\"Racionais - Sem Palavra\" - Fran Oliveira e Djalma Campos

June 6, 2017 | Autor: Djalma Campos | Categoria: Hip-Hop/Rap, Música, Culturas Urbanas, Racionais Mc´s
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texto fran oliveira | djalma campos fotos gal oppido | klaus miteldorf | kris knackR AC I O N A I S

— S E M PA L AV R A

sem palavra texto fran oliveira | djalma campos fotos gal oppido | klaus miteldorf | kris knack

R AC I O N A I S — S E M PA L AV R A

Aqui

R AC I O N A I S — S E M PA L AV R A

não, sangue bom!

Cêis

tem o que

vo c ê s q u i s e r e m , e u c ê i s n ã o va o t e r . . .

— Mano Brown

R AC I O N A I S — S E M PA L AV R A

papo direto e reto

A

revolução cultural vem da periferia. “Sessenta porcento dos jovens sem antecedentes criminais já sofreram violência policial. Há cada quatro pessoas mortas pela polícia três são negras. Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. Há cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo.” Essas palavras são do rapper Primo Preto e servem de abertura para a terceira faixa do CD Sobrevivendo no Inferno, do grupo Racionais MC’S. Mais do que uma denúncia elas ilustram uma situação que já se tornou comum não só em São Paulo — uma das maiores metrópoles do Brasil — mas também no resto da nação. Os negros — que estatisticamente, constituem a maioria da população no país — ainda não alcançaram a tão sonhada democracia racial. O rapper termina as frases enunciadas acima com a seguinte citação: “Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente!”. Um grito de alerta e, ao mesmo tempo, de indignação com a forma que os negros brasileiros são tratados tanto pela polícia como pelo sistema. No Brasil, os policiais recebem orientação para considerar, sempre, o negro como um cidadão em atitude suspeita. O grau de “popularidade” que os homens da lei têm na jovem comunidade negra brasileira é revelado em frases como “não confio na polícia raça do caralho”, do rapper Mano Brown; ou no polêmico refrão “homens fardados eu não sei não, insistem e fazer justiça com as própria mãos, se julgam os tais, os donos da razão” — do grupo de rap pernambucano Faces do Subúrbio, na canção Homens Fardados. Oprimida por um sistema que não soube conduzir democraticamente a questão da educação no país, a juventude negra é minoria nas salas de aulas das universidades brasileiras. Num país em que 60% da população e composta por negros esta situação se constitui num grande paradoxo, para não dizer vergonha nacional e descaso das autoridades da área de ensino. Ao negro brasileiro ficou relegada a pobreza e a violência dos bairros da periferia. Mas, como diz o ditado: “Se te derem um limão faça uma limonada”. A raça negra está se organizando. É da periferia dos bairros mais pobres e violentos do Brasil que está nascendo uma revolução cultural, baseada numa força que só os oprimidos conseguem buscar ou descobrir. Através da música, da dança e da arte — elementos presentes na cultura hip hop —, os “manos” vêm dando seu recado de inconformismo com a atual “democracia racial”. Porque, afinal, ser um preto tipo A (negro digno, orgulhoso de sua raça) custa caro.

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Polêmicos? Pode ser. Radicais? Nem tanto. Racionais? Sim. A música de Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay, realmente, aponta para a racionalidade. Ao ouvi-la a viagem para o outro lado da “ponte” é inevitável. Em suas letras os guerreiros das zonas sul e norte da cidade de São Paulo fazem muito mais do que botar ritmo na poesia. O relato sobre si mesmos ou sobre fatos que, corriqueiramente, acontecem na periferia aparece com uma riqueza de detalhes capaz de deixar o mais talentoso roteirista de boca aberta. Crítico de si mesmo, Brown ora aparece contando sua própria história, ora se revela como um pregador com visão realista sobre o que acontece na sua e em todas as quebradas. Não, você não vai encontrar nas letras dos Racionais o remédio para todos os males. Para entender os Racionais é preciso ouvir com a alma e não com os ouvidos. Pare e preste atenção porque o papo é reto e a mensagem, mesmo que descrita por meio de parábolas, é direta e certeira como um míssil teleguiado. Quatro manos em busca de um mesmo objetivo: dar cara e voz a todas as quebradas do Brasil por meio da trilha sonora do gueto: o rap!

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Ao contrário de Os Cavaleiros do Apocalipse — simbolicamente esses cavaleiros trouxeram para o mundo o domínio, a guerra, a peste e a fome — os Racionais querem, com suas mensagens, amenizar os problemas que acontecem nas periferias. Recentemente, na música A Carne — de autoria de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Wilson Cappellette —, a cantora Elza Soares diz que “a carne mais barata do mercado é a carne negra”. E onde ela é encontrada? Nos guetos, nas quebradas, no lado de lá dos muros... Mas ainda dá tempo de mudar isso. Ouça os Racionais. Reflita com os Racionais. E o melhor disso tudo é que você não precisa concordar com eles. Mas, uma coisa é certa, depois de ouvi-los o mundo vai lhe parecer um pouco... diferente! Nesta entrevista — concedida aos jornalistas Djalma Campos e Fran Oliveira no Green Express, casa de dança localizada no centro da cidade de São Paulo —, as falas foram transcritas de acordo como cada um se expressou para manter a veracidade dos relatos. Em momento algum, isso não se revela como um desrespeito à chamada língua culta. São formas de falar e de se comunicar que acabam se transformando em “dialeto da periferia”. Mesmo porque periferia é periferia em qualquer lugar!

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C

omo você analisam os casos de artistas do rap que estão cada vez mais próximos da grande mídia. Por outro lado, os Racionais seguem aparecendo em pouquíssimos veículos de comunicação e concedendo raríssimas entrevistas... Mano Brown — É falta de fé! É falta de fé! Eu resumo em três palavras: falta de fé. Aí, já era... Pode vir com ideologia do mundo inteiro que eu não acredito. É falta de fé. Eu acredito nos pretos. Acredito no que a gente pode fazer sem os caras. Com os caras, não acredito que nada vai ser igual. Ficar dividindo o dinheiro, o ambiente, dividindo o... Ih, mano... Não cola! O que a gente fala não é poder negro só pelo poder. É poder negro com ética. É poder de direito mesmo, de dominar. Poder... Não é como caras como o Belo, que é um sujeito pardo e de periferia. [as pessoas] Dizem: É rico, mas é burro. Nóis, não! A gente não precisa

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ser rico, mas burro nóis não vamos ser. Tá ligado?! Aqui não, sangue bom! Cêis tem o que vocês quiserem, eu cêis não vão ter... Uma estatística recente mostra que os homens vivem 8,5 anos a menos que as mulheres. E esta estatística mostrou que São Paulo lidera os índices de violência, com a zona sul em destaque. Como você, que se  considera um sobrevivente, analisa isso? Mano Brown — Não morri, e não foi por falta de motivo. Acho que não tem lugar para todo mundo na zona sul, entendeu? É uma peneira. No Capão Redondo [bairro da zona sul de São Paulo, onde Brown foi criado] tem muita gente. Já ouvi gente que mora na zona sul falando que lá tem gente demais. Não tem lugar para todo mundo. As pessoas não agüentam.

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 Na letra de uma música de Nada Como um Dia Após Outro Dia, você diz que o mundo é diferente da ponte pra cá. Sugere que a zona sul faz parte de um outro mundo. Por que você considera a zona sul de São Paulo um outro mundo? Mano Brown — A zona sul é um lugar frio. As pessoas não podem demonstrar emoção e nem sentimento por nada. Não pode rir, não pode chorar. [as pessoas] Tentam ser mais discretas. Lá é um lugar diferente. O último lugar que o rap entrou foi na zona sul. Eles nem gostavam... A zona sul não gostava de rap! Por isso, os Racionais puxaram para o lado da zona sul no começo, com músicas como Pânico na Zona Sul e tal, tal, tal. Foi o que ajudou. Mas era tudo fechado para o rap. Desde o começo, as festas lá parece que nunca pegaram. Para a gente fazer shows na zona sul demorou um tempão. A gente fez na zona norte, na zona leste, ABC... A zona sul foi o último lugar que a gente fez show.   E foi a zona sul que moldou o Mano Brown que as pessoas  conhecem hoje? Mano Brown — Eu sou o que a zona sul é. Os caras me conhecem. E quando a gente conheceu os caras, nóis era diferente.   Você vê alguma solução para melhorar o bairro do Capão Redondo? Bairros como Brasilândia e Cachoeirinha [na zona norte de SP] eram considerados bocas quentes anos atrás e hoje isso mudou. Não são paraísos de tranqüilidade, mas são lugares mais calmos em relação ao que eram há 30 anos. Já a zona sul, parece manter sempre  altos níveis de violência. Mano Brown — Tranqüilo estes lugares não são... Mas a zona sul parece que oferece mais oportunidade. Não pára de crescer. Lá está cheio de shopping, estão asfaltando tudo, o metrô está chegando lá... Estão aparecendo mais oportunidades. E está indo mais gente para lá.  A zona norte parece não ter mais para onde crescer. Tá ligado?! Lá tem lugar para crescer. E a sul tem uma parte rica fudida. É rica memo! Ela oferece oportunidade, mas tem mais gente do que oportunidade. Tanto em termo de crime como para quem quer trabalhar. Mas acho que lá tem mais oportunidade de emprego do que pra cá. Quem mora na zona norte tem que vir para o centro. De Santana para cá, [a saída] é [vir para] o centro. Da zona sul, para chegar ao centro é uma caminhada. Tem muita área para correr. Tem Vila Olímpia, tem Brooklin, tem Santo Amaro, Granja Julieta, tem as Marginais, tem a [avenida Luis Carlos] Berrini, Aeroporto... Tem uma pá de quebrada de dinheiro.   Muitas pessoas no Capão Redondo se orgulham pelo fato de você ter crescido na região. Se orgulham também por morarem perto de você. E se orgulham mais ainda pelo fato de você não ter mudado de lá. Por que, mesmo com possibilidades financeiras, você nunca saiu daquela região? Sua família não quer abandonar a zona sul? Mano Brown — Acho que eu não saberia viver em outro lugar. Para mim virou um barato assim... Eu não tinha nada na vida e hoje tenho isso comigo: o bairro, o rap... O Mano Brown, o cara, o rapper, foi formado junto com o Capão Redondo. Capão Redondo, Brown, Racionais... É tudo misturado. Hoje, o que eu sou é Capão Redondo, é rap, é Racionais, entendeu?! Os caras me olham e me veêm com um jaco da zona oeste [no dia que concedeu a entrevista, Brown usava uma jaqueta de um time de futebol com as iniciais da zona oeste]. Agora há pouco me perguntaram: “E aí, ô, tá com jaco da zona oeste?” Isto sou eu. É como se não pudesse usar o jaco da zona oeste. Os caras [da jaqueta usada por Brown] são padrinhos de um time que a gente tem lá [no Capão] e eu uso a roupa. Se uso algo com o nome da zona oeste, os caras já perguntam: “Pô, zona oeste?”

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Entendeu? Como é que eu vou mudar de lá? Eu vou ser sempre um estrangeiro fora. Eu não vou ser bem aceito fora. E vão pensar: ”Se veio para cá é porque o baguio não tá bom para ele lá”. E lá [se eu mudar] vão falar: ”Pô, mano, e a fórmula mágica”. [Em referência à letra da música Fórmula Mágica da Paz.]   Em Jesus Chorou [faixa de Nada Como Um Dia Após o Outro Dia] você faz uma autocrítica e canta uma letra onde mostra o que imagina que as pessoas pensam a seu respeito. Como surgiu a idéia de fazer esta música? Mano Brown — Não imagino. As pessoas pensam isso mesmo, e não só do Mano Brown, mas do [Ice] Blue, do Edi Rock, e do Kléber [KL Jay]. Mais do Blue e de mim. Com os caras [Edi e KL Jay], talvez a cobrança seja um pouco menor. Eu acho. Tem cobrança, mas os caras têm um outro jeito de ser, moram num bairro um pouco diferente do nosso [na zona norte de SP]. Eu e o Blue, a gente vive num lugar que é o seguinte... É muito cobrança, muita, muita, muita, muita... Eu sei que as pessoas pensam aquilo que está na letra da música. Se você sai de lá, você paga um preço. Por ficar, você paga um preço. E isso o incomoda? Mano Brown – Não! Incomoda um dia. Dois dias, não. Quando fiz a música eu estava incomodado. Ice Blue — Na verdade, a gente vive num lugar que a gente tem que ter cuidado com tudo o que a gente fala. Não podemos falar a coisa por emoção. A gente não pode demonstrar sentimento. Mostrar sentimento é mostrar fraqueza. O cara chega para você e diz: Tá rindo por quê? Tá facinho?   [para Ice Blue] Há pouco tempo, as pessoas o criticavam por você andar pela periferia com motos importadas. Como você recebia essas críticas? Ice Blue — Eu penso assim... Na zona sul, hoje, todos os moleques de 14 e 15 anos, da [Vila] Fundão ou no Vaz de Lima... Bom, se você perguntar qual é o sonho deles, eles vão dizer que é um Golf vermelho GTI e uma moto 500 cilindradas. Cada um na zona sul, cada cara, cada favelado, tem uma viagem. Eu queria ter uma 7 Galo. Era meu sonho. Eu via os ladrão dos anos 80, e pá... Todo mundo de 7 Galo. Quando tive a oportunidade de ter uma moto, eu comprei logo a top [de linha], a [moto] que era dos malandro. A moto que os caras andam. O fulano do morro de cima tem um RR. Eu estacionava minha moto, com chave no contato, e ia trocar uma idéia com os caras. Eu sempre quero andar despreocupado. Muitos ficam com esta conversa [de inveja], mas continuei andando nos mesmos lugares, nas mesmas favelas. Não mudou nada.   E tinha muita cobrança? Ice Blue — Se tinha cobrança, não sei... A gente tem que ser frio para algumas coisas. A gente não pode abraçar a idéia e ficar se limitando por causa dos outros. Você tem que ser você. Hoje, eu vejo que existem necessidades muito mais importantes do que ter uma moto muito louca para andar. E quais são suas necessidades hoje? Ice Blue — Tem várias... Tem várias coisas. Se você chega no hospital Campo Limpo, você olha para as condições do hospital e... Eu me machuquei um dia destes, e os caras me levaram ao hospital. Mas eles não ofereciam condições de fazer um curativo naquele lugar. Aí, você começa a pensar: Pô, você é ser humano e não vale nada. Qualquer coisa te atinge. Vem uma pedra dali e pá... Acabou você!!!

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