Questões taxonômicas introduzidas pela Grammatica Philosophica de Jerônimo Soares Barbosa

July 4, 2017 | Autor: Alexandre Trindade | Categoria: Portuguese grammar
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Questões taxonômicas introduzidas pela Grammatica Philosophica de Jerônimo Soares Barbosa Alexandre Wesley Trindade (UNESP/FCLAr)

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27 ago. 2015

A Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza, cuja edição princeps foi publicada em 1822, é a herdeira portuguesa dos princípios teóricos da Grammaire Générale et Raisonnée, de Arnauld e Lancelot. Assim, a Grammatica Philosophica é uma obra filosófica, geral e racionalista. A obra é filosófica porque baseia-se na filosofia cartesiana, cujas doutrinas alimentaram o espírito iluminista; é geral porque procura pelos princípios universais que regem todas as línguas naturais e podem ser encontrados nas línguas particulares em seus aspectos estruturais; e é racionalista porque utiliza-se da lógica para fazer arrazoamentos a respeito dos fenômenos linguísticos observados na relação língua e pensamento, respaldados pela metodologia hipotético-dedutiva. A gramática filosófica, tal como concebida pela Grammaire de Port-Royal e por sua herdeira portuguesa, a Grammatica Philosophica de Soares Barbosa, desenvolve-se de acordo com a visão racionalista da gramática das línguas naturais, ou seja, segundo a visão de uma organização da gramática numa estrutura dicotômica, assim explicitada nas palavras de Soares Barbosa (1881: xi, grifo do autor): [slide 2] A Grammatica, pois que não é outra coisa, segundo temos visto, senão a arte que ensina a pronunciar, escrever e fallar correctamente qualquer lingua, tem naturalmente duas partes principaes; uma mechanica, que considera as palavras como meros vocabulos e sons articulados, já pronunciados, já escriptos, e como taes sujeitos às leis physicas dos corpos sonoros e do movimento; outra logica, que considera as palavras, não já como vocabulos, mas como signaes artificiaes das idéas e suas relações, e como taes sujeitos ás leis psychologicas que nossa alma segue no exercicio das suas operações e formação de seus pensamentos: as quaes leis, sendo as mesmas em todos os homens de qualquer nação que sejam ou fossem, devem necessariamente comunicar ás línguas, pelas quaes se desenvolvem e exprimem estas operações, os mesmos principios e regras geraes que as dirigem. Á parte mechanica das linguas e sua grammatica pertencem a Orthoepia e a Orthographia, e á parte lógica pertencem a Etymologia e a Syntaxe.

A visão dicotômica considera que a gramática está organizada em uma parte mecânica e uma parte lógica. Essa concepção está explicitada, de maneira concreta, na própria organização das partes e dos capítulos da obra em análise. A Grammatica Comunicação oral apresentada no II Congresso Nacional Mackenzie “Letras em Rede”: Tradição e Inovação. ú

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Philosophica está organizada em quatro grandes seções principais chamadas de “livros”. [slide 3 e 4] Os Livros I e II tratam, respectivamente, da fonética e da ortografia e referem-se à parte mecânica da língua. Já os [slide 5 e 6] Livros III e IV referem-se à parte lógica da língua e tratam, respectivamente, da morfologia e da sintaxe. A ideia subjacente à organização dicotômica é a de uma gramática estruturada em níveis. No artigo intitulado Um protótipo de gramática gerativa portuguesa: a gramática de Soares Barbosa, Lopes (1986/87: 44-48) afirma que a “dicotomia entre os aspectos mecânico e material e os aspectos lógicos e espiritual (=mental) das línguas” é uma “distinção capital na obra”. Para Lopes, havia uma distinção muito clara, na concepção de Soares Barbosa, entre “duas modalidades de estruturas”, ou seja, “uma estrutura semântica, de estatuto lógico e de nível profundo, e uma estrutura fonética, de estatuto substancial, material e de nível de superfície”, em “termos chomskyanos”. A ideia de estrutura em níveis é central para se entender o princípio taxonômico no qual se fundamenta a organização das classes de palavras. Nesta comunicação, proponho colocar em exame a organização das classes de palavras na Grammatica Philosophica de Soares Barbosa. Esta proposta justifica-se na verificação de Neves (1989: 1), segundo a qual todos aqueles “que se tenham dedicado ao estudo das classes gramaticais, tal como vem sendo a questão codificada e exposta nos manuais de Gramática, têm-se defrontado com problemas que chegam a tocar a própria taxionomia estabelecida”. Para a autora, a definição não unívoca das classes de palavras deve, portanto, gerar um questionamento mais profundo sobre o próprio critério que estabelece as classes de palavras. Lançando as bases para o questionamento sobre o critério que estabelece as classes de palavras, Neves (1989) aponta dois problemas que interferem na questão da classificação das palavras: 1. A proposição lógica (ou, o lógos) era a “base de detecção das classes de palavras” da gramática dos gregos. A tradição gramatical ocidental inspirou-se na arte da gramática grega para estabelecer o quadro das classes de palavras. Partindo dessas constatações, o problema detectado é que “só foi verificado um tipo de comportamento das entidades linguísticas em seu funcionamento, o comportamento que elas [essas entidades linguísticas] têm dentro da proposição”. 2. Um segundo problema que interfere na questão da organização das classes de palavras é “o próprio estatuto da entidade palavra”. A visão de linguagem que orienta Soares Barbosa no desenvolvimento de sua gramática filosófica é altamente sofisticada e moderna para os padrões da época. Portanto, era de esperar que o gramático tivesse, também, avançado nas questões pertinentes à taxonomia das palavras, ou seja, que ele tivesse questionado a respeito do critério que estabelece as classes de palavras e sobre o estatuto da entidade palavra. Não frustrando nossas expectativas, o gramático assim o fez. Como afirma Casteleiro (1980/81), Soares Barbosa “propõe uma divisão relativamente original das palavras em classes”. Além disso, essa nova classificação “se afasta da proposta feita pela Grammaire de Port-Royal”. A taxonomia das palavras proposta pela Grammaire de Port-Royal utiliza-se de termos da gramática tradicional, mas a classificação adotada baseia-se em critério extralinguístico, fundamentado em conceitos da lógica formal. A lógica menor considera que as três operações do espírito são conceber, julgar e raciocinar, e que estas operações 2

se combinam para formar a proposição. [slide 7] Assim, os gramáticos de Port-Royal propuseram uma taxonomia que classifica as palavras em dois tipos: (i) as palavras que significam os objetos do pensamento e (ii) as palavras que significam a forma e o modo do pensamento. No primeiro tipo estão nomes, artigos, pronomes, particípios, preposições e advérbios; no segundo tipo incluem-se os verbos, as preposições e as conjunções. Em termos lógicos, as classes de palavras do primeiro tipo são signos que se referem aos termos da proposição, ou seja, o sujeito e o atributo, e exteriorizam a primeira operação do espírito, que é conceber. Por outro lado, as classes de palavras do segundo tipo são signos que se referem à cópula da proposição simples e exteriorizam a segunda operação do espírito, que é julgar. Diferentemente, a Grammatica Philosophica de Soares Barbosa desenvolve uma classificação das palavras coerente com a organização dicotômica da gramática estruturada em níveis. E, com as seguintes palavras, o gramático introduz as questões taxonômicas: [slide 8] [...] tratando-se de exprimir estas mesmas idéas simultaneas por meio do discurso, dois modos ha de o fazer. Um representando tambem juntas todas estas percepções e sentimentos que a nossa alma experimenta tumultuariamente; e outro separando-as e fazendo-as succeder umas ás outras. O primeiro methodo é natural e summario, o segundo artificial e analytico. D’estes dois modos contrarios de dar a conhecer pela linguagem os nossos pensamentos, nasce a divisão a mais geral das palavras em duas classes. Uma das palavras interjectivas ou exclamativas, e outra das discursivas ou analyticas. (1881: 70)

À classe geral de palavras “interjectivas ou exclamativas” pertence a interjeição. As demais classes gramaticais pertencem à classe geral de palavras “discursivas ou analíticas”, subdivididas em outras duas classes. Assim justifica o gramático: [slide 9] Ora não sendo as palavras senão signaes dos nossos pensamentos, não podem construir outras classes geraes que não sejam d’estes mesmos pensamentos; e como estes não são senão idéas ou combinações das mesmas, as palavras discursivas que os exprimem, de necessidade se devem tambem reduzir a duas classes geraes, como nos methodos analyticos do calculo; umas que caracterisam e nomeiam as idéas, e outras que as combinam entre si. As primeiras se podem chamar nominativas e as segundas combinatorias ou conjuntivas. (1881: 73-74)

[slide 10] No desenvolvimento da ideia de que a Grammatica Philosophica de Soares Barbosa tem uma organização dicotômica sob uma concepção de estruturação em níveis, Lopes (1986/87: 44-48) explicita que o componente semântico situa-se no nível profundo e que esse componente é indistinto do componente lógico, na concepção do gramático, e funciona por meio de duas operações: (i) produzir ideias e (ii) combinar ideias. Essas ideias produzidas e suas combinações são representadas por dois tipos de palavras discursivas: (i) as palavras nominativas, que são divididas em substantivo e adjetivo, exprimindo ideias; (ii) as palavras combinatórias, que se dividem em verbo, preposição e conjunção, exprimindo relações. Esse número de cinco classes de palavras, pertencentes à classe de palavras discursivas, é justificado pelo gramático por meio de três argumentos, os quais Casteleiro (1980/81) denomina de “argumento formal”, “argumento lógico” e “argumento funcional”, respectivamente. Soares Barbosa utiliza-se do argumento formal ao afirmar que cada 3

classe de palavras tem de ser “simples e irresoluvel”, ou seja, a palavra não pode ser decomposta; utiliza-se do argumento lógico ao afirmar que cada classe de palavras tem de ser “necessaria e indispensavel á enunciação dos nossos pensamentos”; utiliza-se do argumento funcional ao afirmar que cada classe de palavras tem de exercer, no discurso, “uma funcção essencialmente differente” daquela que outras classes exercem. Tendo mostrado a necessidade de se desenvolver uma taxonomia que atenda ao projeto pedagógico da Grammatica Philosophica e que seja coerente com a visão de linguagem norteadora do desenvolvimento da obra, Soares Barbosa faz o desfecho de sua argumentação, sintetizando a classificação proposta na obra com as seguintes palavras: [slide 11] D’isto tudo se conclue que seis, nem mais nem menos, são as partes elementares da oração portugueza, a saber: tres variaveis, quaes são os substantivos os adjetivos e o verbo; e outras tres invariaveis, quaes são as preposições, as conjuncções e as interjeições. D’estas seis partes cinco são discursivas ou analyticas, e uma interjectiva ou exclamativa, que é a interjeição. Das discursivas duas são nominativas, porque nomeiam e propôem os objectos, quer reaes, quer abstractos, que fazem a materia dos nossos pensamentos, e taes são os nomes substantivos e os nomes adjectivos; e tres são conjunctivas ou combinatorias, porque servem para ajuntar e comparar entre si os mesmos objectos e os juizos que sobre elles fazemos. (1881: 77)

Outro problema que interfere na questão da taxonomia das palavras, apontado por Neves (1989), é “o próprio estatuto da entidade palavra”. O conceito de palavra, expresso na Grammatica Philosophica de Soares Barbosa, mantém, ainda, relações estreitas com os conceitos metafísicos de matéria e de forma. Nesse sentido, a obra dialoga com sua antecessora francesa. A Grammaire de Port-Royal considera que a palavra, como realidade física, é constituída de matéria e forma. Assim, a matéria das palavras, chamada de “objeto do pensamento”, na língua falada é o som e na língua escrita é a notação, e relaciona-se com a operação de conceber. Por outro lado, a forma das palavras, chamada de “forma ou maneira do pensamento”, é o significado e relaciona-se com a operação de julgar. Para fins de comparação, vejamos a definição de palavra na Grammatica Philosophica de Soares Barbosa (1881: 68). [slide 12] [...] tratámos da parte mechanica da Lingua Portugueza, considerando n’ella as partes da oração só pelo que tem de physico e material, como meros vocabulos compostos de sons articulados [...]. [...] trataremos da parte logica da mesma Lingua, considerando as mesmas partes da orações pelo que tem de metaphysico e espiritual, não como vocabulos, mas como palavras, isto é, como signaes de nossas idéas e de nossos pensamentos [...].

[slide 13] Retomando o que foi exposto na introdução desta comunicação, a ideia subjacente à organização dicotômica é a de uma gramática estruturada em níveis. Valho-me, portanto, das observações de Lopes (1986/87: 44-48), para quem a “dicotomia entre os aspectos mecânico e material e os aspectos lógicos e espiritual (=mental) das línguas” é uma “distinção capital na obra”. O linguista afirma que há uma distinção muito clara, na concepção de Soares Barbosa, entre “duas modalidades de estruturas”, ou seja, “uma estrutura semântica, de estatuto lógico e de nível profundo, e uma estrutura fonética, de estatuto substancial, material e de nível de superfície”, utilizando os termos empregados por Chomsky. Para Lopes, sobre o nível profundo ergue-se um “nível de mediação”, que 4

é o “nível das estruturas sintáticas”, em que se aloja o “systema etymologico” de Soares Barbosa. Esse nível comporta um “subcomponente taxionômico, produzido pela análise que a língua opera sobre o pensamento, segmentando-o nas suas partes componentes, as idéias que se manifestam lingüisticamente como palavras discursivas, classe de noções gerais”. Por outro lado, os vocábulos, como componentes da parte mecânica da língua que trata da realidade física e material, estão no nível de superfície da gramática geral, ou seja, nas palavras de Lopes, no “nível de manifestação” que é o “nível das estruturas fonéticas particulares”. Em suma, o conceito de palavra, na Grammatica Philosophica de Soares Barbosa, recebe uma “interpretação fonética/gráfica”, no nível de superfície, e uma “interpretação sintático-semântica”, no nível profundo. No desfecho desta comunicação em que me propus colocar em exame a organização das classes de palavras na Grammatica Philosophica de Soares Barbosa, faço algumas considerações finais. Primeiramente, este exame tomou como ponto de partida a verificação de Neves (1989) de que, no estudo das classes gramaticais, o pesquisador tem-se defrontado com problemas que chegam a tocar a própria taxonomia estabelecida. A autora aponta dois problemas principais que interferem na questão da organização das classes de palavras: (i) a proposição como unidade de análise exclusiva de exame do comportamento das entidades linguísticas em seu funcionamento; e (ii) o estatuto dessa entidade intuitiva chamada palavra. Soares Barbosa, seguindo a tradição gramatical ocidental, toma a proposição como unidade de análise, não somente das classes de palavras, como também de todos os níveis de descrição da língua, pois, sobre a proposição fundamenta-se toda a sua teoria gramatical. Essa postura aproxima o projeto pedagógico do gramático de um viés iluminista e o afasta da tradição escolástica. Sem dúvida, o conceito de palavra, já encontrado na tradição lógica, foi retomado e reafirmado em sua obra. No entanto, o desenvolvimento desse conceito na obra está inserido num conjunto de formulação teórica, baseado numa visão dicotômica da linguagem que considera a gramática geral organizada numa estrutura em níveis. Apesar de todas as limitações que se possam apontar, o gramático introduziu inovações à taxonomia das palavras ao relacioná-la ao quadro geral de seu projeto. E é justamente por esse todo coerente e consistente que me aproprio das palavras de Lopes ao afirmar que a Grammatica Philosophica de Soares Barbosa é o “protótipo iluminista da primeira gramática gerativa da língua portuguesa”. Para encerrar esta comunicação, trago à memória a parábola neotestamentária que diz: “Todo escriba versado no reino dos céus é semelhante a um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e coisas velhas”. De modo semelhante, Soares Barbosa é aquele gramático que tem entesouradas, em sua Grammatica Philosophica, a tradição e a inovação.

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