Questões em torno dos Ordinários do Ofício Divino de Alcobaça

July 1, 2017 | Autor: C. Fernandes Barr... | Categoria: Medieval illuminated manuscripts
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Descrição do Produto

Ficha técnica Título Colecção Coordenação científica Coordenação editorial Autores

Edição Ano Design e composição Impressão e acabamento Depósito legal ISBN

Imagens e Liturgia na Idade Média Bens Culturais da Igreja, N.º 4 Carla Varela Fernandes Sandra Costa Saldanha Alícia Miguélez Cavero Anísio Franco Carla Varela Fernandes Catarina Fernandes Barreira Jean-Marie Guillouët Manuel Antonio Castiñeiras González Maria Alessandra Bilotta Maria João Vilhena de Carvalho Mário Jorge Barroca Paulo Almeida Fernandes Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja 2015 SNBCI Sersilito 393185/15 978-989-97257-6-8 Secretariado Nacional para os Bens Culturais da Igreja Quinta do Cabeço, Porta D, 1885-076 Moscavide Tel.: (+351) 218 855 481 | Fax: (+351) 218 855 461 [email protected] | www.bensculturais.pt

ÍNDICE



















Apresentação Carla Varela Fernandes

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Uma colecção de escultura para uma arquitectura perdida: o núcleo altimedieval de Sines Paulo Almeida Fernandes

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Gesto, imagen y liturgia: las representaciones de dolor y lamento en la escultura funeraria portuguesa (siglos XII-XIV) Alícia Miguélez Cavero

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El Apóstol está presente: la estatua de Santiago y sus peregrinos en el siglo XIII Manuel Antonio Castiñeiras González

63

Uma imagem de S. Bartolomeu do MNAA: questões em torno da estética, iconografia e importância do culto nos anos do Românico Carla Varela Fernandes e Mário Jorge Barroca

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L’iconographie du travail et la culture de l’alimentation: élaborations figuratives dans la production enluminée liturgique de Émilie-Romagne au XIIe siècle Maria Alessandra Bilotta

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Questões em torno dos Ordinários do Oficio Divino de Alcobaça Catarina Fernandes Barreira

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L’image monumentale et le texte: remarques sur la mécanique épigraphique à la fin du Moyen Âge Jean-Marie Guillouët

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A nova museografia da escultura portuguesa no Museu Nacional de Arte Antiga Maria João Vilhena de Carvalho e Anísio Franco

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QUESTÕES EM TORNO DOS ORDINÁRIOS DO OFICIO DIVINO DE ALCOBAÇA1 Catarina Fernandes Barreira*

A propósito do estudo dos manuscritos iluminados da Biblioteca de Alcobaça, ocorreu-nos apresentar aqui, pelo interesse histórico e litúrgico que têm, os Ordinários do Ofício Divino da abadia. É um tipo específico de livro que ainda está por estudar pois só há poucos anos começou a atrair as atenções dos historiadores e de especialistas em liturgia, como Eric Palazzo e Jean-Baptiste Lebigue, entre outros. De qualquer modo, este trabalho em torno dos Ordinários que aqui apresentamos, bem como as hipóteses levantadas, vão continuar a ser questionadas e desenvolvidas, o que faz com que este texto tenha um carácter provisório e que no futuro possa vir a ser enriquecido com mais dados científicos decorrentes do avanço da investigação. O estudo que iniciámos em torno dos missais e dos breviários de Alcobaça, na esteira dos trabalhos desenvolvidos por Horácio Peixeiro, conduziu-nos aos manuscritos de apoio à vida interna da abadia. O seu estudo em simultâneo contribui para percebermos a dinâmica inerente ao quotidiano dos monges desta abadia e vai decerto enriquecer e contextualizar o estudo dos manuscritos litúrgicos. Quando nos referimos aos manuscritos de apoio à vida interna da abadia estamos a falar de textos com uma dimensão teórico-prática entrosada no dia-a-dia de um mosteiro cisterciense como a Regra de São Bento, os Livros dos Usos, os Costumeiros, entre outros, onde os Ordinários também se incluem e que faziam parte do conjunto de livros que cada abadia deveria ter. Este tipo de textos são importantes testemunhos do funcionamento de uma comunidade, dos seus hábitos e rotinas, dos seus usos e costumes. Interessante é pensarmos que um número significativo deste tipo de manuscritos se copiou ao longo de todo o século XV em Alcobaça, em português, o que decerto reflecte um conjunto de medidas de carácter reformista em fazer cumprir com rigor e escrúpulo as orientações da ordem.

*Instituto de Estudos Medievais - FCSH/UNL

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Considerações iniciais sobre os Ordinários Os Ordinários do Oficio Divino não são livros litúrgicos pois não são usados na celebração, mas são textos de apoio à liturgia, que contêm instruções para a sua comemoração, como uma espécie de texto-guia. É o livro “onde a cerimónia litúrgica é escrupulosamente descrita” (Palazzo, 1993: 224): os Ordinários incluem, sob uma forma abreviada (geralmente através do Incipit) os excertos dos cânticos e das orações. “O ordinário é o livro que contém as rúbricas dos ofícios eclesiásticos, pois os sacramentários antigos não as tinham.” (Pereira, 1996: 156). O termo vem de ordo, enumeração descritiva dos ritos litúrgicos e a partir do século XIII o termo foi substituído por ordinarium (Pereira, 1996: 156). Para além do papel descritivo e informativo sobre as acções litúrgicas, os Ordinários foram também criados para resolver o problema das sobreposições entre o Próprio do Tempo e o Santoral, ou seja, apresentam soluções, com exemplos práticos, para resolver a hierarquia das festividades. Os primeiros ordinários apareceram no século XI, mas depressa se desenvolveram a partir da centúria seguinte (Lebigue, 2014: 41) e relacionam-se directamente com o seu local de pertença e ordem religiosa (Nebbiai, 2013: 74): é através dos Ordinários que conhecemos as especificidades das liturgias locais (Palazzo, 1993: 230). Como acontece com os manuscritos litúrgicos, um Ordinário de um mosteiro cisterciense é diferente de um Ordinário de uma catedral, ou de uma Colegiada, em diferenças que se prendem com devoções e cultos particulares. Pese embora o seu interesse, não é nossa intenção desenvolver uma análise em torno dos vários tipos de Ordinários conhecidos, mas restringir a nossa atenção ao contexto cisterciense por causa dos Ordinários de Alcobaça. Um dos aspectos que parece caracterizar a ordem cisterciense e que se discute desde há algumas décadas a esta parte é a uniformização litúrgica, que está expressa desde o início nos Statuta capitulorum generalium ordinis Cisterciensis: “III. Quos libros non licet habere diversos. Missale, epistolare, textus, collectaneum, graduale, antiphonarium, regula, psalterium, lectionarium, kalendarium, ubique uniformiter habeantur.” (Canivez, 1933, I: 13)

Manteve-se pelo menos até meados do século XV. A questão não é se este desejo de uniformização existiu ou não, mas se foi aplicado pelas abadias na cópia dos manuscritos: neste âmbito

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Thomas Falmagne dá-nos dois exemplos que questionam esta concretização (Falmagne, 2012: 16 e 17), um deles a propósito do famoso manuscrito-modelo de Dijon BM 114, copiado entre 1183 e 1188 (Falmagne, 2000: 197) que deve ser re-interpretado. Neste âmbito, se pensarmos nos missais de Alcobaça que chegaram até hoje, verificamos que são livros dinâmicos cujo processo de realização e utilização se adaptou à medida que foram introduzidas novas festividades, quer no Próprio do Tempo, quer no Santoral. Por exemplo, uma mudança significativa foi a celebração, depois da dominga dedicada à Santíssima Trindade, da Festa de Corpus Christi autorizada no Capítulo Geral de Setembro de 1318: “Com duabus missis et propria historia feria quinta post octavas pentecostes prout a felicis recordationis domini clement V in suis constitutionibus in viennensi concilio editis” (Canivez, 1933-41, III: 338).

A adição desta festa, entre outras, aos missais do século XIII constitui um indício de que os missais se continuaram a usar posteriormente, e/ou que estas adições ficaram a dever-se ao desejo de uniformização litúrgica cisterciense, que Alcobaça tentava cumprir (Barreira, 2014b: 166). Constitui uma excepção à regra o facto do abade D. Estevão de Aguiar, em 1435, ter ordenado que a festa do Corpus Christi não se fizesse à quinta-feira, mas que fosse celebrada no domingo seguinte, como assim o refere o desaparecido Alc. 64, o Regimento dos sacristães-mores do Mosteiro de Alcobaça (Gomes, 2013: 438). Aceitemos por agora esta questão da uniformidade litúrgica com alguma flexibilidade e dependente também do contexto: segundo Lebigue, foi devido ao empréstimo e circulação de manuscritosmodelo que os cistercienses prescindiram de um Ordinário mas, em meados do século XII criaram um tipo de texto próximo do Costumeiro, designado como Ecclesiastica oficia (Lebigue 2009: 7) que continha algumas descrições litúrgicas, mas sem os incipits dos textos, cânticos e orações. O principal objectivo da redação do Ecclesiastica oficia era a resolução de conflitos entre festividades, embora também forneça indicações, por exemplo, sobre os dias em que os monges lavram (laboram) e os dias em que não lavram e segundo Lebigue, não é um Ordinário (Lebigue, 2009: 8). No entanto, e novamente segundo o mesmo autor, a situação muda no contexto do século XIII, a propósito das inúmeras decisões que o Capitulo Geral cisterciense teve de tomar e depois de divulgar por todas as abadias, testemunhado pelo manuscrito BM Troyes, ms 1881 (Lebigue, 2009: 9). Lembremo-nos que o Santoral cisterciense aumentou significativamente entre os inícios do século XIII e a centúria seguinte (Leroquais, 1934: 97-ss). 133

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No século XIV o panorama manteve-se, ou seja, a quantidade de legislação saída dos Capítulos Gerais anuais era tanta, que novo livro foi criado e adaptado a partir dos anteriores, o Quoniam Multi. Segundo Lebigue, este outro tipo de texto, que também não é um Ordinário, integra estatutos e as definições resultantes dos Capítulos Gerais (ver Prólogo do manuscrito que está em Laon, Biblioteca Municipal, ms 210, f. 1r, Lebigue, 2009: 10), ou seja, o Quoniam Multi é uma compilação de vários textos normativos próprios de Cister, com indicações específicas. Os Ordinários da abadia de Alcobaça Atribuíveis à abadia da Alcobaça chegaram até hoje, pelo menos, quatro Ordinários do século XV, todos em português: Alc. 209, Alc. 62, Alc. 63 e NLA ms 4346 e dois do século XVI, Alc. 82 e Alc. 223. Se Alcobaça teve Ordinários mais antigos, não o sabemos. Em relação aos Ordinários de Alcobaça terem ou não excertos e/abreviaturas dos textos das leituras, orações ou cânticos, estes aparecem mencionados várias vezes ao longo dos capítulos, como por exemplo: na rubrica que diz respeito ao que se deve cantar na Vigília do Natal quando vier num domingo (Alc. 62, f. 29v) há esta referência, com a indicação dos incipits dos cânticos. Ou quando se deve ou não cantar o Glória in excelsis, quando o abade deve dizer Ite missa est (Alc. 62, f. 155r) entre outras tantas orientações de cariz litúrgico. Têm, tal como o Quoniam Multi, a indicação dos estatutos e a menção às definições resultantes dos Capítulos Gerais a justificar as indicações a tomar pelo convento. Aceitemos a designação de Ordinários porque é assim que estes manuscritos nos são apresentados nos Prólogos “Começasse o prologo em o livro ordinairo do oficio divino da ordem de cister” (Alc. 209, f. 7r). Por outro lado, também é deste modo que aparecem mencionados no Inventário de Claraval feito pelo abade Pierre de Virey em 1472: “Item ung autre volume contenant l’Ordinaire selond l’ordre de Cisteaux et le livre des Us tant des moynes comme des convers” (Vernet, 1979: 288).

O Prólogo dos manuscritos de Alcobaça menciona as razões da sua redação, próximas das que estiveram na origem do Quoniam multi: “convém saber como o ofício divinal nas missas e nas outras horas ordenadamente se deva celebrar. E maiormente pelos estatutos e definições as quais o capítulo geral muitas vezes compôs. E

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as quais em cada um ano compõe e ordena (…) E a muitas coisas são escritas e no livro dos usos antigos as quais pelas definições do capítulo geral são declaradas ou mudadas. E as que em este ordinário são escritas são todas do livro dos usos velho e das definições do capítulo geral sacadas. (…) Este livro mandou compilar o muito honrado e distinto barão D. João abade do mosteiro de Cister com conselho do Capitulo Geral. E mandou que usassem dele por toda a ordem de Cister.” (Alc. 209, f. 7r)

Ou seja, a quantidade de legislação saída dos Capítulos Gerais Prólogo do Ordinário do Oficio Divino Alc. 209, f. 7r ©Biblioteca Nacional de Portugal. Foto Catarina F. Barreira anuais era significativa, introduzia mudanças e os Ordinários, para além de fornecerem informação actualizada, contribuíam para a homogeneização dos Ofícios por toda a Ordem, pois as instruções nele contidas eram para ser usadas em todas as casas de Cister. Os Ordinários de Alcobaça, tal como os Ecclesiastica oficia, dão inúmeras instruções sobre a sobreposição entre as festividades do Próprio do Tempo com as do Santoral, por exemplo Das festas de doze lições que vierem no dia da Ascensão (f. 99v do Alc. 63) ou De quando vier em Domingo a festa de Santo Estevão (Capítulo 27 do Alc. 62). Ou por exemplo, quando algum irmão morria no dia de Natal, como se haveria de fazer (Alc. 62 f. 31v e f. 32r) numa situação em que as missas são de festa. Isto porque na sua organização por rúbricas (mais de duas centenas e meia) as instruções para as festividades do Temporal estão entrosadas com as do Próprio dos Santos: capítulos respeitantes ao Advento e santos de Novembro e Dezembro; 135

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Natal, Circuncisão e Epifania intercaladas com santos de Dezembro e Janeiro e por diante, até ao Corpo de Deus. No Tempo Comum e até ao início do Advento, indicações inerentes às festividades do Santoral. Ou seja, nos Ordinários de Alcobaça há três tipos de tempo a ter em consideração: o ano civil, de Janeiro a Dezembro, representado pela presença do Calendário, que trataremos mais adiante; o ano litúrgico, que se inicia no 1º domingo do Advento e por fim, o ritmo semanal ou ciclo hebdomadário, dos dias feriais, do sábado e do domingo (importante porque há distinção entre quando uma festa ocorre a um domingo ou não). Todos os manuscritos estão na Biblioteca Nacional de Portugal, à excepção do manuscrito 4346, que está na National Library of Australia e pertence à Braga Collection. Acedemos ao mesmo porque está digitalizado e em linha2: cabe aqui um agradecimento ao Mário Farelo, que foi quem nos deu esta importante indicação, pois desconhecíamos a existência deste manuscrito. Este Ordinário aparece catalogado com a seguinte designação: Regulations of the Cistercian Friars in the Abbey of Alcobaca (Portugal 1400). Não parece estar encadernado, nem foliado e termina, incompleto, com a rubrica Das Comemorações de Santa Maria, ou seja, faltam-se os fólios que continham as últimas sete rúbricas. No fólio do Prólogo, 6r tem a seguinte nota na margem de pé “Servia este ordinário pelos anos de 1400 em cada mosteiro havia hum por mandado do Geral de Cister (…) de Alcobaça”. Apesar disto, no calendário, no mês de Outubro, não tem assinalada a dedicação da igreja de Alcobaça. A sua decoração iluminada reduz-se às iniciais de cor, a assinalar o Prólogo e cada capítulo do Ordinário e faltam-lhe fólios no final (que correspondem a sete rúbricas ou capítulos), terminando incompleto com Das comemorações de santa Maria. Tal como o Alc. 63 e o Alc. 82, não tem uma tábua de rubricas. No entanto, os seus capítulos internamente são semelhantes aos outros Ordinários, embora com algumas inversões na ordem, o que pode ter acontecido, por exemplo, devido a uma troca de cadernos aquando a perda da encadernação. Como não consultámos o manuscrito fisicamente, ficam por aqui as nossas reflexões sobre o mesmo, ao qual só pontualmente voltaremos. No que concerne aos outros manuscritos e à sua pertença à abadia de Alcobaça, só aparece assinalada a dedicação da igreja nos calendários dos manuscritos Alc. 63, f. 5v e no Alc. 82, f. 18v. Este último tem ainda referido no f. 21r que “Este livro he do mosteyro de Alcobaça se se perder bem lho podem tornar” e no f. 145v “da qual foi acabado em ho mosteyro d’Alcobaça por frey Cristovão de Évora aos 18 dias de maio da era de nosso redentor e salvador” com a data de 1526. 136

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O manuscrito Alc. 62 é bastante significativo e merece da nossa parte uma descrição mais detalhada pelo interesse que tem. Já lhe dedicámos algumas páginas (Barreira, 2014b: 177-ss) e uma Ficha de catálogo (Barreira, 2015: 125 e 126). Este Ordinário tem início com um conjunto de notas e uma lista dos reis de Portugal, escrita por uma mão, regular, até D. Afonso V; irregular e de várias mãos até D. João III. Este fólio tem ainda a seguinte nota: “É este um dos mais curiosos livros que ainda de pena vi bem parece quando os antigos padres trabalhavão pera alumiar aos que depois sucedemos…” (Alc. 62, f. 2v).

De seguida, o Calendário não tem assinalada a festa da consagração da Abadia de Alcobaça no dia 20 de outubro. Entre os f. 10r e f. 17r tem uma tábua das rubricas que compõe o Ordinário do Oficio Divino que mandou compilar o abade de Cister, ou seja, tem as rúbricas todas, num total de 270 (as duas últimas referem-se como devem fazer os monges nos ofícios domingais antes do Advento). No f. 17v temos um conjunto de argumentos sobre a pertença do manuscrito quer a Seiça, quer a Alcobaça: o primeiro texto filia-o a Seiça através da datação das “obras novas”, o segundo a Alcobaça e o terceiro texto alude ao Sufrágio de S. Lamberto como elemento de distinção em relação à sua filiação, assunto a que voltaremos mais adiante. De seguida temos o Prólogo e o início do Ordinário com a indicação Quando devem celebrar o Advento. O Ordinário foi concluído em 1475 de acordo com o texto no f. 157v. Do f. 157v ao f. 166r aparecem um conjunto de indicações importantes para os monges sobre as festas e sobre o que cantar e quando e até ao f. 195r temos uma Ars Manualis com tabelas explicativas sobre as festas, diagramas circulares, colectas dos Ofícios dos Mortos e tabelas para as fases da lua e por fim informações sobre a duração das horas de sol ao longo dos doze meses do ano. Podemos dizer que o local de origem deste manuscrito e o seu percurso suscitam algumas questões pela abundância de menções que o ligam a Sta. Maria de Seiça, ao longo de vários fólios. No entanto, cremos que as referências a Alcobaça o vinculam à abadia como local de origem como se pode ver nos f. 3v, onde há uma referência ao abade de Alcobaça no ano de 1425, no f. 178r temos uma menção ao modo como se celebravam, em Alcobaça, os aniversários dos abades e no f. 179r mais uma menção às homenagens dos irmãos finados na abadia. No f. 195r temos outro indício bastante importante: a referência às “hydades do mundo” retiradas do Compendium Theologiace Veritatis, dois manuscritos que foram copiados em Alcobaça e que estavam na sua biblioteca,

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o Alc. 210 e o Alc. 376 datados do 1º terço do século XIV (Barreira, 2014a: 111). O inventário do Mosteiro de Seiça de 1408 não enumera nenhum exemplar do Compendium (Mattoso, 2002: 288-ss; Marques, 2008: 268-ss). No f. 196r há uma notícia sobre o abade D. Nicolau que renunciou ao cargo de abade de Alcobaça em favor do arcebispo de Lisboa, D. Jorge da Costa e a data da consagração do mosteiro de Alcobaça. No verso deste fólio, outra notícia sobre a abadia de Seiça. Este códice termina com as medidas dos mosteiros de Cister e Claraval (a deste último mosteiro detalhadas) e com as medidas de Alcobaça (detalhadas) e com fórmulas de tratamento para a família real (entre outros pequenos textos, muitos riscados, no f. 198r). Outro argumento a usar nesta filiação a Alcobaça é a decoração iluminada deste manuscrito, que vamos tratar mais adiante. Cremos que fica atestada a sua origem no scriptorium da abadia: se depois este manuscrito foi para Seiça (por empréstimo?) porque a abadia não tinha nenhum Ordinário, é uma hipótese em aberto, tanto mais que em 1532 Seiça tinha onze monges de Alcobaça “que para ali tinham sido enviados no início da reforma da sua abadia” (Sousa, 2005: 111). Terão nessa altura levado este códice, que depois Seiça reclama a pertença ao longo dos seus fólios? Ainda no que concerne à origem deste conjunto de manuscritos no scriptorium de Alcobaça, o Alc. 62 tem ainda um indício interessante, que já mencionámos: no f. 17v temos argumentos sobre a pertença do manuscrito quer a Seiça, quer a Alcobaça, em que o terceiro texto diz claramente que se vá ver o sufrágio que se faz a S. Lamberto “então saberá de onde este livro é, se de Alcobaça, se de Seiça.” Todos os Ordinários têm a festa de São Lamberto, dia em que se fazia “a absolvição por todos os religiosos da nossa ordem e desta maneira…” (Alc. 62, f. 142r) e têm também um capítulo dedicado ao dia em que se se deve acabar o terçenário ou Trintário (segundo Mário Martins, trinta missas em trinta dias consecutivos, Martins, 1959: 134), que começa no dia de São Lamberto e acaba trinta dias depois, no dia de São Lucas (Alc. 62, f. 143). Ora, segundo o texto, esta questão não era pacífica: “em muitas igrejas de nossa ordem arguem contra isto e dizendo que quando este trintário tarde se começa mais tarde se deve acabar (…) mais em na igreja de Cister como suso e dito se costuma.” (Alc. 62, f. 143r e f. 143v).

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Da leitura atenta de Mário Martins (Martins, 1959: 138 e 139), concluímos que este trintário, que se iniciava a 17 de Setembro, dia de São Lamberto, era uma especificidade cisterciense, mas porque é que Alcobaça o reclama como um argumento identitário da abadia o sufrágio ao santo? De modo similar, no Alc. 63 f. 10r, há uma nota na margem inferior que liga o manuscrito à abadia de Alcobaça, a propósito de uma dúvida levantada na celebração da primeira dominga do Advento. Este Ordinário, tal como o anterior, também está completo, com as rúbricas todas, num total de 270. No final, no f. 147v tem uma referência interessante: “única indicação técnica sobre o livro registada no fundo alcobacense, uma receita para solfar (colar) livros velhos e rotos antes de encaderná-los com cola feita de clara de ovo e gema” (Peixeiro, 2014: 154).

Termina com uma notícia sobre um terramoto (f. 148v e f. 149r). No que concerne ao Alc. 209, acaba, incompleto, na rúbrica que diz respeito aos Dias em que os monges devem de deixar as coletas usadas, faltando-lhe cinco rubricas para terminar. Deste conjunto de meia dúzia de Ordinários, só dois não têm calendário: o Alc. 209 e o Alc. 223. A função dos calendários nos manuscritos litúrgicos e nos Ordinários não se restringia a oferecer as datas das festas fixas, mas continha outras informações sobre os ritos. O calendário fornecia informações preciosas que ajudam a datar os manuscritos através da presença ou ausência de um santo, calculada a partir da sua introdução no Santoral cisterciense por via dos Capítulos Gerais (Leroquais, 1934: 97ss). Os nomes dos santos ou a celebração aparecem acompanhadas de indicações sobre a importância do ofício: commemoratio, due misse, XII lectionum, etc. bem como as vigílias e a oitavas (Lebigue, 2007: 156). Como escreveu Lebigue, a propósito da presença do calendário nos Ordinários: “Lui seul permet de rattacher à la hiérarchie des offices les critères de solennisation qui les distinguent” (Lebigue, 2014: 42)

E a propósito destes critérios de solenização, as diferenças cromáticas, ora a preto, ora a vermelho, dão indicações sobre a sua hierarquia (Lebigue, 2014: 62) embora nem sempre da mesma forma. Por exemplo e no que concerne à Festa de São Bernardo, celebrada a 20 de Agosto, no Alc. 63 foi assinalada a vermelho, bem como a sua oitava (f. 4v); no Alc. 62 foi assinalada a preto, bem como a oitava (f. 7v) e no Alc. 82 esta festa

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foi destacada a vermelho e a oitava a preto (f. 17v). No que concerne à datação destes manuscritos, o Alc. 62 data, como vimos, de 1475, o Alc. 63 menciona no f. 148r que foi concluído a 7 de Outubro de 1483 e por fim, o Alc. 82 foi concluído a 18 de Maio de 1526 (por Frei Cristóvão de Évora). Os outros três Ordinários não estão datados, no entanto, todos têm a festa de Santa Ana, mãe da Virgem Maria, que segundo V. Leroquais foi integrada no calendário cisterciense em Calendário, mês de Dezembro, 1454 (Leroquais, 1934: Ordinário do Oficio Divino, Alc. 63, f.6v 99), a 26 de julho. No ©Biblioteca Nacional de Portugal. Foto Catarina F. Barreira capítulo onde os Ordinários tratam desta festa é mencionado que “da festa de Santa Ana ordenou e estabeleceu o Capítulo geral ano domini MCCCLXXXV” ou seja 1385 e que esta festa “a celebrem por toda a ordem com XII lições e uma ou duas missas segundo a devoção de cada um…”(Alc. 209, f. 87v). No que concerne a esta festividade em contexto cisterciense, foi em 1366 que o Capítulo Geral decidiu assinalar a comemoração: “In primis, attendens generale Capitulum ex fructuum amenitate serenitatem stipitis notabiliter commendat, sacratissimae partus sanctae Annae magnificendae incitus veneratione totus Ordo Cisterciensis fundatus est, spiritali quodam iucunditate cupiens idem Capitulum ipsius felicissimae parentis beatae Annae fiat commemoratio prout de aliis sanctis non habentibus XII lectiones est consuetum, et ipsa die festivitatis suae missa in conventu per singula monasteria Ordinis cum devotione solemniter celebretur.” (Canivez, 1933/41, vol. III: 543)

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E novamente em 1375 (e não em 1385, como os Ordinários de Alcobaça mencionam), agora com doze lições ou missa, consoante a vontade do convento: “In primis, Capitulum statuit ut festum XII lectionum et unae missae fiat de beata Anna matre Dominae Mariae, si conventus voluerit” (Canivez, 1933/41, vol. III: 554) e só em 1454 oficialmente com doze lições. Um dado difícil de explicar é a ausência, no calendário do Alc. 63, da festa da Visitação de Maria, assinalada a 2 de Julho e autorizada pelo Capítulo Geral em 1476, pois se o manuscrito foi copiado em 1483, como justificar esta falta? Os calendários fornecem ainda outras informações como indicações astrológicas, por exemplo, no mês de Fevereiro o Sol está no signo Peixes (Alc. 63, f. 1v), fenómenos astrológicos como o Equinócio, no mês de Março (Alc. 63 f. 2r) e por fim, o aniversário do primeiro rei de Portugal, a 5 de Dezembro (Alc. 63, f. 6v). Outro argumento para a datação destes Ordinários é a presença, em todos, da rubrica “Da festa da concepção de Santa Maria”: a devoção e crença na Imaculada Conceição ficou estabelecida pelo Concilio de Basileia em 1439 e nestes Ordinários foi integrada no Advento (Costa, 1988: 685) a seguir à Festa de São Nicolau bispo e do capítulo que fala da oitava de Santo André apóstolo. Também aparece assinalada nos calendários dos manuscritos, no dia 8 de Dezembro (Alc. 62, f. 9v, Alc. 63 f. 6v e ms 4346). A partir destas hipóteses, uma das perguntas que se nos coloca é porque é que o scriptorium de Alcobaça copiou quatro Ordinários, ao que tudo indica, na 2ª metade do século XV e mais dois na 1ª metade da centúria seguinte? No Prólogo dos Ordinários temos: “Este livro mandou compilar o muito honrado e distinto barão D. João abade do mosteiro de Cister com conselho do Capitulo Geral. E mandou que usassem dele por toda a ordem de Cister.” (Alc. 209, f. 7r).

No século XV temos quadro abades de Cister chamados João: João VII de Martigny, abade entre 1405 e 1428; João VIII de Picart d’Aulnay, entre 1429 e 1440; de 1440 a 1458 temos João IX e por fim, entre 1476 a 1501 temos João X de Cirey. É novamente no Alc. 62 que temos uma referência importante, no f. 3v: “este ordinário foi feito por ordem de D. João VI de nome e XXXVII abade de Cister, sendo abade de Alcobaça Fernando de Quental no ano de MCCCCXXV” (1425).

Este abade de Cister foi abade entre 1363 e 1375 e não coincide com o abaciado de Fernando de Quental em Alcobaça, entre 1415 e 1426 (Gomes, 2008: 47). Inclinamo-nos para um erro da 141

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parte do monge copista: o abade de Cister deve ter sido João VII de Martigny, este sim, coincide cronologicamente com o abaciado de Fernando de Quental. Juntamos assim mais uma dúvida à questão anterior: porque é que o scriptorium de Alcobaça copiou quatro Ordinários, ao que tudo indica, na 2ª metade do século XV e porque é que Alcobaça demorou mais de três décadas a cumprir esta ordem, se dermos crédito à referência do Alc. 62. Voltemos uma última vez aos Prólogos destes Ordinários, que fornecem alguns indícios que podem ajudar a justificar a sua cópia: “Por que muitos e mormente os simples semelháveis a mim não podem sempre ou curam pouco as escrituras ou estatutos da nossa ordem de Cister buscar ou ler e lidas comendalas à memória, convém saber como o ofício divinal nas missas e nas outras horas ordenadamente se deva celebrar.” (Alc. 209, f. 7r).

Ficamos a pensar que havia uma certa dose de ignorância por parte dos monges sobre os estatutos da ordem, que Saul Gomes também associa ao clima de relaxamento dos hábitos e costumes, do descontentamento com o abaciado de D. Nicolau Vieira (entre 1461 e 1475, Gomes, 2008: 47) e ainda com o Cardeal D. Jorge da Costa, abade comendatário entre 1475 e 1488 e entre 1493 e 1505 (Gomes, 1998: 30). O ambiente vivido no mosteiro era de tal modo estranho em torno de 1479 que o rei D. Afonso V interveio para que os corregedores prendessem os monges que fugiam do mosteiro, para que a ele voltassem e fossem castigados (Gomes, 1998: 29). Neste âmbito, a carta de visitação a Alcobaça em 1484, feita por Fr. Pedro Serrano, visitador nomeado por Cister para reformar a abadia, tem um grande interesse, em particular porque os monges foram chamados “para o cumprimento regular da disciplina claustral” (Gomes, 1998: 31). Frei Pedro Serrano voltou à abadia em Novembro de 1487 para renovar a carta de visitação lavrada três anos antes (Gomes, 1998: 33). Este ambiente de crise, em paralelo com algumas tentativas de reforma, vivido na abadia de Alcobaça era comum à ordem de Cister, à cristandade e a todo o século XV (Pacaut, 1993: 295-ss; Marques, 2008: 275-ss): a crise afectou quase todas instituições eclesiásticas e neste âmbito, Cister não constituiu uma excepção. Cremos que o panorama traçado por Sebastião da Silva Dias sobre o “relaxamento da disciplina monástica” e as medidas que foram sendo adoptadas para a sua reforma continua ainda actual (Dias, 1960: 93-ss). E é neste contexto de profunda crise, mas em paralelo de reforma que devemos integrar a cópia dos Ordinários:

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para além de se constituírem como um guia actualizado e imprescindível na celebração da Liturgia, com a sua leitura e estudo por parte dos monges acontecia um reforço no que concerne à identidade litúrgica da Ordem de Cister. Antes de passarmos à análise da decoração iluminada destes manuscritos, cabe ainda uma consideração sobre os testemunhos que estes textos nos transmitem: a dimensão simbólica de alguns gestos (Palazzo, 2000: 100-ss) que vemos registada ao longo dos capítulos. A imposição do silêncio e a formulação dos gestos na observância beneditina, as lições e leituras no claustro, as festas em que acendem na igreja as três lâmpadas e por fim, a humildade com que os monges viviam, por exemplo, a vigília do Natal em que “o convento deitasse no chão com reverência (…) da nascença de nosso senhor e salvador” (Alc. 62, f. 29r). Ou quando nessa noite o celeireiro e dois monges acendiam lume no calefatório para os monges se aquecerem do frio quando saíssem das vigílias (Alc. 62, f. 30r)3. A decoração iluminada dos Ordinários de Alcobaça Temos então um contexto de crise e de reforma de hábitos e costumes subjacente à cópia de pelo menos três Ordinários, os que estão datados (Alc. 62 datado de 1475 e o Alc. 63 datado de 1483 e para o século XVI, o Alc. 82, datado de 1526): os outros dois ordinários, o Alc. 209 e o manuscrito 4346 que está na Biblioteca Nacional da Austrália não devem distar muito Pormenor da inicial do fólio do Prólogo do Ordinário do Oficio Divino, Alc. 209, f. 7r ©Biblioteca Nacional de Portugal Foto Catarina F. Barreira

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cronologicamente, como vimos pelos indícios anteriores. Este último, pela quase ausência de decoração iluminada, que se reduz a iniciais de cor vermelhas, parece um manuscrito de trabalho - o texto e a sua redacção não evidenciam muita acribia de cópia. Pelo oposto, o Alc. 209 é um manuscrito bastante regular no que concerne à escrita, à mancha de texto, ao número de linhas por fólio (29) e ao tipo de inicial de cor que pontua cada início de capítulo do ordinário. O Prólogo do Ordinário do Oficio Divino, Alc. 62, f. 18r início do Prólogo foi ©Biblioteca Nacional de Portugal. Foto Catarina F. Barreira assinalado com uma inicial puzzle com enquadramento filigranado a vermelho e azul, cuja complexidade do desenho, com motivos fitomórficos, é bastante interessante. Os motivos filigranados desta inicial, ora contornados, ora desdobrando-se em pequenos motivos encaracolados, estão perfeitamente integrados nas tendências deste scriptorium no século XV, mas que tiveram origem na centúria anterior. Neste âmbito, é interessante ver as iniciais puzzle filigranadas que pontuam o Prólogo e o início de cada um dos sete livros do Compendium Theologicae Veritatis, Alc. 210 copiado em torno de 1332 (Barreira, 2014a: 112), mas também, por exemplo o Diurnal Alc. 209, datado de 1342. No que concerne ao Alc. 62, a capitular do Prólogo está enquadrada num fundo dourado e envolta numa cercadura filigranada de onde surgem motivos vegetais e que sugere, de forma inequívoca, o contacto visual com duas cercaduras iluminadas do missal Alc. 459, como foi sugerido por Horácio Peixeiro (Peixeiro, 1986: 387 a 406; Peixeiro, 1999: 322 e Peixeiro, 2014: 144

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Pormenor da inicial do Ordinário do Oficio Divino, Alc. 62, f. 138v © Biblioteca Nacional de Portugal. Foto Catarina F. Barreira

152 e 153). E entre este missal Alc. 459, o Ordinário Alc. 62 e o Leal Conselheiro (Paris BNF ms Port. 5), um conjunto de manuscritos com afinidades nos ornatos vegetais e não só (Nascimento, 2012: 530). A ornamentação fitomórfica do fólio do Prólogo do Alc. 62 constitui-se como uma síntese dos dois fólios iluminados do missal Alc. 459: do 1º domingo do Advento retirou o efeito da folhagem do enrolamento da margem feito com as folhas de acanto estilizadas, do fólio que tem o cânone da missa, mais simples, foi inspirado pela estilização da flor-do-papiro/ alcachofra. Mas a mão deste monge iluminador foi um pouco mais desajeitada e menos rigorosa, pese embora exibir uma boa dose de expressividade no desenho. A paleta de cores é diferente e mais pobre, sem os meios-tons mas recorrendo às linhas de contorno a branco para engendrar a sugestão de volume. Também os pequenos pontos dourados de onde irradiam pequenas linhas são muito mais irregulares. A sua cercadura filigranada evocar a cercadura do Alc. 199, Castelo Perigoso, um manuscrito copiado no século XV. O Alc. 62 foi bastante aparado, pois na margem superior falta parte da sua decoração iluminada. Algumas das suas iniciais de cor filigranadas evocam claramente as do missal alcobacense, em particular a do f. 114v, de efeito concheado, bem como as dos f. 133v, f. 134v e f. 138v. 145

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Prólogo do Ordinário do Oficio Divino, Alc. 63, f. 8r © Biblioteca Nacional de Portugal. Foto Catarina F. Barreira

A capitular que assinala o Prólogo do Alc. 63 não é menos interessante, com motivos vegetais como pétalas e folhagens, em vermelho, branco-rosado e azul, integrada num enquadramento recortado dourado, circundada com desenhos de flores feitos à

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Fólio do Prólogo do Livro de Usos, Il. 176, f. 4r © Biblioteca Nacional de Portugal. Foto Catarina F. Barreira

pena. Esta inicial também revela influências das iniciais do missal Alc. 459 que assinalam o 1º domingo do Advento e o Cânone da Missa do Alc. 459, especialmente no tratamento plástico dado às folhagens e no claro-escuro (Peixeiro, 2014: 154). Cada capítulo 147

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do ordinário foi assinalado com uma inicial de cor vermelha, no entanto, há duas excepções: no f. 99r, a rubrica relativa à Ascensão do Senhor, que foi assinalada com uma inicial de cor integrada num enquadramento filigranado em tudo semelhante às iniciais do missal Alc. 459 e o f. 137r, que exibe uma grande inicial de cor, a ocupar sete espaços interlineares, cinzenta e amarela, integrada num enquadramento filigranado vermelho, a assinalar o Dia de São Martinho. Este conjunto de manuscritos, o missal Alc. 459 e os Ordinários Alc. 209, Alc. 62 e Alc. 63 exibem as duas tendências que caracterizaram o scriptorium de Alcobaça no século XV: por um lado, temos a importância das iniciais filigranadas e das cercaduras em filigrana, em alternâncias vermelho e azul; por outro temos cercaduras e elementos de origem fitomórfica ligados às cercaduras que caracterizam os Livros de Horas (Miranda et al, 2015: 99-ss). Neste âmbito, não podemos de deixar de mencionar um outro manuscrito, que a Biblioteca Nacional tem à sua guarda, o Il. 176. Este manuscrito aparece catalogado como um Ordinário do Oficio Divino da Ordem de Cister (Ferreira, Cepeda, 1994: 293), mas é um Livro de Usos. Todas as suas rúbricas dizem respeito aos Livros de Usos que foram copiados na abadia de Alcobaça (Alc. 208, de 1415 e o Alc. 278 datado de 1444). No que concerne à sua decoração iluminada, o texto tem início no f. 4r, no primeiro domingo do Advento e a sua ornamentação iluminada evoca, sem sombra de dúvida, as cercaduras dos dois fólios do missal Alc. 459 e o fólio do Prólogo do Ordinário Alc. 62. Inclinamonos a pensar que o monge iluminador deste Livro de Usos deve ter tido contacto com os manuscritos de Alcobaça, se não foi também ele produzido neste scriptorium. Tal como o Alc. 62, este manuscrito foi de tal modo aparado que se cortou parte da ornamentação vegetal da margem superior. O manuscrito Alc. 82 deixa transparecer outras tendências características do século XVI: foi copiado em papel e não pergaminho, como os anteriores e o fólio do Prólogo (f. 22r) foi assinalado com uma inicial desenhada que parte de um tronco oco, em que a barriga do P aparece contornada por um dragão que abocanha a sua cauda em torno de uma flor, uma espécie de ouroboros que, associado ao tronco oco e à flor aberta traz ao texto do Prólogo valores associados à renovação cíclica e à eternidade. A margem superior tem uma cercadura desenhada com motivos vegetais (flores e folhas). Toda a composição tira partido da linha, ora enquanto contorno das formas, ora enquanto mancha e textura. 148

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Por fim, ao longo deste texto mencionámos só muito pontualmente o Alc. 223: é também em papel e contém o seguinte conjunto de textos: Regra de S. Bento, Costumes de Cister, Definições do Capitulo Geral de 1318 e Definições novas, textos variados como modos de fazer visitações, uma bula papal de Bento XII (Fulgens sicut stella), documentos relativos à Ordem de Cristo e os Estatutos da Ordem de Calatrava, cartas várias, estatutos papais, informações relativas ao Mosteiro de Portalegre. Por fim, tem uma parte dedicada ao Livro dos sinais usados nos mosteiros beneditos, um tratado sobre a leitura às refeições e termina com o Ordinário do Oficio Divino. O único motivo decorativo usado para assinalar os inícios dos diferentes textos e dos capítulos foi a inicial cadelée. A junção destes textos, próximos na sua natureza normativa num só livro parece-nos bastante utilitária e funcional, condensando num só volume um conjunto de textos orientadores da vida interna da abadia. No que concerne ao destaque dado ao início dos Prólogos através de grandes iniciais, Aires do Nascimento propõe várias funções, que citamos: traço delimitativo, função psicagógica de instrução na leitura; função propedêutica na orientação do conteúdo do livro (Nascimento, 2012: 341). Não deixa este autor de assinalar que também no início do livro se colocam “também os elementos auxiliares de leitura” (Nascimento, 2012: 343) como acontece, como vimos, com as tábuas das rúbricas que compõe os Ordinários. O ornato destes manuscritos é sem dúvida, bastante funcional e reduzido ao essencial: vemo-lo no assinalar do Prólogo, a enfatizar a sua importância, quer através da filigrana, quer através de elementos fitomórficos ou da combinação de ambos e depois a pontuar cada rubrica que constitui o Ordinário. Esta breve apresentação de seis testemunhos portugueses dos Ordinários do Oficio Divino de origem cisterciense copiados no scriptorium de Alcobaça constitui um contributo, ainda que modesto e provisório, para o estudo da biblioteca desta abadia e da sua produção iluminada. Como vimos, em relação ao estudo contextualizado deste conjunto de manuscritos, ainda há muito para fazer, como por exemplo, o seu confronto com os Livros de Usos de Alcobaça (Alc. 208, de 1415 e o Alc. 278 datado de 1444) que, embora tenham ambos sido copiados cerca de meio século antes, podem trazer pistas e contributos significativos para a análise litúrgica dos Ordinários. Outro dos caminhos será a comparação, por exemplo, com os Ordinários de Claraval. 149

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NOTAS 1. Agradeço à Biblioteca Nacional de Portugal por toda a colaboração que tem dado a este projecto de Pós Doutoramento e pelo empenho na salvaguarda e divulgação do património nacional. Agradeço também ao Prof. Horácio Peixeiro e ao Mário Farelo pelo apoio e pelas informações. Dedico o artigo ao Vítor Pereira que partilhou comigo o interesse por estes manuscritos, desde há ano e meio a esta parte. 2. National Library of Australia, http://nla.gov.au/nla.obj-22361373 3. Neste âmbito ver também o que diz Mário Martins (Martins, 1950: 155).

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