\"Quilombos e suas reminiscências\" (Capítulo 1 - Reminiscências dos Quilombos)

June 30, 2017 | Autor: Marcelo Moura Mello | Categoria: Anthropology, Quilombos
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"Quilombos e suas reminiscências". In: MELLO, Marcelo Moura. Reminiscências dos quilombos. Territórios da memória em uma comunidade negra rural. São Paulo: Terceiro Nome/Fapesp, 2012: 33-61. Tenho a impressão de que estou tentando contar um sonho – uma tentativa vã, porque nenhum relato é capaz de transmitir a sensação onírica, onde afl ora essa mistura de absurdo, surpresa e encantamento, num frêmito de emoção e revolta, essa impressão de ser capturado pelo inacreditável em que consiste a própria existência dos sonhos. Joseph Conrad, O coração das trevas Os lugares sempre estão aí em si, para confirmar. Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas

Os quilombos sempre povoaram o imaginário da nação brasileira, sendo evocados, em distintos contextos históricos, tanto para desqualificar e reprimir modalidades alternativas de gestão do espaço e da vida como para inspirar e simbolizar mobilizações políticas. No Brasil contemporâneo, isso não é diferente. O debate sobre as chamadas comunidades remanescentes de quilombos nas esferas acadêmica, jurídica e política é marcado por controvérsias, questionamentos e acusações. Em se tratando de uma categoria em disputa, cujo significado é polissêmico, qualquer tentativa de definição esbarra em indefinições. Com efeito, atualmente parece impossível falar dos remanescentes de quilombos “sem adjetivá-los” (Arruti, 2008:315). Meu objetivo neste capítulo, entretanto, é apresentar um breve histórico sobre o surgimento dessa categoria, reconstituir os debates acerca desses grupos – debates estes que, não raro, envolvem operações de adjetivação e desqualificação. Mais importante: busco refletir sobre os problemas que as distintas formações sociais agrupadas sob a categoria remanescente das comunidades de quilombos colocam. Espero deixar evidente que, se de um lado as reflexões sobre os remanescentes são muitas vezes problemáticas, de outro lado são esses grupos em si que colocam os melhores problemas: aqueles bons para pensar.

1.1 Artigo 68: projetos e percepções O marco legal-institucional de reconhecimento jurídico das comunidades remanescentes de quilombos é o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), da Constituição Federal de 1988, que estabelece: “aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos 1

respectivos”. Na época do surgimento desse dispositivo constitucional não havia um consenso absoluto, nem mesmo entre os constituintes, sobre a quais sujeitos de direitos a categoria se referia. Pelo contrário, estimava-se serem raros os agrupamentos que se adequariam à legislação, o que explica, em parte, por que a aprovação do artigo 68 não sofreu muita oposição na época (Arruti, 2006; Silva, 2006). Isso não significa, entretanto, que essa categoria seja fruto de imediatismos políticos (Leite, 2008). Os quilombos inspiraram as reivindicações do movimento negro desde a primeira metade do século XX, primeiramente com a Frente Negra Brasileira, na década de 1930, e depois com o Teatro Experimental do Negro, nas décadas de 1950-60. Após o golpe de 1964, os quilombos serviram de metáfora para organizações que lutavam contra o autoritarismo. Em 1971, um grupo de militantes do movimento negro sediado em Porto Alegre criou o Grupo Palmares, elegendo o dia 20 de novembro (data de morte de Zumbi) como um contraponto a 13 de maio, data oficial de celebração da abolição da escravidão (Silveira, 2003). Poucos anos depois, durante o primeiro congresso do recém-fundado Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial, realizado em 1978, na Bahia, propôs-se que o dia 20 de novembro passasse a ser o Dia Nacional da Consciência Negra (Arruti, 2008:320). Concomitantemente, Abdias do Nascimento (1980) lançou um manifesto político-intelectual no qual propunha o “Quilombismo” – a criação de uma sociedade fundada nos valores africanos de comunitarismo, solidariedade, liberdade e comunhão fraternal. Às vésperas do centenário da abolição, o movimento negro denunciava sistematicamente a marginalização social imposta aos ex-escravos na pós-emancipação, salientando que a liberdade não havia sido dada, mas sim conquistada, o que desencadeou um amplo debate sobre o racismo e a vigência ou não de uma democracia racial no Brasil. Ainda na década de 1980, na esteira das grandes mobilizações contra o regime autoritário e de discussão da promulgação de uma nova Constituição, diversos encontros, seminários e congressos trataram das condições de vida da população negra no Brasil, no passado e no presente. No que concerne às discussões sobre o acesso de populações negras a terra, alguns eventos foram realizados, principalmente no Maranhão e no Pará, estados onde surgiram as primeiras entidades de congregação de comunidades negras rurais (Alonso, 2004; Arruti, 2006; 2008; Fiabani, 2008a; Souza, 2008). Datam dessa época a fundação 2

do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN) e do Centro de Estudo e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa), organizações que, em parceria com a Comissão Pastoral da Terra (CPT) – órgão ligado à Igreja Católica – e sindicatos rurais, promoveram os primeiros encontros de comunidades negras rurais, entre 1983 e 1989. Em 1986, na Convenção Nacional do Negro pela Constituinte, organizada pelo Movimento Negro Unificado (MNU), discutiram-se propostas de normatização dos direitos territoriais de comunidades negras rurais (Alberti, Pereira, 2007:249; Fiabani, 2008a:89). Por meio da articulação dessas entidades e da ação de militantes como Mundinha Araújo, Ivo Fonseca, Zélia Amador, Flávio Jorge e Magno Cruz, os deputados constituintes Benedita da Silva (PT/RJ) e Carlos Alberto Caó (PDT/RJ) encaminharam à Assembleia Nacional Constituinte, em 1987, as primeiras propostas para o reconhecimento de direito à propriedade dos domínios territoriais ocupados por comunidades negras rurais. A proposta de emenda popular apresentada por Caó diferia um pouco do texto final do artigo 681, que sofreu algumas alterações durante o processo de tramitação nas comissões do Senado. Os estudos sobre o surgimento do artigo 68 e os depoimentos dos próprios envolvidos na questão24 indicam que a militância negra tinha mais dúvidas do que certezas em relação ao referido artigo. Entretanto, Arruti está correto quando afirma: “ainda que aqueles que participaram diretamente da formulação e aprovação do artigo 68 não tivessem nenhuma certeza sobre o conceito que criavam, ele estava diretamente ligado às conversões simbólicas do termo [quilombo]” (Arruti, 2006:7). Ou seja, as distintas apropriações do termo “quilombo” como símbolo da resistência negra, principalmente entre 1970 e 1980, reavivaram um fenômeno histórico passado para con gregar esforços no presente e articular expectativas quanto ao futuro. Se é impossível precisar com certeza absoluta como a mobilização de comunidades negras rurais resultou na criação de um artigo constitucional que reconheceu como sujeitos de direitos os remanescentes das comunidades de quilombos, é inegável que as referências aos quilombos foram uma das formas pelas quais as percepções sobre as desigualdades raciais e sobre a

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O texto estabelecia: “Fica declarada a propriedade definitiva das terras ocupadas pelas comunidades negras remanescentes de quilombos, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Ficam tombadas essas terras bem como os documentos referentes à história dos quilombos no Brasil” (Silva, 1996).

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necessidade de políticas compensatórias que efetivassem, finalmente, os direitos negados à população negra após a emancipação, foram canalizadas. Veremos abaixo que o artigo 68 sofreu outras conversões simbólicas e ressemantizações durante a década de 1990. Nesse processo, o papel desempenhado por antropólogos foi fundamental.

1.2 Condição camponesa e condição étnica Poucos pesquisadores dedicaram-se ao estudo das populações negras em meio rural. Salvo engano, excetuando a coletânea de estudos editada por Wagley (1952) e a monografia de Nogueira (1955), somente a partir da década de 1970 é que esse tema passou a receber maior atenção. Os livros de Brandão (1977) e Soares (1981), os artigos de Carlos Vogt e Peter Fry (1996) – escritos no fim da década de 1970 e início da de 1980, compilados em livro com um novo posfácio – e os estudos na Usp (Borges Pereira, 1981; Queiroz, 1983; Baiocchi, 1983; Monteiro, 1985; Bandeira, 1988, Gusmão, 1990). sobre o negro em condição de vida rural devem ser destacados. Não é meu propósito apresentar minúcias sobre cada um desses estudos; antes, busco perceber as (eventuais) confluências e, principalmente, as rupturas que a produção bibliográfica sobre os remanescentes de quilombos operaria para com essas obras. Um primeiro ponto a ser ressaltado é a diferença qualitativa entre eles, apesar das inúmeras confluências teóricas e metodológicas. A pesquisa de Fry e Vogt (1996) foi motivada pela descoberta do Cafundó, bairro rural negro falante de um dialeto africano. A “cosmologia” e os “africanismos linguísticos” do Cafundó foram ligados às “relações sociais concretas” nas quais esses traços culturais se articularam, e não a uma procedência africana exclusiva. Ao tratarem da cosmologia, da identidade e da língua no Cafundó, os autores afirmaram que, “por mais ‘africanas’ que sejam em sua origem histórica, [elas] são também ao mesmo tempo brasileiras e contemporâneas”, resultando de um encontro entre a “africanidade” e a “caipiridade” do grupo (Vogt; Fry,, 1996: 149;189). Sob a orientação de Roberto Cardoso de Oliveira, Brandão (1977) realizou um estudo sobre uma comunidade de “camponeses negros”. O autor priorizou a investigação da organização social do grupo, de seus rituais e das relações interétnicas entre pretos e brancos, baseando-se nas formulações teóricas de Fredrik Barth e Cardoso 4

de Oliveira acerca da etnicidade. O interesse primário de Soares (1981:44) também foi o campesinato, interpretando a identidade do grupo como uma fusão entre o estatuto econômico e sua natureza étnica. As pesquisas de Soares e Brandão têm como pano de fundo os estudos sobre o campesinato, diferindo sutilmente das teses produzidas na USP, que tinham como quadro de referência o “estudo do negro em condições de vida rural” (Borges Pereira, 1981:66). Amparados no conceito de “bairro rural”, tal como definido por Maria Isaura Pereira de Queiroz e Antonio Candido, tais estudos visavam preencher um vazio bibliográfico sobre o tema, analisando a configuração dos grupos como expressão comunitária e seus eventuais níveis de especificidade enquanto grupo negro (Borges Pereira, 1981). Ainda segundo Borges Pereira (1981:68), ao nível da organização social e da história, não se poderia lançar mão da categoria quilombo para definir tais comunidades, a não ser que se dessem novas dimensões a tal conceito. O programa de pesquisa da Usp consistiu no estudo das “comunidades negras rurais incrustadas”. O uso da expressão “incrustada”, segundo Borges Pereira (1981), teve o intuito de evitar expressões como “isolados” ou “quilombos”. Frutos de uma mesma linha de pesquisa, as teses da Usp possuem algumas dessemelhanças. Baiocchi (1983) e Monteiro (1985) aplicaram, mecanicamente, o modelo dos bairros rurais para enquadrar as comunidades estudadas. R. Queiroz (1983) interessou-se por uma antropologia econômica, perguntando pela estrutura social e os processos produtivos e de trabalho, além de reservar espaço às questões relativas aos níveis de sociabilidade. Exceto pela cor, concluiu o autor, nada diferenciava o grupo que estudou dos demais bairros rurais paulistas, embora as histórias sobre a “instituição do cativeiro” guardassem certa importância no local (1983:142-145). Os estudos de Bandeira (1988) e Gusmão (1990), por sua vez, são mais densos e intrigantes. O primeiro privilegiou questões que dizem respeito ao campesinato e ao capitalismo, inserindo aí a dimensão da identidade étnica. Seu objetivo foi analisar como se dava a constituição e a manutenção da comunidade por ela estudada em termos de opções de processos organizativos e culturais, além de tratar da reelaboração da identidade étnica sob o impacto da expansão capitalista (Bandeira, 1988:32). A autora também procedeu a um estudo do histórico do grupo, demonstrando que sua configuração se deu enquanto uma “comunidade camponesa etnicamente diferenciada”. 5

A tese de Gusmão tem um viés semelhante, investigando a existência de movimentos sociais no campo e sua relação com o campesinato brasileiro a partir da condição diferenciada de grupo étnico. Deve-se ressaltar que essas obras, apesar de suas diferenças, conferiram, em maior ou menor grau, importância ao fator étnico: era por meio da linguagem da etnicidade, das relações estabelecidas com outros grupos, que as diferenças dos agrupamentos negros se expressavam. Na década de 1990 houve um considerável incremento de investigações sobre as comunidades negras rurais, mas o fato de muitas delas terem passado a reivindicar seu reconhecimento como comunidades remanescentes de quilombos acarretou uma inflexão fundamental: a ênfase teóricoconceitual deslocou-se da condição camponesa dessas comunidades para sua condição étnica. Esse deslocamento foi ao encontro, em certo sentido, de algumas das conclusões já presentes nos estudos aludidos acima. Entretanto, o grau de ênfase que viria a ser dado ao fator étnico marcou uma diferença substantiva.

1.3 Ressemantização, etnicidade, Estado Em 1994, diante das demandas que surgiram para a aplicação do artigo 68, a Fundação Cultural Palmares (FCP), órgão ligado ao Ministério da Cultura (MinC), realizou o seminário Conceito de Quilombo, lançando mão da noção de “quilombos contemporâneos” pela primeira vez (Arruti, 2006:82-84). Em resposta às crescentes demandas por uma definição judiciosa e de caráter científico que permitisse embasar as ações jurídicas motivadas por esse dispositivo constitucional, e aproveitando a existência de um termo de cooperação técnica com o Ministério Público Federal (MPF), o Grupo de Trabalho Comunidades Negras Rurais da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) se manifestou sobre o tema. Como notou Arruti (2006:92; 2008:316), com certa ironia, tal grupo propôs uma nova caracterização das comunidades remanescentes de quilombos partindo de “uma série de negativas”. Vejamos: Contemporaneamente, portanto, o termo “quilombo” não se refere a resíduos arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas sobretudo consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio. A identidade desses grupos também não se define pelo tamanho e número de seus membros, mas pela experiência vivida e as versões compartilhadas de sua trajetória e continuidade enquanto grupo. Nesse sentido, constituem grupos étnicos conceitualmente definidos pela antropologia

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como um tipo organizacional que confere pertencimento através de normas e meios empregados para indicar afiliação ou exclusão (O’Dwyer, 1995:1).

Veremos a seguir que tal caracterização não encerrou todas as controvérsias, nem mesmo no meio acadêmico. Por ora, gostaria de chamar a atenção para alguns pontos. Primeiramente, deve-se fazer menção ao papel desempenhado pela aba durante o período de redemocratização. Os posicionamentos políticos da associação foram determinantes para a própria redação de alguns artigos da Constituição de 1988, especialmente no que se refere aos direitos dos povos indígenas. Datam dessa época os primeiros termos de cooperação entre a Procuradoria Geral da República, envolvida com ações judiciais movidas por particulares contra o Governo Federal em decorrência da criação por decreto de áreas indígenas, e a ABA (Oliveira, 1999:164). Em segundo lugar, e relacionado ao ponto anterior, pode-se inferir que o acúmulo de reflexões acerca dos povos indígenas influiu na nova caracterização dos remanescentes de quilombos: além da atuação da aba, diversos especialistas que viriam a trabalhar com populações quilombolas tinham experiência de pesquisa com indígenas2. Em terceiro lugar, a definição do GT Comunidades Negras Rurais foi ao encontro do estabelecido em outros dispositivos constitucionais, como os artigos 215 e 216 da Constituição Federal, que versam sobre o patrimônio cultural brasileiro, na sua natureza material e imaterial. Em quarto lugar, o fato de muitas comunidades não terem se originado a partir da fuga ou de insurreições não poderia obstar seu reconhecimento enquanto remanescentes de quilombos, já que o que estava em jogo era o reconhecimento de formas diferenciadas de acesso à terra e de territorialidades específicas que foram submetidas a um histórico comum de segregação, discriminação e marginalização social. Em quinto lugar, antes mesmo da questão quilombola ganhar destaque, alguns estudiosos já criticavam visões monolíticas da estrutura fundiária brasileira, demonstrando que existiam diversas formas de gestão territorial – como as terras de santo, de índio e de preto (Almeida, 1989) – que eram completamente ignoradas pelas classificações oficiais. Por fim, a matriz teórica que fundamentou a negação de uma série de atributos normalmente atrelados aos grupos a que o artigo 68 baseou-se, em

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Está para ser feito um balanço das filiações institucionais entre pesquisadores das populações indígenas e autores que têm trabalhado com remanescentes de quilombos, bem como a influência da formação nos quadros de certo viés indigenista na conformação do “campo quilombola”.

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grande medida, na teoria da etnicidade, especialmente nas formulações de Fredrik Barth sobre a questão. Esse último ponto demanda maior detalhamento. De certa forma, a centralidade da teoria da etnicidade nas reflexões acerca dos remanescentes de quilombos explica-se pelo fato de que por meio dela foi possível conciliar perspectivas teóricas com os dilemas conceituais, éticos e políticos decorrentes do envolvimento direto de antropólogos com as reivindicações políticas desses grupos, já que, além de proporem uma nova definição, vários profissionais da área foram responsáveis por elaborar perícias

antropológicas (também chamadas laudos) cujo

objeto era o reconhecimento deles. A partir das contribuições de Barth, forjou-se um plano investigativo no qual as percepções dos próprios sujeitos acerca do que significa a categoria ganharam destaque, em contraposição às posturas que postulavam a existência de conteúdos culturais objetivos (passíveis de contabilização) como a causa explicativa do contraste étnico. Desse modo, o foco recaiu nos sinais diacríticos, ou seja, nas diferenças que os próprios agentes consideram significativas. Daí surgiu a proposta de ressemantizar o conceito de remanescentes de quilombos. Refletindo sobre a atuação de antropólogos no reconhecimento de comunidades quilombolas, O’Dwyer (2002:14-15) defendeu a incorporação da perspectiva barthiana, a qual ensina que o antropólogo não deve emitir uma opinião preconcebida sobre os fatores que definem a existência de limites, nem fazer referência à preservação de traços culturais herdados que possam ser facilmente identificados por um observador externo. Ao contrário, o profissional da área deve atentar para como, em determinados contextos, certas diferenças são consideradas relevantes para os membros dos grupos. Além do mais, era fundamental problematizar a terminologia empregada no artigo 68. O termo qualificativo “remanescentes” é sugestivo por si só, pois revela a expectativa de encontrar, nas comunidades atuais, formas atualizadas dos antigos quilombos, como se elas fossem estáticas no tempo (Almeida, 2002). Assim, a categoria remanescentes de quilombos não se referiria a sobras do passado, nem a uma cultura congelada no tempo, mas à utilização dessa forma de identificação por coletividades em busca de reconhecimento no presente (Almeida, 2002; Leite, 2000; O'Dwyer, 1995). Na esteira de Barth, a autoidentificação tornou-se um imperativo metodológico e conceitual, como pode se depreender do texto seminal de Almeida (2002:67-68): 8

O recurso de método mais essencial, que suponho deve ser o fundamento da ruptura com a antiga definição de quilombo, refere-se às representações e práticas dos próprios agentes sociais [...] A meu ver, o ponto de partida da análise crítica é a indagação de como os próprios agentes sociais definem e representam suas relações e práticas em face dos grupos sociais e agências com que interagem [...] O importante aqui não é tanto como as agências definem, ou como uma ONG define, ou como um partido político define, e sim como os próprios sujeitos se autorrepresentam e quais os critérios políticoorganizativos que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em torno de uma certa identidade. Os procedimentos de classificação que interessam são aqueles construídos pelos próprios sujeitos a partir dos próprios conflitos, e não necessariamente aqueles que são produto de classificações externas, muitas vezes estigmatizantes.

Esse investimento na dimensão da autodefinição colocou em primeiro plano a participação ativa dos sujeitos na construção e incorporação de significados à categoria, pautando-se pela tentativa de, por um lado, superar abordagens essencialistas da identidade étnica e, por outro, romper com a figura do pesquisador-censor (o pesquisador que se julga capacitado, por sua autoridade acadêmica, de afirmar ou negar a identidade dos outros a partir de critérios tidos por objetivos, à revelia das percepções dos próprios sujeitos). Por sua vez, a autodefinição foi analisada à luz das interações interculturais e da constituição de unidades políticas – os grupos étnicos não organizam e definem primeiro as diferenças para depois manter relações com o exterior e as identidades se articulam situcionalmente em função do contexto e das interações com outros grupos. Por isso insistiu-se tanto na tese de que é fundamentalmente no domínio do político que a etnicidade das comunidades remanescentes de quilombos se manifesta. Isso também explica a ênfase conferida ao papel do Estado, enquanto entidade que institui os critérios de reconhecimento, na dinâmica identitária desses grupos (Almeida, 1996; 2002; Alonso, 2004:46; Arruti, 1997; 2006; Brasileiro; Sampaio, 2002:92; Carvalho, 1996:182; Marin; Castro, 1998:10; Leite, 2000; O'Dwyer, (1995:135). Percebe-se, pois, que na ressemantização da categoria, os antropólogos “atuaram como mediadores entre diferentes campos prático-discursivos”, (Arruti, 2006:52) articulando as percepções e reivindicações dos sujeitos com perspectivas teóricas em um contexto no qual os órgãos estatais demandavam critérios que subsidiassem sua atuação. Por conta disso, é comum que o envolvimento direto de antropólogos com o reconhecimento de direitos (tanto pela proposta de ressemantização como pela elaboração de laudos antropológicos) seja eleito como prova do pouco rigor conceitual e do caráter fabricado das reivindicações identitárias das comunidades remanescentes de quilombos. Se o contexto político é fundamental para compreender as reflexões sobre as 9

comunidades quilombolas, foram essas mesmas injunções políticas que possibilitaram um acúmulo de pesquisas sobre uma realidade praticamente ignorada até então. Na maior parte dos casos, o contato dos pesquisadores com essas comunidades se deu no contexto de produção de laudos que, além de peças que objetivam atender a fins específicos, também são instância nas quais podem emergir diversas relações de conhecimento (Anjos; et. al, 2006; Marques, 2009; Mello, 2008). Embora alguns estudos, compelidos pelas exigências do processo de reconhecimento, tenham adotado uma definição operacional das comunidades quilombolas sem refletir apropriadamente sobre ela e, a partir disso, tenham apresentado uma versão idealizada e espontânea da identidade desses grupos, é importante ressaltar que há um acúmulo de reflexões sobre o tema desde o início da década de 1990. A começar pelo retorno reflexivo aos dilemas éticos, políticos e conceituais que a prática de perícia coloca ao exercício profissional da antropologia (Silva; Luz; Helm, 1994; Leite, 2005; Oliveira, 2003), desde muito cedo vários dos profissionais envolvidos na questão refletiram sobre os problemas e as limitações da categoria remanescentes das comunidades de quilombos. Gusmão (1990:261), menos de dois anos após a promulgação da Constituição de 1988, sustentou que: Cabe ressaltar a insuficiência conceitual, prática, histórica e política do termo “quilombo” para dar conta da diversidade das formas de acesso à terra e das formas de existir das comunidades negras no campo. Tal insuficiência constitui um dos limites na possibilidade de superar a invisibilidade das terras comunais ocupadas por negros. O conceito, ainda que viável no discurso político da resistência negra, apresenta-se como unificador e generalizante daquilo que é historicamente diverso e particular.

De forma clarividente, Gusmão destacava, muito antes de as comunidades quilombolas ganharem visibilidade e suscitarem polêmicas, a pluralidade das formas de constituição de territórios negros – algo também ressaltado por Marin (1995) e Almeida (2002). Na mesma direção, e partindo de preocupações diferenciadas, Almeida (2002), Arruti (1997), Leite (1999) e Chagas (2001) indagaram-se se a categoria remanescentes de quilombos seria capaz de comportar a experiência histórica de segmentos negros no Brasil ou se era um conceito genérico, no qual essas coletividades teriam que se adequar. Nessa linha de investigações, deve-se fazer uma menção especial aos trabalhos de Arruti (1997; 2006; 2008), que propôs uma reflexão de fôlego sobre o tema. O autor tem analisado a emergência dos remanescentes de quilombos não apenas no plano das relações étnicas, mas também no plano dos discursos sobre essas relações, 10

o que o leva a tomar a teoria da etnicidade simultaneamente como matéria incorporada ao seu trabalho e como “formulação nativa” (no caso, dos antropólogos) a ser “objetivada” (2006:38). Sua tentativa de elaborar uma “genealogia” do conceito e de propor um “modelo descritivo das etnogêneses” visa reapropriar-se criticamente de um objeto construído com a ajuda de antropólogos. Arruti (2008:339-340) faz uma distinção entre a autoatribuição étnica, sempre local e resultante de interações horizontais e contrastantes entre grupos em interação, e a autoatribuição do rótulo quilombola, que não resulta da contrastividade e da fronteira local, mas da construção de uma mediação entre experiências locais e a categoria jurídica, o código do Direito e a língua do Estado. Na sua visão, estamos diante de uma situação de duplo registro classificatório, nativo e normativo, e o que está em jogo é a passagem entre eles. De acordo com Arruti, a ênfase de Barth na autoatribuição e na atribuição pelos outros é fundamental em termos políticos, mas deixa de avançar no plano teórico porque não dá conta do fenômeno de passagem entre a adscrição étnica e a adesão a uma categoria genérica e englobante, como remanescentes de quilombos, por exemplo. O conceito de “processo de territorialização”, proposto pelo orientador da tese que deu origem ao livro de Arruti, João Pacheco de Oliveira (1998a; 1998b; 1999a; 1999b; 2003), fornece, em parte, a solução para esse aspecto, mas pode resultar numa postura que concebe os grupos étnicos apenas a partir da perspectiva do Estado. Embora o autor alerte para isso e recorra às contribuições de autores como Axel Honneth e Charles Taylor para superá-la, Arruti (2006:42) acaba por dar sobrepeso aos processos macrocontextuais, nos quais o Estado ocupa um papel incontornável e que escapam ao contexto de definição local do contraste e das fronteiras. Isso fica evidente quando ele concebe a associação de moradores surgida na comunidade que estudou (Mocambo, no Sergipe), como “uma minúscula variante do Estado nacional” (:322) ou designa os remanescentes de quilombos como “etnias federais”. O destaque que tem sido dado à etnicidade e ao Estado nas reflexões acerca dos remanescentes de quilombos é uma tônica comum à maior parte da produção bibliográfica sobre o tema. Outros empreendimentos, entretanto, vêm trabalhando com questões relativamente ignoradas até então. Machado (2009) propôs uma análise da comunidade de Casca (RS) a partir da noção de pessoalidade. Em sua perspectiva, importa descrever as relações que compõem a noção de pessoa sem hierarquizar 11

pertencimentos, sejam eles étnicos, raciais, familiares, etários ou de gênero. A pessoa em Casca, portanto, é composta de múltiplas relações sociais e de múltiplos pertencimentos, sendo um vetor de encontros entre múltiplas pessoas. A partir dessas definições, Machado (2009: 39;41) problematiza a relação entre “pessoas da comunidade” e órgãos públicos do ponto de vista de uma “teoria da pessoalidade”, no sentido de que para os de Casca está em jogo resolver problemas estreitando-se as relações, ao passo que os agentes públicos interessam-se, fundamentalmente, por resolver problemas. Daí, também, a interessante ideia de que o “quilombo é uma pessoa”. Essa perspectiva coloca outro tipo de problema, no qual não se elege, a priori, que a identidade étnica é a razão de ser desses grupos. Na relação entre o Estado e essas comunidades, o fundamental não é saber como elas se adéquam aos ditames do Estado, mas sim como as perspectivas locais, que não podem ser reduzidas a um fator explicativo, influem nas distintas relações estabelecidas com o Estado e com o dispositivo constitucional. O mais fundamental e interessante é a possibilidade de pensar além do artigo 68, sem reduzir a realidade desses grupos a uma tentativa de adequação às exigências que recaem sobre eles (Mello; Salaini, 2010). Por último, ressalte-se que falar em Estado no singular é uma imprecisão. Estudos recentes demonstraram que existem complexos processos de mediação entre as comunidades quilombolas e o Estado (Anjos; Silva, 2008; Silva, 2007) e há uma heterogeneidade de regulações estatais no que concerne à implementação de direitos (Chagas, 2005a; 2005b). Ademais, cabe investigar, para além do nível discursivo, como se dá na prática o processo de reconhecimento quilombola. A partir dos estudos sociais da ciência, Leitão (2006) analisou a produção de relatórios técnicos de identificação de territórios quilombolas, enfocando não apenas o papel desempenhado por antropólogos, mas também a atuação de um conjunto de cientistas e instituições. Segundo Leitão (2006:32), esses relatórios são produtos das relações entre diversos atores e envolvem a mobilização de humanos e não humanos para que um fato, no caso o território, ganhe existência. Seguindo linha teórica semelhante, Centeno (2009) analisou primorosamente o processo de implementação da política de regularização fundiária dos territórios das comunidades quilombolas a partir da etnografia de um setor do Incra responsável por 12

sua operacionalização. Tomando esse setor como um “laboratório de produção de políticas”, o autor descreveu as práticas de trabalho de seus integrantes em todos os espaços em que eles circularam, incluindo reuniões internas, reuniões com as comunidades, audiências públicas etc. Para Centeno (2009:70), a definição das áreas quilombolas a serem tituladas remete a uma cadeia de transformações, mediada por uma série de instrumentos, inscrições e relações que vão se constituindo no decorrer da execução dessa política. A partir de tal panorama é possível compreender melhor os desdobramentos das reflexões sobre as comunidades remanescentes de quilombos, bem como a íntima correlação entre a ressemantização da categoria, promovida basicamente por antropólogos, e os efeitos (para muitos) inesperados do artigo 68 no Brasil contemporâneo. O descompasso entre o imaginário sobre os quilombos e sua visão ressemantizada, o envolvimento direto de vários antropólogos com as reivindicações dos quilombolas, os problemas que a mobilização política desses grupos colocou, dentre outros fatores, motivaram diversos debates. As questões relativas à autoatribuição e à história ganharam destaque particular. 1.4 Autoatribuição A ênfase na etnicidade e na autoatribuição logrou romper com a imposição de significados cristalizados, rechaçando o uso de critérios fundados no naturalismo (raça)3, no historicismo e no culturalismo para caracterizar, e arbitrar sobre, as comunidades quilombolas. Deve-se destacar, igualmente, que o investimento teórico e conceitual feito para refletir sobre esse dispositivo constitucional amparou-se em perspectivas que já estavam consolidadas nas ciências sociais muito antes da emergência dos remanescentes. Assim, seria tão impreciso quanto grosseiro creditá-lo a um mero esforço de adequação da teoria ao contexto político. Ainda assim, conceber essa nova definição como a manifestação de um refinamento progressivo de conceitos pode nos fazer esquecer que a ressemantização da categoria não objetivou apenas desconstituir um modelo interpretativo, mas também propor outro (Arruti, 2006:70). 3

Devemos pensar se a dimensão racial das interações entre populações quilombolas e não quilombolas não acaba por ser negligenciada ao se apostar exclusivamente no vocabulário da etnia. Não se trata de uma associação essencialista entre raça e cultura, mas sim do fato de que raça pode ser um conceito êmico (como é em Cambará) que desempenha um papel fundamental no cotidiano das pessoas, influindo até mesmo nos significados atribuídos à identidade quilombola.

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Cabe perguntar se essa ressemantização não implica, também, a ressemantização das categorias nativas, na medida em que autoatribuições locais tendem a ser subsumidas, num exercício de redução sociológica, em uma macrocategoria de atribuição político-jurídica (Arruti, 2008: 329; 341-342). Desse modo, a autoatribuição só pode preencher um espaço analítico nas situações em que o próprio grupo já aderiu politicamente ao rótulo jurídico. No caso de grupos não identificados, tanto as noções nativas como o artigo 68 devem ser ressemantizados, para que seja possível encontrar um ponto de convergência. Em suma, a noção de autoatribuição pode se transformar em mecanismo de reificação se forem abstraídas da análise as condições sociais de acesso e a adoção das categorias de (di)visão do mundo social (Arruti, 2008:94-95; 341-342). Como lembrou Almeida (2002:71-75), a adesão de vários grupos à categoria remanescentes de quilombos revela que estamos diante de uma diversidade de autodefinições referidas a tais situações sociais. Assim, o antropólogo deve investigar etnograficamente as circunstâncias em que determinado grupo social acatou uma categoria, acionando-a para interagir com outros. Diante desse cenário, não é raro que críticos, com o intuito de demonstrar o caráter supostamente artificial dessa forma de identificação, aludam ao fato de que várias populações, hoje classificadas como quilombolas, não se designavam assim num passado recente. Também é comum que se defenda a tese de que muitos grupos “se descobriram” e “se tornaram” quilombolas porque isso seria mais vantajoso. Tais constatações não apenas perdem de vista, parafraseando Roberto DaMatta, que há um custo em ser quilombola no Brasil, como ignoram o fato de que o caráter recente da identificação quilombola é congruente com as experiências históricas desses grupos. Dito de outro modo, e como se pode depreender de várias etnografias, nem o imediatismo político nem identificações primordiais são suficientes para compreender a “emergência dos remanescentes”. De acordo com Chagas (2005b:179), na esteira da recente relação com o universo legal propiciada pela reivindicação dos direitos previstos no artigo 68, a lembrança de situações dramáticas de supressão de direitos no passado serve como chave de leitura para se refletir sobre o presente. Analisando um conjunto de etnografias a respeito de comunidades quilombolas localizadas no Rio Grande do Sul, Mello e Salaini (2010) demonstraram que as lembranças sobre os esbulhos territoriais são 14

centrais nas reflexões que esses grupos fazem acerca de seu passado e sua situação contemporânea. Com efeito, “passado e presente não se entrecruzam ao acaso, mas por meio de experiências concretas” (Rubert, 2007:338). Não é por acaso, então, que os projetos de emancipação e de consolidação territorial possam ser continuamente ressemantizados (Anjos; Silva, 2004:40). É importante lembrar que a mobilização desses grupos para salvaguardar seus territórios começou muito antes do artigo 68, mas na maioria dos casos isso não se reverteu em direitos. Como demonstraram Rios e Mattos (2005:299), para o caso do Rio de Janeiro, os grupos que reivindicam o reconhecimento como remanescentes de quilombos: Acionam a memória do cativeiro para legitimar a posse de suas terras, antes mesmo da aprovação do dispositivo constitucional [...] [esses grupos] estão basicamente atualizando e dando visibilidade a antigas organizações informais, fundadas no parentesco, que garantiram direitos costumeiros de acesso à terra aos seus antepassados.

Se a noção de autoatribuição demanda maior atenção, isso não se deve às críticas, bem ou mal-intencionadas, que foram expostas acima. O mais produtivo é seguir as advertências de Almeida e de Arruti, atentando para a diversidade de percepções sobre a categoria remanescentes de quilombos e investigando quais são as correspondências traçadas pelos sujeitos a partir de suas experiências vividas. Esse cuidado é fundamental para afastar os riscos de reduzir uma realidade multifacetada a uma noção que recorrentemente é atrelada a apenas um sentido. No que concerne à história, dilemas similares se apresentam.

1.5 Histórias de quilombolas

Como notou Arruti (2008:315-316), nas disputas pelos limites de abarcamento ou exclusão promovidos pela definição da categoria remanescentes das comunidades de quilombos, a referência aos “quilombos históricos” tem servido para especificar e/ou deslegitimar os “quilombos contemporâneos”. O fato de muitos grupos com origem histórica variada terem pleiteado o reconhecimento como remanescentes de quilombos gerou alguns questionamentos. É justamente por meio dessa via que alguns autores criticaram a ressemantização da categoria: apesar de ligeiramente diferentes, as 15

considerações de Fry e Vogt (1996), de Fiabani (2005; 2008b) e Maestri (2005) e de Price (2000) fazem referência à história para embasar suas críticas. Embora pertinentes, os apontamentos de todos esses autores são, no mínimo, problemáticos. Analisemos caso a caso. Ao se debruçarem sobre a produção bibliográfica acerca dos remanescentes de quilombos, Fry e Vogt (1996:267-268) enxergaram uma confusão entre o conceito e uma “espécie de palavra de ordem da militância política”, na qual se embaralharam um “princípio de explicação” e a “expressão de uma vontade ideológica”. Para eles, essa bibliografia era marcada por um “voluntarismo”, por meio do qual “malabarismos linguísticos, antropológicos, sociológicos, econômicos ou políticos” davam uma “pirueta” que transformava a “circunstância em essência”, de modo que: A busca de provas materiais da identidade e, na falta destas, de provas circunstanciais, ainda que extremamente exteriores, tem caracterizado um movimento político-intelectual que, mesmo nos comportamentos mais sé- rios, tem levado a uma tentativa de reescrever a história, criar-se um passado e inventar-se uma tradição (Vogt; Fry, 1996:268-269).

Partindo de outro referencial teórico, Fiabani (2005:380-387) insurgiu-se contra a “extensão de critérios de reconhecimento” das comunidades remanescentes de quilombos. Segundo esse autor, o “processo de ressemantização consciente” da categoria “manipula acontecimentos históricos objetivos” configurando “propostas irracionalistas de desconhecimento do passado objetivo em prol de uma invenção da tradição acomodada a pretensas necessidades contemporâneas”. Em um texto posterior, Fiabani (2008b), assim como Maestri (2005:212-213), propôs uma distinção entre “fato histórico” e “ficção” (ou “mito”, na terminologia de Maestri), já que os quilombos foram um “fenômeno histórico objetivo”, e se extinguiram com o término da escravidão – como se a abolição tivesse implicado o desaparecimento, num toque de mágica, dos quilombos, ou como se a mobilização pelo acesso à terra tivesse data marcada para se encerrar. Enquanto Fiabani (2005:395), pitorescamente, comparou os antropólogos a capitães-do-mato, pois eles, ao “ressemantizarem conscientemente a memória histórica do fenômeno dos quilombos”, destroem-no “tal como o escravista e o capitão-do-mato propunham sua destruição física quando da escravidão”, Maestri (2005:211-212) referiu-se a um “genocídio da memória”, pois o “passado deve ser revelado, jamais inventado”. 16

Esses quatro autores fazem diversas menções às concepções políticas dos antropólogos que trabalharam com a questão (atribuindo homogeneidade a um diversificado conjunto de pesquisadores), mas não se referem às próprias préconcepções. Em Fiabani e Maestri há um misto de desmerecimento e de lamento diante da pouca efetividade das políticas de regularização fundiária dos territórios quilombolas. Percebe-se uma subsunção da “luta quilombola” na luta de classes pelas frequentes referências às conquistas do movimento dos trabalhadores rurais sem-terra. Já em Vogt e Fry, privilegia-se a “brasilidade” ou a “caipiridade” do Cafundó, o que revela uma clara adesão ao imaginário da nação mestiça. Todos eles enxergam o “campesinato brasileiro” de forma um tanto estanque, como se a “classe” ou a “mestiçagem” fossem a razão de ser dos segmentos rurais localizados no Brasil. Além do mais, o uso literal, portanto simplista, do conceito de “invenção das tradições” atribui fixidez à história, como se fosse possível determinar o passado como ele “realmente foi”. Já Price, mediante uma consulta bibliográfica pouco ampla, como ele mesmo admitiu, apontou os curtos períodos das pesquisas de campo entre os quilombolas como uma séria limitação. Na sua visão, a categorização de determinados grupos como remanescentes de quilombos era problemática, já que não raro os estudiosos lançavam mão de uma “história hipotética”, frequentemente legitimada em nome da militância política, para sustentar seus argumentos. Ademais, os grupos aos quais essa categoria se referia não detinham “tradições orais profundas” (Price, 2000: 250; 256; 265). É inegável que o convívio prolongado com determinado grupo faculta maior detalhamento sobre sua realidade e que muitos estudos, envoltos com o reconhecimento étnico, foram pouco cuidadosos em relação à história. Entretanto, Price parece tomar o caso dos Saramaka como parâmetro de avaliação para todas as Américas, tanto em termos de evidências etnográficas quanto das condições de possibilidade das pesquisas, dando margem para uma generalização problemática. Um caminho alternativo para lidar com as questões relativas à “história” consiste em relativizar a fixidez das categorizações sobre os “quilombos históricos” à luz da produção historiográfica das últimas três décadas. Com efeito, como argumentam Rubert e Mello (no prelo), há uma confluência entre a mobilização social que resultou no reconhecimento de um novo sujeito de 17

direitos e a emergência, antes mesmo de essa mobilização se consolidar, de um campo sólido de estudos, desencadeado especialmente pela nova historiografia da escravidão a partir da década de 1980. Dessa época em diante, uma série de estudos passou a conceber as ações dos escravos em sua forma multifacetada, sem circunscrever a resistência às insurreições. De um lado, o foco analítico deslocou-se para a agência escrava, para as formas cotidianas de resistência e como isso se refletiu na conquista de brechas de autonomia, para as “visões” (Chalhoub, 1990) e os “significados” (Mattos, 1998) da liberdade segundo o ponto de vista dos próprios escravos. De outro, desenvolveram-se pesquisas sobre temas relativamente negligenciados até então, como a família, o campesinato negro e as brechas camponesas, a cultura, as tradições religiosas, a sociabilidade, as políticas de manumissões etc. As investigações acerca de comunidades de escravos fugidos, igualmente, propuseram novas perspectivas teóricas. Nesse tocante, a obra de Flávio Gomes (2005; 2006) introduziu uma série de inovações. Esse autor questionou a visão dos quilombos como espaços marginais e isolados, ao destacar as complexas relações sociais, econômicas e políticas entretidas pelos quilombolas com a sociedade envolvente. Para além do eixo analítico ancorado na díade formação-destruição, sua obra perscruta as variadas formas de aquilombamento e o impacto que as comunidades de fugitivos tiveram na vida daqueles que permaneceram escravos – e também na vida dos outros setores da sociedade escravista –, alcançando a pós-emancipação (G0mes, 2005:32-35). Os contatos entre diversos agentes representavam, em suas palavras, um “campo negro”, ou seja: uma complexa rede social permeada por aspectos multifacetados [...] que constituiu-se placo de lutas e solidariedade conectando comunidades de fugitivos, cativos nas plantações e nas áreas urbanas vizinhas, libertos, lavradores, fazendeiros, autoridades policiais e outros tantos sujeitos que vivenciaram os mundos da escravidão (Gomes, 2006:45 [grifos no original]).

A rentabilidade do conceito de “campo negro” não se circunscreve às comunidades de fugitivos. Por meio dessa noção é possível pensar a dimensão relacional entre distintas espacialidades dos mundos da escravidão e da pósemancipação. Dito de outra forma, indivíduos e famílias que adotaram diferentes estratégias para se territorializar – via arranchamento, doações, compra de terras, fuga, apossamento etc. – não formaram territórios isolados, mas sim conectaram espaços e

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pessoas. Assim, os significados e as experiências de quilombolas, camponeses negros e roceiros podiam misturar-se (Gomes, 2003:165). O autor também demonstra que uma característica fundamental dos quilombos foi a paulatina gestação de uma economia de base camponesa (Gomes, 2006:32-33). Além do mais, em muitos casos, a experiência de lavradores negros como camponeses se deu enquanto eles ainda eram escravos. Muitas terras destinadas às roças podem ter sido ocupadas por gerações de famílias de escravos, ocasionando conflitos com antigos senhores após 1888 (Gomes; Reis, 2008), de modo que, após a abolição, um dos objetivos perseguidos por ex-escravos foi não apenas conquistar, mas também preservar espaços de autonomia conquistados durante a escravidão na pós-emancipação (Gomes; Motta, 2007:159). Em resumo, as investigações de Flávio Gomes possibilitam ampliar o entendimento das dimensões históricas da luta pela terra, do protesto negro e dos significados da formação de uma face do campesinato durante a escravidão e na pósemancipação,100 bem como pensar as experiências ampliadas da formação do campesinato negro e mestiço (Gomes, 2003:119; 165). Vê-se, pois, que há uma nítida confluência do atual campo de pesquisas sobre as comunidades quilombolas com as ênfases recentes da historiografia da escravidão. Com efeito, essas pesquisas vêm revelando mais aspectos desse complexo fenômeno que foi a territorialização étnica, fenômeno pouco problematizado até então102 e que coloca em xeque o próprio imaginário da nação, na medida em que revela os sutis e perversos efeitos da “invisibilidade expropriadora” (Bandeira, 1990) dos territórios negros.

1.6 Situação atual Hoje, estimativas extraoficiais dão conta da existência de mais de 4 mil comunidades quilombolas em todo o país. Como foi mencionado, seus direitos culturais e territoriais são assegurados pela Constituição Federal de 1988, nos artigos 215 e 215, e pelo artigo 68 do ADCT. Alguns estados da federação possuem legislação específica referente à regularização das terras e, na esfera federal, o Incra é o órgão responsável por identificar, reconhecer, delimitar, demarcar e titular as terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. Tais atribuições, que anteriormente eram da Fundação Cultural Palmares, foram transferidas para o Incra após a promulgação do decreto 4.887/2003, que define essas comunidades como: 19

grupos étnico-raciais, segundo critérios de autoatribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (art. 2º).

Esse decreto também estabelece que a caracterização desses grupos “será atestada mediante autodefinição da própria comunidade” (art. 2º, §1º). Tal ordenamento está em conformidade com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que dispõe sobre povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é um dos países signatários (decreto 5.051, de 19 de abril de 2004). Contraditoriamente, a Fundação Cultural Palmares deve expedir uma certidão de autorreconhecimento (art. 3º, §4).Os procedimentos operativos do Incra foram

regulamentados em distintas instruções

normativas, sendo que a mais recente delas é a Instrução Normativa (IN) número 57, de 20 de outubro de 2009. A in 57 estabelece que a definição e o estudo das terras reivindicadas serão precedidos de reuniões com as comunidades e com o Grupo Técnico Interdisciplinar (GTI) nomeado pelas superintendências regionais (art. 8º). Conforme estabelece o artigo 9º, a identificação dos limites territoriais será feita a partir de indicações das próprias comunidades, bem como a partir de estudos técnicos e científicos, inclusive relatórios antropológicos, mediante a elaboração de um Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTDI). Tal RTDI deve ser “fundamentado em elementos objetivos, abordando informações cartográficas, fundiárias, agronômicas, ecológicas, geográficas, socioeconômicas, históricas, etnográficas e antropológicas” (art. 10º). Apresentei aqui os procedimentos jurídicos básicos com o intuito de apenas expor as etapas básicas do longo e burocrático processo de regularização fundiária. De acordo com Centeno (2009:115), a política nacional de titulação dos territórios quilombolas transformou-se em uma “máquina de produzir procedimentos e avaliações sobre os mesmos, multiplicando cada vez mais as exigências e as instâncias de consulta”, tornando a titulação algo longe de ser concretizado. Além do mais, há uma nítida vinculação dos quilombolas às “zonas de suspeição” (Brustolin, 2007), algo expresso numa ação indireta de inconstitucionalidade, movida em 2004 pelo então Partido da Frente Liberal (PFL), hoje Democratas (DEM) e no passado Arena, questionando a legalidade do decreto 4.887 (adi-3239, de 28 de agosto de 2004). No que concerne às condições de vida das populações quilombolas, o levantamento mais abrangente sobre as condições socioeconômicas das comunidades 20

quilombolas e do acesso destas aos programas sociais encontra-se presente na obra de Brandão, Dalt e Gouveia (2010), que resultou de um conjunto de pesquisas de campo realizadas entre 2006 e 2008 em aproximadamente duzentas comunidades, localizadas em quase todos os estados brasileiros. Os autores constataram que, no caso desses grupos, há uma imbricação entre segurança alimentar e desigualdade racial, já que “as comunidades quilombolas registram elevados índices de pobreza e estão, via de regra, situadas em áreas deficientes no que diz respeito à infraestrutura geral, incluindo os serviços públicos”. Os dados compulsados foram divididos em dois grupos, referindo-se às pesquisas realizadas em 2006 (65 comunidades) e àquelas feitas em 2008 (79 comunidades). Abordarei apenas alguns desses dados, pois eles parecem bastante ilustrativos das constatações mencionadas acima. No que concerne à renda familiar, 74,1% (2006) e 70,9% (2008) das famílias ganhavam até um salário mínimo. Em termos de grau de instrução, 69,7% (2006) e 68,2% (2008) dos entrevistados eram analfabetos ou estudaram até quatro anos. Na avaliação que os próprios entrevistados fizeram sobre os alimentos consumidos diariamente, em 67,1% (2006) e 64,9% (2008) dos casos considerou-se que, com muita ou esporádica frequência, não havia alimentos suficientes para todos os membros da família. A partir dos dados compulsados, os autores concluíram que: As comunidades quilombolas se caracterizam sobremaneira por compor o pequeno campesinato que, com variações regionais, sobrevive da produção descapitalizada e em pequena escala de insumos agrícolas (e em poucos casos agropecuários) que são consumidos pelo núcleo familiar e comercializados de forma esporádica quando há excedente e quando existe mercado de consumo (:72).

Esse levantamento, apesar de não apresentar um quadro comparativo mais amplo, sinaliza que as condições de vida das comunidades remanescentes de quilombos pesquisadas são significativamente piores do que as de outras populações, evidenciando que a pobreza no meio rural tem contornos raciais. Ainda que na última década o Governo Federal tenha desenvolvido uma série de políticas públicas das quais os quilombolas foram beneficiários, os autores constataram que, “no nível municipal, os quilombolas são tratados como cidadãos de segunda ordem”.

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