QUESTÕES DE SUBALTERNIDADE E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO A PARTIR DE VIVÊNCIAS COM O BLUES DE SALVADOR

June 13, 2017 | Autor: Eric Hora | Categoria: Music, Ethnomusicology, Brazil, Blues, Salvador
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QUESTÕES DE SUBALTERNIDADE E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO A PARTIR DE VIVÊNCIAS COM O BLUES DE SALVADOR

Eric Hora Fontes Pereira
Mestrando em Etnomusicologia – PPGMUS-UFBA
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Resumo: O presente texto fornece reflexões sobre o universo do blues na cidade de Salvador – tema de minha pesquisa de mestrado em Etnomusicologia – a partir de referenciais oriundos das teorias pós coloniais e das epistemologias de diferença. Aliando-se às abordagens de autores como Bhabha (2001), Said (2007) e Carvalho (2001) o texto se propõe a refletir sobre a produção de conhecimento e protagonismo na pesquisa por parte de povos subalternos, estimulando desconstruções de pensamentos canônicos nessas esferas e associando as discussões levantadas ao campo de pesquisa destacado. Neste sentido, vêm à tona reflexões sobre as questões que colocam o blues em posição de subalternidade e tópicos sob os quais esta analogia torna-se viável, em uma perspectiva empenhada em estimular a quebra de binarismos nos diálogos entre uma pluralidade de manifestações dentro de um mesmo contexto cultural. A leitura representa uma possível contribuição à Etnomusicologia através de questões sobre produção de conhecimento a partir de tópicos ligados à diferença, alteridade e subalternidade dentro do campo temático da área, apontando possíveis ressalvas e situando as perspectivas de fala das referências adotadas.
Palavras-chave: Blues – Salvador – Etnomusicologia
Abstract: This paper provides reflections on the world of blues in the city of Salvador - subject of my master's research in ethnomusicology - from references from postcolonial theories and epistemologies of difference. Combining approaches to authors as Bhabha (2001), Said (2007) and Carvalho (2001) text intends to reflect about the knowledge production and leadership in research by subaltern people, stimulating deconstructions of canonical thoughts on these spheres and associating raised discussions to the highlighted search field. In this sense, come to light reflections about the issues that put the blues in a position of subalternity and topics under which this analogy becomes feasible, in a perspective committed to stimulate the breakdown of binaries in the dialogues between a plurality of events in a same cultural context. The reading represents a possible contribution to ethnomusicology through questions about knowledge production from topics related to difference, otherness and subalternity in the subject field of the area, pointing out possible caveats and situating the speech perspective of adopted references.
Keywords: Blues – Salvador – Ethnomusicology
Questões que dizem respeito à produção de conhecimentos em diversos campos sempre foram de grande interesse pessoal. No que tange à seara acadêmica, os meios através dos quais se constroem os lugares de autoridade inconteste dos pesquisadores nos levam a uma ampla gama de questionamentos e desconstruções. A ciência que, de modo geral, nos é trazida como legítima e imparcial, tem em seu corpo de saberes o resultado de construções culturais, sociais e políticas diversas que são representadas por lugares específicos de fala nas formulações de discursos.
Sobre o campo da Antropologia, José Jorge de Carvalho traz à tona a questão das óticas colonizadoras implícitas no olhar etnográfico frente a vozes subalternas, bem como a ocidentalização do campo temático da disciplina. O autor destaca a tarefa de "descolonização das paisagens mentais" (CARVALHO, 2001, p. 111) em diversas disciplinas das ciências humanas, implicando em uma revisão de seus cânones.
Em sua crítica, o autor recorre a diversos teóricos que lidam com questões ligadas a subalternidade e os chamados estudos "pós-coloniais", a exemplo de Gayatri Spivak, Edward Said e Homi Bhabha. Estas abordagens, cada qual à sua maneira, chamam atenção para um aspecto importante: a construção de conhecimentos por parte de grupos subalternos em países de Terceiro Mundo.
Enxergo uma viável possibilidade de diálogo entre tópicos relacionados à subalternidade e diferença com a minha pesquisa de mestrado, que aborda a prática do blues na cidade de Salvador. Trata-se de um universo ainda muito pouco abordado em pesquisas acadêmicas, cujas primeiras manifestações das quais se têm notícia datam do fim dos anos 80.
No que diz respeito ao blues no Brasil, Roberto Muggiati destaca que as primeiras bandas eram formadas por jovens brancos de classe média saturados do rock e que não conseguiam encontrar na MPB uma identificação para seus anseios e seu estilo de vida (MUGGIATI, 1995, p. 191).
Com a intensificação de processos migratórios nos Estados Unidos e o desenvolvimento de novas tecnologias de gravação e difusão do produto musical, o blues dos negros americanos se disseminou por diversas cidades e contextos urbanos e, posteriormente, exerceu influência fundamental no surgimento de gêneros musicais como o jazz e o rock.
Álvaro Assmar, meu pai, destaca em relato a mim concedido a influência do rock dos Beatles e de artistas da Jovem Guarda em sua formação, colocando-os como responsáveis por sua primeira inclinação para a música. Na esteira deste processo, artistas brancos e ingleses como Eric Clapton, Rolling Stones e Led Zeppelin faziam o rock com uma maciça influência do blues e eventualmente executavam suas versões de standards de artistas negros americanos pelos quais foram influenciados.
No recente III Encontro Regional Nordeste / I Encontro Regional Norte da ABET, destaquei em comunicação três exemplos de composições de blues de artistas soteropolitanos, associando-os a determinados aspectos ligados às suas respectivas paisagens sonoras. Não pretendo esmiuçar novamente estas análises, me limitando neste momento a destacar que as canções serviram como exemplos de discursos musicais da apropriação do gênero musical na cidade, envolvendo instrumentação e sonoridades semelhantes ao rock como o dos artistas destacados e abordando temas referentes ao cotidiano destes músicos em Salvador.
Este tópico, no meu entendimento, de imediato pode dialogar com alguns aspectos referentes a questões de subalternidade. O blues de Salvador figura como segmento minoritário em termos de mídia e alcance de público na cidade e, desta forma, se constitui como um discurso de subalternos. O propósito de minha pesquisa tem sido o de lidar com as etnografias de modo a estabelecer diálogos com os indivíduos entrevistados, levando em consideração o fato de eu também ser um músico e filho de um músico de blues na cidade de Salvador e todos os fatores que configuram esse lugar de fala específico.
Álvaro Assmar é guitarrista, cantor e compositor de blues. Nascido e radicado em Salvador, foi um dos fundadores do grupo Blues Anônimo em 1989 – junto com o baixista Octávio Américo e o baterista Raul Carlos Gomes – e desde 1995 desenvolve seu trabalho solo, que já conta com cinco CDs e dois DVDs lançados. Novamente em relato dirigido a mim, afirma que percebe que o músico de blues na cidade é encarado por vezes como uma espécie de "forasteiro", que se apropria de uma estética musical de origem estrangeira supostamente em detrimento das tradições nacionais.
Este aspecto apontado pelo músico baseado em suas vivências pode relacionar-se, dentre outros fatores, com os novos paradigmas decorrentes dos processos de globalização. George Yúdice fornece importantes referenciais epistemológicos sobre os diversos usos da cultura e discute a chamada "cidadania cultural". Em suas reflexões sobre o tema, o autor também traz à tona a questão do direito cultural. Achei válido expor aqui sua citação do Project concerning a declaration of cultural rights, do Grupo de Friburgo.
Os direitos culturais incluem a liberdade de se engajar na atividade cultural, falar a língua de sua escolha, ensinar sua língua e cultura a seus filhos, identificar-se com as comunidades culturais de sua escolha, descobrir toda uma variedade de culturas que compreendem o patrimônio mundial, adquirir conhecimento dos direitos humanos, ter uma educação, não deixar representar-se sem consentimento ou ter seu espaço cultural utilizado para publicidade, e ganhar respaldo público para salvaguardar esses direitos (GRUPO DE FRIBURGO, 1996 In YÚDICE, 2006, p. 41).
A questão do direito cultural é um paradigma que ganha novos significados a partir dos processos de globalização e está intimamente ligada aos conceitos de identidade na pós-modernidade. Stuart Hall fornece reflexões sobre estes, ressaltando a emergência e suspensão de diversas identidades por toda a parte, sendo estas o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns no mundo globalizado (HALL, 2006, p. 88).
Nesse contexto da chamada pós-modernidade, o próprio Hall em "Da Diáspora" reflete sobre as questões das diferenças e subalternidade imbricadas nestas novas disposições de identidades. A partir daí, destaca as ações produtivas nestes meios como resultado de políticas culturais de diferença, de lutas em torno da diferença, da produção de novas identidades e do aparecimento de novos sujeitos no cenário político e cultural (HALL, 2011, p. 320).
A problematização dos meios de produção do conhecimento dito neutro e a reflexão sobre estas políticas culturais de diferença são fundamentais para se conceber o surgimento e protagonismo das novas identidades em seus discursos. Edward Said faz considerações sobre o equívoco no consenso de que o conhecimento declaradamente "político" é inferior e "menos científico", sublinhando a ligação desta designação com toda forma de conhecimento (SAID, 2007).
Relaciono esta observação à proposta de conhecimento situado, apresentada por Donna Haraway que, a partir de epistemologias feministas, defende que todo conhecimento é político e carrega consigo o lugar de quem fala (HARAWAY, 1988) – ponto que tem sido referencial importante em minha pesquisa sobre o blues em Salvador, que lida com questões de abordagem participativa e protagonismo na pesquisa.
As falas de teóricos como Homi Bhabha e Edward Said – indiano e israelense, respectivamente – representam lugares de fala periféricos cujas abordagens dão conta de pontos importantes, que compreendem reflexões sobre a questão da subalternidade e a necessidade de diálogos mais eficazes com o discurso do subalterno com autonomia em relação a mediações de matrizes hegemônicas.
Em "O local da cultura", a partir da crítica a abordagens que reforçam o binarismo em novas teorias sobre o Outro, Homi Bhabha defende a abertura de um "espaço de tradução", um "lugar de hibridismo" (BHABHA, 2001, p. 51), que envolva negociações e construa novos objetos políticos, efetivamente.
Parece-me adequado enxergar a produção de conhecimentos e de diferença pelos protagonistas do blues em Salvador a partir dos "entre-lugares". O acesso ao blues norte americano, viabilizado em grande parcela pelo contato inicial com o rock, e a apropriação desta identidade musical no contexto sociocultural da cidade de Salvador constituem esta produção e lidam diretamente com este "lugar de hibridismo" e com as construções sugeridas por Homi Bhabha.
Expandindo nossas reflexões, Clifford Geertz argumenta em favor de uma Antropologia Interpretativa, estimulando abordagens que não apenas partam de relações de causa e efeito, ressaltando a importância dos signos e significados no entendimento da arte enquanto sistema cultural. Embora haja críticas à sua abordagem e às relações de poder subjacentes na construção do citado processo interpretativo, esta compreensão pode ser aliada aos novos conceitos e paradigmas das identidades na pós-modernidade, também no sentido de argumentar em favor da construção de discursos por parte dos subalternos. Geertz considera a necessidade de colocarmos em prática a difícil tarefa de
[...] ver-nos, entre outros, como apenas mais um exemplo da forma que a vida humana adotou em um determinado lugar, um caso entre casos, um mundo entre mundos. Se a antropologia interpretativa tem alguma função geral no mundo, é a de constantemente re-ensinar esta verdade fugaz (GEERTZ, 1997, p. 30).
Lançando olhares sobre o blues em Salvador, este pode figurar aqui como um "mundo entre mundos", estes representados por diversos outros segmentos minoritários que desenvolvem suas práticas musicais no contexto urbano da cidade em circunstâncias limitadas de produção. Neste sentido, são discursos de subalternos que, cada qual com suas feições específicas, constroem suas trajetórias não obstante as dificuldades encontradas no processo.
É fundamental situar as discussões sobre alteridade e subalternidade dos autores citados ao longo do texto no sentido de reconhecer que estas, em seu contexto de origem, endossam outros discursos, que partem de outros lugares de fala, não cabendo aqui uma analogia direta destes com as questões que envolvem o blues em Salvador.
O diálogo que proponho entre estas teorias e o contexto do blues de Salvador se dá sobre as questões levantadas ao longo deste texto e também pode envolver aspectos como as relações desta prática e seus discursos de apropriação com o blues nos Estados Unidos, as interações entre os protagonistas com outras práticas musicais no contexto de Salvador, os diálogos entre o blues em Salvador e as cenas deste gênero musical em outras cidades e estados no país, dentre outros tópicos.

Referências

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2001.

CARVALHO, José Jorge de. O olhar etnográfico e a voz subalterna. In: Horizontes Antropológicos, ano 7, n. 15. Porto Alegre: 2001, p. 107-147.

GEERTZ, Clifford. O Saber Local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 5ª ed.
Petrópolis: Vozes, 2002.

GRUPO de Friburgo. Project concerning a declaration of cultural rights. Paris: UNESCO, setembro, 1996. In: YÚDICE, George. A conveniência da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2004, p. 41.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad: Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

______. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Org: Liv Sovik. Trad: RESENDE, Adelaide La Guardia... [et al.]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

HARAWAY, Donna. Situated knowledges: the science question in feminism and the privilege of partial perspective. Feminist Studies 14, n. 3, Feminist Studies Inc, 1988.

HOBSBAWM, Eric J. História social do jazz. Tradução de Angela Noronha. São Paulo: Paz e Terra, 1989.

MUGGIATI, Roberto. Blues da lama à fama. São Paulo: Ed. 34, 1995.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Cia
das Letras, 2007.

YÚDICE, George. A conveniência da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2004.


[...] tema jazzístico que passa a ser um clássico do estilo (HOBSBAWN, 1989, p. 369).



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