Quetzalcóatl e a Arqueologia: uma proposta para a identificação da natureza do culto na Mesoamérica pré-hispânica durante o Clássico Final (700-950 d.C.)

July 4, 2017 | Autor: A. Guida Navarro | Categoria: Precolumbian archaelogy
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Belo Horizonte - 2000 ISBN 85-903587-1-2

Anais Eletrônicos do V Encontro da ANPHLAC

Quetzalcóatl e a Arqueologia: uma proposta para a identificação da natureza do culto na Mesoamérica pré-hispânica durante o Clássico Final (700-950 d.C.)

Alexandre Guida Navarro1

Ainda sabemos muito pouco sobre a religião das culturas mesoamericanas.2 Isso se deve às poucas pesquisas desta natureza que aparecem na literatura produzida e, sobretudo, ao impacto de estudos sobre religião baseados em conceitos ocidentais, principalmente da Grécia Antiga. Logo, a concepção de religião mesoamericana foi construída a partir de um contexto histórico e arqueológico por arqueólogos norte-americanos no início do século XIX. Sob esta ótica, podemos explicar termos que até hoje são muito recorrentes na Arqueologia da Mesoamérica e que, na verdade, não refletem um contexto cultural a que tais sociedades estiveram inseridas. Para exemplificar, o emprego de uma teocracia maia3 como mecanismo de poder político foi estabelecido por aqueles arqueólogos e até hoje ainda é utilizada. Contudo, um dos exemplos mais nítidos de uma justaposição de conceitos culturais ocidentais é a sustentação de que os maias organizaram-se, religiosamente, sob um âmbito politeísta. Apesar de polêmica, esta visão começa a ser revista no final do século XX. As diversas divindades atribuídas às culturas maia e mexica, na verdade, podem ser somente desdobramentos ou manifestações de uma única entidade. Este discurso baseia-se no fato de que muitos deuses maias apresentam uma relação com um mesmo atributo a eles relacionados. Por exemplo, existe uma série de divindades para designar um culto à fertilidade. Assim, poder-se-ia ser uma única divindade, mas com 1

Doutorando em Arqueologia Americana pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo – MAE/USP. 2 O termo Mesoamérica foi proposto prla primeira vez em 1943 pelo arqueólogo Paul Kirchhoff , “Mesoamerica: Sus Limites Geográficos, Composición Étnica u Caracteres Culturales”. In Suplemento da Revista Tlatoani, nº 3, México, 1960. O intuito foi descrever as culturas que se desenvolveram no México e América Central através das semelhanças fundamentais observadas a partir de uma caracterixação etnológica em termos geral de área cultural, do registro etnográfico e pós-colombiano e de suas disposições territoriais. 3 Utilizamos a grafia maia, aportuguesada e flexionada, para nos referir à civilização; c.f., edição portuguesa do livro de Michael Coe, Os Maias, Editorial Verbo, 1968. 1

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denominações próprias em cada sociedade, o que, talvez, teria confundido os missionários espanhóis ao escreverem suas obras. Neste sentido, um dos principais fatores que corroboram para a revisão dos aspectos religiosos das culturas mesoamericanas é sua forte vinculação com concepções cristãs em decorrência do processo de Conquista do México, e de outros países que correspondem à Mesoamérica, ocorrido no século XVI. No caso do México, as divindades mexicas e maias, em sua grande parte, estão relacionadas às concepções cristãs de bondade, maldade; facilmente identificadas nos documentos escritos neste período e que serviram como projeto de conversão para o catolicismo. Quetzalcóatl é a divindade que melhor representa toda essa contextualização. Ela representa o exemplo mais notório de uma adequação de conceitos cristãos à cultura mexica e maia e é muito recorrente nos discursos de missionários como Sahagun, Las Casas, Landa, Gómara e muitos outros. Acreditamos que o estudo de Quetzalcóatl seja a chave para a compreensão da religião mesoamericana porque, em toda a Mesoamérica, encontramos ora iconografia ora informações etnohistóricas acerca de um culto realizado a esta divindade. O registro arqueológico referente a Quetzalcóatl é muito extenso. A origem de sua figura é ainda muito confusa. Sabe-se, contudo, que seu nome provém da palavra náhuatl “quetzalli”, que significa “pluma verde preciosa”, alusão à ave de plumas brilhantes, quetzal, hoje praticamente extinta; e de “cóatl”, serpente. A efígie da serpente com plumas, ou serpente emplumada, presente em toda a Mesomérica, é uma de suas principais manifestações, aparecendo na literatura, quase que exclusivamente, relacionada à ordenação celeste, à criação do homem e do universo, ao calendário e ao herói civilizador. No entanto, a pesquisa que estamos desenvolvendo, de natureza arqueológica, leva-nos à conclusão que, durante o Clássico Final (área maia) e Epiclássico (altiplano mexicano), períodos estes que correspondem a uma faixa temporal que vai de 700 a 950 d.C. houve uma mudança na ideologia do culto à Quetzalcóatl (fig. 1).

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Fig. 1 – Provável área de interação do culto à Quetzalcóatl durante o Clássico Final e Epiclássico (700 a 950 d. C.). Baseado em Ringle et al. 1998, p. 184.

Nos centros urbanos desta época, como Cacaxtla, Xochicalco e Cholula, no altiplano mexicano e em Chichén Itzá, Uxmal e Seibal, na área maia, a imagem da serpente emplumada, aparece, majoritariamente, relacionada à guerra e ao sacrifício humano em que cenas de combates, decapitações e derramamento de sangue são muito recorrentes. Em Chichén Itzá, inúmeras pedras de jade foram coletadas do Cenote Sagrado, um poço natural para obtenção de água, com iconografia guerreira. Além delas, vários discos de ouro retratando este mesmo fenômeno, além do sacrifício humano, foram resgatados deste poço (figs. 2 e 3).

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Fig. 2 – Disco de ouro H retirado do Cenote Sagrado de Chichén Itzá. Nota-se sacrifício de um indivíduo. E, na parte superior do disco, de dentro da boca de uma serpente emplumada sai um guerreiro. In De La Garza 1984: fig. 31.

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Fig. 3 – Jade retirada do Cenote Sagrado de Chichén Itzá. Nota-se guerreiro em cima de uma serpente emplumada. In Proskouriakoff, 1974: placa 78a.

Em uma imagem bastante interessante, proveniente do Templo dos Guerreiros, em Chichén Itzá, notam-se botes que conduzem indivíduos portando escudos e uma bolsa típica que está relacionada à iconografia de Quetzalcóatl, cuja imagem também é recorrente em Xochicalco e Teotihuacán. Nota-se, no canto superior direito da imagem, um templo com iconografia da serpente emplumada, e um indivíduo rendendo-se ao culto (fig. 4). Acreditamos que a imagem retrate uma cena costeira com um santuário de Quetzalcóatl ao longo do litoral. Para nós, devido a sua natureza guerreira, o culto foi difundido pelos guerreiros utilizando-se de via marítima ou fluvial. Todas as nossas conclusões vêm da consideração de uma Arqueologia cujas transformações culturais incidem nas relações entre os restos materiais e no comportamento de quem os produziram (Schiffer, 1987). Hodder (1994) enfatiza que a cultura material não é somente o reflexo direto do comportamento humano e sim uma transformação desse comportamento. Com efeito, ele nos chama a atenção para o papel ativo (através da manipulação simbólica) da cultura material, o qual somente pode ser entendido dentro de um contexto cultural específico. O estudo das prerrogativas simbólicas, bem como seu o uso ideológico de um determinado artefato, portanto, dependerão de sua contextualização dentro de uma “estrutura social e de crenças, conceitos e disposições” (Hodder, 1994:22).

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Fig . 4 – Provável difusão do culto à Quetzalcóatl via marítima ou fluvial. Nota-se guerreiros e um templo da divindade com indivíduo rendendo-se ao culto. In Ringle et al. p. 216, 1998.

Esta perspectiva leva-nos a entender a Arqueologia somente sob um âmbito contextual, cuja interpretação do significado restringi-se à interpretação do contexto. Deste modo, a relação entre cultura material e organização humana pode ser entendida somente sob uma ótica social (Fahmel Beyer, 1999; Funari, 1999 e Navarro, 2001). É dentro deste contexto que nosso trabalho está inserido. Na busca de uma cultura material que reflita as práticas sociais. Entendemos, deste modo, que a preocupação constante de retratar a serpente emplumada, a partir de uma perspectiva de guerra e sacrifício, evidenciam uma transformação social de natureza guerreira que influenciou as práticas religiosas nos centros urbanos do Clássico Final e Epiclássico. Estes estudos somente iniciam-se agora e ainda não são encontrados na literatura crítica produzida e que de imediato, leva-nos a duas questões extremamente importantes. A primeira, a existência de um mesmo culto compartilhado por diversos centros urbanos e que refletiu, intensamente, na cultura material como nas construções de pirâmides e outros templos. A segunda, a revisão destes períodos como fragmentação e desagregação política.

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Vemos no culto à Quetzalcóatl um fenômeno social extremamente complexo que redirecionou toda a prática política e religiosa durante o Clássico Final e Epiclássico cujo papel da guerra foi preponderante para estas acomodações. O resgate destas informações pode ser realizado somente pela Arqueologia, uma vez que os documentos etnohistóricos para esta época, além de inexistirem, quando fazem alguma inferência através de relatos indígenas, cremos serem insuficientes para qualquer analogia por sua forte influência cristã.

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