Racismo e política no Estado Novo

July 21, 2017 | Autor: Marion Brepohl | Categoria: Race and Racism
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A criminalização da raça: a xenofobia institucionalizada1

Marion Brepohl de Magalhães [Os imigrantes alemães] ... não vinham com o pensamento de incorporar-se à nossa gente, de integrar-se numa outra nacionalidade, como uma segunda pátria; vinham com o pensamento exclusivista de prolongar na nossa a sua pátria. O japonês é como enxofre: insolúvel. Oliveira Vianna

O racismo, sentimento que se responsabilizou, na modernidade, pela legitimação do princípio da desigualdade entre os homens, e que esteve, como sabemos, presente entre os mais diversos grupos sociais da Europa, tem suas raízes no final do século XVIII, devido ao aristocrático preconceito da "lei do mais forte" . Ao final do Século XIX e início do XX, esse preconceito vai se tornando cada vez mais complexo. Para Michel Foucault, ocorre uma importante transformação, algo que se pode chamar de racismo

de Estado: racismo

biológico e centralizado2, um problema do Estado e para o Estado, problema que passa a ser gerenciado pela ciência. Quando esta ciência passa a introduzir-se num sistema político centralizado, ela opera um corte para o próprio poder de estado: o corte entre o que deve viver e o que deve morrer; segundo o autor:

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Com modificações e título diferente, este texto foi publicado em: BREPOHL DE MAGALHAES, M. D . A ciência do racialismo informa a política: o caso brasileiro. In: Maria Manuela Tavres Ribeiro. (Org.). Portugal-Brasil; uma visão interdisciplinar do século XX. 1ed.Coimbra: Quarteto, 2003, v. 1, p. 441-456. 2

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 96

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No contínuo bio da espécie humana, o aparecimento das raças, a distinção entre as raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser uma forma 3 de fragmentar esse campo do biológico de que o poder se incumbiu .

De outro lado, prossegue Foucault, o racismo passa a ter uma segunda função, também de caráter biológico, qual seja, a de que a morte de uns (os inferiores) está diretamente relacionada à vida de outros.

A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na medida em que seria minha segurança pessoal; a morte do outro, a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado, do anormal) é o que vai deixar a vida em geral 4 mais sadia: mais sadia e mais pura.

Essa transformação, que ocorreu exatamente num período em que os movimentos sociais de inspiração socialista se organizavam e se fortaleciam, é fundamental para que se entenda que nesta relação de poder, transforma-se o outro não em inimigo, adversário político, mas em

"perigo", "perigo" a ser

evitado, "perigo" em relação à população e para uma população. E não me refiro apenas ao extermínio físico, mas à morte política, à rejeição, à humilhação, ou seja, às inúmeras estigmatizações depreciativas que tornam a violência mais tolerável tanto para quem a pratica quanto para aquele que com ela convive. Mesmo quando a violência não é praticada diretamente pelo estado, como no caso dos movimentos extremistas da atualidade, segundo Ulrich Bielefeld, ela guarda uma relação com alguma política oficial associada ao preconceito. Ao analisar os ataques contra estrangeiros por parte de membros destes movimentos na França e na Alemanha, contesta a idéia de que o medo, o 3

idem, p. 304

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desemprego ou a insegurança sejam fatores que explicam a violência contra o diferente. Estes fatores desempenham um papel importante, mas a seu ver, o que justifica a perfidez, a covardia e a violência em série é o significado que se atribui a eles, ou seja, em nome de quem tais atos são praticados. Para Bielefeld, o que detona a violência em série, é a xenofobia institucionalizada, ou seja, quando esta se transforma em política oficial.5 Isto porque, em nossas fantasias individuais e coletivas, sempre temos um ente, um objeto persecutório, um outro (que pode se cristalizar numa religião, no estrangeiro, no vizinho, no homem rico, no homem pobre, no homossexual), como imagem do inimigo, um ente em quem projetamos, pelo menos em parte, a causa de nossas limitações e frustrações. Essa imagem permanece em nossas fantasias, às vezes, inclusive, como um lenitivo para acalmar nossas frustrações. No entanto, quando o Estado - que deve controlar e interditar a violência, é quem a promove ou a estimula - pois apresenta, por meio de imagens e leis, esse inimigo como verdadeiramente perigoso, ele legitima afetivamente a prática da violência.6 É como, assim o vislumbro, se saíssemos de uma peça teatral em que representamos o papel de heróis, de justiceiros, a qual encenamos em nossas fantasias, e entrássemos na história real, por incumbência do chefe, exatamente neste mesmo papel. De nós, exige-se o sacrifício, mas em troca, recebemos o reconhecimento. E todos nós sabemos o quão importante é ser reconhecido na

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idem, p. 305 BIELEFELD, Ulrich. Die institutionalisierte Phobie. in: MERTEN, Otto (org.). Rechtsradikale Gewalt in vereigneten Deutschland. Bonn: Bundeszentralstelle für politische Bildung, 1993. p.36 6 BIELEFELD, op. cit., p. 37 5

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dinâmica do grupo; este é, inclusive, um dos fatores determinantes para motivar os soldados em combate. Mesmo em tempo de paz, o Estado, desde o século XIX até nossos dias, tem selecionado inimigos objetivos, ora inimigos políticos, ora religiosos, ora uma classe social, ora um outro país. Mais recorrentemente ainda, os inimigos da raça. Por que o recurso a esse instrumento? Porque a maior parte dos movimentos que se inspiraram no nacionalismo, que é também um sentimento político com grande força mobilizadora, constituiu-se a partir de princípios étnicos. E quando a nação é definida por este critério, teremos forçosamente de eleger uma raça, bem como sua (s) minoria (s). No Brasil, os indígenas, na Noruega, Suécia e Finlândia, os lapões, na Europa do XIX, principalmente os judeus. Contudo, nem toda minoria é necessariamente objeto de perseguição, algumas delas são inclusive protegidas ou progressivamente assimiladas. Mas quando o critério étnico se sobrepõe a outros paradigmas identitários, a objetivação do inimigo se projeta nessa diferença, que se torna então inaceitável (desconheço casos em que isto não tenha ocorrido). Trata-se, para Bielefeld, de uma imagem muito forte face à insegurança social, que é a imagem da necessidade de purificação. Muitos poderiam argumentar que estas conclusões são válidas para uma comunidade imaginada 7 como ariana, ou pelo menos branca, mas não no

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ANDERSEN, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.

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Brasil, cuja miscigenação racial foi e é inclusive celebrada por nossos artistas e intelectuais. Mas nós, que pesquisamos estes temas, sabemos que sob o ponto de vista das imagens produzidas pelo Estado, pelo menos até o final da Segunda Guerra, não era esse o desejo de nossas elites, tampouco a legislação por elas desenhada. Contra o meu argumento, pode-se ressalvar a tese da miscigenação ou do branqueamento, mas observemos, só para citar um exemplo, as afirmativas de Oliveira Vianna, um intelectual que participou de diversas articulações das políticas estadonovistas:

Esta função de (governo) cabe aos arianos (...) são estes os que de posse dos aparelhos de disciplina e de educação, dominam esta turba informe pululante de mestiços inferiores e, mantendo-a, pela incompreensão social e jurídica, dentro das normas da moral ariana, a vão afeiçoando lentamente à 8 mentalidade da raça branca.

O mulato (...) é explosivo, rebelde, desordenado e agressivo: é ele que se faz fator principal da desordem e da anarquia em nossa história (...) isto se explica porque a servilidade, característica do negro não se transmite ao mulato.. Este, ao contrário, é extremamente susceptível e altivo; mas, a sua altivez reveste um caráter altaneiro, cheio de arrogância e insolência, sem esse traço de gravidade e nobreza, próprio à altivez do selvagem e do 9 mameluco.

Mencionemos ainda a legislação imigratória, que durante o período colonial, proibiu o ingresso de judeus e muçulmanos; que proibiu, em 1889, o ingresso de asiáticos e africanos; que estendeu essa interdição trinta anos depois, 8 9

para quaisquer negros e amarelos independentemente de sua

Populações meridionais no Brasil, 1918. 1. vol., p. 65 Ensaios inéditos, UNICAMP, [1931],1991

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nacionalidade 10 ; e que estabeleceu, no ano de 1938, regime de cotas desfavorável para estes mesmos grupos 11 . Um país que se queria europeu, branco e católico, governado por brancos e para os brancos, como demonstram os trabalhos de Otávio Ianni, Alcir Lenharo, Jeffrey Lesser e Tucci Carneiro, entre outros12. Ao lado destas práticas jurídicas, gostaria de apresentar um outro conjunto de medidas exercitado durante o Estado Novo, o qual reforça o racismo de Estado, e que eu denomino de criminilazação da raça, posta em prática pela polícia política. Criminalização da raça é um termo pouco preciso, mas ele também tem sua história e seu desdobramento mais trágico: as leis de Nürenberg. Suas ações estão associadas ao que Hannah Arendt compreende por instrumentalização política do preconceito; a este respeito, afirma a autora que, quando o racismo associa uma prática qualquer - geralmente condenável - à predisposição genética, isto transforma a perversidade humana; esta assume as feições da qualidade psicológica, que o homem não pode escolher nem rejeitar, que lhe é imposta de fora e que o domina de modo mais ou menos compulsivo, como a droga domina o viciado.13

E não raramente a tolerância para com os

racialmente predestinados ao crime desaparece, ocorrendo aí a recorrência a

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LESSER, Jeffrey. A negociação da identidade nacional. São Paulo, Editora UNESP, 2001. p. 27-28. Referimo-nos aqui ao percentual de 2% que regulava o ingresso de novos imigrantes segundo a nacionalidade já estabelecida no país de 1844 a 1933 (Decreto-Lei nº 406. 04.05.1938. 12 IANNI, Otávio. As metamorfoses do escravo. São Paulo: DIFEL, 1962; Raças e classes sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; LESSER, Jeffrey. O Brasil e a questão judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1995; A negociação da identidade nacional, op. cit.; CARNEIRO, M. Luiza Tucci: O Anti-semitismo na era Vargas. São Paulo: Brasiliense, 1988; LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Campinas: Papirus, 1986. 13 ARENDT, Hannah. Anti-semitismo, instrumento de poder. Rio de Janeiro: Documentário, 1975. p.119 11

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leis e políticas que apregoam esta necessidade de libertação social do perigo em potencial.14 Assim interpreto o regime de cotas, mas principalmente as práticas da polícia política do Estado Novo em nome do combate ao quinta-colunismo. É certo que elas não são comparáveis às leis de Nurenberg, nem o ódio ao diferente foi pregado de forma tão violenta; mas as imagens veiculadas pela polícia política se deixaram orientar, como veremos a seguir, pelo que denomino de criminalização da raça.

Os inassimiláveis: o alemão e o japonês

Segundo minha compreensão, os políticos do Estado Novo não elegeram um único inimigo para a nação brasileira 15 . Eles objetivaram esta figura em diversos grupos, de acordo com as diferentes conjunturas e especificidades político-regionais: os comunistas, os anarquistas, em primeira linha; italianos, alemães, poloneses, japoneses no sul e sudeste; os judeus, os espiões, os mendigos, os vagabundos, os desordeiros em diversas regiões. Entretanto, se examinarmos os documentos do DOPS, constataremos que, fossem quais fossem os inimigos, a criminalização da raça cooperou decisivamente para que tais perseguições fossem aceitas socialmente. Para ilustrar minhas afirmações, elegi apenas dois casos, aparentemente paradoxais:

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idem, p. 119 Para o aprofundamento sobre a importância do inimigo interno no discurso nacionalista, ver: ENRIQUEZ, E. Tuer sans culpabilité. in: L 'inactuel. Paris, n. 2, 1999. p. 16-36. 15

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O primeiro, a perseguição aos nipo-brasileiros, considerados como o penúltimo grupo na hierarquia étnica, só não inferior ao negro; O segundo, a perseguição aos teuto-brasileiros, por alguns considerados os arianos por excelência, a mais bela raça do gênero humano, segundo Johan Friedrich Blumenbach.16

No caso dos japoneses, ainda que as restrições sobre suas qualidades raciais persistissem há até bem pouco tempo, no início da imigração de tais levas para o Brasil, eram vistos como ao menos trabalhadores e limpos; além disso, provinham de um país rico, prova de sua operosidade e submissão, diferentemente dos imigrantes anarquistas, como os italianos. Ademais, cooperariam para o embranquecimento da cor da pele, forma de preconceito racial típico de nossas elites. Com o Estado Novo e a exacerbação do nacionalismo, somado ao rompimento de relações diplomáticas do Brasil com os países do Eixo, o DOPS passa a suspeitar que a colônia nipo-brasileira obedecia a um plano elaborado pelo Exército japonês contra a soberania nacional. A confusão entre japoneses e chineses revela, segundo Lesser, os sentimentos xenofóbicos em relação aos primeiros: o japonês é mau, o chinês é bom; o japonês é falso, o chinês é sincero; o japonês é antipático, o chinês é simpático.17

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BLUMENBACH, Johan Friedrich. De generis humani varietate nativa , cf. LISBOA, Ilka. A nova Atlântida de Spix e Martius; natureza e civilização na viagem pelo Brasil. São Paulo: HUCITEC/ FAPESP, 1997. 17 LESSER, op. cit., p. 236.

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Para além desses lugares-comuns, some-se a afirmação de Luiz Guimarães, de que o japonês era espião de nascença, e nosso inimigo pelo sangue18. Acusados de não ensinarem, propositadamente, o idioma português aos seus filhos, para que o sentimento de brasilidade não os cativassem19, de serem cegamente obedientes às suas tradições, portanto, inassimiláveis20, foram alvo de diversas perseguições, como por exemplo, seu deslocamento compulsório do litoral para o interior, evitando seu assentamento em regiões ditas estratégicas. Ainda, fecharam-se escolas e associações culturais mantidas por este grupo social. Mesmo com o final da guerra, as perseguições prosseguem; cite-se uma notícia no Diário da Tarde, sobre armas apreendidas em Arapongas, no Paraná, pertencentes à sociedade terrorista Daí Nippon K Zai Taio, considerado como o comunismo amarelo, e do apedrejamento de um cinema em Assaí, no Paraná, por transmitir um filme japonês sem legendas em português, ambas de 1951.21 Cite-se ainda, as considerações de Carlos de Souza Moraes, em seu livro A ofensiva japonesa no Brasil, de extrema violência verbal:

O japonês se fecha na sombria desconfiança nativista dos insulares, na estreiteza mongólica dos ódios nacionais e dos ritos caducos, na presunção da estirpe celeste, no orgulho do modernismo decalcado sôbre a inventividade européia, mas adstrito às ficções politeístas e ao culto às armas vencedoras; é um ator dissimulado, inadaptável, não compreende nem perdoa o amor fora de sua crença ou raça: o devotamento, a gentileza, a simpatia e a fidelidade, resume-se no cavalheirismo tradicional dos samurais; 22 e acima de tudo, fanaticamente, adora no Mikado a própria divindade. 18

idem, p. 160. Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná, Acervo DOPS, Pasta Documentos Antigos 20 Departamento Estadual de Arquivo Público do Paraná, Acervo DOPS, Ofícios e portarias expedidos 21 SHIZUNO, Elena. Desconstruindo identidades, Curitiba, 2001, p. 104 (mimeo) 22 apud SHIZUNO, Elena. Os bandeirantes do oriente ou perigo amarelo; os imigrantes japoneses e a DOPS na década de 40. Curitiba. Mestrado. Universidade Federal do Paraná. 2001. p. 41 19

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Segundo Lenharo, às imagens de inferioridade, somavam-se a de conspiração. Pactos sinistros eram denunciados, tanto na imprensa como pelas autoridades policiais, as quais confirmavam, como testemunhas oculares da história, a veracidade de tais suspeitas. Para o autor,

O crescimento súbito da imigração japonesa no final da década de 20, paulatino à queda brusca da imigração branca européia trouxe à ordem do dia a insegurança e o descontrole que a miscigenação com o diferente muito diferente - ocasionava. Sua "linguagem é completamente impreensível para os brasileiros"; seus costumes são exóticos, seu físico, pouco apresentável, sua moral parece-nos estranha... o japonês é como 23 enxofre: insolúvel, afirmou uma entre outras vezes Oliveira Vianna.

Este elemento, estigmatizado como perigo amarelo, passaria a ser inaceitável aos agentes da DOPS, que popularizariam, ao lado de jornalistas e intelectuais, o preconceito e a discriminação. Com relação aos teuto-brasileiros, sua trajetória é distinta, pelo menos até se constituírem objeto de suspeição da polícia política. Celebrados por diversos intelectuais, como por exemplo, Oliveira Vianna e Wilson Martins24, como portadores das mais altas qualidades étnicas, o ariano por excelência, a imigração germânica para o Brasil foi estimulada desde 1824, contando com o empenho pessoal de Dona Leopoldina, e depois, de Dom Pedro II. Entretanto, a partir dos finais do século XIX, esta comunidade será influenciada pela Liga Pangermânica, entidade de caráter privado que, coerente

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LENHARO, op. cit., p. 142.

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com os interesses do imperialismo alemão e à ideologia nacionalista e racista da Europa, buscará exercer influência sobre os imigrantes e seus descendentes, incutindo-lhes um forte sentimento de pertencimento à nação de origem. Para tanto, fomentavam-se a preservação do idioma, da religião luterana, o senso de superioridade racial. Com a Primeira Grande Guerra e a conseqüente difusão do mito do perigo alemão, a comunidade de origem alemã passa a ser vista de forma totalmente diferente do que o fora no século XIX. De um povo laborioso e morigerado, culto e disciplinado, que só teria a contribuir para o engrandecimento da nação brasileira, bem como para o branqueamento da raça, será concebido doravante como um corpo exógeno, submetido apenas às suas leis e interesses, dotado de um poder amedrontador e clandestino. Mas se, até os anos 30, as discriminações de que foram alvo os teuto-brasileiros provieram da sociedade civil, durante o Estado Novo, e em nome da brasilidade, é a iniciativa oficial quem se responsabiliza pela discriminação social e política de tais segmentos. Neste período, proíbem-se o uso do idioma alemão, a existência de entidades recreativas de origem teuta e os usos de seus emblemas e símbolos. Quando do rompimento das relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha, em 1943, todas as organizações e manifestações culturais dos teuto-brasileiros torna-se uma prática a ser reprimida em nome do combate ao quinta-colunismo. Esta mudança - de um anti-germanismo social para um anti-germanismo político ou oficial, pode ser compreendida como instrumentalização política do 24

Respectivamente: Ensaios inéditos. Campinas, Editora da UNICAMP, 1991 e Um Brasil diferente. São Paulo, Anhembi, 1991.

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preconceito contra os alemães. Tal deslocamento cooperou para que medidas de caráter autoritário e repressivo pudessem ser adotadas com o aval da sociedade. Mais do que isto ; o próprio DOPS passa a se popularizar , entre as pessoas comuns, como um serviço de defesa da nação brasileira25. Como no caso anterior, mencionemos alguns exemplos. De autoria de Antonio de Lara Ribas, delegado do DOPS de Santa Catarina, O punhal nazista no coração do Brasil é um livro-denúncia sobre as atividades nazistas no país. Neste, a Alemanha é apresentada como uma nação belicosa , cujas pretensões raciais e expansionistas vêm sendo pregadas pelos líderes políticos, militares, cientistas e homens de letras, o que levou ao poder Hitler... quer territórios da Europa, Ásia e América do Sul.26 Para alcançar seu objetivo, prossegue o autor, tenta conquistar as massas no Brasil, que, como um país jovem e de cultura ainda não definida, prescinde de defesas contra tais organizações ideológicas. Em outro livro, de autoria do chefe de polícia do Rio Grande do Sul, intitulado A Quinta Coluna no Brasil, os planos nazistas são cuidadosamente descritos, atribuindo-se sua autoria a uma minoria da população teuta, agitadores comprometidos com o nacional-socialismo. São textos que estão a divulgar os planos da A.O. - Organização para o Exterior do Partido Nazista

(Auslandsorganisation der NSDAP), que de fato

atuou em favor da Liga Pangermânica e outras entidades afins com o objetivo

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Estamos conscientes de que as medidas contra a população germânica foram menos severas e tardia, se compararmos com outros grupos. Isto se deve, ao nosso ver, à integração de boa parte desta população à sociedade brasileira e à simpatia que o governo Vargas nutria pelo sistema político vigente na Alemanha ncional-socialista. No entanto, quando do rompimento das relações diplomáticas com aquele país, o combate ao quinta-colunismo justificará uma série de proibições e perseguições às entidades representativas deste grupo social, independentemente de suas convicções políticas.

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de desenvolver no Sul do Brasil uma sorte de imperialismo indireto, por meio da conquista dos teuto-brasileiros para a sua causa. Todavia, anexar esta região à Alemanha não estava nos planos de Hitler, interessado, conforme Jacobsen, em exercer domínio efetivo apenas na Europa.27 Além disso, somente uma parcela da população de origem teuta aderiu àquela doutrina, e disto estavam seguros os coordenadores da política oficial de repressão. Mas nas mãos de policiais dos estratos inferiores, a voz de seus chefes será incorporada como denúncia de uma conspiração internacional - de forças irrefreáveis, um plano sinistro que impunha uma contra-espionagem dirigida a todo o elemento de origem germânica. Novamente, temos aqui fantasias do homem comum transformadas, ainda que por um curto momento, em realidade, e sugerindo a ele sua chance de demonstrar bravura e heroísmo. Neste clima, o policial comum, seja por seu próprio juízo, seja pela fabricação dos media, enxerga diante de si uma transformação qualitativa no que concerne ao crime que ele deve combater: não mais um crime comum contra a propriedade ou contra a pessoa, mas contra o Estado. E se o vilão é um criminoso político, o policial responsável pela sua captura pode tornar-se um herói da política, tanto quanto os diversos personagens dos romances policiais, gênero especialmente caro a esta categoria profissional.28 Este novo personagem é difundido nas crônicas policiais dos jornais e revistas da época. De um lado, sua luta incansável para deter o inimigo. De

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Porto Alegre, 1941. p. 17 JACOBSEN, Hans Adolf. Nationalsozialistische Aussenpolitik; 1933-1938. Frankfurt: Alfred Metzner, 1968. 841 S.

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outro, a proliferação de ações maléficas. Com este material, podemos identificar como o teuto-brasileiro é descrito enquanto espião alemão, ao mesmo tempo em que o DOPS procura construir sua auto-imagem de paladino da justiça. Como uma das principais manchetes deste período, apresenta-se o desmantelamento do que é julgado como principal serviço de espionagem nazista: a Igreja Luterana. De todos os segmentos profissionais que são arbitrariamente presos para investigações, os pastores protestantes são os mais expressivos em termos numéricos. Para Aurélio da Silva Py, a Igreja Luterana era um entreposto cultural do nazismo, não passando de um disfarce para as atividades de doutrinação ideológica, pois esta, segundo ele, como toda a igreja, está colocada mais ou menos a salvo da ação vigilante das autoridades e portanto das restrições da censura. A este respeito, afirma ainda,

Os agitadores nazistas não distinguem entre os meios, não respeitam estes territórios de evasão sentimental do homem que a sabedoria universal por assim dizer havia fechado ao Estado. Muito pelo contrário, degradam-nos, 29 adaptam-nos, insinuam-se aos seus propósitos.

Uma vez "descoberto" este plano, medidas de contra-ataque são encetadas e amplamente divulgadas: os bens sagrados da igreja - como o crucifixo, o púlpito, o talar, a Bíblia e os hinários foram profanados; levados às praças públicas e incendiados, em frente a uma multidão católica que escarnecia do protestante nazista, do nazista alemão, da igreja-partido.

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Sobre a importância do romance policial, e em particular, do crime contra o Estado, ver: MANDEL, E. Delícias do crime. São Paulo: Busca Vida, 1988.

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Além da turba, mencionem-se as crônicas policiais: na Revista Vida Policial, órgão de divulgação da polícia rio-grandense, mantinha-se desde 1942 até o final da guerra, uma coluna intitulada Cortando as Azas do Nazismo, em que, em cada número, elaborava-se uma biografia sobre um preso político, considerado agente do nazismo por aquele órgão. Como ilustração desta matéria, utilizavam-se fotografias e manchetes da Alemanha de Hitler, com uma diagramação que objetivava associar a conjuntura local à conjuntura internacional. Todas as biografias possuíam um denominador comum: nelas, o mal e mesmo a morte, são desencarnados. São espíritos, inteligências, tramas loucas que regem um corpo - no caso, o corpo do biografado, sempre pouco dotado, frágil, demente, um fantoche nas mãos de seus entes superiores30. O mesmo pode se observar nas charges e anedotas contra os nipo-brasileiros: as mulheres aparecem vestidas como gueixas (insinuação à prática da prostituição), o dragão

(símbolo sagrado para aquela cultura) é

desenhado como um falo a devorar corpos apequenados, cujos rostos são caricaturizados com um esgar lascivo e perverso. Destaca-se ainda seu alto contingente numérico como um perigo em si - perigo militar mas também de contaminação da raça31.

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PY, Aurélio. A quinta coluna no Brasil. Porto Alegre, 1942, p. 210 Revista Vida Policial, julho de 1943. Porto Alegre. 31 Sobre esta imagem, um mapa ilustra as diferentes regiões de assentamento das colônias nipônicas em São Paulo, estando o desenho do Estado enlaçado por um enorme dragão. Ver: SHIZUNO, Elena. Os bandeirantes do oriente ou perigo amarelo; os imigrantes japoneses e a DOPS na década de 40. Curitiba. Mestrado. Universidade Federal do Paraná. 2001. p. 61

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Os rostos alemães são caricaturizados com a imagem de uma batata, estigma pejorativo contra o camponês; o talar luterano é apresentado como fantasia de palhaço. Japoneses são denominados de macaco amarelo. Para além dos noticiosos., gravuras e fotos, é preciso atentar para as crônicas policiais, próximas da linguagem de um romance de aventura. Aí, o vilão, dono de uma personalidade sinistra, é vencido pelo herói, que desde o início o conhece perfeitamente bem. Mais do que aprisioná-lo, importa utilizá-lo como uma pista para se descobrir o objetivo final de seus superiores, que é, invariavelmente, invadir e dominar o Brasil. Assim procedendo, a polícia e a imprensa vão tecendo uma rede de intrigas que envolvem o "alemão" e o "japonês", rede em que a ideologia política é associada às características inatas das duas raças, o que acaba por conformar um único discurso, naturalizando, desta feita, a xenofobia.

Conclusão

Os noticiosos, anedotas, charges e caricaturas mencionadas neste artigo representam uma faceta da vida cotidiana própria de uma época de guerra. São páginas e páginas resgatadas pela memória dos atingidos e dos agressores. Capítulo de uma história política que marcou pesadamente este período: um período em que falar de guerra, viver a guerra, ouvir o rádio e torcer por um dos lados ocupava um espaço de enorme densidade: um momento em que, rir do

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ato violento, da morte, da derrota, não deixava de ser uma forma de se domar o medo; um momento em que, no combate aos racialmente mais fortes - os alemães - e aos racialmente inferiores - os japoneses, alguns grupos sociais - e eu destaco aqui a própria polícia política - encontraram-se com sua identidade nacional. Para além daquela conjuntura, o que é importante ressaltar, à guisa de conclusão, é o papel que o DOPS passa a representar junto ao imaginário social: a polícia aliada aos interesses da nação, dispensando qualquer outra mediação jurídica para por em prática a verdade, a justiça e a ordem: a polícia contra os soldados do Eixo. Heróis populares que, ao vencer o adversário, eliminam o "perigo" e generalizam a xenofobia - tornando a vida do homem comum mais segura e, principalmente, mais sadia e purificada. Quero finalizar com uma afirmativa de Bielefeld, para quem, a questão étnica é uma das formas de legitimação a-política da política autoritária,32 uma vez que, ao potencializar nossos preconceitos sociais, atenuamos a desordem interna que trazemos em nosso inconsciente, por meio da projeção dos desejos ou temores ocultos ou inconscientes num " outro" - a quem se passa, pelo menos na fantasia , eliminar. *****

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Bielefeld, op.cit., p. 36

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