, des bruits captés dans les sites réels qui ont inspiré à Olivier Messiaen son ouvre Des canyons aux étoiles ne donnent, comme nous en avons fait l’expérience, rien de spécifique: on a plus de chance d’y entendre des passages de cars de touristes et, à des heures déterminées, quelques chants d’oiseaux et crissements d’insectes que la majesté muette du paysage et la splendeur bariolée des roches.” (Chion, 1993, p. 333)

62

aprisionamento do som original – é sua cópia idêntica - mas, como vimos, ela é insuf iciente para constituir uma repr odução do real, pois tem pouco em comum com a percepção deste. As obras que pr ocur am r epresentar a realidade acústica o fazem, por tanto, a par tir de uma reconstrução, e

por isso são composições. O que as

diferencia das obr as instrumentais/vocais que se referem ao real – c o m o o c a s o d a m ú s i c a p r o g r a m á t i c a 47 - é j u s t a m e n t e o u s o d a gr avação sonor a, uma r epresentação dir eta do r eal, seu análogo, como a fotografia (conforme descrevemos no cap. 1) . Nestas obr as instrumentais- vocais o real chega seja pelo uso da imitação e da onomatopéia seja por via de elementos convencionais muito mais evidentes que na música eletroacústica. Os pássaros de Messiaen, por exemplo, são imitações instrumentais, ‘onomatopéias’, e nunca serão entendidos como o som do pássaro. São sons de instrumentos imitando pássaros. Outros procedimentos composicionais provêm do real, como a imitação cujo modelo é o eco, mas ser ão escutados sempre

como

um

simulacro

do

real.

todavia, pode dispor do som do pássaro,

A

música

eletroacústica,

pode gravar um ambiente

com eco, e deslocar estes sons “naturais” para dentro de uma obra musical. Mas estes elementos entram apenas enquanto objetos: a gr avação sonor a não pode r eproduzir ou representar a r ealidade como se escuta pois não possui o mesmo tipo de f luxo sonoro que a percepção, nem dá conta das especificidades espaciais do som “natur al”. O som gravado não é o som escutado normalmente – e para r econstruir esta escuta é preciso fazer uso de convenções ou reconstruções. Um outro caso da r epresentação do real atr avés do som ocor re no cinema. Em um f ilme, os sons colocados em sincr onia com suas fontes mostradas na tela não são necessariamente bem-definidos do

47

Para uma conceituação geral deste tipo de abordagem musical, ver Chion, Michel: Le poéme symphonique. Fayard: Paris, 1993.

63

ponto de vista da imagem sonor a causal: o espectador imediatamente associa aquele som àquela imagem. Se se deseja criar uma cadeia causal realista ou ver ossímil entr e sons e imagens os sons podem ser, então, muito mais estilizados que propriamente realistas; o t r a b a l h o d e s í n c r e s e 48 d á c o n t a d e l i g á - l o s à s i m a g e n s . B a s t a q u e possuam características condizentes com aquela fonte, as quais podem se limitar a indícios materializadores comuns. Por exemplo: o som de passos com sapatos em um chão de madeira pode se reduzir a quaisquer toc-tocs – claro, estr anho ser ia um som de passos que, na imagem, acontecem em um gramado, e sonoramente parecessem ocorrer em uma sala com piso de madeir a. O som de um r iacho, todavia, não precisa ser necessariamente do riacho que se vê; basta um som de água cor rente para conferir verossimilhança. Na ausência

música do

eletroacústica

elemento

isto

visual

ocorre

obriga

o

de

outra

forma:

compositor

a

a

buscar

pr ecisamente, caso queira repr esentar objetos do mundo, os sons de suas

f ontes.

Aqui

ocorre

também

a

estilização

e

o

uso

de

convenções: caso se queira aludir a uma imagem da realidade será preciso

se

ater

a

sons

muito

claros

do

ponto

de

vista

da

referencialidade; pode-se empr egar mesmo esquemas sonoros não necessariamente

reais



mas

eficientes

do

ponto

de

vista

da

representação - para espelhar estes objetos (como o fogo em La Tentation de Saint Antoine, como vimos no cap. 2).

O título das

obras, ou outr as pistas verbais (notas de programa, vozes) também são essenciais par a conduzir a imaginação do ouvinte para as imagens desejadas – fato que f az com que esta música se distancie ainda mais de um ideal de música pura ou autônoma.

48

Palavra forjada por Michel Chion, uma combinação de síntese e sincronia, assim definida: “(...) é a amálgama espontânea e irresistível produzida entre um fenômeno auditivo particular e um fenômeno visual quando estes ocorrem ao mesmo tempo”. (Chion, 1994, p. 63). [ “(...) is the spontaneous and irresistible weld produced between a particulary auditory phenomenon and visual phenomenon when they occur at the same time”]

64

3. 1.3. Sonoro e musical: serão estes term os excludent es? As obr as que iremos estudar estão associadas a uma ver tente da música eletroacústica chamada paisagem sonora. Abor dam em seu tecido uma dupla organização: uma primeira, explícita, diz respeito a uma representação do real, exterior ou extrínseca. Mas a outra diz respeito talvez a uma constr ução intrínseca dos sons entr e si, naquilo que tr adicionalmente se estipula por musical. Paisagem sonora (cf. Glossário) é um gêner o de música eletroacústica acusmática que emprega a gravação sonora com o intuito

de

representar

uma

realidade

acústica

(ou

seja,

faz

o

caminho inverso da gravação). Atém-se portanto a um pr imeiro vértice

destas

controverso,

músicas

pois

bífidas,

abrange

uma

as

acusmáticas.

gama

muito

larga

É

um de

termo

obras

e

pr eocupações estéticas e que, entr etanto, diz pouco sobre uma representação acústica, pois não dá conta que, enquanto a paisagem visual é um quadro estático e esquemático, o mesmo não ocorre nem pode

ocorrer

com

o

som,

que

é

um

fenômeno

em

constante

tr ansf ormação e que só pode ocorrer no tempo. Não nos cabe por ém discutir a validade de um termo que é amplamente empregado. Por terem

portanto

o

aspecto

representativo

predominante

nossas

músicas são associadas à paisagem sonora. Mas se um dos aspectos da análise destas obras vai se ater na maneir a pela qual estes sons r epresentam uma imagem narrativa do evento

sugerido

em

seu

título

(car acterística

predominante

da

paisagem sonora), outro aspecto vai ser o de apontar as f ormas de composição a partir da escuta reduzida, as quais também estão pr esentes nas obras que ir emos estudar . E ste me parece ser um rico paradoxo

e

uma

das

maiores

forças

da

música

eletroacústica

65

a c u s m á t i c a , c o m o t a m b é m a p o n t a M i c h e l C h i o n 49: a r e l a ç ã o t e n s a e pr esente numa mesma obra entre uma composição que ora privilegia imagens referenciais e ora a mater ialidade do som. Oposição que se instalou desde a primeira idade da música eletroacústica, nos Cinq études de bruits de Pierre Schaeffer (1948) – obras iniciais da música concreta - evidente desde alguns de seus títulos bipartidos: Etude aux chemins de fer, Etude aux tourniquets, Etude pathétique o u E t u d e a u x C a s s e r o l e s 50. E s t e s t í t u l o s o p õ e m , e m u m a m e s m a sentença, uma forma abstrata ou um substantivo que denota uma tendência à abstração – de qualquer forma ligado à tradição da música ‘abstrata’ (Estudo) – a um termo que nos conta ou sobre a fonte do som ou sobre o personagem principal da ‘anedota’, na narratividade que aquela música contém, como no caso do Etude aux c h e m i n s d e f e r 51. E s t a f o i a p r i m e i r a c o m p o s i ç ã o c o n c r e t a d e P i e r r e Schaeffer,

e

desde

sua

feitura

o

compositor

constata

esta

ambivalência, como relata em 1948, no ‘primeir o diário da música concreta’, antes de concluir a obra: 10 de maio: minha composição hesita entre dois campos: o das seqüências dramáticas e o das seqüências m u s i c a i s 52. ( S c h a e f f e r , 1 9 5 2 , p . 2 0 ) .

mas

demonstra

um

certo

desconforto

com

a

inevitável

pr esença, nesta composição com ‘sons f erroviár ios’ , do anedótico:

aos

A seqü ênci a dramát ica limi ta a imaginação. Ass iste-se eventos: saída, parada. É visível. A locomotiva se

49

“Uma das riquezas da música de sons fixados reside, com efeito, na sua ambivalência com relação à questão da anedota, a qual não cessa de desaparecer e aparecer” [Une des richesses de la musique des sons fixés réside en effet dans son ambivalence par rapport à la question de l’anecdote, sans arrêt congédiée puis reintroduite]. ( C h i o n , 1991, p. 14) 50 Estudo das Ferrovias, Estudo dos chocalhos, Estudo Patético ou Estudo das Panelas. Tourniquets não possui tradução exata em português: trata-se de um brinquedo infantil semelhante a um chocalho metálico. 51 52

O Étude aux Chemins de Fer (versão de 1948) encontra-se integral na faixa 14 do CD em anexo.

10 mai. Ma composition hesite entre deux partis: des séquences dramatiques et des séquences musicales. (S c h aeffe r, 1 9 5 2 , p . 2 0 ).

66 desloca, a ferrovi a é deserta.... A máquin a so fre, res pira, se detém – antropomorfismo. Tudo isso é o contrário da música. En tret anto , fu i bem su cedi do ao is olar um ritmo, e ao opô-lo a si mesmo com uma cor diferente. Claro, escuro, claro, es curo . Es te ritmo pod e mu ito bem ficar imutáv el p or u m bom tempo. Cria-se assim uma espécie de identidade e esta repetição faz esquecer que se trata de um trem. (idem, i b i d e m , p . 2 1 ) 53

Emblemático do paradoxo da música concreta ou de sua contradição, o Estudo das Ferrovias soa, para mim, como uma série de focalizações em diversos aspectos do som de um trem: a partida, o som interno, de mais de perto das rodas, a parada... como numa célebre seqüência, em Alexandre Nevsky, analisada em O Sentido do Filme, de tomadas estáticas de uma paisagem e da tropa russa 54 (Einsenstein, [1947] 2003, p. 118). Na imagem vê-se, nesta sequência, dois personagens na encosta da montanha, bem ao longe, em seguida próximos, e em seguida um pouco mais distantes. Adiante, um plano geral da tropa russa na estepe. Um novo plano na dupla de personagens. E agora o olhar volta-se para a tropa: vista por trás, depois de frente com close no rosto de uma mulher, depois com close em um velho, em seguida em um jovem, e em seguida o plano geral da tropa vista de frente. A imagem da tropa em expectativa foi então decupada em diversos planos, como fez a música de Schaeffer com relação aos sons do trem.

Seqüência de Alexandre Nevsky As repetições em loop (cf. Glossário) dos ‘ritmos isolados’ contribuem para acentuar um realismo. Não é o trem uma enorme máquina sonora que produz essas repetições? O loop, pelo emprego do sulco fechado (cf. Glossário) como 53

La séquence dramatique contraint l’imagination. On assiste à des événements; départ, arrêt. On voit. La locomotive se déplace, la voie est déserte ou traverse. La machine peine, soufflé, se détend – anthropomorphisme. Tout cela est la contraire de la musique. Cependent, j’ai réussi à isoler um rythme, et à l’opposer à lui-même dans une couleur sonore différente. Sombre, clair, sombre, clair. Ce rythme peut três bien rester longtemps inchangé. Il se crée ainsi une sorte d’identité et sa répétition fait oublier qu’il s’agit d’um train. (idem, ibidem, p.21). 54 Sendo que aqui consideramos apenas as imagens, e não a relação destas com a música.

67

primeiro suporte da música concreta é uma decorrência natural desse suporte e transformou-se também, por conseqüência, no primeiro objeto retórico desta arte nascente. Teria sido, neste contexto, a escolha dos trens meramente casual? O loop foi, de qualquer forma, essencial para a posterior formulação da teoria de uma escuta reduzida. É um recorte temporal repetido em seqüência, que enquadra um som. A repetição por sua vez faz com que o ouvinte perceba nuanças que passariam desapercebidas no fluxo sonoro natural, de modo que esta nova dimensão do sonoro passa a ser o foco de sua percepção: faz com que tudo que não se refira à percepção deste ‘puro sonoro’ passe para segundo plano – sendo essa a idéia da escuta reduzida, como veremos com detalhe adiante. Mas a repetição em loop, por enquadrar o som,

permite também, por

isolá-lo do continuum sonoro, que o ouvinte o analise e formule uma imagem referencial estática – conforme desperte sua imaginação para a memória que tem desses sons, relacionando-os com a vivência que teve ou que imaginou ter de seu contexto. Esta é outra possibilidade que a técnica permitiu, como uma fotografia do sonoro, ou uma lente de aumento. Assim é que posso distinguir se a tomada é exterior ou interior ao trem, se é próxima ou distante das rodas, e formular as imagens subseqüentes a isso. Porém é possível escutar no Estudo uma outra dimensão, ‘musical’: ritmos

compostos

através

da

montagem,

formando

frases

musicais

(Étude_exemplo, faixa 15, 2’15” do orgiginal). No exemplo adiante temos uma idéia musical ‘tradicional’: a primeira série de quatro sons, Σ , reverberados, de ataque/ressonância e massa tônica, formam uma pulsação que se espalha para as outras duas séries de sons repetidos (Φ e Ξ), conforme mostra a linha acima dos objetos Σ e Ξ. Σ ecoa em Ξ, pois esse possuiu as mesmas características tipomorfológicas daquele, e por isso o complementa e encerra a frase. A seqüência de apitos quebra com a periodicidade de Φ e abre espaço para a reintrodução da seqüência final, que é uma variação da inicial. (ouvir faixa 15)

68

Audiopartitura: 2’15” a 2’28” (Étude aux Chemins de Fer) A frase analisada compõe-se, portanto, de uma seqüência de ritmos isolados repetidos em loop – série de quadros estáticos que se engendram seguindo uma lógica ‘musical’, e não ‘anedótica’. Cada quadro, porém, contém uma imagem (exterior/interior, distante/próxima da fonte, etc), imagem autosuficiente e fechada em si mesma (com relação a um pano de fundo ou um ponto de fuga, o trem, presente no título da obra e em sons claramente referenciais), e sua ordem é indiferente para a construção de uma narratividade - como os quadros de Einsenstein, os quais foram montados a partir da relação forma visual/música, naquilo que chamou de “independência igual de planos” (idem, ibidem, p. 113, nota 13) – ou seja, foram montados, na ordem entre os planos, de forma a não engendrar uma lógica narrativa ou teleológica, mas de forma a possuir um sentido com relação a um âmbito geral, a expectativa da batalha (ver filme1 – CD 2).

69

3.1.4. A Escuta Reduzida Mas, se da fala de Schaef fer deduz-se essa composição entre dois pólos, evidenciada em sua produção musical, salta aos olhos também o desconf orto com relação à existência daquilo que é “o contrár io da música”. Presente desde os primeir os esboços, este desconforto vai resultar mais tarde em uma prática musical mais r e s t r i t i v a p o r p a r t e d e S c h a ef f e r , q u e v a i e v i t a r o ‘ a n e dó t i c o ’ – p o i s , para ele, a aventura concr eta, a música feita a partir de qualquer material gravado ( os chamados, até então, ‘ruídos’ ) deve se ater preferencialmente

aos

‘valores

musicais’

do

som,

deve

ser

constr uída sobretudo a par tir de um viés musical. Como sugere Rodolf o Caesar , esta prática musical posterior à primeira música concreta entra em acordo com sua teoria em formulação no fim dos anos cinqüenta – a qual pr ocur ava o ‘específico da música’ na composição com ruídos – específico que não se encontrava na referencialidade dos sons. A obra que transpar ece esta preocupação em tir ar se possível todo o ‘anedótico’ é o Étude aux objets, de 1959, e assim fala Caesar sobre o Étude aux Allures: Transpareceu, no Étude, o esforço de sistematização de objetos sonoromusicais pelos critères de perception, aplicado na concepção e na feitura da música. A música de Schaeffer pós-Traité adquiriu, assim, mais ‘classicismo’ em detrimento da diminuição na carga polissêmica (...).A teoria dos objetos sonoro-musicais não poderia se ajustar facilmente às obras desta primeira fase [a fase ‘concreta’, anterior aos Étude aux objets]. As ambigüidades semânticas destas peças, sua referencialidade, sua energia, seus sentidos e a poética alimentada por todos os aportes externos a uma 'escuta reduzida' ficaram, mais tarde, ausentes. É como se a partir de 1958 a música composta por Schaeffer entrasse em acordo com os quadros e encaixes morfo-tipológicos descritos em seu Tratado. (Caesar, http://acd.ufrj.br/lamut/lamutpgs/rcpesqs/escupes.htm, acessado em 02/09/2003).

A

construção

musical

schaef feriana

do

fim

dos

anos

cinqüenta confirma então o projeto descrito mais tarde no Traité des objets sonores, de 1966. Tal construção deve ser feita a par tir de

70

uma escuta reduzida, termo que se ref ere a um método de trabalho, uma ferramenta, que consiste em escutar um som for a de seus contextos, “abstraindo-o de sua causalidade, f onte, signif icação, ou seja, colocando em par ênteses o mundo ‘for a do som’”, como bem sintetizou Laura Di Pietro (Di Pietro, 2000, p. 35). O que se busca aqui é um encontro com a mater ialidade do som, é voltar a intenção de escuta não para aquilo que o som refere (uma escuta dos signos ou dos índices, dos quais é portador), mas par a o som em si. É colocá-lo em parênteses, objeto puro para a percepção. Decorr e daí a redução, ou seja, coloca- se à par te toda a questão da causalidade, ou qualquer outra referência codif icada (seja nota musical seja palavra). A noção mesma de objeto sonoro decor re daí: trata-se de escutar o som como objeto em si mesmo, em oposição a outras escutas: No momento em que escu to, no t oca-discos, um ruído de galope, assim como o índio nos Pampas, o objeto que eu viso, no sentido bem geral que temos dado ao termo, é o cavalo a galope. É com relação a ele que entendo o som como índice, ao redor desta unidade intencional a qual se ordenam minhas diversas impressões auditivas. No momento em que escu to u m di scurso, viso aos conceitos, que me são transmitidos por esse intermediário. Com relação a esses conceitos, significados, os sons que escuto são os significantes. Nestes doi s casos, não há objeto s onoro: h á uma percepção, uma experiência auditiva, através da qual eu viso a u m o u t r o o b j e t o . ( S c h a e f f e r , 1 9 6 6 , p . 2 6 8 ) 55

O som fixado, por outr o lado, é um pressuposto par a o conceito de objeto sonoro, pois “gravado, o objeto sonoro se dará 55

“Au moment où j’écoute, au torne-disque, um bruit de galop, tout comme l’Indien dans la Pampa, l’object que je vise, dans le sens très général que nous avons donné au terme, c’est le cheval au galop. C’est par rapport à lui que j’entends le son comme indice, autour de cette unité intentionelle que s’ordonnent mes diverses impressions auditives. Au moment où j’écoute um discours, je vise des concepts, qui me sont transmis par cet intermédiaire. Par rapport à ces concepts, signifiés, les sons que j’entends sont des signifiants. Dans ces deux cas, il n’y a pas d’object sonore: il y a une perception, une éxperience auditive, à travers laquelle je vise un autre objet.” (Schaeffer, 1966, p. 268).

71

como idêntico, através das percepções diferentes que terei a cada e s c u t a ” ( S c h a e f f e r , 1 9 6 6 , p . 2 6 9 ) 56 – “ t r a n s c e n d e n t e à s e x p e r i ê n c i a s individuais” ( idem, ibidem). A fixação sonora portanto transforma este “objeto efêmero” (ou seja, que não é “fixo no tempo” – Schaef fer, 1966, p. 161) em um objeto estável, e permite uma investigação do sonoro que vá para além de uma descrição subjetiva –

que

permite

portanto

um

método

e

uma

investigação

intersubjetiva. Tal método busca alcançar, através de uma percepção “naïve”,

ou

seja,

anterior

a

qualquer

formulação,

estruturas

decorr entes da escuta reduzida que conduzam a um novo musical, feito

a

partir

de

todo

o

sonoro.

Funda

para

tal

um

solfejo

generalizado pois, par a descrever essa nova paleta sonora o solfejo tr adicional se mostra inef icaz, pois é baseado em noções como altura e duração proporcional. Mas este novo solfejo é aberto mesmo aos sons de altura def inida, pois se trata de escutá-los com novos ouvidos, de ater-se ao que o som tem de material, e não a noções padronizadas pela acústica ou pela música tradicional. No caso de um som de altura definida, por exemplo, que

vão

além

da

percepção

do

trata-se de buscar valores

parâmetro

nota;

valores

que

descrevam essas outras potencialidades sonoras e as sistematizem em gamas, ou categorias escalares. Deve encontrar então, pela escuta reduzida, os critérios d e f o r m a e d e m a t é r i a 57 d e u m s o m a r t i c u l a d o ( o u s e j a , d e s t a c á v e l do contínuo tempor al), isolando-o de sua significação, atendo- se somente

ao

sistematizar

56

som a

em

si.

composição

Fruto ‘com

de

uma

todos

tentativa os

sons’,

histórica sua

de

música,

“Enregisté, l’object sonore de donnera comme identique, à travers les perceptions différentes que j’em aurai à chaque écoute” (Schaeffer, 1966, 269). 57 A chamada tipologia do objeto sonoro.

72

portanto,

deveria

evitar

o

anedótico;

caso

contrário

seria

um

fr acasso:

Eu já havi a ex peri ment ado [o t rabalho com ruíd os] a propósito das ferrovias: é necessário arrancar os ruídos de seu contexto dramático, assim como o som musical da prisão das notas, das palavras e das frases da linguagem musical. Di to d e ou tra forma, mesmo se o materi al d os ruído s me garantisse uma certa margem de originalidade com relação à música, eu estaria, nos dois casos, voltado ao mesmo problema: arrancar o material sonoro de todo o contexto, dramático ou musical, antes de querer lhes dar uma forma. Se tivesse êxito, teria uma música concreta. Se não, nada além de trucagem e procedimentos de rádio. (Schaeffer, 1 9 5 2 , p p . 4 6 - 4 7 ) 58.

Mas, se para a teoria schaef feriana esta subtração do anedótico parece condizente (pois está à busca do objeto sonoro, ou de um som em si) , este impulso é inconsistente com sua obra anterior à aparição do Etude aux objets, de 1958. Na chamada fase concreta o anedótico

aparecia

sistematicamente

constr ução a partir do som

e

convivia

bem

com

esta

- apesar do desconforto pr esente nos

escritos da época. Mesmo sua teoria, apesar de se dirigir a um entendimento do som escutado em si, não é absolutamente restritiva com relação ao uso do ‘anedótico’na música: é sua prática musical que acaba por expulsá- lo completamente. 3. 1.5. A “música pura”: existe um som em si? O que o teria levado a tal guinada? É sabido que Schaef fer não teve uma f ormação musical tradicional: sua trajetória foi múltipla, mas destacou-se até então, sobretudo, como criador de rádio. Por 58

“Je l’avais déjà expérimenté à propôs des chemins de fer: il fallait arrancher le bruit à son contexte dramatique, tout comme le son musical à la prison des notes, des mots et des phrases du language musical. Autrement dit, même si le matériau du bruit me garantissait une certaine marge d’originalité par rapport à la musique, j’étais, dans le deux cas, conduit au même problème: arracher le matériau sonore à tout contexte, dramatique ou musical, avant de vouloir lui donner une forme. Si j’y parvenais, il y aurait une musique concrète. Sinon, il n’y aurait que truquage et procedés de mise en onde”. (Schaeffer, 1952, pp. 46-47).

73

aventurar- se, de maneira r adical, em um terreno tão tr adicionalista como o da música, sofr eu as mais diver sas críticas depreciativas, dentre

as

quais

são

as

de

Pierre

Boulez

as

mais

conhecidas

(“trabalho de diletantes espantados”; “fizeram do estúdio de música concreta um mercado de pulgas de sons em que o bricabraque, infelizmente,

não

guarda

nenhum

tesour o

escondido”,

etc.

cf.

Boulez, 1995, p. 262). A f uga da referencialidade pode ser, então, uma reação def ensiva contr a os esf orços em favor de uma música pura, sustentados igualmente pela vanguarda serialista de então. Esta busca por elementos “musicalmente intrínsecos” do som “tende para a idéia de música absoluta” ( Freire Garcia, 2004, p. 79), pois a tipologia dos objetos sonoros, “por exemplo, não utiliza nenhum cr itér io de localização espacial, de características ambientais ou mesmo

semântico.”

(idem,

ibidem).

O pr ojeto schaef feriano

é,

portanto, contrário àquilo que está pr esente em sua obra anter ior. Ao

tentar

excluir

todo

o

‘ extr a-musical’

aproxima- se,

paradoxalmente, tanto de seus antagonistas quanto dos opositor es da música programática do século XIX, que fundaram a noção de música absoluta. Esta noção foi claramente formulada em O Belo Musical, de Eduard Hanslick, publicada pela primeira vez em 1854 – e que agor a retomamos. Nesta obra busca-se mostrar que o belo da música está não para aquilo que ela refere (sentimentos, imagens, conceitos), mas na sua própria construção musical, ou seja, nas suas r elações formais intrínsecas. O “material sonor o” exprime somente idéias musicais, cuja finalidade está em si mesmo e que não r efer e a nada além de sua pr ópria forma. O belo musical portanto é um em si: To dos os elementos mus icai s es tão relacion ados ent re s i secretamente e em afinidades eletivas baseadas em leis naturais. Es tas afin idad es eleti vas, que de forma in visí vel domi nam o ritmo, a melodia e a harmonia, exigem cumprimento na música humana e marcam com brutalidade e arbítrio qualquer relação

74 qu e as con trad iga. Viv em i nsti ntiv amen te, aind a qu e não na forma científica e consciente, em todos os ouvidos cultos, que, por conseguinte, percebem o orgânico e a racionalidade de um grupo de notas, ou seu absurdo e antinaturalidade, através da pu ra i ntui ção (...). (Hansli ck, [189 1] 1 989, p. 67)

A música, neste contexto altamente idealista, assemelha-se a um fenômeno natural. Não é discutida enquanto produto da cultura, pois

somente

os

“ouvidos

cultos”,

ou

seja,

os

de

indivíduos

tr einados na tradição musical ocidental, são capazes de perceber esta beleza em si. Schaef fer estava longe de apregoar este ideal eurocentrista e elitista: ao contr ário, seu esforço descritivo buscava dar conta de todas as organizações sonoras, inclusive aquelas de músicas nãoocidentais.

Mas

o

objeto

sonoro

é

um

conceito

que

permite

aproximações com o belo musical no que diz respeito a essa escuta autônoma do som ou da música. Ao contr ário de Hanslick, todavia, Schaef fer acreditava que o ‘natural’ do som é o de ser escutado em seus

contextos

r e f e r e n c i a i s 59.

O

esforço

da

escuta

reduzida

é

sobretudo ‘artificial’ , intencional. Mas ambos acr editavam nessa escuta do som ou da música em si como sua essência, aquilo que ela tem de inexorável e de permanente. A crença em uma beleza ‘natural’ da música (o ideal de Hanslick) leva a um absoluto, no qual ela não pode ser descrita com palavr as, pois não se refere a nada. Descrever esse bel o in dependen te d a mú sica, es se elemento especificamente musical é extraordinariamente difícil. Como a música não possui um modelo na natureza e não exprime um conteúdo conceitual, só se pode falar dela com áridos termos técnicos ou com imagens poéticas. Seu reino, na verd ade, ‘não é dest e mu ndo’. To das as fantásticas representações, caracterizações, descrições de uma peça musical são alegóricas ou errôneas. O que para qualquer outra

59

“Por escuta natural queremos descrever a tendência prioritária e primitiva de se servir do som para informar-se de um evento” (Schaeffer, 1966, p. 120). [Par écoute naturelle, nous voulons décrire la tendance prioritaire et primitive à se servir du son pour reseigner sur l’événement].

75 arte não passa de descrição, para a música já é metáfora. (Hansli ck [1891 ] 19 89, p. 6 5).

Mas é precisamente aqui que o conceito falha, pois o própr io Hanslick diz que o conteúdo da música são “for mas sonoras em movimento”, e ao descr ever estas f ormas recorr e a uma comparação com uns ‘arabescos vivos’ que inventa – como está na epígr afe desse capítulo. Assim, par a se falar de música é preciso r ecor rer a outrem: Segund o es ta concepção [de mús ica pura em Hansli ck], aquilo que se chama a música deverá implicitamente es tabelecer um só nível ho mogêneo de d efin ição . Uma vez encontrado ele deverá ser a referência, e todo o resto, julgado extra-musical, é descartado. Entretanto, não se cessa de caçar este extra-musical, como um inseto inoportuno, que não cessa de retornar, pois justamente a ordem diz ‘intrinsecamente musical’ e suas relações não poderão se apoiar senão em esquemas simbólicos que partilham com outras ordens de fenômenos lingüísticos, artísticos, c i e n t í f i c o s , h u m a n o s o u n a t u r a i s . ( C h i o n , 1 9 9 3 , p . 2 5 ) 60.

A

própria

linguagem

schaef feriana

na

tipologia

e

na

morfologia do objeto sonoro esbarra ou na metáfora ou em conceitos referentes

a outros sentidos além

da audição.

Isto

não

é um

pr oblema de uma incapacidade descr itiva da linguagem. O som é um objeto vago, impalpável; apesar de ser “deste mundo” possui, como vimos, uma relação não-previsível com suas fontes. Michel Chion menciona mesmo que não há um isomorfismo absoluto entr e a causa e o som, e nem um absoluto heteromorfismo. .. o som de um r iacho que flui é estático, de uma esferográf ica que desenha objetos circulares no papel é contínuo, e o de uma ser ra cortando a madeir a, apesar de traçar nesta uma linha, “desenha no ouvido uma espécie de 60

“Selon cette conception, ce qu’on appelle la musique devrait implicitement reveler d’un seul niveau de definition, homogène. Une fois trouvé il devient la reference, et tout le reste, jugé extra-musical, est écarté. Ou du moins on ne cesse de chasser, comme un insecte importune, cet extra-musical qui ne cesse de faire retour, parce que justement l’ordre dit ‘intrinsèquement musical’ et ses relations ne peuvent que s’appuyer sur des schèmes symboliques qu’il partage avec d’autres ordres de phénomènes linguistiques, artistiques, scientifiques, humains ou naturels.” (Chion, 1993, p. 25).

76

‘superfície’ decorrente

circular” de

um

(Chion,

1999,

acelerador de

carro

p.

150). r esponde

Porém,

o

som

exatamente às

mínimas inflexões do pedal, e uns pizzicati de violoncelo respondem visualmente como uma imagem elegante e pontual da mão direita. Pode ser, ainda, que o som estimule ou se dir ija não apenas ao ‘aparelho auditivo’, mas que seja a “metáfora de uma percepção contínua e sem limites” (idem, ibidem, p. 88) que atravesse todo o sensível.

Denise

Garcia

analisa

situações

musicais

em

obras

eletroacústicas que são constr uídas a partir de modelos corpor ais e que se dir igem à r espiração, ao gesto ou à voz. Em seu trabalho, caracteriza a música eletr oacústica como “sem sistema”, que buscou no cor po sua coerência ou seu modelo ( Garcia, 1998, p. 173) – música cujas “verdadeiras telas, onde se projetam as vibrações dos sons emitidas pelos alto-f alantes, são os nossos corpos. Neles confluem os sons que acordam todos os sentidos.” ( idem, ibidem). Em uma análise de uma cena de La mariée etáit en noir (A noiva vestida de negro), f ilme de Tr uffaut, Chion aponta um outro aspecto da imaginação sobr e o som – a de que se acredita que

este

possa carr egar consigo não apenas as características f ísicas da cadeia causal – a crença neste absoluto isomor fismo - mas também seu afeto ou pathos. A cena pode ser resumida em um sujeito que mostra a um amigo a gr avação sonor a que fez de uma mulher vestindo meias de nylon e que cruza as per nas; o sujeito que gravou informa que havia tentado fazer com meias de seda, mas que estas não haviam traduzido o efeito desejado. Chion discute então o que seria esta ‘tr adução’: Se entendi corretamente, ao tocar sua gravação o personagem não estava tão interessado em chamar seu amigo para que identificasse a causa real. Se estivesse, poderia ter dito, ‘Mas você não pode dizer que isto é o som de meias de mulher’. Ele desejava, ao invés, trazer um efeito ou sensação associada com a fonte sonora – um efeito de sensualidade, erotismo, intimidade, contato. É por isso que as meias de nylon,

77 mesmo sendo um material mais comum, mostraram-se, ao seu gosto, melhores que as meias de seda para traduzir o efeito na g r a v a ç ã o . ( C h i o n , 1 9 9 4 , p . 1 1 0 ) 61

O personagem que grava mostra, pelo seu experimento, que a seda não produz um som que traduz os sentidos associados a ela (o pr azer do tato na ligeira aspereza, a imagem de sensualidade, etc) . Mas o som das meias de nylon não basta também para a tradução desse efeito: é pr eciso uma explicação ver bal e, eu adicionaria, uma contextualização narrativa (tr ata- se de uma mulher vestindo meias) . O som da f ricção das meias de nylon é o indício sensível da cena criada

pela

narração

e,

a

partir

dela,

torna-se

um

objeto

extremamente er otizado. Por outro lado, par ticulariza o sentido da imagem ref erencial, dando- lhe uma mesma carga de significação. A imagem nar rativa e o som tornam-se assim um bloco único: o som das meias traduz-se em sensação tátil, mas esse ef eito é conseguido através do dir ecionamento feito pela narrativa. Este som escutado em um contexto acusmático e sem nenhuma pista ver bal talvez não conduza necessariamente a nenhum desses valores, nem mesmo ao de algo dado ao toque. O som permanece assim aber to à imaginação. Por ser um objeto absolutamente vago, irr adia-se em muitas direções, toma emprestado campos díspares da linguagem e remete para muito além do sensório ‘auditivo’ – se é que uma tal região homogênea exista. Por chocar -se com tantas outras sensações cria blocos contínuos de tato-audição, audio- visão, etc – sendo por isso uma abstração como a escuta reduzida algo completamente ilusór io, embora essencial para a for mulação da teoria de uma música “a partir do sensível”. Porém não é possível sustentar que a essência da música esteja no 61

“If I understand correctly, in playing his recording the character was not so interested in getting his friend to identify the real source. If he were, he could have said, ‘But you couldn’t tell that it was the sound of stockings.’ Rather, he wished to convey an effect or feeling associated with source – an effect of sesuality, eroticism, intimacy, contact. This is why the nylon stockings, even though a more commom material, proved more to his taste than silk stockings in the rendering of the recording” (Chion, 1994, p. 110).

78

som em si e em suas relações inter nas. O ‘ puro musical’ é, por tanto, a essas alturas da criação musical, uma restrição dos limites da música. A partir da contextualização teórica que foi feita até aqui podemos então prosseguir para a análise de três obras que refletem as questões levantadas. As duas últimas são peças acusmáticas que lidam com o musical/extra- musical e enf atizam uma ubiqüidade destes dois campos. A primeira é um filme do qual iremos analisar seu início, em uma cena que é, em forma de filme, uma reflexão sobre estas questões r elacionadas à representação do r eal e à escuta deste. Iremos iniciar por ela. 3.2.

P aisagens

Presque Rien,

Sonoras?

Análises:

C’ era

una

Volta

il

West,

Des Mains Insomniaques Conduiront le Coupé

Rouge - estudos da escuta.

3. 2.1. C’Era una Volta il West De volta à análise de obras. A cena inicial de Era uma vez no o e s t e , f i l m e d e S e r g i o L e o n e 62. A e n o r m e s e ç ã o d e c r é d i t o s q u e ocorre em um silêncio em que todos os sons são significativos – os primeiros treze minutos do filme. Trecho enigmático de uma obra analisada por Michel Chion (Chion, 1999, p. 107) e Rodolfo Caesar (Caesar , 2004), e que aqui adicionarei outr as obser vações que são relacionados com o nosso tema, como a repr esentação (pelo som e pela imagem) de um sujeito hipotético que a tudo obser va e a intenção de escuta dos per sonagens. Que ouvimos ali então desde o início e que chama nossa atenção pela continuidade? O som de um pássaro, incessante, e um 62

O trecho a ser analisado está no CD 2, filme 2.

79

som como que de uma respir ação, tr ês notas escorregadias ( ou seja, que se fixam em um centro mas fogem dele em seguida), como um ostinato, ao longe. Do primeir o som sabemos de imediato qual seja sua fonte. É evidente que se trata do som de um pássar o pr eso em uma gaiola, pr ovavelmente pendurada em algum canto estação de tr em. Em breve esta impressão se conf irma, pois um dos tr ês vilões que

invadem

a

estação

resolve

provocar

o

bicho,

imitando-o

nervosamente. Parece estar irr itado com seu ruído incessante. O ruído do pássaro cessa assim que dois dos tr ês invasores saem da estação e o olhar da câmar a os acompanha; não cessa porém o som- respiração. Aprendemos então que este vem de for a, pois assim que a câmara mostra o cata-vento o som f ica mais presente, e decifr amos sua fonte. Um personagem se dir ige até o cata-vento e passa por ele; ouvimos agora novos detalhes que se somam ao ostinato: um objeto sonoro feito de impulsos agudos iterativos, constante, cuja fonte parece ser a de uma fricção metálica. Porém, nesse plano ainda não é possível

associar este novo objeto à fonte.

É no plano seguinte que a associação se faz: a câmara olha o personagem de cima, da plataforma onde está o cata-vento – e o som é responsável aqui por criar um ef eito típico de westerns: como se torna

muito

mais

presente,

tomamos

consciência

de

que

é

representação da escuta de alguém que está próximo ao cata-vento; parece ser a escuta deste que olha o personagem. T rata-se de um sujeito ou de um mero olhar da câmara? Ser á esta uma câmar a subjetiva? O f ilme explora assim esse efeito típico: nos westerns sempre há alguém à espreita de um outr o que não sabe de sua pr esença, que não está ciente do olhar do outr o, e em geral esse olhar vem de cima, de um lugar alto. A ação continua e descobrimos que não há um sujeito específico sobre a plataforma, há apenas um olhar e uma escuta... Já nos r efer imos a esta repr esentação de um sujeito hipotético na apresentação desse capítulo, e aqui teremos

80

oportunidade de esclar ecê- la. Como em O Homem da Câmara, filme de Dziga Vertov, o olhar, embor a não personificado, pressupõe o ponto de vista de um obser vador: Na análise do filme de Dziga Vertov , Jacques Au mont demonstra que o uso do enquadramento no filme como manifestação de um ponto de vista supõe que este não é atribuído a nenhum personagem senão àquele relativamente ab strato d o própri o “h omem da câmara”. (Au mont & Marie, 1999, p. 125).

Mas a seqüência de Leone traz outros detalhes com relação à escuta. Seguimos o per curso do som de cata-vento. Ele está em pr imeiro plano até o momento em que um dos vilões, sentado em uma cadeira de balanço, escuta o som de um telégrafo que chega, quebrando a textur a quase silenciosa até então. O ruidoso apar elho está ao seu lado e interrompe seu cochilo; irr itado (diríamos até: ir ritado pelo telégraf o interr omper sua escuta sonolenta do som do cata-vento), arranca os fios da máquina, e impõe à paisagem o silêncio de antes. O som de cata-vento, porém, não acontece em seguida: o gesto do homem interrompe também todos os sons, e o silêncio que segue dá lugar a uma série de acontecimentos sonoros delicados. O primeiro deles ocorr e com o personagem que havia passado em

frente

ao

cata-vento.

E stá

encostado

em

uma

parede

e,

subitamente, uma gota de água cai em sua testa. Escutamos o ruído agudo e br ilhante da gota na pele do homem. Em seguida, põe seu chapéu, e o som muda completamente: torna- se opaco e grave. O homem parece ter uma feição de prazer quando coloca o chapéu e c o n s t a t a a m u d a n ça d o s o m . . . m a i s t a r d e , q u a n d o c h e ga r o t r e m e s u a espera estiver ter minada, irá beber a água acumulada. Mas, como pergunta Michel Chion, o homem coloca seu chapéu para proteger sua cabeça da água, ou par a guardá-la e assim saciar sua sede? Ou

81

teria simplesmente colocado o chapéu para mudar o som da gota, por simples pr azer auditivo? O

outro

acontecimento

ocorre

com

um

personagem

que,

encostado em um bebedouro para animais, passa a estalar os dedos e a

produzir

ruídos

secos

e

iter ativos.. .

o

faz

deliberadamente,

exager adamente, em todos os dedos. E um terceiro acontecimento ocorre com o homem na cadeira de balanço. Uma mosca o ronda e interr ompe seu sono. E scutamos seu ruído e imaginamos o incômodo, mas o homem tem uma idéia súbita: consegue prender a mosca dentr o do cano de seu revolver. O som

do

animal,

antes

com

grande

variação

de

tom,

torna-se

aprisionado pela r essonância do cano, ressoa uma única nota. O fato é que o homem parece satisfazer-se em escutar esse novo som. Mas teria

o

prazer

da

escuta

ou

simplesmente

o

prazer

pela

sua

descoberta astuta? Estariam estes homens brincando com o som? Estariam eles conscientes dessas var iações? Suas ações, de f ato, modular am os ruídos, mas teriam acontecido em f unção do som? A isso não há resposta, pois os personagens estarão mortos minutos depois... De f ato, eles estão assim atentos a todo o r uído por que esperam, em uma estação vazia no meio do deser to, o tr em, que traz o homem que supostamente irão matar mas que os mata. Mas quanto ao som de cata- vento, ele volta ao fundo, antes do trem chegar , mas quando este surge desaparece completamente. O som do tr em ( que vem ao longe como um apito, muito semelhante ao som da mosca no r evólver) toma conta de toda a paisagem. O som de catavento só r etor na quando resta o silêncio absoluto após o tiroteio, quando todos os tr ês personagens iniciais estão mortos. Fica como um comentário irônico, de mau- agouro. Soa sozinho por um bom tempo,

close

no

moinho

girando,

impiedoso

absolutamente alheio aos males dos homens.

e

constante,

82

O

percurso

do

som

de

cata-vento

assemelha- se

ao

pr ocedimento de imagem de som que Pier re Schaef fer deu ao trem em Étude aux chemins de fer: ora soa mais per to, ora mais longe, or a com mais detalhe, etc. A difer ença está no jogo que se faz com sua fonte sonora: por todo o início da seqüência, não se sabe qual é, é uma fonte acusmática, e por conta disso nos referimos a esse som ou por uma metáfor a, som-respiração, ou com r efer ência a um pr ocedimento musical, decorrente de sua característica

repetitiva,

som ostinato. É de se perguntar se, na minha primeira escuta, eu havia percebido conscientemente esse som antes que se mostrasse sua fonte. Na verdade, é um som possível naquela paisagem. Cria também um efeito audio- visual que Michel Chion chama de extensão (Chion, 1994, p. 87) e que consiste numa dilatação espacial, pela escuta acusmática, da cena na tela. Na cena no interior da estação, o s o m d o c a t a - v e n t o , j u n t a m e nt e c o m o v e n t o e u m s i l ê n ci o a m p l o , d ã o abertura ao espaço visual, mostram uma cena mais ampla que a vista na tela – e que vai se confirmar momentos depois. Outro fato associado ao Étude é o som do tr em. Aqui “ele sofre, respira, se detém”, e escutamos, quando apita para ir embor a, uma leve ressonância, que mostra acusticamente aquilo que estamos vendo: a cena se passa em um largo vale, muito amplo, que dá aos sons uma cor impalpável, pois não há r ever beração e nem reflexão alguma. Há apenas essa leve ressonância, que amplia levemente a duração dos sons. O que estou descrevendo? Um aspecto do som que molda o ambiente acústico em que f oi emitido: se de dentro ou de f ora do lugar de escuta, se em um vale ou um deser to, etc. O som deixa indícios desse espaço e a imaginação dá conta de r ecriá-los.

83

3 . 2 . 2 . P r e s q u e R i e n 63 Luc

Ferrari

nos

conta

sobr e

estes

procedimentos

de

‘f otografia sonora’, semelhantes aos que descr evemos a pouco: O que é belo nos barcos a motor é que pela sua ressonância eles mostram a forma das montanhas ao redor do porto. O interesse, eu nem diria pela beleza, mas o interesse de um carro que passa pela rua é o de descrever as casas. Se se prestar bem a atenção, elas não possuem a mesma sonoridade na Rue Mouffetard ou no Boulevard Haussmann, é também uma forma de descrever a arquitetura, ali onde vivem as pessoas, daquilo que elas escutam a partir de suas janelas. Estas são as paisagens para mim. (Ferrari & Caux, pp. 128-129, 2002)64.

A que barcos a motor ou a que porto estaria se ref erindo? Aos que estão presentes em Presque Rien ou Le lever du jour au bord de l a m e r 65, o b r a d e 1 9 6 7 - 7 0 q u e i n a u g u r o u a p r á t i c a d e p a i s a g e n s sonoras, ou, como se r efer e, de “f ilmes sonoros, visíveis somente no i n t e r i o r d a m e n t e ” 66 ( F e r r a r i & C a u x, p . 1 4 8 , 2 00 2 ) , q u e s e u t i l i z a d a gr avação sonor a como um “plano- seqüência e imagem sonor a fixa, tipo de diapositivo que dá à escuta uma fatia do r eal, como método d e t r a b a l h o e c o m o m e i o d e s e l i b e r t a r d o s h á b i t o s ” 67 ( F e r r a r i & Caux, p. 178, 2002). Por meio desse método Ferr ari busca fazer um estudo dos sons cotidianos - como se r efer e - pois acr edita que somente a gravação sonora é capaz de trazer para o tecido musical a sociedade e o ambiente, fato impossível de se conseguir com outr os meios, como a orquestra: O conceito dos ‘Presque Rien’ é a observação de um fenômeno sonoro ou social que não poderia ser apreendido 63 64

A obra integral está na faixa 16 do CD em anexo, Presque Rien.

Mais ce qui est beau dans les bateaux à moteur, c’est que par leur résonance, ils montrent la forme des montagnes autour du port. L’intérêt, je ne dirais pas la beauté, mais l’intérêt d’une voiture qui passe dans la rue, c’est qu’elle décrit les maisons. Si on fait bien attention, elle n’a pas la même sonorité dans la rue Mouffetard ou sur le Boulevard Haussmann, c’est aussi une façon de décrier l’architecture, là où vivent les gens, ce qu’ils entendent depuis leurs fenêtres. C’est ça mes paysages à moi. (Ferrari & Caux, p.128-129, 2002). 65 Uma tradução do título pode ser: Quase nada, ou o raiar do dia à beira do mar 66 “Moi je faisais des films sonores, visibles seulement à l’interieur de la tête” (Ferrari & Caux, p. 148, 2002) 67 “Elle revendique clairement (...) le plan-séquence et l’image sonore fixe, sorte de diapositive qui donnerait à entendre une tranche de réel, comme méthode de travail, et comme moyen de se libérer des habitudes”. (Ferrari & Caux, p. 178, 2002)

84 senão por meio da grav ação . Em seg uida a t écni ca entra em jogo: onde se colocar, onde colocar o microfone, o que escolher para permanecer na rarefação dos elementos. (Ferrari & Caux, 1 9 9 2 , p . 1 5 4 ) 68.

Portanto não se trata apenas de uma representação da realidade, mas também de um esforço composional em direção a uma ‘ rarefação d o s e l e m e n t o s ’ . F e r r a r i c l a s s i f i c a a s é r i e d a s P r e s q u e R i e n 69 c o m o minimalista, mas não ligada ao sentido que as obras de Steve Reich, Terry Riley e Philip Glass deram ao ter mo, referente à repetição. As Presque Rien aproximam-se antes do minimalismo de La Monte Young e Cage, idéia baseada em uma música com notas muito longas e tenutas, com pouca var iação, e com fór mulas que se repetem em longos per íodos. Músicas que criam um ambiente de concentr ação e de ref lexão sobre o pr ocesso de escuta. Presque Rien portanto é minimalista por tr abalhar com poucos elementos

sonoros,

por

ser

uma

busca

pela

atenção

do

som

cotidiano, uma “negação do som clássico no sentido da altura do s o m , d a d i n â m i c a ” 70 ( i d e m , i b i d e m , p . 5 1 ) , n u m a p o s t u r a a t é m e s m o política. O autor tem assim consciência de que sua ‘fotogr afia sonora’ é uma repr esentação, uma construção. Quando questionado se essa ligação com o minimalismo ocor re por conta de uma mínima intervenção

do

compositor

no

material

gravado,

responde

o

seguinte: Não, h á a mesma qu anti dade de comp osição, mas que fica escondida. O que se entende da intervenção, é a de que se deformou a realidade. É como uma pintura hiper-realista que di ssimula a in terv enção da fot o po r detrás do ato de p intar. (...) 68

Le concept des ‘Presque Rien’, c’est l’observation d’un phénomène sonore ou social que ne peut être appréhendé qu’avec les moyens de l’enregistrement. Ensuite, la technique entre en jeu: où se mettre, où se mettre le micro, que choisir pour demeurer dans la raréfaction des éléments. (Ferrari & Caux, 1992, p. 154). 69 As outras duas obras da série são P r e s q u e R i e n n ° 2 . A i n s i C o n t i n u e l a N u i t d a n s m a T ê t e M u l t i p l e – 1 9 7 7 ; P r e s q u e R i e n a v e c f i l l e s – 1 9 8 9 - Quase Nada n° 2. Assim Continua a Noite em minha Mente Multiplicada; Quase Nada com meninas. 70

“ (...) c’est-à-dire la négation du son classique dans le sens de la hauteur du son, de la dynamique” (Ferrari & Caux, 1992, p. 51).

85 É uma composição, e o compositor intervém permanentemente. ( i d e m , i b i d e m , p . 5 1 ) 71

Há por tanto um compromisso com o r eal, um hiper-realismo, e esse é escolhido deliberadamente. O autor usa a gr avação sonor a como r etrato da paisagem acústica, em oposição ao uso feito por Schaef fer e pela música eletroacústica. Esta prática iniciou-se em Hétérozygote, uma composição ‘ abstrata’ de 1964 na qual, em meio a s o n s “ c o n v e n i e n t e s p a r a o m u s i c a l ” 72 s e i n s e r e m v o z e s ( u m a pergunta, um diálogo.. .) – que par ecem ‘registro da realidade’ talvez pelo seu tom casual, nada ‘ digno de obr a’, em contr aste total com o outr o material. A obra, que foi feita no GRM (Groupe de Rcherches Musicales), então dirigido por Pier re Schaef fer, ger ou uma polêmica que r esultou na r uptura de Ferrar i com o grupo. A tendência de uso de material gravado e ‘ tirado da realidade’ acentuou-se em obr as posterior es, como Music Promenade, de 196469 e, a partir de Pesque Rien, tornou-se uma marca de seu autor . A oposição à teoria de Schaef fer é clara: (...) a mu siqu e co ncrète era u m ti po d e ab stra tiza ção [si c] do som – nós não queríamos saber qual a sua origem, sua causal idad e... Enq uant o que aqui eu queria que você reconhecesse a causalidade – isto era o ruído de tráfego e não era só para fazer música mas para dizer: isto é o ruído de tráfeg o! Talvez uma in fluência de Cage. (Ferrari & Warburton, 1 9 9 8 . ) 73

Mas

se Presque Rien possui esse f orte acoplamento com o

real, não se r estr inge apenas a uma representação realista. Na minha escuta, essa obra conjuga o elemento r epresentativo da praia, do mar, das pessoas e dos eventos dali, e a partir disso realiza um 71

“Non, il y a autant de composition, mais elle est cachée. Si on entend l’intervention, c’est qu’on a déformé la réalité. C’est comme une peinture hyperr’raliste qui dissimule l’intervention de la photo derrière l’acte de peintre. (…) C’est une composition, le compositeur intervient en permanence.” (idem, ibidem). 72 Cf. Glossário e cap. 1 73 “(…) musique concrète was a kind of abstractisation [sic] of sound-we didn't want to know its origin, its causality... Whereas here I wanted you to recognise causality-it was traffic noise it wasn't just to make music with but to say: this is traffic noise! (Laughs) Cage's influence, perhaps.” (Ferrari & Warburton, 1998)

86

estudo de pulsações e ressonâncias. O vale ao qual Fer rari se refere (audível pelo efeito quase idêntico daquele descrito na cena de Era uma

Vez no

Oeste,

mas

ainda

mais pronunciado

sonoramente)

tr ansf orma-se em uma enorme caixa de r essonância. Porém, esse aspect o ‘a bstr ato’ não é evid ente . É como se Ferr ari deix asse a o bra em um estágio anterior ao musical. É como se tivesse exposto os “elementos musicais convenientes” – no sentido schaef feriano – mas os mantivesse soltos, sem conecção evidente. Como o “menino do c a p i m ” ( o e n f a n t à l ’ h e r b e d e S c h a e f f e r 74) , F e r r a r i p e s q u i s a s e u material.

Fez

uma

montagem

aberta

ao

musical,

montagem-

investigativa daquilo que gravou. Os objetos estão diluídos; a nós, que escutamos, resta r ealizar as associações musicais, se assim o desejarmos. A obra foi organizada de modo a sugerir o musical a partir de um f luxo sonoro apar entemente natural ( mas também forjado para ‘ parecer natural’ – pois, como comentei antes, a gr avação sonor a distancia- se da percepção ‘natural’) : as duas escutas estão em potência. De que maneira deixa esses elementos musicais soltos? Tomes e c o m o e x e m p l o 75 t o d o s o s s o n s i t e r a t i v o s e d e p u l s a ç ã o r e g u l a r d a peça: um pequeno sino que passa por nós em 1’26”, o cacarejar de uma galinha em 1’44”, um motor (de barco?) ao longe, em 1’48”, outro motor de popa em 3’08”, e assim por diante: a obra toda é pontuada por esse tipo de som, cujo elemento f ixo, como o timbre em um critério instrumental, é o perf il melódico sem ou com pouca variação e o modo de sustentação iterativa. O que varia é a tipologia de massa, em dois aspectos: alterna entre tônica e complexa – sendo que esta última possui um grande nível de variação de espessur a,

e

tr ansita na densidade da iteração, que pode ser muito rarefeita (como no caso do sino mencionado) – a ponto de se determinar que

74 75

Traité des Objects Musicaux, p. 339. Para a descrição dos sons que segue, seguirei a morfo-tipologia dos objetos sonoros de Schaeffer.

87

cada evento é um objeto sonoro - ou muito densa, e então é uma granulação – como no caso de um dos motores que

acelera (cf

exemplo caminhão, 7’15” – faixa 17). Alguns

desses

objetos

sonoros

são

semelhantes,

como

o

cacarejo e um som de motor que se inicia em 4’ 23”: num primeir o momento este último é idêntico ao da galinha, escutado antes, mas pr olonga-se demais antes da ar ticulação aguda caracter ística do cacarejo, que não ocorre. Sua iteração é também muito regular, e fica

mais

complexa

após

a

fala

de

uma

mulher,

que

parece

‘disfarçar ’ a transição: traz outr os elementos distintos do pr imeiro som, com outra rítmica. Não há mais dúvidas, trata-se de um motor. Ocorre aqui uma metamorfose gradual da imagem de som, um efeito d e s í n t e s e c r u z a d a 76 a l g u n s a n o s a n t e s d a i n v e n ç ã o d a t é c n i c a ( c f exemplo galinha-barco – faixa 18 - extr aído de um trecho do cacarejar puro e de outro trecho do cacarejo-motor). A imagem confusa acentua-se por

conta de sons longínquos de um

asno

(presentes desde o início da peça) , que relacionam-se ao ambiente das galinhas. Mais adiante, em 5’00”, após o som de motor executar um pico de amplitude e densidade ( há uma aceleração do motor) e desalinhar sua pulsação, um outro motor ( ?) estabiliza-se no mesmo andamento que o cacarejo, com uma massa próxima da sílaba que o animal emite, mas mais grave, improvável. O cacarejo retorna quase em seguida, mas a associação já havia sido feita. Esse último trecho é pontuado pelo som de vozes, e durante o som gr ave de motor cacarejo passam por nós e desapar ecem passos que seguem, também eles, a mesma tipo-mor fologia de sons iter ativos e massa complexa. De fato, parecem “se encaixar” ritmicamente no motor-cacar ejo.

76

Trata-se de uma técnica de síntese por FFT em que, a partir dos dados da análise de Fourier de dois sons, combinase, digamos, a estrutura de frequências de um com a estrutura de amplitudes de outro, criando-se assim um som híbrido. A mistura pode ser feita gradualmente, e o efeito pode assemelhar-se com o que descrevemos acima.

88

Estes objetos sonoros semelhantes não estão nem seguidos uns dos outros, nem simultâneos. E stão soltos no discurso. Entre o cacarejar e o motor-cacarejo outros eventos ocorrem: um outro motor é ligado, um homem passa com passos ruidosos e uma marcação vocal per iódica, um pássaro voa deixando no ar pingos agudos,

impulsos periódicos.

E stes

sons distanciam

os

objetos

semelhantes, deixam pouco evidente a associação entre eles (todo o tr echo está na faixa 19, cacareco_motor_grave). Mas se é possível identificar uma identidade entre os sons que apontei e de um a outr o um possível degradé, um outro fator de ‘abstr ação’ é a forma. De modo ger al, a música pode ser ar ticulada em duas. E m 7’ 15” um motor de caminhão, muito próximo, liga e aceler a; tem uma espessura de massa muito ampla que varia nas aceler ações sucessivas, e distancia-se (cf. exemplo caminhão – faixa 17). É um som muito pr esente, ocupa todo o espaço sonoro, e quando par te, o silêncio que segue dá lugar a um som agudo iterativo, de cigarras, que não havia aparecido até então e que vai dominar o restante da peça. Neste momento inicia-se uma outra seção. Nela vão pr edominar não mais os sons de motor e o degradé de sons de sustentação iterativa da seção anterior , mas um jogo com vozes, água e cigarras; figura e f undo e eco. O jogo com ecos aparece entre as vozes logo após o caminhão partir ; ele decorr e como sugestão ao compositor da própria acústica do lugar da gravação, que imprime um eco nas vozes com mais amplitude (cf exemplo vozes_chamando – faixa 20). De qualquer forma, o vale confere um halo de reverberação a todas as vozes e lhes dá um car áter de distância; a mim sugere uma certa sonolência, um cer to onirismo. As f alas em uma língua para mim desconhecida (e provavelmente também para o compositor) transformam esta linguagem em pura sonoridade, como era par a Aschenbach as do garoto polonês Tadzio, também escutadas em uma pr aia, ao longe,

89

mesma situação de ‘escuta’ do gravador de Ferr ari (pois os sons indicam isso): As chen bach não ent endi a uma só pal avra do que ele dizia, talvez as maiores banalidades, mas que a seus ouvidos eram u ma v aga melo dia. Ass im, por ser estrangeiro, sua fal a era sublimada em música, um sol altivo banhava-o de um brilho suntuoso e a infinitude do mar era o fundo constante a dar maior relevo a sua fig ura. (Th omas Man n, Mo rte em Veneza . Trad. Eloí sa Ferreira Araú jo Silva. 20 03, p. 5 55 6 ) 77.

O onirismo da cena é acentuado também por conta do eco daquele lugar, que acaba por aprisionar algumas das falas e gritos a o l o n g e . A q u i p ar e c e m o s e n t r a r e m u m d é j à - v u a c ú s t i c o m u i t o s u t i l , um ritornelo de um tr echo bem lar go. No exemplo vozes- déjà-vu (faixa 21) , excerto da peça de 10’04” a 13’06”, as vozes infantis que

chamam

ao

longe

(isoladas

no

exemplo

vozes_chamando)

aparecem idênticas por quatro vezes. O que as segue são sons diferentes

em

cada

aparição.

Portanto

parece

haver

situações

distintas, o que dá uma impressão de f luxo temporal ‘natur al’. De fato,

na

primeira

repetição

das

vozes

pensei

que

f osse

uma

insistência da criança, um fato ‘natur al’. Só depois de algumas audições percebi o jogo, pois as vozes distanciam- se de cerca de 1 minuto, tempo bastante longo – improvável para uma repetição idêntica e de difícil memorização. Uma outra repetição ocorre nesse trecho. T omemos o exemplo vozes- déjà-vu (f aixa 21) como marcação de tempo. Há, a partir de 0’41”, a seguinte ordem de eventos: a voz infantil grita ao longe; tr ata- se de sua segunda aparição. Logo depois um som grave de barco inicia-se. Dez segundos depois um homem ao longe chama por uma mulher (sua voz possui um ligeiro eco) e esta o responde; 77

Conferir também o filme de Luchino Visconti, “Morte em Veneza” (baseado no romance de Thomas Mann) cuja tadução visual da praia é semelhante à cena onírica que se tem em Presque Rien. Curiosamente, o filme foi lançado apenas um ano depois da música de Ferrari.

90

iniciam um pequeno diálogo. Há algumas crianças envolvidas. O barco vai embora ao longe e ao fundo. Em seguida, a voz infantil ocorre pela terceira vez, e a seqüência barco – homem - diálogo se repete. Fecha- se o ciclo. A impr essão de continuidade ocorre não só por aquilo que segue, mas também por aquilo que antecede a voz infantil. Por serem acontecimentos distintos, dão a impr essão naturalista de um fluxo contínuo:



havíamos mencionado

que

o som

tem

essa

pr opriedade de um objeto em constante devir. O que antecede as terceira e quarta aparições, que apr isionam um longo trecho, são coisas distintas: a segunda o é por uma voz masculina ‘melismática’ mais próxima; a terceira, pelo som gr ave de motor de barco e pela mesma voz melismática, que parece falar outras palavras. Mais tarde, em 2’ 25”, a mesma voz inf antil vai intervir novamente ao longe, mas não com a mesma fala. Em seguida, porém, o mesmo personagem retorna, mais distante – e repetindo o mesmo objeto sonor o. E ste é separado em duas partes, e sua pr imeira inter venção é ligeiramente distanciada da segunda com relação às aparições anter iores. T rata-se de uma variação, pois o som também vem com amplitude r eduzida, dá uma impr essão de distância. Mas a ilusão de um fluxo natur al ocorr e pr incipalmente por conta das cigarras ao fundo, que permanecem inalteradas ao longo do trecho e desde sua apar ição após o forte som de motor de caminhão. Assim, enquanto que a montagem das vozes apr esenta pequenos

cortes

e

sutis

interrupções

inevitáveis

no

pr ocesso,

acreditamos que as cigarras estão no mesmo ambiente que as vozes e por isso não notamos as intervenções. A ilusão nasce desta polifonia de

continuidades:

numa

camada

contínua

e

outra

descontínua,

pr edomina a contínua, e somos levados pelo seu fluxo. Assim, três fatores contribuem par a que a ilusão r ealista não se r ompa com os

91

ritornelos: o aproveitamento do ambiente com ecos, que faz com que os ritornelos sejam sua conseqüência natural, a continuidade do som de cigarras e,

evidentemente,

o fato da camada de vozes ser

compatível com a de cigarr as no plano do cenár io: ambas são plausíveis naquele ambiente. Mas o som de cigar ras torna-se gradativamente forte até o fim da peça a partir da entrada de dois barcos consecutivos (o primeir o de

14’32”

a

15’26”

e

o

segundo

de

15’40”

a

15’58”),

que

aproximam- se e desapar ecem. Acabam por disfarçar o acr éscimo do nível do som de cigarr as, e conseqüentemente a ação da mão do compositor na mesa de mixagem. Entre a última aparição da voz inf antil e a passagem dos barcos aparecem fortes batidas iterativas mas não periódicas (em 13’20”), ligeiramente à direita de minha escuta. Junto a elas inicia uma movimentação na água, muito pr óxima a mim. Como não se sabe qual seja a f onte das batidas, não se pode dizer se estas causam o

movimento

ambigüidade,

da pois

água. não

Aqui sabemos

o

som

acusmático

tampouco

se

se

mostra

trata

sua

de uma

montagem ou se de fato os dois sons ocorreram ao mesmo tempo. Se houve relação causal entre os dois eventos esta se per deu. Somente aquele que gravou estes sons sabe de f ato qual a sua imagem de som verídica, real – que não nos inter essa mais: na minha imaginação tr ata- se de alguém consertando algo dentro da água, pois há algumas vozes

junto

com

as

batidas,...

tal

interpretação

é

no

entanto

completamente pessoal! A água próxima a mim continua, não as batidas, que cessam depois que os dois bar cos passam. A seguir inicia um coro feminino (15’56”) e logo um longo solo vocal feminino. Trata-se de uma canção estrófica sobre as cigarras, que agora estão muito mais pr esentes. Figura sobr e fundo, como vem sendo desde o início da segunda parte da peça: o som de cigarr as constitui um fundo inerte

92

que dá continuidade ao discurso, mas que permanece em segundo plano.

Assim,

até este momento

a segunda parte da peça foi

ar ticulada três vezes: na a entrada das cigarr as e das vozes, em c. 8’15”, em 13’06”, com a entrada das batidas e fim das vozes distantes, e em 16’, após a passagem do segundo barco e a entr ada do coro feminino. A partir daqui caminha-se para o f im. A voz feminina vai desaparecendo em fade out e as cigarras sur gindo em fade in. As cigarr as passam então a dominar toda a paisagem e não há outro som – um efeito absolutamente irreal. Esta é a única intervenção forte do compositor , que é explícito em mostrar sua ação. O título da obra serve como

metáfor a para este final súbito: o nascer do dia,

cintilante, claro como o som das cigar ras. Este gesto contribui para uma teleologia da obra, um per curso que vem de sons muito tênues no início, passa por sons de veículos e se dir ige para sons de pessoas desper tas, plenas em suas atividades no calor de um dia de verão. A continuidade realista de antes é interrompida também por conta da quebr a na espacialidade. O domínio das cigar ras nesse final (após o completo silêncio da voz que canta)

é o primeiro momento

em que o som perde per spectiva: amplia-se para todo o espaço e torna- se irreal. Antes, todos os sons referiam-se a um ponto de escuta, aquele representado na ‘tela estereofonica’ e que o ouvinte identificava como sendo a sua própria percepção. Note- se que na minha descrição referi-me a sons distantes ou próximos, que passam por mim ou se distanciam, que estão à minha direita ou à minha esquer da, etc. Neste som de cigarr as não é possível essa descr ição. Ele anula toda a lateralidade e a profundidade, bem como qualquer outro som de r efer ência, de compar ação. Perdemos a noção de figura e fundo, que este mesmo som contribuía antes para elucidar .

93

Assim, é como se nesse f inal a música tirasse de si um f oco da escuta direcionado, em perspectiva. Tal deslocamento causa uma estranheza

e faz com

que o

ouvinte

abandone o

processo

de

identificação no qual estava imerso até então. Pois se o som estava em

per spectiva

com

relação

a

um

“ponto

de

fuga”,

conseqüentemente r epresentava uma escuta hipotética que se situava nesse centro. Mas a perspectiva faz com que o ouvinte crie uma empatia ou uma identif icação, que tome par a si aquela repr esentação como se estivesse escutando in loco, como se fosse repr esentação de sua pr ópria escuta. É o ilusionismo da “câmara-olho” de Vertog e da câmara subjetiva no cinema: o espectador vê a tela como a sua pr ópria percepção. O ouvinte de Presque Rien é levado a imaginar que é o centro convergente dos sons da praia,

de que se trata de

uma ‘paisagem acústica’ dada à contemplação. Nem as associações entre objetos sonor os, na primeira parte, nem os ritornelos na segunda são suficientes para romperem com esse

ilusionismo.

i t e r a t i v o s 78

Na

primeira

parte,

os

degradés

de

objetos

são demasiado sutis: per gunto-me se a hipótese que

l a n c e i - a d e q u e s e r i a m “ o b j e t o s c o n v e n i e n t e s ” 79 d e i x a d o s s o l t o s , anteriores

a uma f ormulação musical



não

estaria

demasiado

influenciada pelo meu conhecimento da teor ia schaef feriana; se tal hipótese, como Schaef fer mesmo poderia atentar, não é decorrência da minha escuta particular de especialista (um mecânico de bar cos teria outr a leitur a destes sons). No entanto, a forte presença de sons iterativos de perf il melódico estático e sua variação não pode ser casual. Mas de qualquer forma a montagem f eita disfarça essa insistência, que ademais só será talvez percebida por alguns músicos ou outros sujeitos conhecedores da teoria schaef feriana. Os objetos 78

Degradés q u e p r o s s e g u e m t a m b é m n a s e g u n d a p a r t e , a p e s a r d e n ã o m a i s s e r e m o f o c o da composição: o som d e cigarras é uma transpo sição para o agu do d e um som iterativo de motores, e o som das fortes b atid as é uma variação de um som iterativ o periód ico. 79 Cf. Glossário e cap. 1

94

iterativos são naturalistas, de fonte facilmente r econhecível (pelo menos,

possuem

acontecem

em

indícios

um

tempo

materializadores

muito

condizente

os

com

claros)

eventos



e

naturais

esperados (ou desejados) da cena. Quanto aos ritornelos da segunda parte, contr ibuem ainda mais para

um

ilusionismo:

não

são

imediatamente

perceptíveis

mas

causam uma sensação vaga de algo não possível ali. Como o personagem Chris, em Solaris, filme de Tarkóvsky, o ouvinte pode ficar transtor nado por estes eventos que se repetem quase idênticos mas ligeiramente modificados por conta dos contextos variáveis – um lugar da escuta, em constante retorno/devir. O déjà-vu sonoro, se per cebido, pode ger ar então a dúvida: trata-se de uma r epetição real ou objeto da minha imaginação, alucinação repentina? De qualquer f orma, apresenta- se como repr esentação dessa alucinação, e portanto não quebra com a ilusão realista. É o fade in do som de cigarras que quebra com o r ealismo. A ação arbitrária do compositor evoca a teor ia dramática de Rosenfeld (cf cap. 2) no sentido de uma intervenção épica r adical. Aquilo que antes era pura representação, pura ilusão mimética, passa, de um só gesto,

de

uma

cena

completamente

dramática

para

outra

completamente épica. A ação é repentina e acentua, pela comparação imediata, a imersão na cena vivenciada antes. Por conta disso minha própria

linguagem

no

decorrer

da

análise

de

Presque

Rien

tr ansf ormou-se pouco a pouco: deixei de descrever os sons com relação a um sujeito hipotético e passei a relacioná-los com a minha escuta. Seria mais honesto e verdadeir o que assumisse ter sido levado pelo jogo ilusionista, admitindo com isso ter f eito uma leitur a parcial e subjetiva. Com

esses

questionamentos

acerca

da

minha

posição

pr ivilegiada de ouvinte informado da teoria schaef feriana, por tanto imerso em uma escuta à procura de um sentido musical para as

95

obras, per cebi também que, no caso de Presque Rien, a separação entre musical e extra- musical não procede, não é pertinente par a descrevê-la. Pois a obra põe em dúvida a divisão schaef feriana das escutas (causal, semântica, reduzida) ao colocar em um mesmo ambiente

objets

c o n v e n a b l e s 80

e

sons

referenciais



os

sons

iterativos podem muito bem ser isolados de seus contextos causais e são apropr iados às categor ias tipo-morfológicas,

ao mesmo tempo

em que possuem uma referencialidade nítida e um papel claro enquanto personagens de uma paisagem. Quanto aos ritornelos, eles parecem ser inspir ados nos ecos que o ambiente proporciona. Apesar de ser em um pr ocedimento ‘ abstrato’ integr am-se completamente ao contexto natur alista da obra. O acréscimo de amplitude no som de cigarr as, por outr o lado, traz uma inf ormação de outra ordem da oposição musical/extra- musical: rompe com o naturalismo, mas não conduz a uma instância musical. Trata-se de uma intervenção épica e

uma

quebra

tr idimensional.

com

o

Podemos

modelo dizer

repr esentativo que

reduz

este

de

um

espaço

espaço a

duas

dimensões, pois perde prof undidade. Se prosseguisse concluindo em uma separação entre musical e anedótico estar ia f inalmente contradizendo a constatação teórica de antes, a de que não existe o campo de uma pura escuta reduzida. De fato, pelo menos nesta música não pude fazer uma tal separ ação. Pois as duas instâncias estão intr incadas em cada objeto sonor o destacável: do lado da representação, pelo contexto já criado (ou seja, pelos sons que o envolvem) ou mesmo por suas car acterísticas que me levam a associá-lo a uma família ou a um gr upo de objetos do mundo. Por outr o lado, é o trabalho de escuta reduzida que f az com que eu selecione este som como dif erente daquele, que o associe a um trator, a um barco ou a uma galinha. Posso mesmo compar ar a materialidade de cada som, e feito isso já estarei 80

Cf. Glossário e cap. 1.

96

hierarquizando

os

objetos que

julgo mais convenientes para

a

compar ação; estarei cr iando assim um outro campo de signif icações para além do ‘ anedótico’ ou do semântico. Mas as duas instâncias estão intrincadas aqui principalmente por conta das ilusões acústicas elaboradas nos dois campos da escuta. A metamorf ose do cacar ejo em motor e as vozes em ritornelo são

dois

exemplos

características

de

um

‘intrínsecas’

jogo do

que som,

foi

feito

a

mas

que

se

partir dirige

das às

ambigüidades que a escuta acusmática cria na identif icação causal. Todo o sentido destes jogos se dá no campo da escuta causal, mas não teria sido possível se não se apropriasse, no primeiro caso, da materialidade semelhante dos sons cacarejo e motor -cacarejo, e no segundo, da materialidade condizente com o ambiente acústico da cena (repetição/eco).

3. 2.3. Des mains insomniaques conduiront le coupé rouge D i v e r s o é o c a s o d e s t a o b r a . Des Mains Insomniaques Conduiront le Coupé Rouge 81 é primeiro movimento de Douze Melodies Acousmatiques, de Denis Dufour, composta quarenta anos depois dos Estudos de Ruído e formada, também, por pequenos movimentos e pela mesma estratégia composicional, a de pequenos estudos a lidar com a oposição entre musical e extra-musical. C o m o o Étude aux chemins de fer, remete incessantemente a objetos do mundo e encadeia seus elementos sonoros de for ma ‘ abstrata’ – nesse caso, através de uma for te construção motívica com sons referenciais, como ver emos. Mas, difer entemente da música de Schaef fer, remete a uma miríade de imagens díspares, enquanto que o Étude r efer e-se incessantemente ao trem e ao seu percur so. Com relação a Presque Rien, pode-se dizer que, como esta, também 81

O movimento encontra-se na íntegra na faixa 22 do CD.

97

remete a um espaço, possui um cenário, mas este não é fixo como na obra de Ferrar i. Como veremos, não é possível fixá-lo, embora haja uma recorr ência espacial que define algo como um campo dif uso único. Isso não quer dizer que se aproximem de um ideal de música pura : os sons continuam nitidamente r efer enciais; e o cenário que cr iam continua par tilhável entre r epetidas e diver sas escutas. O movimento tem como título 82, como aliás todos os outros, um verso do poema Rendez-vous, de Tom Aconito, e, até onde pude verificar, não existe uma relação direta entre o título e o conteúdo das imagens (além do fato de escutarmos claramente, de tempos em tempos, um carro que passa e que deixa sua marca através do som de um pneu passando em seixos). Ela é, ao contrário das outras duas obras estudadas anteriormente, de uma polifonia de sons referenciais muito nítidos. Tomando somente seus primeiros vinte e seis segundos (faixa 23, Duf_peq) posso reconhecer, não necessariamente nessa ordem de aparição e muitas vezes simultaneamente, pios de pássaros, água, bicicleta, percussões metálicas, percussões de pele (tom-tons, tímpanos), woodblocks, sirene, farfalhar de asas. Por trás dessa massa confusa de sons referenciais 83, porém, um jogo elaborado parece se formar; trata-se de uma “melodia de timbres” com sons referenciais, que é feita tanto numa instância perceptiva segmentável (X e Z) 84, por vezes em alturas e ritmos, por vezes somente em ritmo, quanto num campo não segmentável (Y). Esta

divisão

(segmentável/não-segmentável)

vem

do

binômio

schaefferiano de articulação/apoio, base para a separação (ou, se preferirmos, a ‘triagem’) de um objeto sonoro a partir do fluxo sonoro. Em Schaeffer, articulação “ocorre onde há uma ‘ruptura do continuum sonoro em eventos energéticos sucessivos distintos’ como para as consoantes – e tal articulação está

82

Des Mains Insomniaques Conduiront le Coupé Rouge pode ser traduzido livremente por “As mãos insones conduzirão o coupé vermelho”. 83

Lista de sons referenciais que inclue também aqueles de origem instrumental, pois em uma obra sobre suporte estes sons são representações de instrumentos e seus gestos. No contexto desta obra a noção mesma de representação acentua-se ainda mais, pois, na oposição com os sons “tirados do mundo”, os sons instrumentais representam, como um campo, a música no sentido tradicional. 84 A partir daqui estou me referindo à partitura de escuta do trecho, a seguir, e à faixa X do CD.

98

em relação com a sustentação do som” 85 (Chion, 1983, p. 114. A citação no trecho é de Pierre Schaeffer). E apoio ocorre “onde o fenômeno sonoro se prolonga, como uma vogal, e este apoio está ligado à intonação do som” 86. (idem, ibidem). Um típico objeto ilustrativo é uma nota de piano, com um ataque nítido que delimita o objeto no fluxo contínuo da escuta (articulação) e que, a partir deste ataque, possui uma ressonância estável (apoio). Mas o binômio que propus é mais simples: não busca focalizar os dois diferentes estágios do objeto sonoro, mas simplesmente descrever sons como destacáveis ou não do contínuo sonoro em objetos delimitáveis. Um som como o de água não é pontual, não possui fronteiras nítidas de duração. Já tratamos deste problema metodológico na análise do som inicial de La Tentation de Saint Antoine (cap. 2, anexo) quando descrevemos a incapacidade de separação entre dois de seus objetos sonoros (desert_b e desert_c) que se fundiam, ou seja, que não se podia delimitar a fronteira entre eles, apesar de haver uma “mudança de estado” entre um e outro som que me fez separá-los em dois eventos. Feita esta ressalva metodológica podemos prosseguir na descrição destes vinte e seis primeiros segundos da obra tendo como ponto de vista sua construção motívica, ou mesmo melódica. Desde o primeiro momento, então, no ataque inicial, junto aos demais objetos em seguida, no plano X (frase a), formase um pulso regular espelhado em pios (campo Z). As demais frases do material pontual percussivo desta primeira parte (A: 4” – 11,3”, frases b, c) interagem com o pulso formado em pios, quase como uma improvisação em cima dele, e cria sincopas e pequenos deslocamentos. O material de pios é interrompido por uma série de intervenções, que marcam uma importante articulação: entrada de sirene metálica e do material não segmentável, bicicleta e água (11,3” – Z para a sirene e Y para os demais). Porém, no campo X, a mesma estrutura periódica com os materiais percussivos pontuais se mantém (α”), o que me faz interpretar todo este trecho (até 15”) como uma unidade.

85

“Il y a articulation là où il y a ‘rupture du continuum sonore en événements énérgetiques successifs distincts’, comme pour les consonnes – et cette articulation est en relation avec l’entretien du son.” (Chion, 1983, p. 114). 86 Il y a appui là où le phénomène sonore se prolongue, comme une voyelle, et cet appui est lié à l’intonation du son”.

99

A entrada de tímpano (15,3”) indica uma nova seção, diferente da anterior: um silêncio antes dela acentua esta impressão – mas acontece também do material percussivo pontual ter silenciado, fazendo de tímpano um “solo”. Uma nova aparição de sirene metálica, que interrompe tímpano, conduz a uma última seção, com a retomada do material percussivo pontual em estruturas iterativas e a aparição de pássaro au-au, o qual se divide em duas partes, sendo que sua segunda parte, por se constituir em um pulso regular, tem ressonância com pios, e, de fato, possui uma mesma relação com os materiais percussivos pontuais. Todo o trecho é interrompido por farfalhar (30,3”).

100

101

Aqui notamos sobretudo uma forte construção motívica, demonstrada em α, e que possui ressonâncias tanto nos materiais percussivos pontuais quanto em tímpano, pássaro au-au e mesmo em materiais improváveis, como água e farfalhar: em água algumas “gotas” se destacam e se tornam quase ou totalmente segmentáveis. Esta “segmentação da água” é evidenciada em um dobramento exato de um trecho característico do motivo α, entre água (ou melodiágua) e cow bells (13,2”). Tal dobramento é tanto de perfil melódico quanto rítmico. É este forte encadeamento motívico que prende a escuta e permite que os olhos passeiem com maior liberdade por esse denso desfile de imagens. Assim como em Schaeffer, então, aqui a escuta reduzida organiza os materiais, de uma forma não de todo isenta de ironia (como o fica sendo a água saltando aos olhos por um motivo, tornando-se assim ‘instrumento musical’), mas com intensa polifonia e com a ausência de um pólo de atração referencial: as imagens parecem girar alucinadamente – algumas voltam e outras se perdem, outras ainda se transformam pelo choque com terceiras, etc – enquanto que em Schaeffer elas relacionam-se com o trem. Feita esta primeir a investigação acerca do

mecanismo de

engendramento sonoro da obra torna-se desnecessário descrever detalhadamente todos os passos de sua escr ita. Pois agora pretendo me ater à forma como esta obra constrói sua peculiar cena acústica. Pois se em Presque Rien o conceito mesmo de paisagem sonora parece condizente, aqui não se pode falar o mesmo, apesar de parecer remeter também a espaços r eais. Em Presque Rien os eventos acontecem clar amente em um espaço único e delimitado, enquanto que aqui isto existe, mas não é tão nítido. Primeiramente, o jogo motívico entre sons de instrumentos musicais e os outr os sons r efer enciais ‘naturais’ ( pássaros, água, bicicletas, etc) ger a este paradoxo elementos

é

imagético:

uma tal

completamente

‘ costura

fantasiosa,

sonora’ não

entre estes ocorre

nos

engendramentos ‘reais’ de uma gravação do tipo ‘plano- sequência’

102

de Presque Rien - mas ao mesmo tempo este procedimento é feito com objetos realistas, e esta combinação é par adoxal. Além disso, toda a montagem pode assemelhar-se com a cena acústica que se ouve de uma janela urbana. Veja-se, por exemplo, Janela Indiscreta, filme de Hitchcock, em que é possível ouvir a massa de sons que se tem aqui. O olhar da câmara, no entanto, focaliza a escuta para este ou aquele som cuja causa quer enfatizar – e isso parece acontecer também na música de Denis Dufour . Porém, tal foco é feito pelo jogo motívico: tome-se como exemplo os acor des de um piano “vindo de fora” (de um vizinho, talvez). E ste som passa por uma ‘melodia de timbres’ r efer encial: apar ece através de uma pulsação feita de impulsos de massa complexa, curtos mas muito densos (1’46”). São pancadas percussivas, em seguida metamorfoseadas no acorde de piano, que em seguida tr ansf orma-se em arrulhar de um pombo (exemplo piano_pomba – faixa 24). O piano é o pivô da tr ansf ormação, e é também um som que não havia aparecido até então. Mas se por momentos a peça par ece repr esentar uma escuta de um sujeito em repouso, com sons interiores ou exterior es ao espaço em que está – o exemplo de Jeff, o personagem observador em Janela

Indiscreta

(de

fato

alguns

sons

são

retomados

permanentemente: o som de pássaros, de pequenos sinos ao vento, etc) -

há outros momentos em que essa impressão f ica difusa. São

os momentos de turbulência, em que, aliado a um acréscimo de densidade e amplitude, há uma focalização no som ou de um trem que passa, ou de um carro, ou de uma r evoada. Tais eventos ocorrem algumas vezes: de 0’30” a 0’45”, de 1’ 24” a 1’ 52”, de 2’03” a 2’08”, de 2’40” a 2’53” e de 3’10” a 3’25” – e alternam com os momentos de calmaria que relacionei antes com a escuta “em repouso”. A peça tem portanto uma estr utur a cíclica.

103

Como nos loops de Presque Rien, alguns sons são recorrentes e retornam da mesma forma como vieram da primeira vez. O contexto em que aparecem está no entanto transformado. Tome-se o exemplo da ‘sirene metálica’ que apareceu em 0’11” e em 0’ 20”: neste primeiro contexto são dois eventos ligados pela proximidade e pela ligeira variação (ambas as sirenes são um glissando ascendente, e a segunda sirene expande um pouco mais o glissando para o agudo) . Em 3’45”, a dupla sirene irá se repetir exatamente, mas o fundo, ou os sons entr e elas, é outro. Não está porém completamente tr ansf ormado: há entre ambas as aparições duplas o som de água. O som pássaro au-au também ocorre depois da segunda aparição tanto na primeir a quanto na segunda vez. Mas quando a pr imeira sirene aparece pela segunda vez, vem acompanhada também de outro pássar o em primeir o plano, o qual já havia aparecido em 0’ 45” portanto em outro contexto. O trinado agudo que a antecede também é o mesmo que havia concluído o objeto pios do início da peça. Concluímos que, no que se refere aos sons que retornam, há um for te caráter cíclico na obra, mas que não é linear , que se assemelha antes a um puzzle de sons r efer enciais. Esta ciclicidade é paradoxal: ao mesmo tempo em que estabelece um cenário único, feito por sons que estão sempr e pr esentes mas em constante var iação – e com isso acaba por ger ar a impressão de uma fixidez espacial do suposto ouvinte representado – cria também o estranhamento que descrevemos nos loops de Presque Rien, em que objetos idênticos retornam em contextos diversos, fato que é absolutamente não realista mas que tem uma ligação com o real na medida em que usa objetos sonoros referenciais. Uma ciclicidade linear entretanto ocorre na alternância entre momentos de turbulência e momentos de calmaria, e é como se a turbulência acontecesse no espaço da calmaria. Isso é corroborado por que os sons dentro da turbulência são diver sos a cada vez que

104

aparecem – enquanto que na calmaria são, apesar de em constante variação, os mesmos sons. A noção de um espaço fixo está em calmaria, e a turbulência é como se fosse um acontecimento deste espaço. Tal impressão se f ixa mais ainda por que os sons que estavam em calmaria continuam soando em turbulência e passam por ela. Na pr imeira turbulência, por exemplo (de 0’30” a 0’45”– exemplo turbulência – faixa 25), escutamos pequenos sinos agudos de rítmica aleatór ia, que estavam presentes na calmaria anter ior e que tr anspassam a turbulência. A causa destes sons parece ser a de pequenos objetos metálicos suspensos que se chocam pela ação do vento – vento que parece ser também a “causa” da turbulência. De fato, há uma presença constante destes pequenos sons metálicos em toda a peça, e isto cr ia a imagem de que, neste local onde está o suposto ouvinte, está ventando. Há por tanto a sensação de um espaço fixo que é tomado por eventos improváveis na realidade: a invasão de um trem ou de um automóvel, o close no farf alhar das asas de um pássaro, etc. E ste espaço é também povoado por sons que já ocorreram antes e que, no plano da r epresentação de uma escuta, estão mais ligados à memória que à audição. No entanto, é pela presença constante de alguns sons que a imagem de um espaço único se for ma, e assim podemos comparar

esta

obra

com

Presque

Rien:

ela

possui

o

mesmo

pr ocedimento de representação de uma suposta escuta de um sujeito hipotético, como a câmara subjetiva cinematogr áfica. Entretanto sua construção em outro plano - no ‘outro mundo’ da escuta musical abstrata - também a liga ao Étude aux chemins de fer. Ao contr ário de Presque Rien aqui esta construção é evidente para a escuta; não é um mecanismo de organização, mas um possível percur so de fr uição. Por combinar estes dois pólos apar entemente opostos a obra de Dufour

situa-se

então

em

um

estranho

lugar

da

música

105

eletroacústica, pois transita entr e o musical e o extra- musical. Aqui as duas instâncias possuem um sentido duplo: o musical r efer e-se tanto à constr ução

a partir da

escuta reduzida

quanto

a uma

referência à r ealidade sonora da música tr adicional – que apar ece tanto

na

composição

por

motivos rítmico-melódicos

quanto

na

utilização de instrumentos tradicionais cuja imagem referencial é explícita. Por combinar simultânea e ostensivamente as duas escutas encontra-se

assim

eletroacústica

em

posterior

um

momento

histór ico

da

música

aos questionamentos de Ferrar i –

cujo

resultado é a incorpor ação de um hiper -realismo (por conta da representação de uma escuta, com sua f luidez) ao mesmo tempo em que não abandona os procedimentos composicionais herdados da pr ática schaef feriana. Uma autêntica música dupla, como a música concreta. A histór ia mostr a-se assim mais uma vez irônica, pois a obra r etoma uma pr ática da música fixada em suporte que havia sido descar tada pelo seu pr óprio inventor. A música eletroacústica fecha um

ciclo

momentos

de negação

de

distintos

a

-

dois de

seus aspectos essenciais em

composição

pela

referencialidade

e

a

composição pela escuta reduzida – incorporando agora ambos os métodos de composição.

3. 3. Conclusão Mas será que a música de Denis Dufour coloca em questão a existência de um puro campo da música, de uma música absoluta? Pois, se em Presque Rien isto acontece - os jogos que lá ocorr em só podem

ser

entendidos

se

se

combinar

dois

pólos

da

escuta

(referencial e reduzido) - aqui as duas f aces são simultâneas mas estão em camadas distintas e não permeáveis. Musical e extra-

106

musical

aqui

não

dependem

um

do

outro

para

existirem

isoladamente, e tampouco há algum contato entr e eles. Constituem campos isolados, coexistindo em um mesmo tecido musical que permite

simultaneamente

duas

escutas.

Denis

Dufour

conciliou

assim uma composição f ocalizada na escuta da mater ialidade do som – a qual aparece, inclusive, por conta da presença de sons de instrumentos, que induzem a esta escuta ‘musical’ – com uma composição a partir dos sons r efer enciais que faz a representação de um “sujeito escutante”, como em Presque Rien. A riqueza da obr a está justamente no par adoxo pela combinação destes dois elementos e por isso questiona a fronteira entre musical e sonoro, como antes apontamos ocor rer na música concreta. Retoma portanto aquilo que Schaef fer havia abandonado em detr imento de uma sistematização da composição abstrata ‘com r uídos’– o referencial, e com este o paradoxo. Paradoxo por trazer para a música aquilo que tradicionalmente se opõe a ela. O própr io pensamento schaef feriano esclarece a q u e s t ã o : “ o m u s i c a l n ã o é n a d a m a i s q u e u m s o n o r o c o n v e n i e n t e ” 87 (Schaef fer apud Chion, 1983, p. 97) – e o termo conveniente pr ovém de objetos convenientes para o musical (cf cap. 1 ou o glossário), ou seja, o musical é todo o sonoro que se adéqua aos critérios dos objets convenables, estipulados sobr etudo por serem aptos para uma escuta reduzida – portanto pouco r efer enciais ou emotivos. Com isso retomamos novamente a antiga noção de música autônoma, pois esta música de objets convenables deve retirar de si todo o ‘nãomusical’: o impulso teórico de Schaef fer é o de isolar o específico da música em oposição aos demais sons do mundo par a poder trilhar, a partir de uma nova metodologia da escuta, por uma prática de composição com os novos materiais. A música para Schaef fer não está portanto aber ta ‘ a todo o sonoro’ : a escuta sim, mas esta deve 87

“le musical n’est qu’un sonore convenable”. (Schaeffer apud Chion, 1983, p. 97).

107

selecionar ,

para realizar

o

exercício

da redução,

os materiais

adequados. A ênfase está portanto em um material que, em si, é apto ou não par a o musical. A música de Dufour contém o método de composição pela escuta reduzida: os materiais que empr ega são equilibrados do ponto de vista da tipologia schaef feriana, ou seja, possuem formas claras que não evoluem de modo imprevisível ou desordenado; são em sua maioria curtos e memor izáveis; podem ser agrupados em famílias, e entre elas há uma complementar idade. Além disso, a escrita de Dufour

é

nítida

do

ponto

de

vista

composicional:

per cebe-se

facilmente as idéias motívicas e os jogos de fr aseado; mesmo a forma cíclica é bastante clara (a oposição turbilhão/calmaria). Dufour emprega à r isca os modelos do conveniente para o musical de Schaef fer, exceto no que diz r espeito à referencialidade. E neste campo constrói um discurso par alelo e coer ente na repr esentação de um “sujeito escutante”, confor me descr evemos anter iormente. O paradoxo então reside neste divórcio das duas escutas que ocor re no espírito do ouvinte, e não na obra em si. É como se estas duas instâncias fossem irreconciliáveis, mundos par alelos mas divididos por uma barreira intransponível. Mas

qual

ouvinte

percebe

esta

dupla

articulação?

Evidentemente, esta é uma interpretação minha que bem ou mal tr ansmiti por via deste tr abalho; é a interpretação de uma escuta dirigida pela minha trajetória cultural específica e que vai acabar por

dirigir

de

alguma

forma

a

escuta

do

leitor

deste

texto.

Considerando então novamente a música de Dufour , lançar ei uma hipótese que tem como objetivo questionar, pela possibilidade de uma generalização absoluta, o campo da escuta musical abstrata, um dos lados da bifur cação. Retir emos então a par te visual da seqüência de Era uma vez no Oeste. A banda sonora pode constituir também uma música? Evidentemente, uma tal escuta ‘acusmática’ do filme

108

está já direcionada pela lembrança que tenho das imagens às quais os sons estão originalmente acoplados – mas se tentar um esfor ço de ‘ e s c u t a r e d u z i d a ’ 88 p o s s o m e s m o c o n c l u i r q u e h á u m a c o e r ê n c i a musical, principalmente nas seqüências em

que os personagens

“brincam com os sons”: há uma recorrência de sons de água em diversos aspectos (contínuo, em gotas. ..), há uma simetria entre os sons do telégr afo, das gotas e dos dedos estalando no que se r efer e à sua tipologia de massa e à sua rítmica, etc. ( cf. exemplo Oeste – faixa 26). Ou seja, para este determinado critério musical - aquele aprendido de Schaef fer – temos música. Mas eu poder ia também escutar estes sons e permanentemente r emetê-los às imagens do filme que tenho em minha memór ia. Estaria com isso “escutando um filme”, ou realizando uma escuta musical? Uma outra possibilidade seria a de uma escuta ainda mais “na ive” , em que não faço di stin ção entr e me ate r à mate rial idad e do s sons ou à sua referencialidade. “Escuta desinter essada”, se é que possa de f ato existir. Tomemos os cavalheiros que principiam a br incar com os sons em Era uma Vez no Oeste. O que fazem eles senão modular a pr ópria escuta a partir de sua ação no mundo, em função desta escuta? Como quem toca um instrumento, estariam moldando os objetos em sua volta e com isso cr iando um campo de recompensa e f rustração da imaginação anterior ao ato de modular. É como se o homem com chapéu e o outro que cochila e aprisiona a mosca esperassem o som resultante de sua ação. Ou ainda, por casualidade é que modularam o som: o motivo pr incipal para que o primeiro homem colocasse o chapéu é a de que a gota não caísse em sua testa (ou talvez para que acumulasse água na

aba, para ser

bebida depois);

o

homem

que cochilava

foi

importunado pela mosca e por isso inventou um modo de aprisionála. Mas não importa a razão que os levou a modular seu espaço 88

Aqui em um sentido duplo: tanto para isolar das imagens da minha lembrança quanto no sentido schaefferiano.

109

acústico, e sim que perceberam a mudança. O som resultante destes gestos poderia passar em branco não fosse a situação em que os homens se encontravam: em primeiro lugar estavam imersos em um silêncio tão imenso que qualquer som ocupava todo o espaço. Além disso encontravam- se entre a apreensão e o tédio pela espera de um desconhecido que dever iam matar. Ouvido ao mesmo tempo atento e desatento, alerta ao menor indício de perigo e ávido por despr egar se da situação tensa. O ouvido passa a ser então um canal por onde entra o sinal de ameaça e um veículo da válvula de escape do real ameaçador . Rodolf o Caesar fala deste possível órgão do medo e da noite a partir do aforismo 250 da Aurora de Nietzsche, O ouvido, este órgão do medo, só alcançou tanta grandeza na noite e na penumbra de cavernas obscuras e florestas, bem de acordo com o modo de viver da era do receio... Na claridade do dia o ouvido é menos necessário. Foi assim que a música adquiriu o caráter de arte da noite e da penumbra. (Nietzsche apud Caesar, 2003, p.1160).

E a partir do aforisma, comenta: Sublimação de terrores, a escuta musical dentro dessa caverna não seria uma ‘explicação’daquilo que se escuta na condição propiciada pelo acusmatismo da noite, mas um processo que resulta em interpretações dos eventos que, inicialmente perturbadores num estado de vigília, despertam a atenção para um imaginação – apenas porque estes eventos da escuta noturna deixam de se apresentar apenas como portadores de sig nifi cado s in dici ais claros e imediat os. Essa escuta não lida necessariamente somente com os sinais ou indícios ameaçadores identificados à luz do dia mas realiza – ou se confunde com – a superação de um medo, celebrando o seu fim. (Caesar, 2003, p. 1160)

Assim como o homem da ‘era do receio’ a escuta de nossos cowboys bifur ca-se então entr e pr agmática e sonhadora. Apesar de se encontr arem na clar idade de um dia em pleno deserto, estariam sujeitos às ameaças de um outr o que possivelmente os espreitar ia. A

110

vastidão do deserto é um esconderijo perfeito, pois o olhar não dá conta de todos os micro-detalhes do espaço infinito. O deserto é portanto uma noite com sinal contr ário, e cega pelo excesso de luz. Por conta disso o ouvido f ica atento à menor mudança no vasto silêncio.

Atenção

longa

e

cansativa,

que

abre

espaço

para

o

devaneio. O que os levaria a criar sons e a deliciarem-se com isto: situação de escuta ou intencionalidade? Ou ainda: a música veio por gestos casuais ou por uma ação intencional? Como já salientamos antes, não é possível definir. O que impor ta é que a música é uma escuta, ela não existe em si mas no ouvinte. A partir do momento em que os três cowboys depar am-se com o som não com sentido utilitário mas como objeto de deleite estão fazendo música. Esta ocorre, por exemplo, na diferença, par a a escuta, entr e o som da mosca livr e

e o som dela aprisionada no cano da arma – no prazer

desta descober ta. Pode ser também, por que não, que ocorra como mero prazer sensual: o deleite da textura do som da mosca dentro do cano ( sensação indizível de uma leve asper eza audível) , ou, como vimos, o suposto som do atrito das meias de uma mulher quando cr uza as pernas (induzindo a todo um corpo de sensações guardadas na memória). E neste último caso, apesar de se tratar de uma escuta referencial, continua- se apreendendo o som descolado do utilitário, como é próprio da escuta musical. O real estaria aberto à escuta musical, que or ganiza os sons, hierarquiza-os,

seleciona- os.. .

Mas

esta

organização

é



um

pr ocesso que vai para além do som e depende da história de cada indivíduo; está atrelada à sua intenção de escuta, mesmo à sua personalidade, e a outros inúmeros fatores. Por conta disto é que a análise da obr a de Dufour aqui apresentada é absolutamente parcial: o modelo bipar tido da música concr eta, no qual me baseei, é uma constr ução teórica que, com relação a essa obr a, apesar de ressoar

111

na minha percepção, pode não ser apreendido por alguém que não possua uma for mação musical semelhante à minha. Assim, se Ferr ari expõe um pré-musical não esper a que todos os seus ouvintes o percebam: sua obra, bem como a de Dufour ,

se comunica com seu

público não exclusivamente por este viés, mas antes por elementos que são comuns a um gr upo muito amplo de ouvintes. Ela representa uma

cena

com

objetos

partilhados

pela

maioria

dos

sujeitos

ocidentais contemporâneos (a água, motores, vozes) – sendo que a apreensão de uma construção ‘abstr ata’ não é imprescindível para a fruição da obra. Contudo, Presque Rien também está aberta para uma escuta ‘abstr ata’ – assim como a música de Dufour , de Schaef fer, de Leone. .. r etomo aqui a questão de Barthes – que difere a música das outras artes por esta não ser repr esentativa – e afirmo que ela é e não é, ao mesmo tempo. .. Podemos f echar as duas questões que deixamos antes em aber to em dois dos subtítulos deste capítulo (Existe uma pura música ‘anedótica’ ? e A música pura: existe um som em si?) com, ao invés de uma asser tiva, uma solução ambígua. Pois, como mostra a música de Denis Dufour , uma instância não exclui a outra, elas coexistem. Na música de Ferrari elas não estão lado a lado, mas se fundem em um único acoplamento. A escuta musical – ou seja, não utilitária, e não mais entendida como oposta a uma escuta r efer encial - pode of erecer uma clara imagem dos sons ao mesmo tempo em que pode procurar se distanciar desta instância causal e construir uma outra lógica. Schaef fer trilhou por uma descrição da f orma e da matéria do som e construiu com isso uma série de caracteres que, uma vez conhecidos, dirigem completamente a escuta como o faz uma pr eocupação com a causalidade. Sua formulação

teórica

tipo-morfológica

baseada

em

uma

escuta

reduzida, apesar do seu mérito como metodologia br ilhante para uma investigação do ‘puro sonoro’ ou de um som ‘em abstrato’ e

112

fundadora de um pensamento sem o qual esta discussão não existiria e do qual somos caros, é tão arbitrária quanto ser ia uma escuta centrada em um outro aspecto do som (classificar como agudo ou grave - categoria físico-acústica, como etéreo ou vulgar - categoria místico-religiosa, como sensual ou apático...etc). E é ar bitr ária por que, com relação à escuta musical, não encontramos universais objetivos. Não estamos tr atando de um fenômeno natur al, em que talvez isto ocorr a. A escuta musical depende de fatores cuja particularização chega mesmo ao individual. Existem porém pontos comuns da escuta em geral: uma pesquisa inter- subjetiva como f oi a de Pier re Schaef fer trata de trazer estes elementos comuns, mas sua generalidade deve ser relativizada e não pode constituir o único método par a uma pesquisa do fenômeno musical,

pois

exclui

a

dimensão

subjetiva

tampouco

existe

própria

da

fruição

estética. Por

outro

lado,

uma

escuta

livre,

absolutamente isenta de qualquer f ixação conceitual, ou de qualquer representação.

Tal

acepção

é

impossível

por

ser

mesmo

uma

contradição em ter mos. Pois escutar opõe- se a ouvir justamente no ponto em que o primeir o verbo pressupõe uma intencionalidade que não está presente no segundo, e o ato intencional de escutar é justamente o de cr iar sentido para aquilo que chega aos ouvidos. A escuta musical cria sentido de um modo não específ ico, e podemos dizer mesmo que ela permeia todas as outras escutas possíveis.

Ela

carrega os sons de valores - pois cada ouvinte recria o mundo à sua maneir a, com as ferramentas que tem – sendo a referencialidade causal

a mais imediata e a mais partilhada entre inúmeros sujeitos,

mas também uma dentre inúmeras possíveis. Outr as f erramentas são comuns par a a criação de sentido estético, como a escuta musical tr adicional, mas as imagens sonoras chegam mesmo ao domínio do individual pois tocam, como vimos no primeiro capítulo, esferas

113

profundas e arcaicas da memória que o indivíduo tem dos objetos do mundo.

Esta ambigüidade na recepção deve-se talvez, como já

enfatizamos antes, ao fato do som ser um objeto impalpável que faz com que a escuta se torne o mais f luido dos sentidos estéticos. As músicas e o filme que estudamos neste capítulo trazem portanto

questões

que

não

se

limitam

a

uma

oposição

entre

musical/extra- musical. Em Presque Rien a oposição não faz sentido por que a instância musical ( no sentido que a oposição sugere, ou seja, a instância ‘abstrata’ou não ref erencial) não é evidente, sendo que a obra é toda extra- musical. Como salientamos antes, trata-se de uma composição feita para a escuta. Se então não é uma música, que outra coisa seria? O musical sendo sinônimo de ‘música absoluta’ portanto aqui não faz sentido. Estas obras ampliam os limites do campo musical justamente por representarem ou “porem em cena” a escuta de um sujeito hipotético. As obras de Ferrari e Dufour não mostram apenas uma cena acústica, mas sim esta cena escutada por alguém: há uma centralidade para onde os pontos de audição convergem ou, como no caso do som de cigarras no final de Presque Rien e os momentos de Turbilhão na obra de Dufour , uma anulação deste centro – o que faz com que o percebemos ainda mais nitidamente, pela sua ausência. São obras que remetem à própria escuta

do ouvinte, o qual acaba

por se identif icar com o sujeito hipotético representado e que permanentemente compar a a sua experiência do mundo com aquilo que está na obra. Como as obras flutuam no real ao inserir em nele o im prov ável , el e é leva do p orta nto (se assi m o dese jar, ou seja , se for “f isgado” pela obr a) a descolar-se de uma escuta pragmática do som referencial para entrar em um jogo semelhante àquele dos cowboys do filme de Leone. É essa, a meu ver, a dimensão utópica destas obras, qual seja a de criar uma situação musical partido da realidade a fim transfor mar a escuta do real. É de trazer o mundo para uma

114

atenção pr ópria do musical, a uma situação de ser que desloca os objetos sonoros referenciais para a dimensão do lúdico ou do onírico.

115

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O som habita toda a parte; mas os sons, quero dizer, as melodias que falam a língua superior do reino dos espíritos, não repousam mais que no âmago do homem. (Hoffmann apud Schaeffer, Traité des Ob jets Mu sica ux)

116

No per curso deste trabalho par timos de algumas oposições fundamentais e cor relatas: musical e extra- musical, musical e sonoro, autonomia da música e referencialidade. Espelhada pela pr odução da música concreta, a teoria schaef feriana - nosso ponto de par tida e guia f undamental – for mula a questão, e liga, nestes pares opostos,

o primeiro vér tice ao intr ínseco da música, e o

segundo àquilo que atira a escuta para for a. Nas primeiras músicas concretas

a

noção

de

pares

opostos

coexistia,

mas

as

duas

dimensões não se anulavam: elas compar tilhavam o mesmo espaço musical, e essa situação tencionava a oposição, tr azendo-a par a o pr imeiro plano das preocupações cr iativas. Tal situação, tematizada por Schaef fer em muitos de seus escritos, levou-o finalmente a abandonar o vér tice “não-musical” em favor do pr imeiro. Mas esta não foi uma orientação geral, pois muitos

de

seus

seguidores

continuaram

na

prática

inicial

e

desenvolveram aquela questão delicada, de forma mesmo a anular a oposição:

como

vimos

no

trajeto

do

trabalho,

as

obras

que

estudamos integram as duas dimensões. Na obra de Ferrari o musical está tão organicamente colocado no domínio referencial que a separação perde sentido. Sob o ponto de vista de sua poética o procedimento de combinação entre uma r ede elaborada de construções realistas e or ganizações abstr atas entre os elementos sonoros é o que traz a força destas músicas. Sua ligação com o real ata a imaginação a elementos

convencionais

palpáveis

para

em

seguida

levar

a

audição, pela construção abstr ata e deslocada da r ealidade, para o domínio do poético. A música torna-se metáfora do devaneio, pois possui uma estrutura que segue seu mesmo trajeto. Conduz o ouvinte, a par tir de uma consciência de si, de uma clareza que vê objetos representados fora de mim, a um estágio de ampliação do

117

real, a uma ilusão de ser mais do que eu sou. Não conduzem a um delírio, a uma alucinação ou ao sonho, em que essa consciência se desfaz: convida o ouvinte a partilhar de um jogo que lida com objetos que são decalques da realidade e que por via do jogo dela se descolam. Por conta destas distorções levam assim a uma consciência do ilusionismo. A imagem transformada conduz a uma comparação com seu modelo e torna-se objeto de reflexão acerca da própria apreensão do r eal: dos valores que dou aos objetos, da maneira como percebo o transcorrer do tempo, da forma como entendo situações

reais

ou

irreais.

Distendem

a

consciência

do

real,

levando-a a um outro status de ser : antes comum e restrito, agora amplo e lúdico.Tal não é aliás a utopia de todas as músicas? O jogo com o real portanto conduz a uma situação musical única, a uma ampla libertação de uma escuta calcada no hábito, mas o faz a partir deste campo estável e encer rado. Vimos que a música de Michel Chion mostra uma cena de alucinação em que o personagem distingue mal entre seus sonhos e a

percepção

do

mundo.

Assistimos

ao

seu

drama

de

longe,

percebemos os estágios de delírio, lembrança e nor malidade mas, por fim, não somos capazes de determinar se suas visões do diabo e de outros seres terr íveis são pr odutos de sua imaginação ou ‘aparições reais’. Levados pela constr ução imagética, passamos nós

mesmos

a

duvidar

de

três

estágios

tão

delineados

de

consciência. Se compar ado com os personagens do filme de Leone, eles

também

percebemos

imersos

que

Santo

na

“noite

Antonio

clara”

do

encontra- se

deserto voltado

diurno, para

sua

consciência asfixiante, enquanto que os cowboys têm a atenção dirigida para

o

mundo.

No

filme

os

temores

são

bem

mais

palpáveis. Em Santo Antonio, é sua memória que lhe prega peças e evoca os seres que lhe aparecem, seja em alucinação, seja em

118

realidade. Apesar da dúvida que temos com relação àquilo que percebe,

são

aparições

a

que

assistimos

de

fora,

que

não

vivenciamos, numa repr esentação que deixa clar o o nosso lugar de observador es. Tal não acontece com as músicas de Dufour e Ferrari. Em Chion o devaneio está lá, faz parte do jogo, mas nas outras músicas ele é repr esentado pela forma como elas se manifestam. Por levarem a escuta para dentro da cena, elas constituem a metáfora do devaneio, pois representam uma per cepção do mundo. E, por trazerem o real par a o domínio da música na medida em que tratam os elementos do mundo de forma livre e lúdica, constituem uma ampliação do musical. Se a música nasce da escuta liberta de um pragmatismo, estas obras são por isso um manifesto veemente por uma cr iação musical aberta tanto para a instância referencial quanto par a a ‘abstrata’. Instâncias que se ar ticulam de f orma não hierár quica (em Presque Rien não há separação, enquanto que na música de Dufour são campos paralelos), e constituem possíveis deslocamentos da r ealidade próprios da escuta onírica. A situação de escuta acusmática de sons ref erenciais pr opicia esta condição, pois o ouvinte imagina as fontes dos sons exibidos numa condição de escuta ausente do mundo, colocada em obra artística e por tanto com uma outra relação de intencionalidade com o real. A escuta ‘abstr ata’ ,

também

decorrência

do

acusmatismo

e

menos

representativa mas não menos lúdica, é assim um outro pólo possível para o devaneio além de escuta referencial. O jogo que leva à referencialidade ou à abstração ocorre assim a partir de sua relação com a realidade. Mas ampliar iam as músicas a noção deste real, ou dar iam subsídios poéticos para a compreensão da escuta ou dos mecanismos de identif icação entre o sujeito e aquilo que está diante de si? Esta questão não será tr atada neste trabalho,

pois está

além

de

nossas proposições

119

iniciais. Ela surgiu no decorr er da análise destas obr as e constitui um ponto de partida para investigações posteriores. Porém, me parece que estas músicas evidenciam o fato de que o real é moldado por aquilo que per cebemos, ou seja, pelos valores que damos

aos

objetos

dados

à

percepção.

E

elas

o

fazem

por

induzirem a esta escuta em espelho, em que me identifico com a representação do real. Elas põem em evidência, portanto, a própria percepção que tenho das coisas, pois r epresentam uma escutamodelo com a qual vou me deparar e que comparo com a minha vivência.

Seleciono desse embate aquilo que apreendo, e durante

as diversas escutas decifr o a própria maneira como per cebo e me relaciono com as coisas do mundo. Para ilustrar esta possibilidade de uma escuta individual termino este trabalho com uma anedota: Des Mains Insomniaques Conduiront le Coupé Rouge f oi analisada, em 2003, por um gr upo de estudantes do qual eu f azia par te,

em uma classe do pr ofessor

Rodolf o Caesar . Se me lembro bem, os r esultados dessas análises não poderiam ser mais díspares: duas colegas construír am uma narrativa, um enredo com personagens e com uma linearidade teleológica a partir da música. O resultado er a absolutamente coerente: em uma das narrativas er a como se a música f osse o som de um filme que tirássemos a imagem – e assim podemos dizer que ela

migrou

de

uma

escuta

musical

para

uma

escuta

cinematográfica. A dimensão de uma constr ução ‘abstrata’ não foi percebida pela autora, talvez pelo fato dela não ter uma formação musical. De qualquer f orma, a outr a analista, que é pianista, também não imaginou tal dimensão, e custou a admitir que eu havia construído a análise vista no pr esente trabalho. As outras pessoas realizar am inter pretações mais ou menos centradas em uma escuta ‘musical’, como eu. Um colega fez uma descrição da f orma cíclica ger al que aqui eu chamei de alternância

120

entra turbulências e calmarias, e encontrou outr os ritornelos que ainda hoje reluto em admitir. Outro colega, ainda, criou uma metodologia interessante: escutava a música ao ar- livr e, a fim de distinguir aquilo que era do domínio musical daquilo que estava no ambiente, em r epetidas audições. Por conta disso, fez um estudo de sua pr ópria escuta Mas não importam os detalhes,

mas sim o f ato de que a

música de Dufour suscitou uma gama ampla de interpretações, nada estereotipadas, em um grupo de pessoas nem tão dif erentes entr e si. Domínios individuais, perf eitamente coerentes em si e com relação à música, e complementares. Escutas em espelho, que falam mais da vivência que temos do mundo do que da obra. Esta permanece um enigma em constante mutação mas que serve, como um

dispositivo,

para

iniciar

constr ução que faço do real.

o

processo

de

consciência

da

121

GLOSSÁRIO

Câmara Subjetiva: “Câmar a que funciona como se f osse o olhar do ator. A câmara é tratada como ‘participante da ação’, ou seja, a pessoa que está sendo filmada olha dir etamente par a a lente e a câmara

representa

participando

o

dessa

ponto mesma

de

vista

cena”.

de

um

outro

MACHADO,

per sonagem Jorge

(org.)

Vocabulário do Roteirista: site da internet acessado em 18/01/2004. Fad e in / fade out : Acrésci mo ou decréscimo “artifi cial” de amplitude não -presente no som r eal mas real izada no som sob suporte, de m odo a par tir ou chegar de/ a uma amplit ude inaudível. Assim, fad e in ocorre com o acréscimo e fad e out como decréscim o do volume de um som. Loop: palavr a da língua inglesa, def inida assim por um dicionário: f o r m a p r o d u z i d a p o r u m a c u r v a q u e s e v o l t a p a r a s i m e s m a 89. Mantendo o mesmo sentido, trata-se de um som cujo fim se une imediatamente

ao

seu

início,

ou

seja,

um

som

repetido

continuamente. Em sistemas de repr odução em fita produz-se um loop quando se cola o início de uma fita ao seu fim; em sistemas digitais há inúmeras maneiras

de fazê-lo:

seja

através de

um

seqüenciador, ou seja, aparelho que gerencia uma seqüência de loops, ou a simples repetição de um som em um progr ama de mixagem

multipistas (ou seja,

programa que

simula um mixer

multipistas). Música acusmática: música cujo emissor do som, ou pelo menos seu emissor real,

ou

seja,

sua

origem

anterior

à gravação

não

é

visualizada pelo ouvinte. O termo acusmático f oi r etomado de Pitágoras por 89

Pierre Schaeffer

para designar esta condição

“loop: 1. shape produced by a curve crossing itself”. (Oxford Learner’s Pocket Dictionary, 1993)

de

122

escuta, tendo sido um passo muito importante para a consolidação de seu conceito de objeto sonoro. Para Tr evor Wishar t, Schaef fer considera que “o adjetivo acusmático r efer e-se por tanto à apreensão d o s o m s e m r e l a ç ã o c o m s u a f o n t e . ” ( W i s h a r t , 1 9 9 6 , p . 1 2 9 ) 90 – embora

nada

na

teoria

schaef feriana

indique

que

a

situação

acusmática induza necessar iamente a uma dissociação entre o som e sua fonte. Isso ocorre apenas por via da escuta reduzida, atitude intencional de escuta que tem esse fim. No Traité des Objets Musicaux há mesmo a seguinte ressalva: “No momento em que escuto, no toca-discos, um ruído de galope, assim como o índio nos Pampas, o objeto que eu viso, no sentido bem geral que temos dado a o t e r m o , é o c a v a l o a g a l o p e 91. ” ( S c h a e f f e r , 1 9 6 6 , p . 2 6 8 ) – o q u e leva a uma outra reflexão: “Pois o cavalo não é menos presente na gr avação ( sem visão) que na foto ( sem audição) . O acusmatismo não c r i a , i p s o f a c t o , o o b j e t o s o n o r o ” ( S c h a e f f e r , 1 9 6 6 , p . 2 6 8 ) 92. A situação de escuta acusmática por tanto não induz a uma escuta reduzida.

Porém,

por

fazer

com

que

o

ouvinte

se

atente

à

materialidade do som, tal situação de escuta é mais pr opícia que outras par a o exer cício da escuta reduzida. E, por não mostrar a or igem dos sons, propicia também com que o ouvinte imagine esta or igem, e mesmo que atente-se para a identificação das fontes sonoras.

A

situação

de

escuta

acusmática

acentua

então

dois

possíveis caminhos da escuta: a redução e a referencialidade – e o faz por centrar a percepção do ouvinte tão somente no som. Objet Convenable (objeto conveniente), objeto conveniente para o musical: na teoria schaef feriana refere-se a objetos sonoros aptos a serem empr egados como objetos musicais, para a realização musical. 90

“The adjective acousmatic thus refers to the apprehension of a sound without relation to its source.” ( W i sh ar t, 1 9 9 6 , p .1 2 9 ) . 91 “Au moment où j’écoute, au torne-disque, um bruit de galop, tout comme l’Indien dans la Pampa, l’object que je vise, dans le sens très général que nous avons donné au terme, c’est le cheval au galop.” (Schaeffer, 1966, p. 268) 92 “Car le cheval n’est pas moins présent dans l’enregistrement (sans vision) que dans la photo (sans audition). L’acousmatique ne crée pas, ipso facto, l’objet sonore.” (Schaeffer, 1966, p. 268).

123

Para

que

o

sejam

devem

satisfazer

a

alguns

critérios,

como

simplicidade, originalidade e abstração. Para tal, devem ser curtos, bem memorizáveis, não devem portar um sentido, uma afetividade, ou remeter a uma f onte, e deve haver equilíbrio entre seus aspectos tipológicos, ou seja, entr e os tipos de compor tamento internos ao objeto musical. Conceito tautológico, pois é um objeto conveniente para

o

musical,

e

o

“musical

não

é

mais

que

um

sonoro

c o n v e n i e n t e ” 93. S ã o p o r t a n t o o b j e t o s q u e s e i n s e r e m e p o s s u e m função em contextos musicais, para isso definidos a partir dos cr itér ios apontados. Em outras palavras, na sua busca por uma ‘ música dos sons’ , ou seja, de todos eles, Schaef fer procura uma diferenciação entre som musical e não- musical. Um objeto conveniente vai sintetizar, nesta teor ia, os sons que são aptos para serem utilizados em uma composição musical; tr ata- se de um a priori geral, que não leva em conta os contextos musicais. Paisagem sonora: termo pr ovavelmente criado por Murray Schafer que, em sua obra, refere-se a um tecido sonoro qualquer que é dado à

contemplação

ou

ao

estudo.

Uma

composição

musical,

um

pr ograma de rádio ou um ambiente acústico podem ser entendidos como tal. O termo pressupõe portanto um distanciamento ou uma separação entr e sujeito e objeto que, na minha opinião, não ocorre necessariamente diante de algo dado à escuta. Por ter surgido de estudos acústicos cujo fim é ecológico o termo foi associado também a um gênero da música acusmática composto por um corpo de obras que representam – com uma suposta objetividade – um espaço acústico específico. Esta representação pode evidenciar diversos fatores que variam conforme a intenção do compositor , como a especif icidade acústica do lugar representado, sua pr ofundidade, etc. O conteúdo ecológico do ter mo por f im f oi se 93

“le musical n’est qu’un sonore convenable” – P. Schaeffer, apud Chion, 1983, p.97

124

esgarçando pelo uso, sendo que atualmente refere-se a uma obra cujo f im é representar uma cena acústica r etir ada do r eal. O próprio termo é no entanto questionável, pois o som não é estático nem se dá por inteiro à audição: seu sentido constrói-se no tempo, é um objeto em constante devir. Paisagem, ao contr ário, é um ter mo que induz a um olhar a distância de um território amplo, o qual é retirado do continuum temporal seja par a a análise seja par a a contemplação. Apesar da sono-fixação trazer a possibilidade de uma escuta

em

repetidas

vezes,

o

som

continua

incessantemente

reverberante na cr iação de sentidos: não é possível uma análise continuada, ou em continuação: sempre que nos referimos ao som nos atemos ou à memória ou a uma r epresentação. Cabe salientar também que, apesar de terem sido associadas ao termo, as obras acusmáticas de Ferrar i “que r epresentam o real” são (no

caso

de

Hétérozygote

e

Music

Promenade)

anteriores

às

formulações de Schafer e, bem como muitas obras do repertório ligado à tradição da música concreta, não compartilham da sua perspectiva objetivista. Como tentei mostr ar nas análises de algumas obras neste tr abalho, são de construção livre no que diz r espeito a um compromisso com o r eal. Elas partem dele como modelo ou como referência par a em seguida conduzirem a escuta par a um outro campo, livre de um realismo. São obras que se atêm mais a uma investigação da escuta que do material sonoro. Presença: conceito da acústica de salas usado para a mensur ação (inter -subjetiva) de uma boa sala de concertos; pode ser r esumido como sendo o grau da presença (tanto em quantidade quanto em nível) das primeir as r eflexões nos primeir os 80 milisegundos de um som, em uma sala qualquer. É usado par a dosar o gr au e o tipo de reverberação em uma sala ideal, a qual deve pr opor cionar aos ouvintes uma sensação de proximidade aconchegante com a execução musical, mas deve- se dosar esta pr oximidade de for ma a evitar que o

125

som fique totalmente isento de reverberação, pois isto acarretaria numa sala impr ópria para a escuta. Som em delta: são sons que “(... ) obedecem a um perf il de intensidade de cr escendo/decr escendo. Trata-se do encadeamento clássico de um ‘som ao reverso’ (um som de per cussão-r essonância posto ao r ever so) com um som de percussão- ressonância posto ao o r i g i n a l ” 94 ( C h i o n , 1 9 9 9 , p . 3 3 0 ) . Som fixado em suporte, fono-f ixação : termo cunhado por Michel Chion (cf. Chion, s.d., p.131) para designar o som gr avado em um suporte, seja em um disco de acetato, seja em fita, seja em um disco rígido de computador. Por conter o fluxo contínuo da escuta e possibilitar a escuta de um mesmo som repetidas e inumeráveis vezes, per mite que se componha dir etamente sobre o suporte, o som fixado tor nando-se assim um objeto manipulável. Sulco fechado; sillon fermé: trata-se do sistema de f ixação sonor a nos discos de acetato nos quais se cor tava um sulco circular confor me acontecia a sensibilização mecânica.

Isto

é,

o sulco

fechava-se sobre si mesmo, seu final inter calando- se com o início, de modo que o som realizava um per manente ritornelo ( cf Loop). Foi

neste

suporte

que

as

primeiras

músicas

concretas

foram

realizadas, e por conta da limitação do suporte podemos escutar a quase onipresença de loops, fato que mar cou estilisticamente esta fase e que se tornou objeto retórico da música sobre supor te.

94

“(...) obedecen al perfil de intensidad crescendo/decrescendo. Se trata del encadenamiento clásico de un ‘sonido al revés’ (un sonido de percusión-resonancia vuelto del revés) con un sonido de percusiónresonancia al derecho”. (Chion, 1999, p.330).

126

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133

Anexo 1 – análise e audiograma Som inicial de La Tentation de Saint Antoine NOTA:

a

presente

análise

se

baseia

na

terminologia

e

na

metodologia de Pierre Schaeffer e Guy Reibel, demonstrada no Solfège de l’objet sonore (Schaeffer, Reibel et alii, s.d. ) Em seguida (no segundo parágrafo) é feita uma pequena crítica ao método schaefferiano, o qual não dá conta

da estrutura dinâmica deste

som. O objeto pode ser fragmentado em 3 par tes (désert a, désert b, désert c – faixas 4, 5, 6, fr agmentos da faixa 2, désert). A ar ticulação entre as duas primeiras se dá pela repetição ( na segunda) do impulso

tônico inicial (N’ ), que na segunda vez é prolongado e

tr ansf orma-se em nota tônica ( N), e que tem como desfecho um glissando descendente até o final do r egistro, seguido por uma ressonância gr ave (reverberada), sendo o glissando descendente uma nota tônica variada (Y) e a ressonância uma nota de massa complexa (X). E ntre desert_a e desert_b há uma sequência de sons agudos e estridentes, vocálicos (ssic ssic ssic ssic ssic - massa complexa iterativa - X”), que ligam o impulso inicial ( N´) à sua repetição. A relação temporal entre o impulso inicial, sua repetição e o final do glissando (até onde o percebemos) é a de uma pulsação, formando 3 eventos em sequência

relacionados metricamente. Na

verdade, entendo desert_b e desert_c como uma unidade, e separ eios apenas para salientar as 3 etapas de desert_b ( impulso seguido por nota tônica, glissando descendente e a ressonância, desert_c). Apesar

de,

entre

desert_b

e

desert_c,

existirem

três

estágios

perceptualmente distintos, não podem porém ser separados, pois possuem uma unidade gestual, acentuada pela aparição, na segunda

134

vez, da nota tônica após a repetição do impulso inicial. E sta nota tônica (em ver melho, desert_b) mantém tensa a r elação entre o impulso e a reverberação, sendo que esta última acaba por ser uma conseqüência ou um efeito cuja causa é o glissando descendente, e que por sua vez constitui- se numa possível resolução da nota tônica sustentada (outras for mas de sair dela ser iam simplesmente um fade out ou um adensamento de massa; o compositor porém pr efer iu o glissando descendente) . Portanto, se as etapas contidas neste trecho (desert_b e desert_c) podem ser descritas separadamente não podem porém ser destacáveis ou segmentáveis, ou seja, separadas em objetos, pois não é possível delimitar onde se inicia ou onde se termina este ou aquele objeto: as etapas possuem uma ligação de causa e ef eito, e não existem, entre as elas, articulações com um terceiro objeto, ou silêncios; soam continuamente, e percebemos sua “mudança de estado” quando esta já ocorreu. Já o “objeto ssic ssic ssic” pode ser apontado com clareza, pois destaca-se completamente dos demais: ao aparecer delimita o fim da ressonância do impulso tônico inicial e ter mina com a aparição da repetição do mesmo (com uma ligeir a sobreposição entre o início do outro objeto e fim deste – a qual é bem perceptível). Ou seja, é um bom objeto schaef feriano, destacável, cur to, de ligação longínqua com uma possível fonte vocal.

135

Audiograma

136

Anexo 2 - transcrição e tradução de Le Désert, 1° Quadro de La Tentation de Saint Antoine. NOTA: apresentamos aqui uma transcrição das f alas na obra de Chion. Notamos que o compositor utiliza-se o mais das vezes do texto de Flaubert, mas nunca em sua or dem original. Por vezes, também, acrescenta outras falas que não pr ovêm do romance. Por isso, trouxemos da obra de Flaubert tudo que foi identificado como sua e aproveitamos a tradução em português. Mas aquilo que não foi identificado f oi transcrito das falas, cuja ilegibilidade para um ouvinte não-fr ancês, como é o nosso caso, nem sempre é clara – fato que gera inexatas interpretações. Por isso consideramos tal tr anscrição um guia para a nossa análise, e não um documento a ser seguido.

Tempo voz

Texto Original

Tradução

0’00’’ narrdor

La Tentation de Saint Antoine. Prémière Partie, Le Désert.

A Tentação de Antão. Primeira Parte, O Deserto.

1’51’’ St. Ant

Et c’est la clarté de l’aube,

E é a aurora,

1’56’’ St. Ant

vient, offre de la lune,

Venha, oferenda da lua

2’10’’ St. Ant

J’ éprouve une fatigue, comme si tous mes os étaeint br isés. Pourquoi?

Me sinto cansado, como se tivesse todos os ossos quebrados. Por quê?

2’33’’ St. Ant

Et j’avais cru pouvoir venir à Dieu.

Eu acreditava chegar a Deus.

Santo

claridade

da

poder

137

venir à Dieu.

chegar a Deus.

3’05’’ St. Ant

Quand j’étais un enfant, je m’ amusais avec des cailloux, à constr uire des er mitages. Ma mère, pr ès de moi, me regardait.

Quando eu era garoto, me divertia com as pedrinhas, construindo er emitérios, minha mãe, atrás de mim, me olhava.

3’28’’ St. Ant

La prière m’était intolerable. J’ ai le coeur plus sec qu’un rocher. Autref ois, on débour dait d’amour.

A oração me era intolerável. Tenho o coração tão seco quanto uma rocha. Antigamente, tr ansbordando de amor.

3’48’’ St. Ant

Oh, charmé des or aisons, felicité de l’ extase, pr ésence du ciel, qu’est de Vous devenu.

Oh, encanto das or ações, felicidade do êxtase, pr esença dos céus, que de Vós virá.

6’11’’ St. Ant

Encore un jour! Un jour de passé! Autrefois pourtant, je n’ étais pas si misérable! Avant la fin de la nuit, je commençais mes or aisons; puis je descendais vers le fleuve chercher de l’eau, et je remontais par le sentier rude avec l outre sur mon épaule, em chantant des hymnes. Ensuite, je m’ amuse à ranger tout dans ma cabane.

Mais um dia! Mais um dia que passou! Outrora, todavia, eu não era [assim] tão miserável! Antes de acabar a noite, começava minhas or ações; depois, descia na direção do rio a buscar água e tornava a subir pela ver eda rude com o odre no ombro, cantando os hinos. A seguir , distraía-me pondo tudo em ordem na minha cabana.

8’14’’ narrdora

Il marche dans l’enceinte des roches, lentement. Le ciel est r ouge, la ter re complètement noire. Dans une éclaircie, tout à coup, passent des oiseaux formant un bataillon triangulaire, pareil à un morceau de métal, et dont les bords seuls fr émissent.

Ele anda ao redor das rochas, lentamente. O céu é vermelho, a terra completamente negra. Em um canto do espaço, súbito, passam aves formando um batalhão tr iangular , semelhante a um pedaço de metal, do qual apenas as bordas estremecem.

138

formant un bataillon triangulaire, pareil à un morceau de métal, et dont les bords seuls fr émissent. Antoine les regarde.

formando um batalhão tr iangular , semelhante a um pedaço de metal, do qual apenas as bordas estremecem. Antão os obser va.

8’43’’ St. Ant

Tous me blâmaient lorsque j’ ai quitté la maison. Ma soeur de loin me faisant des signes pour revenir; ma mère s’af faissa mourante; et l’autre pleurait, Ammonaria, cet enfant que je recontrais chaque soir au bord de la citerne. Elle a couru auprès de moi. Le vieil ascète qui m’emmenait lui a cr ié des injures. Et je n’ ai plus revu personne.

Todos me censuravam quando deixei o meu lar. Minha irmã de longe me fazia sinais para voltar; minha mãe pr ostou-se agonizante; e a outra chorava, Ammonaria, essa criança que eu encontrava todas as tardes à borda do poço. Ela correu atrás de mim. O velho asceta que me conduzia, atirou-lhe injúrias. E nunca mais vi ninguém.

9’32’’ St. Ant

Quelle solitude! Quel ennui!

Que solidão! Que tédio!

9’42’’ St. Ant

C’ est une si belle existence que de tordre au feu des bâtons de palmier pour faire des houlettes; puis d’echanger tout cela avec les Nomades contre du pain qui vous br ise les dents! Ah! misère de moi! Assez! Assez!

É uma bela existência torcer no fogo paus de palmeira para fazer cajados, depois tr ocar tudo isso com os nômades por pão que vos quebra os dentes! Ah! Pobre de mim! Basta! Basta!

10’10’’ St. Ant

Quelle solitude! Quel ennui!

Que solidão! Que tédio!

10’28’’ St. Ant

Misère de moi! Est que ça ne...

Pobre de mim! Será que isso não.. .

10’40’’ St. Ant

Assez! Assez!

Basta! Basta!

139

10’54’’ St. Ant

narrdora

Je n’en peux plus! Assez! Assez!

Eu não Basta!

posso

mais!

Il se tour ne vers le petit chemin entre les r oches.

Volta- se em direção da trilha entre as rochas.

11’09’ ’ St. Ant Oui! L a bas, tout au f ond, une masse remue, comme de gens que cherchent les chemins. E lle est là! Ils se trompent!

Sim! Lá embaixo, bem no fundo, uma massa se movimenta,como pessoas que pr ocur am o caminho. E stá lá! Eles se enganar am!

11’22’ ’narrdora Et tout de suite il lui entend chuchoter.

E em seguida ele a ouviu sussurrar: Ah Antoine!

11’23’’ St. Ant Ah! Antoine!

Ah! Antoine!

11’29’ ’narrdora Et, tout à coup, passent au milieu de l’air, d’abord une flaque d’eau, ensuite une pr ostituée, le coin d’ un temple... Ces images ar rivent brusquement. Elles défilent d’une façon vertigineuse. D’autre fois, elles s’ar rêtent e pâlissent par degrés, et immédiatement d’autres arrivent.

E, de repente, passam no ar, primeiro uma poça de água, depois uma pr ostituta, o ângulo de um templo... E stas imagens chegam br uscamente. Elas desfilam de maneira vertiginosa. Outras vezes, param e empalidecem gradualmente, e imediatamente outras chegam.

11’53’’ St.Ant

Quelqu’un, Repondez?

Alguém? Responda?

12’03’’ St.Ant

Arrière! Arrière! Vous ètes tous des mensonges!

Para trás! Par a tr ás! Vocês são todos mentira!

12’28’’ St.Ant

Ah! C’ etait une illusion! Pas autre chose!

Ah! Era uma Nada mais!

ilusão!

140

Cependant. .. j’avais cru sentir l’approche.. . Mais porquoi viendr ait- Il? D’ ailleurs, est-ce que je ne connais pas ses ar tifices? J’ai repoussé le monstr ueux anachorète qui m’offrait, en riant, des petits pains chauds, le centaure qui tâchait de me pr endr e sa cr oupe, - et cet enfant noir apparu au milieu des sables, qui était très beau, et qui m’a dit s’ appeler l’ esprit de fornication.

Entretanto... tinha acreditado sentir a aproximação... Mas por que viria ele? Aliás, não conhecerei seus artifícios? Eu repeli o monstr uoso anacoreta que me oferecia, rindo, pãezinhos quentes, o centauro que tentava carregar-me na sua garupa, - e esta criança negra aparecida no meio das areias, tão bela, e que me disse chamar-se o espírito da fornicação

14’26’’ St.Ant

L’autre pleurait, Ammonaria.

A outra, chorava.

14’48’’ St.Ant

Non, Ammonaria ne l’aura pas quitté!

Não, Ammonaria não o deixar á mais!

Ammonaria

141

Anexo 3 - faixas no disco em Anexo dos exemplos extraídos das obras estudadas: Capítulo 2: Faixas 1 a 12, extratos de La Tentation de Saint Antoine – Le Désert, de Michel Chion, e de Apocalypse de Jean, de Pierre Henry. 1. La Tentation de Saint Antoine – Le Désert (integral) 2. désert 3. tarântulas 4. désert a 5. désert b 6. désert c 7. bichos 8. apo_cavalos 9. valsa 10. animais 11. bichos_apo 12. loops 13. ilusion Capítulo 3: Faixas 14 e 15 (Étude aux Chemins de Fer), 16 a 21 (Presque Rien), 22 a 25 (Des Mains Insomniaques Conduiront le Coupé Rouge), 26(Era uma vez no Oeste). 14. Étude 15. Étude_exemplo 16. Presque Rien 17. caminhão 18. galinha-barco 19. cacareco_motor_grave 20. vozes_chamando 21. vozes déjà-vu 22. Des Mains Insomniaques Conduiront le Coupé Rouge 23. duf_peq 24. piano-pomba 25. turbulência 26. Oeste

Disco 2: f ilme 1 ( extrato de Alexander Nevsky) e filme 2 (extrato de C’ era una volta il west).

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