QUESTÕES SOBRE A FINITUDE DO CORPO

June 9, 2017 | Autor: André Lira | Categoria: Death & Dying (Thanatology), Poetics, Poética
Share Embed


Descrição do Produto

QUESTÕES SOBRE A FINITUDE DO CORPO
André Lira


1. A abundância de zoé


A questão da morte nos apela a pensar, em sua proximidade, o que é
corpo. A palavra "corpo" tem muitos significados dicionarizados, dos quais
sublinhamos um, para o nosso interesse: corpo é a parte material oposta à
alma. A vigência do composto corpo e alma, definidor da totalidade humana,
é facilmente atestável no percurso histórico ocidental. A influência
secular dos dogmas cristão e científico, bem consolidada no contexto
ocidental, não deixa pairar dúvidas sobre a separação entre corpo e alma.
Quando alguma figura importante de nossa sociedade morre, é noticiado
pelos meios de comunicação que "o corpo de [alguém] será enterrado (...)".
Lido de uma maneira apressada, esse enunciado não causa estranheza, já nos
é conhecido. Isso ocorre porque já estamos acostumados com uma determinada
leitura do corpo implantada pelo conhecimento técnico: "a estrutura física
de um organismo vivo (esp. o homem e o animal) englobando suas funções
fisiológicas; parte concreta, material dos seres" (INSTITUTO ANTÔNIO
HOUAISS: 2001, verbete "corpo"). O corpo é assim a dimensão material de uma
pessoa. Mas ele ainda não dá conta da pessoa: quando morre, supõe-se que
algo lhe esvai, perdido, configurando seu estado de morta.
O que é esse algo? Tradicionalmente, é dito ser a alma ou a
consciência – o aspecto permanente e abstrato que confere vida e forma a
uma matéria. A pessoa seria dessas duas metades constituída. Sua existência
se deve à correspondência de corpo e alma. Mas a alma sempre foi
interpretada como o fundamento e essência do corpo, e assim o como o cerne
da identidade.
Há outra dualidade bem antiga e também próxima a essa: é a que define
o homem como um animal dotado de razão. Proporcionalmente, a razão estaria
para a alma, assim como o animal estaria para o corpo. Em diálogo com
Heidegger (1967) e Leão (1992), principalmente, examinemos em que solo se
dá a consolidação dessas doutrinas e quais os desdobramentos relevantes
para um pensamento essencial da morte (ou um pensamento mortal da
essência).
A sentença dzoîon lógon ékhon é a fonte grega da determinação latina
do homem como um animal rationale. Nessa tradução, não se traduz apenas um
significado linguístico, mas a experiência do ser desses dois povos. O
primeiro termo, dzoîon, nos remete à "pura explosão da realidade numa
variedade de modos de surgir e formas de aparecer das realizações do real,
por exemplo, no desabrochar dos brotos na primavera" (LEÃO: 1992, 134). Daí
percebe-se a diferença frente à tradução já orgânica de dzoîon como vivente
ou ser vivo, que opõe a vida à morte.
A pergunta pelo dzoîon está imbuída do mesmo entusiasmo que leva
Heráclito a proclamar o extraordinário como a morada do homem (éthos
ánthropos daîmon). É também a pergunta pelo "isto" (tò ón, o que é e está
sendo) de que nos fala Heidegger em seu "O que é isto – a filosofia?".
Muitas referências podem ser trazidas aqui para entender o dzoîon. O
dzoîon, o "isto" surpreendente que acontece e se mantém, designa o que está
sendo, o que eclode. Ele concentra, transcendente e imanente, a própria
essência dos deuses, "presenças do mistério da realidade, realizações que
emergem, surgem e vigoram por si mesmas, no vigor de uma vigência
inesgotável, que não se deixa saturar" (LEÃO: 1992, 135).
Quando, porém, falamos em bíos, chama-se a atenção para o modo como
qual realização individual se determina e se caracteriza num limite. Essa
realização num limite, contudo, não acontece destacada do todo, centrada em
si mesma. Ela é sustentada, alimentada e velada por dzoé. Todo bíos existe
como dzoîon, receber a nutrição do invisível e o carinho das profundezas. A
palavra bíos não se confunde com a noção corrente de corpo vivente oposto à
alma. A tensão entre bíos e zoé configura, em outras palavras, a
existência, em que o corpo é propriamente corpo.
Voltando à sentença grega em discussão, o dzoîon é lógon, de lógos,
habitualmente traduzido como razão, fala ou discurso. Como Leão (1992, 138)
observa, "mesmo no tempo de Heráclito lógos e légein já significavam falar
e dizer". Numa leitura cuidadosa de fragmentos de Heráclito e passagens de
Homero e Aristóteles, vê-se, no referido ensaio, um sentido mais originário
para lógos, que seria o de linguagem, força de reunião.
O lógos é outra palavra-chave dos gregos para responder ao apelo
surpreendente do real. Seria extremamente difícil estabelecer uma distinção
lógica e semântica entre lógos e dzoé, pois ambas dizem do mistério do ser.
Entretanto, cada uma aprofunda o mistério a seu modo. Lógos nos informa de
que os entes que são o são numa unidade coesa, numa dobra essencial: são
unos consigo mesmos e com o real. O lógos reúne ser e não-ser e os mantém
numa tensão permanente, que põe em ação (poíesis) todas as realizações. Por
isso, se o lógos diz, ele também igualmente silencia, já que sempre se
situa nesse "entre" reunidor.
Situado numa dimensão originária, o lógos pode ser compreendido como
"a fonte de todas as possibilidades humanas", pelo qual o homem "é uma
janela aberta da e para a totalidade do real e o universo das realizações"
(LEÃO: 1992, 141). Não é o homem que tem linguagem, portanto, mas a
linguagem que sedia as sendas do ser humano. Essa sede abre o homem ao ser
como questão e o possibilita ser homem genuinamente, em sua humanidade. É a
fonte de todas as possibilidades humanas, no que se inclui a possibilidade
de não ser homem, ou se desviar do desafio de se questionar, perante o ser,
o que é o humano.
Dentro dessas possibilidades dadas ao modo humano de estar no ser,
isto é, aberto pela linguagem e para a linguagem, o homem vem a ser
racional, o homem vem a falar, o homem concebe-se como corpo e alma. Sobre
isso, vemos as seguintes palavras ressonantes de Heidegger:


Somente a partir desse morar, "tem" ele "linguagem", como a morada,
que pre-serva o ec-stático para sua Essência. Chamo ec-sistência do
homem o estar na clareira do Ser. Esse modo de ser só é próprio do
homem. Assim entendida, a ec-sistência não é apenas o fundamento de
possibilidade da razão, ratio. É também onde a Essência do homem
con-serva a pro-veniência de sua determinação (1967, 41).

A crítica à insuficiência da fundamentação humana em corpo e alma
retoma, hermeneuticamente, o princípio que dá à luz essa fundamentação, a
dizer, o processo de racionalização crescente desde a instituição do homem
como animal rationale. No terceiro passo do dzoîon lógon ékhon, o verbo
grego ékho assinala que "a experiência originária de ter é sempre ser"
(LEÃO: 1992, 142). Dentro da dimensão de nossa discussão, o foco da
sentença deixa de ser o homem como sujeito, dando espaço ao acontecer
poético da linguagem. O homem, portanto, existe (ékhon) no horizonte
(dzoîon) do real (lógon). Da mesma forma, ele não possui a sua essência
como uma coisa que carrega consigo, mas o ser se dá como o que ele é, a sua
essencialização insistente na linguagem o permite ser homem.
Como apontam Fogel (2009) e Heidegger (1967), não chegamos a uma
compreensão do corpo humano satisfatória se somarmos a parcela animal,
comum, à parcela racional, que seria específica do homem. Por isso,
Heidegger diz que o corpo humano é algo "Essencialmente diferente de um
organismo animal" (p. 41). A distinção de corpo humano e organismo animal é
fundamental aqui. Uma vez que o corpo está, tomado em sua originariedade,
na dimensão da existência, o que vem a ser corpo para o homem e para o
animal é bem diferente, já que ambos constituem realidades distintas.
O trecho que citamos acima é precioso, pois sua sintaxe demonstra como
é oportuna a diferenciação feita por Carneiro Leão, em sua tradução da
obra, entre essência e Essência. Pelo desgaste metafísico secular de
"essência", optou-se por grafar com caixa alta a primeira letra da palavra
quando Heidegger fala sobre essência no sentido originário, no plano da
vigência do ser. Assim, evita-se tomar essência como substância, fundamento
dos acidentes ou qualidades. Essa é uma distinção importante, já que nos
referimos a todo momento a um pensamento essencial.
É conveniente a nós evocar a precisão com a qual Heidegger critica os
conceitos de coisa, em especial n'A origem da obra de arte. Nesta obra, ele
expõe três conceitos fundamentais na compreensão ocidental de uma coisa,
oriundos das reflexões aristotélicas. Não iremos nos deter neles aqui, mas
ressaltemos o primeiro deles, a interpretação do ón grego como hypokeímenon
e symbebekóta, apropriados pela cultura latina como subiectum e accidens.
Com o amadurecimento da metafísica, o pensamento aristotélico converteu-se
em paradigma, e todos os entes foram compreendidos a partir da cisão entre
algo imutável, uma base fundamental, e suas circunstâncias mutáveis, suas
qualidades particulares. Dentro desse quadro é que o homem foi adequado
como um animal corporal (essência) ao qual corresponde uma alma racional
(existência).
A que, então, corresponderia a essência em sentido originário?
Respondamos com essas três palavras: em sentido originário, a essência
corresponde ao originário do seu sentido. Em sentido originário, a
essência corresponde ao se originar do sentido. Isso significa: o sentido
do ser é o originar-se. A aparente brincadeira com as palavras chama a
atenção para o movimento principiador do ser. Ocorre que, experienciado
dessa forma, o ser não pode ser nem um fundamento, nem um complemento; nem
geral, nem particular. Da mesma forma, não lhe cabem os juízos de
verdadeiro ou falso. A verdade do ser é ele ser verdade: como Heidegger
formulou, o ser se dá (Es gibt). Dando-se, se conserva como ser, mantendo-
se nessa tensão logicamente indissolúvel, in-analisável, indeterminável.
Dentro de um pensamento essencialista (e não originário), o tratamento
do animal como organismo, característico já de um olhar humanizante sobre o
animal, não costuma ser um problema. Aceitamos que a experiência de ser um
cavalo esteja velada ao ser humano[1]; por outro lado, o que significa ser
um animal? É embaraçador pensar essa questão, porque se torna muito difícil
respondê-la sem recorrer às velhas distinções de cultura e natureza,
instinto e razão, fala ou ausência de fala...
Se a visão do animal como um sistema funcional, regido pela
causalidade e facilmente classificável em suas características, não nos
causa espanto, a sua transposição para o homem não é pacífica. Na sua
abertura essencial, o homem não consegue se objetivar nem subjetivar por
inteiro, o que, para a visão "animalista" do homem, é problemático. Como
explicam Ortega e Zorzanelli (2010), na abordagem biomédica, anatômica do
corpo humano, o que não pode ser explicado fisicamente é empurrado para o
terreno do psíquico, o terreno arenoso e incerto da psique humana. É clara
aqui a insistência do dogma do animal racional, do corpo e da alma, da
razão e da emoção. O acréscimo de características qualificativas não faz
adentrar na essência do homem. Esse acréscimo deve ser questionado a partir
do seu substrato técnico; como viemos desenvolvendo até aqui, trata-se, num
primeiro lugar, de localizar o entrave da concepção orgânica do homem.
Assim, assinala Heidegger:


Que a fisiologia e a química fisiológica possam investigar o homem,
como organismo, à maneira das ciências naturais, ainda não prova
que a Essência do homem esteja nesse "orgânico", isto é, no corpo
explicado cientificamente. (...) Pois pode muito bem ser que a
natureza esconda sua Essência precisamente no lado em que se presta
ao controle técnico do homem. Assim como a essência do homem não
consiste em ter ele um organismo animal, assim também não se pode
eliminar ou compensar essa determinação insuficiente da Essência do
homem, dotando-o de uma alma imortal ou da força da razão ou do
caráter de pessoa [grifo nosso] (1967, p. 42).


Nessa mudança de concepção do corpo, o movimento do real se dar e se
retirar passa a ser o essencial, por causa de dois pontos principais, que
estão interligados: o corpo, vigorando por si mesmo, não fica a serviço da
subjetividade humana, na medida em que está além da esfera material e
objetiva e da psicológica subjetiva; o corpo confunde-se com o ser, donde
ser corpo, seja ele qual for, está entregue ao balouçar da alétheia, ao
próprio manifestar-se do real. Esse é um salto radical, pois nos permite
encaminhar a morte como uma das curvas da dzoé, como a fundação (e a ruína)
de uma casa (como a nossa).


2. A promessa do ciborgue


É um milagre, realmente, sermos o que somos. Cada disciplina
científica, de maneira técnica, chama a atenção para um aspecto do
acontecimento histórico inigualável de como a vida vem a ser o que ela é. A
evolução dos organismos aponta uma grande heraditariedade e familiaridade
entre todos os seres. A cadeia trófica mostra o intercâmbio químico
permanente de substâncias. As ossadas dos homens e animais anteveem o
conjunto de fatos irrecuperáveis que conduzem ao momento atual. A
Matemática e a Física vislumbram desenhos e linhas complexas para a
tessitura das coisas. A poesia, a seu modo, também responde com
maravilhamento enquanto a linguagem se faz ser.
Na visão biológica, a emergência da reprodução sexuada possibilitou o
desenvolvimento de organismos mais organizados, graças à maior troca de
material genético. Paralelamente ao sexo, surge em igual importância a
morte, propiciando dinamicidade e renovação às gerações. A mortalidade,
portanto, se mostra como gêmea da nascividade, oferecendo uma tensão
equilibrada às mais diferentes comunidades de seres, mantendo-as estáveis
ao longo do tempo. Dentro desse paradigma, a morte é estritamente
necessária. Como trataremos mais adiante, a humanidade não é sustentada
apenas por essa propagação genética, mas por seu estar no mundo, que é
corriqueiramente interpretado como cultura e linguagem.
Nas sociedades técnicas de hoje, marcadas pelo passo acelerado da
ciência de aparelhar a vida humana no espectro objetivo do real, a morte "é
cuidadosamente ocultada. Ela é considerada um acontecimento catastrófico,
vergonhoso, que deve ser repelido para o mais longe possível, e, quem sabe,
suprimido com o progresso da ciência" (RUFFIÉ: 1988, 225). Sobre essa
promessa, rebate o mesmo autor:


A supressão da morte deveria acarretar, ipso facto, a dos
nascimentos. A humanidade, formada por grupos de velhos, mesmo
alertas e experimentados, não teria mais a possibilidade de se
enriquecer. Ela ficaria estacionária e sem dúvida acabaria
desaparecendo. As desgraças de uma vida sem fim se revelariam
finalmente insuportáveis. [...] Essa esperança é absurda: pois se
um dia a medicina chegar a curar todas as doenças, jamais sustará o
envelhecimento e a "morte fisiológica" que, como vimos, fazem parte
do nosso programa de vida e finalmente permitem o progresso
evolutivo (RUFFIÉ: 1988, 222; 225).

Nas palavras acima, fica evidente a concepção orgânico-cultural do ser
humano. O homem é apresentado como um animal cultural (v. pp. 228ss),
distinto dos demais. A morte, portanto, teria uma vigência cultural (na
expansão e na transmissão das experiências de vida das gerações passadas) e
biológica (na natureza sexuada e na evolução da espécie).
Muito embora concordemos com a conclusão de superfície – a morte é
própria à vida – nos vale, aqui, questionar se ela cabe, tomando o homem e
o real tecnicamente, a toda a dimensão humana. A compreensão orgânica,
secular, a cindir o homem em sua essência, atribui ao corpo o estigma da
decadência, da carne desprezível e imperene. Aceitar a decadência do corpo
como natural, como nos sugerem os trechos citados acima, não é suficiente.
Devemos examinar como a doutrina do corpo impuro se desdobra nas sociedades
contemporâneas e o que isso nos abre a pensar sobre o estatuto da morte.
Com o desenvolvimento do conceito de animal racional (e uma influência
considerável do dogma cristão), a razão vai, no decurso dos séculos,
objetivando o corpo. O precioso livro de Ortega e Zorzanelli, Corpo em
evidência, expõe ponderadamente o progresso do olhar médico sobre o
fenômeno corporal. Dos diferentes questionamentos e desafios da área de
Medicina, ressaltamos um: a crença tenaz de que os instrumentos de
diagnóstico e medição, preponderantemente visuais, são a via fundamental de
abordar o corpo:


Só na apreensão exclusivamente visual e passiva – como ocorre na
visualização médica – o corpo aparece como uma soma de partes, cujo
exemplo pode ser o cadáver da tradição anatômica ou o corpo
fragmentado das novas imagens médicas. Ambos se opõem à nossa
experiência encarnada do corpo, que implica o conjunto dos
sentidos. Ela extrapola a mera apreensão visual e objetivante das
tecnologias de imageamento, que destituem referências de espaço e
tempo necessárias na experiência do corpo próprio. É também por
isso que a primazia sociocultural da visão, ou seja, seu privilégio
entre as modalidades de conhecimento sobre as doenças, deve ser
questionada (ORTEGA E ZORZANELLI: 2010, 62).

Vê-se, então, de maneira mais marcada, a distinção entre o corpo-
organismo e o corpo-experiência. Neste ponto, os autores são precisos: a
análise objetiva e abstrata do corpo vê apenas o que a visão pode ver, ou
seja, não experiencia o corpo do outro como o corpo do outro. Embora tal
afirmação possa soar até evidente, nos parece ir de encontro à tradição
ocidental de se conceber o corpo. A discussão de pano de fundo aqui é a
apropriação progressivamente técnica do ser. O corpo é a nossa referência
primordial de mundo, e por esse caminho reiteraremos a originariedade do
ser frente à razão técnica.
Pois bem, será no desenvolvimento histórico de entificação do ser,
sancionado pela compreensão de que o homem é um animal racional, que o
corpo será cada vez mais tomado como um sistema funcional analisável visual
e racionalmente. A parcela de superfície desse fenômeno é o sem número de
melhorias no tratamento de doenças, aumentando a longevidade humana. Esse é
um avanço (técnico) incontestável. Porém, há dificuldades, ainda no âmbito
técnico, que apontam para os limites do orgânico.
Uma dessas dificuldades é a distinção entre comportamento normal
(saúde) e comportamento anormal (doença, patologia), fundamental para toda
abordagem médica. O ideal de um suposto equilíbrio perfeito das funções
orgânicas deixa entrever, sem muito esforço, que nenhum corpo, inclusive em
suas dimensões psíquicas, consegue preencher todos os requisitos para ser
inteiramente saudável, mas o é apenas relativamente, num determinado
contexto comparativo. Se o parâmetro de normalidade e anormalidade pode ser
graduado conforme o contexto em que uma pessoa está inserida, ele é mais
dinâmico do que se pensava. E a opinião da própria pessoa, não conta?
Alguém pode se sentir saudável sem que fisiologicamente esteja, ou o
inverso. Como apontam Ortega e Zorzanelli, fica claro como o estar saudável
é uma construção social.
Outra dificuldade que vale ser mencionada é o caso de diversas
"doenças" que tem poucos substratos visíveis, o que acarreta, por sua vez,
um obstáculo em sua compreensão dentro do paradigma médico. Elas vão desde
a depressão e a alergia até as síndromes funcionais, como a da fadiga
crônica ou do cólon irritável. A questão aqui é como tais doenças não são
satisfatoriamente tratadas pela medicina ocidental levam a crer que talvez
ela não esteja tão certa quanto aos outros distúrbios, aqueles que já
pensávamos ter superado.
Na sociedade pós-moderna, a saúde se tornou um valor e os indivíduos
seus gestores, ainda que os médicos retenham uma importância capital. Tal
configuração se tornou possível devido ao humanismo arraigado da cultura
ocidental, confiante em seus mecanismos de controle e avaliação. Ora, o
progresso da medicina, como da ciência, em seu fundamento, mostra algo
muito curioso: "Quanto mais se vê por meio de lentes e parâmetros variados,
mais complicada se torna a informação visual alcançada e o próprio objeto
visto" (ORTEGA E ZORZANELLI: 2010, 19).
A presunção do olhar científico é a de que a metodologia é que deixa
transparecer a coisa, e não a coisa que se deixa transparecer na
metodologia. Essa posição é a que chamamos de humanismo, pois reitera, como
primeiro, o lugar do homem na visão e atribuição de real aos entes.
O homem pós-moderno é um ciborgue. Suas referências de mundo são
construídas cada vez mais a partir de um paradigma tecnológico. Para se
transformar em ciborgue, em misto de máquina e homem, o homem sacramenta a
técnica como o que lhe assegurará a sua essência. A razão humana se empurra
ferozmente para onde ela não alcança, engole a si mesma. Tornar-se ciborgue
é humanizar-se se desumanizando: a razão não só julga entender o corpo, mas
se assenhoreia dele, modificando-o aos seus desígnios por meio das
próteses, das intervenções cirúrgicas, dos tratamentos estéticos. Ademais,
o ciborgue recusa a humanidade que lhe é própria e foi dada como corpo-
experiência, pois acredita que os implantes técnicos são superiores e
preferíveis. Mesmo quando parece cultuar o corpo, ele é mantido como polo
desprivilegiado na relação com a alma:


O tratamento contemporâneo que damos aos corpos demonstra que seu
enaltecimento como palco de performance e design encobre um
concomitante desprezo por sua realidade, suas imperfeições, sua
parcela abjeta. Viria daí o imperativo de pureza e sacrifício que,
através de práticas de restrições alimentares, exercícios físicos,
cirurgias plásticas e procedimentos cosméticos, ofereceriam aos
homens um uso otimizado do corpo e uma saúde pretensamente perfeita
(ORTEGA E ZORZANELLI: 2010, 95).

Por que o corpo que temos precisa ser melhorado, aprimorado? Para quê?
Para realizar mais funções, realizá-las com mais eficiência? Tais são os
objetivos de atualizar um computador para uma nova versão. Na sociedade
moderna, o homem é levado a crer que ele se faz no que é a partir do
acúmulo de realizações. O seu percurso hiperbólico almeja fazer cada vez
mais em menos tempo, otimizar o tempo, nunca o perder. Assimilar e
raciocinar sobre um número crescente de informações. O corpo "natural", que
lhe foi dado, parece mais e mais insuficiente.
A crença ascética do ciborgue, então, é a de que o humano deve ser
remodelado em seu todo à luz da técnica. Esconjurando as imperfeições das
trevas humanas, levanta-se a possibilidade de uma vida humana sem doenças,
sem dor, capaz de ter controle e compreensão completos sobre todos os seus
domínios. O ciborgue está para o homem como o virtual está para o real.
Isso quer dizer: à miscigenação do corpo humano-tecnológico corresponde um
manuseio hábil das possibilidades do real, manuseio que, pelos seus
resultados programados, se supõe responsável pela criatividade do real. O
subiectum substitui a phýsis.
A realidade do real não é mais dada em si mesma em tudo que é, mas
assumida duplamente como insumo e produto final da ação humana. Voltemos à
questão do humanismo do corpo. Ele se manifesta de maneira disseminada na
cultura contemporânea. Na exacerbação do desprezo pelo corpo, os indivíduos
se percebem como amontoados de desregulações, desequilíbrios, doenças e
moléstias, para os quais buscam, com afinco, curas e soluções. Cada
indivíduo percebe o seu próprio corpo como algo estranho. Rebela-se contra
sua forma, recorrendo a produtos estéticos, cirurgias, dietas, exercícios,
abstinências de todos os tipos. Rebela-se contra seus sinais, recorrendo a
remédios com mil finalidades, como para dormir (ou não dormir), para não
ter fome, para aumentar a performance sexual.
Qual é o sentido dessa demanda com o próprio corpo? O que esperamos
atingir com tais transformações? Em uma de suas aulas de Teoria Literária,
Antonio Jardim disse que se o homem andou léguas no desenvolvimento
técnico, não andou um centímetro em termos de humanidade. Isso quer dizer
que as questões do homem continuam as mesmas, ainda que com roupagens
epocais distintas. Da mesma forma que se poderia perguntar "qual é o
sentido do ser humano?" no período áureo do domínio romano, em suas guerras
e conquistas, podemos fazer o mesmo hoje.
Qual é, então, o sentido do ser humano? A essa pergunta são oferecidas
muitas respostas. Como dissemos, a maior parte delas subentende um conjunto
de realizações, sob a ótica de determinada ideologia. Hoje, fala-se em
biossociabilidade, em novos modelos de cidadania construídos em torno das
tecnologias de informação. Espera-se dos indivíduos que sejam consumidores
de informação, atuando a partir da sua absorção das informações
disponíveis. Por exemplo, uma pessoa que está sentindo algum desconforto
pode procurar por pessoas que tiveram o mesmo problema e conversar com
elas, pode confrontar um médico com diagnósticos e tratamentos possíveis,
ou administrar ela mesma a sua melhora com terapias alternativas. De um
acadêmico, da mesma forma, espera-se um sujeito bem informado, com domínio
da bibliografia atualizada, aberto às diferentes correntes e disciplinas,
com atuação social em sua comunidade.
Seja a esfera da vida humana em questão, concebe-se o homem moderno
dentro de um molde técnico, pois é ele que o aprimorará e o capacitará a
sua própria superação. Com o desenvolvimento da nanotecnologia, espera-se
que o controle dos nossos corpos seja microscópico. Contudo, permanece a
questão: pode o corpo pode ser apreendido, em sua totalidade essencial,
pelo critério da visibilidade racional? Pode o homem, subjetivamente,
reduzir-se inteiramente ao objetivo?
O que faríamos com a fonte da vida eterna? Conquistaríamos outros
planetas, com o lastro do nosso tédio? Permanecem perturbadoras as palavras
de Drummond:


[...]
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver. (ANDRADE: 1992, 382-3)

Referências bibliográficas

ANDRADE, Carlos Drummond de. "O Homem; As Viagens". In: Poesia e prosa. Rio
de Janeiro: Nova Aguilar, 1992.
FOGEL, Gilvan. "Notas sobre o corpo". In: CASTRO, Manuel Antônio de (org.).
Arte: corpo, mundo e terra. Rio de Janeiro: 7Letras, 2009.
HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Trad. Emmanuel Carneiro Leão.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1967.
INSTITUTO ANTÔNIO HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua
portuguesa. Versão 1.0, CD-ROM. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a pensar – volume II. Petrópolis:
Vozes, 1992.
ORTEGA, Francisco; ZORZANELLI, Rafaela. Corpo em evidência – a ciência e a
redefinição do humano. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.
RUFFIÉ, Jacques. O sexo e a morte. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988.



-----------------------
[1] Não enquanto cavalo, apenas enquanto homem aberto ao modo de ser
cavalo. Vale lembrar o conto de Tolstoi, "Kholstomér, a história de um
cavalo", em que é poetizada uma visão equina sobre a sociedade humana, em
especial sobre a ideia de posse. Pela experiência especular de ser cavalo,
a pretensa humanidade dos homens é desfeita. Poeticamente, o diálogo entre
homem e cavalo mostra toda sua importância, pois a literatura oferece o
lugar em que o homem libera a sua subjetividade identitária à dimensão
essencial, realizando-o num sentido mais pleno. O "outro" que é o cavalo é,
na verdade, ele mesmo, a(pro)fundando-se na experiência de ser.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.