Radamés Gnattali - O samba do ‘Malandro’ gaúcho entre as estudantinas, jazz bands e cafés de Porto Alegre, RS (1920-1924)

September 1, 2017 | Autor: Rafael Velloso | Categoria: Samba, Radamés Gnattali, Música Popular Brasileira, Porto Alegre, Redes musicais translocais
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Enfoques interdisciplinarios sobre músicas populares en Latinoamérica: Retrospectivas, perspectivas, críticas y propuestas

Mesa Outras históricas da música popular brasileira: narrativas, performances e redes musicais translocais

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Enfoques interdisciplinarios sobre músicas populares en Latinoamérica

Mesa: Outras histórias da música popular brasileira: narrativas, performances e redes musicais translocais Apresentação

Maria Elizabeth Lucas1

1 _ Maria Elizabeth Lucas é doutora em Etnomusicologia e docente- orientadora nos programas de pós-graduação em Música e de Antropologia Social da UFRGS. Coordena o Grupo de Estudos Musicais - GEM/UFRGS, coletivo interdisciplinar de formação acadêmica e atuação profissional na área de Etnomusicologia/Antropologia da Música integrado por estudantes de Música e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

Dialogando com o tema do Simpósio VI - Historias

de la música en América Latina: Postulados teóricos y tendencias prácticas – e com o próprio tema desta décima edição da IASPM/ rama latinoamericana – Enfoques interdisciplinarios sobre músicas populares en Latinoamérica: retrospectivas, perspectivas, críticas y propuestas –, o objetivo deste conjunto de trabalhos elaborados no Grupo de Estudos Musicais do PPGMúsica/UFRGS e reunidos na mesa em epígrafe é contribuir com uma mirada reflexiva sobre narrativas e narradores historiográficos no campo da música popular brasileira, a partir de um duplo deslocamento: no plano epistemológico, provocado pela experiência acumulada no âmbito da Etnomusicologia na abordagem da diversidade sonoro-musical em escala global e no plano empírico, provocado pela perspectivação das práticas musicais do estado-nação encaradas desde o cotidiano de espaços menos óbvios e praticamente invisíveis das narrativas paradigmáticas. Retrospectivamente, as narrativas canônicas sobre

a música popular no Brasil do século XX, seja em seus aspectos socioculturais ou técnico-estéticos, centraram-se ou na produção musical do Rio de Janeiro - a antiga capital federal - ou a ela foram vinculadas através do eixo de representação identitária da nação em torno do complexo do samba-choro-bossa nova-MPB, construção ancorada no dilema tradição x modernidade e tantas vezes reificada em múltiplos registros que se retroalimentam até hoje: o de periodistas, de aficcionados, de músicos e de acadêmicos de distintas áreas de formação. Contudo, a audibilidade e a circulação multi-midiática das músicas “regionais” nas três últimas décadas, veio a tensionar essa estabilidade narrativa da chamada “linha evolutiva” da música popular brasileira, abrindo assim espaço para que outras versões pudessem se contrapor àquelas narrativas de caráter histórico-musical, que não seria exagerado afirmar, foram orientadas tanto por um sistema redundante de classificações estéticas e exclusões

sonoras, quanto por um registro fechado na factualidade, na “curta duração” para lembrarmos uma expressão muito conhecida entre os historiadores de ofício. Isto não significa dizer que propugnamos desconsiderar ou deixar de lado questões relevantes que muitos desses trabalhos, em suas múltiplas vertentes, instigaram. Pelo contrário, como tem sido prática corrente nas atividades formativas do GEM/UFRGS, propomos aqui construir um processo reflexivo sobre esse mainstream historiográfico, com a incorporação de outras experiências socializadoras que revelam não só a co-presença de uma multiplicidade de práticas musicais na formação social nacional, como também potencializam uma re-elaboração historiográfica sob novos ângulos e perspectivas analíticas. É o que pretendemos exemplificar nesta mesa, ao articularmos estratégias narrativas que buscam acionar os eixos de simultaneidade e conectividade de experiências musicais situadas no espaço-tempo da modernidade urbana, social e cultural das primeiras décadas

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do Brasil republicano, valendo-nos de pressupostos teórico-metodológicos da Etnomusicologia/ Antropologia da Música, a serem na sequência explicitados. Neste breve balanço da problemática em foco, precisamos mencionar certamente outras variáveis intervenientes e favoráveis à recomposição da historiografia da música popular no Brasil e uma delas, sem dúvida, diz respeito às dinâmicas impulsionadas de dentro do campo acadêmico pela produção de um conjunto de novas pesquisas junto aos cursos de Pós-Graduação no país. Seja por reverem interpretações consagradas e cristalizadas, seja por abrirem novas linhas investigativas graças ao acesso, cada vez mais ampliado, a bibliografias internacionais, arquivos e fontes documentais até então inacessíveis aos pesquisadores ou mesmo não valorizadas por determinados enfoques musicológicos, o fato é que dispomos hoje de meios, recursos e capital científico capazes de problematizarem não só versões e paradigmas estabelecidos,como também capazes de desvelarem novos ângulos de estudo e interpretação da diversidade musical do país em suas formas, gêneros, estéticas, agentes e performance practices, baseados na sua indissociabilidade de modalidades socioculturais transversalizadoras da vida social, tais como: poder, classe, gênero, etnicidade, mídias, tecnologias,

movimentos sociais, estado-nação. Reiteramos desta forma o papel fundante da Etnomusicologia em traçar historicamente itinerários e percursos metodológicos e reflexivos no âmbito sonoro-musical, os quais orientam as análises aqui propostas. Nesta mesa procuramos alinhar quatro estudos desenvolvidos recentemente no âmbito das atividades de formação pós-graduada no GEM/UFRGS e que reputamos como um ensaio representativo da abordagem etnomusicológica de agentes, práticas e objetos sonoro-musicais historicamente situados e problematizados. Descentramos o eixo narrativo generalizante da nacionalidade musical e passamos a perquirir “etnograficamente” as conexões entre os agenciamentos de atores sociais, suas trajetórias, seus “estilos de vida” e suas práticas em determinado campo musical, de forma a pensarmos menos em pontos fixos de origem e mais em redes e movimentos de sociabilidade e circulação musical translocal. Assim, os quatro recortes empíricos focalizam agentes e eventos musicais posicionados narrativamente no espaço social de uma urbe em pleno projeto de modernização republicana do Brasil dos anos 1910-1930. Em Porto Alegre, vale lembrarmos, esse projeto republicano – cifrado tanto na industrialização, remodelação urbana, escolarização quanto na emergência de conflitos entre capital, trabalho e desescravização – vai

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se reconfigurar na capital do extremo sul do país também em função de estar ela estrategicamente situada entre duas capitais nacionais com forte perfil cosmopolita e plural, a saber, Rio de Janeiro e Buenos Aires. Este enquadre nos permite pensar as “tecnicalidades musicais” em diálogo com a historiografia do processo de transformações nas trajetórias, relações sociais e sociabilidades das urbes modernas, em um jogo de escalas local e global. Dado o tempo disponível e o caráter experimental do conjunto de trabalhos propostos para integrarem uma das sessões do VI Simpósio, o quarteto de textos apresentados na IASPM foram discutidos previamente entre todos os participantes em oficinas dedicadas ao equacionamento da “adequação de escala” e alinhamento das abordagens, uma vez que a relação temporal com o material empírico variava individualmente de dissertações de mestrado já defendidas (caso de Luana Santos e Fabiane Luckow), às incursões em um tema/problema totalmente ou parcialmente novo (Rafael Velloso e Mateus Kuschik). Os temas trabalhados foram então montados em forma de micro-narrativas focadasem sujeitos, instituições e eventos musicais tratados, tanto quanto possível, à maneira etnográfica, com o intuito de atingirmos aquilo que nos ensina Paul Ricoeur em suas reflexões sobre a narrativa - “narrar é explicar” e não simplesmente

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descrever. Poderíamos lembrar também, na mesma linha epistemológica, o trabalho historiográfico tomado como “a explicação pela armação da intriga” defendido por Hayden White, ou ainda a escrita da história enquanto trama, defendida por Paul Veyne. Idealmente, traduzindo o argumento em termos etnográficos, estaríamos nos aproximando de uma “descrição densa”, tal como teorizada por Clifford Geertz em a Interpretação das culturas, obra que sem sombra de dúvida inspirou muitos historiadores e análises na linha da História Cultural. Diante do idealizado e do efetivamente realizado vai um longo caminho de aprendizagens coletivas e individuais, revisões orientadas e orientações revisadas que representam o espírito que animou o engajamento do grupo em uma aventura acadêmica compartilhada, para a qual a proposta do VI Simpósio do X Congresso da IASPM nos surgiu como extremamente convidativa. Assim, no primeiro estudo do quarteto – “Da circulação fonográfica e musical entre o extremo sul do Brasil e a região platina nas primeiras décadas do século XX” - o foco recai sobre um migrante italiano, seu empreendimento comercial - a fábrica de discos da Casa A Electrica (1914-1923), a segunda do gênero a ser fundada no Brasil - e as dinâmicas de escuta e de circulação musical translocal na modernidade, que são acionadas através da produção

fonográfica no Cone Sul. Já no segundo estudo - “A música e os músicos dos Clubes Sociais Negros no início do século XX em Porto Alegre” - apresentado por Mateus Kuschick, músicos descendentes de escravos, enquanto resguardam-se dentro da cidade branca-progressista-moderna em “colônias africanas” ou em clubes sociais negros, ensaiam e preparam, tanto do ponto de vista social quanto musical, ações e personagens que mais adiante iriam se impor na linhagem do samba nacional. No terceiro caso, o estudo de Fabiane Luckow trata de um grupo social todavia invisível na historiografia musical - as chanteuses - mulheres “transnacionais” que animam os cabarés da cidade atiçando o imaginário masculino com o “francesismo” ou com a brejeirice nacional de suas performances musicais, tentando impor-se profissionalmente a despeito dos estigmas que lhes são conferidos tanto do ponto de vista social, quanto musical. Finalmente, Rafael Velloso arremata o quarteto tratando da trajetória do jovem músico Radamés Gnatalli a partir de referências documentais desconhecidas ou pouco abordadas, lembrando sua condição de filho de imigrantes italianos, que potencializa localmente seu capital familiar e musical ao circular entre o conservatório de música, grupos de choro, carnaval, salas de cinema, jazz bands e que viria a ser mais tarde considerado um dos pilares da música popular do país pós-1930, pela sua atuação

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como maestro e arranjador de canções emblemáticas da nacionalidade. Em suma, com essas micro-narrativas intentamos animar outros eixos interpretativos que escapariam de serem ativados em um modelo narrativo sequencial-linear, centrado autonomamente em personagens e práticas da música popular emblematizados como exponenciais ou referenciados para tal propósito. Nos interessou testar coletivamente, através desta guinagem historiográfica orientada pelos métodos da Etnomusicologia no trabalho de campo e na hermenêutica da escuta sonora, como o estudo da circulação de ações e criações musicais,experienciadas no mesmo espaço-tempo através de redes locais e translocais e por grupos e atores sociais marcados por diferenças de gênero, etnia, classe, pode colaborar no equacionamento de outras configurações narrativas e em alternativa aos modelos espontaneístas e historicistas de tratamento das músicas populares no Brasil e no espaço latinoamericano em geral.

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Da circulação fonográfica e musical entre o extremo sul do Brasil e a região platina nas primeiras décadas do século XX Luana Zambiazzi dos Santos1 1 _ Luana Zambiazzi dos Santos, etnomusicóloga. Bacharel em Música (Regência Coral), pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008); Mestra (2011) e doutoranda em Música (Etnomusicologia), pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

Resumo: Esta comunicação busca deli-

Palavras-chave: etnomusicologia; músi-

near algumas interpretações sobre a circulação de músicos e discos fonográficos entre a capital mais ao sul do Brasil – Porto Alegre – e a região platina nas primeiras décadas do século XX, construídas a partir da noção de um “campo translocal na modernidade” em que a incorporação de dispositivos de reprodução sonora no cotidiano dos sujeitos sociais articularia um paradigma da escuta (Sterne, 2003). Procura-se alinhar etnograficamente o estabelecimento da fábrica de discos Casa A Electrica em 1914 em Porto Alegre a escolhas e deslocamentos de agentes musicais e mediadores culturais de maneira a

ca popular; paradigma da escuta; translocal; fonografia.

verificar-se como de alguma forma transformaram o mundo sócio-musical no qual estavam inseridos em nível regional, nacional e internacional.

1. Introdução A proposta deste trabalho, fruto de minha pesquisa de mestrado em Etnomusicologia (Santos 2011), é apresentar algumas reflexões sobre a circulação fonográfica no cone sul nas primeiras décadas do século XX, sob uma perspectiva teórica que percebe a escuta tanto como uma ferramenta etnográfica, de acordo com Veit Erlmann (2004), quanto como um paradigma da modernidade, como Jonathan Sterne (2003) tem defendido. Tento refletir como uma das primeiras fábricas de discos no Brasil, instalada em 1914 em Porto Alegre, a Casa A Electrica, dinamizou uma rede formada por músicos,mediadores culturais egravações fonográficas, alavancando assim um movimento translocal de práticas musicais. Concretamente examinarei o caso do tango

“El Chamuyo”2, gravado em Porto Alegre por volta de 1915 com músicos argentinos, uruguaios e brasileiros. Apesar das historiografias terem ao longo século XX e até os dias de hoje proposto estudos de gêneros musicais como constructos independentes de lógicas sociais ou mesmo em uma linha cronológica e/ ou evolutiva, ponho-me em uma reflexão que tenta dialogar com outras subjetividades, experiências ou construções musicais que se relacionam às práticas musicais e de escuta e que pode colaborar no desafio de descontruir narrativas canonizadas, em sintonia com os demais casos que os colegas do GEM/UFRGS focalizam nessa sessão de trabalhoao evocaremoutros personagens que circularam simultaneamente no mesmo espaço-tempo da modernidade.

2 _ Referência ao disco no final deste trabalho, nas “referências discográficas”.

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Inserida no circuito das capitais cuja referência é a idéia-conceito da cidade moderna, Porto Alegre passava por intensas modificações urbanas no início do século XX, afetando as sensibilidades dos seus quase cem mil habitantes através de novas luzes, cores e sons, da circulação de novos objetos e tecnologias, vozes e ideias integradas em uma nova paisagem sonora, a dos sons mecânicos de construções, edificações, fábricas, vias férreas, automóveis.Como assinala o historiador Charles Monteiro, a moderna Porto Alegre poderia ser entendida como […] uma realidade plural e polifônica, pois diferentes sujeitos e grupos sociais se apossam desse espaço, o experienciam e produzem uma memória [...] que explica a dinâmica própria do construir-se desses grupos na cidade, bem como desses grupos construírem essa cidade enquanto tecido, trama, rede de relações sociais, econômicas, políticas culturais e simbólicas (Monteiro 2006: 20-21). Para alguns cronistas e poetas dessa época, testemunhos da urbe em transformação, os sons advindos dessa cidade eram os mais bem quistos, significantes de uma harmonia única - a da modernidade e do progresso – e não por acaso associados ao

glamour e ao som metálico das jazz bands, novidade que repercutia nos ouvidos da cidade: A superexcitação é hoje o ritmo da vida. Nós queremos o ruído: a fecunda alegria das oficinas e das fábricas, a algazarra das ruas, o bimbalhar dos sinos, as onomatopéias líricas do trem, a confusão, a desordem, tudo reunido numa harmonia única. O tumulto musical do novo século (Tostes 1994 [1931]: 55). Em contrapartida, literatos mais saudosistas, registram seu desdém em relação às novas tecnologias de reprodução sonora, como os gramofones, que foram entendidos por eles como verdadeiras calamidades públicas, cujas músicas atordoavam a população: Quando não havia orquestra ou banda, o povo assobiava. E assobiou e ouviu charangas até o advento do gramofone que, como os rádios de hoje, abafou a cidade e fez a primeira crise para os tocadores desbancados. Como o cólera [sic], a bubônica e a bexiga negra, o gramofone foi uma das nossas grandes calamidades públicas. Marchas, valsas, modinhas, dobrados, canções entravam aqui sob a forma

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de discos e rodavam, rodavam até romper ao meio a cabeça da população aturdida (Ferreira 1940: 132). Juntos, esses testemunhos narram alguns conflitos da modernidade, cujos personagens e suas relações com as novas tecnologias e em especial aquelas de registro e reprodução sonoro-musical, transformavam e alteravam os espaços de sociabilidade e do cotidiano em geral da cidade.

2. A Casa A Electrica e o caso do tango “El Chamuyo” Nesse momento de novas configurações entre espaços, ideias, objetos e pessoas e de novasrelações com as tecnologias do som,o empresário Savério Leonetti, italiano da Calábria, decide instalar-se no Novo Mundo, passando pelos Estados Unidos, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Buenos Aires. Percebendo o mercado potencial existente entre o sul do Brasil e outras capitais e tendo contatos com comerciantes platinos, em 1913 instala em Porto Alegre a Casa A Electrica, uma gravadora que tornar-se-ia fábrica de discos em 1914. Entre 1913 e 1924, foram ali gravados em torno de 1.500 fonogramas que eram vendidos na capital, no interior do Rio Grande do Sul e em São Paulo (Vedana 2006: passim) promovendo circulações de discos

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e de músicos, já que as escolhas do comerciante nesse campo musical e translocal tornam a fábrica parte de seu projeto. Mas essa circulação não se limitou às terras brasileiras; a partir dos contatos de Leonetti com o empresário musical Alfredo Amendola de Buenos Aires, sabendo-se que na ocasião a Casa A Electrica era uma das duas fábricas de discos da América do Sul, mas em posição comercial mais estratégica que a outra, a Casa Edison do Rio de Janeiro, decidem trazer o músico Francisco Canaro a Porto Alegre para gravar um de seus tangos mais conhecidos no momento, “El Chamuyo”. Não era a primeira tentativa de gravação do tango. O caso é que pelos discos Atlanta, do Uruguai, cujo principal acionista era Alfredo Amendola, haviam gravado matrizes que, quando enviadas à Alemanha para prensagem, foram destruídas com o afundamento do navio que as levava, afinal eram tempos da primeira guerra mundial. Preocupados que o mesmo ocorresse ao enviarem as matrizes para a Casa Edison do Rio, onde também poderiam prensar os discos, tornou-se uma boa saída gravar em Porto Alegre. Na sua autobiografia, o músico Francisco Canaro rememora sua experiência de gravação em Porto Alegre nos seguintes termos:

En virtud de tal contrato con el señor Améndola, nos embarcamos para Porto Alegre en un pequeño vapor de carga, “El Toro”, que más tarde fue echado a pique por los alemanes. En ese viaje me acompañaran Pedro Polito, bandoneón, y Leopoldo Thompson, contrabajo; los demás músicos por razones de economía en los gastos, fueron contratados en Porto Alegre; la empresa tenía, al efecto, ajustado un presupuesto limitado. La fábrica de Porto Alegre era de propriedad de un señor llamado Saverio Leonetti, y se grababa por sistema mecánico y por medio de unas bocinas largas y muy incómodas” (Canaro 1999 [1956]: 135). Além do fato dos musicos terem ido a Porto Alegre para as gravações nas “bocinas largas y muy incómodas”, em sua experiência musical, os músicos platinos interagiram com músicos da capital gaúcha. Mas o que poderia ser dito sobre o registro fonográfico dessa performance? O que a partir dela poderia ser interpretado sobre esse campo musical translocal? Na tentativa de um diálogo entre texto e contexto, a partir de uma escuta que se propõe etnográfica e musical, apresento algumas inferências sobre a in-

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teração entre os instrumentistas brasileiros, argentinos e uruguaios, oriundas da prática de performance para gravação. Essa tentativa parte da análise de duas das várias representações musicais existentes de “El Chamuyo”: uma partitura reduzida para piano de 19143 (Canaro 1914) e o fonograma da gravação realizada em Porto Alegre em 19154. Não acessei fontes que contem sobre a utilização de partitura na gravação, mas, levando em conta que, obviamente, neste tipo de partitura estão sinalizados apenas alguns dos elementos possíveis de serem ativados em diferentes performances, dei atenção para o contraste entre o que está e não está escrito, principalmente para a movimentação nos baixos e as ornamentações realizadas pelos instrumentistas, uma vez que estão apresentadas diferentemente no texto musical. Escutando atentamente a partir desse ângulo, é possível perceber que os elementos contrastantes em relação à partitura, articulados na performance, são circulantes na música popular no Brasil à 3 _ A partitura pode ser acessada no portal virtual ACCEDER Rede de conteúdos digitais do Patrimônio Cultural do Ministério da Cultura do Governo da Cidade de Buenos Aires, através do seguinte endereço: http://www.acceder.gov.ar/images/do/f/1/7/f172985a062a4d58cf3 b5e3a083c6c26.pdf 4 _ O fonograma utilizado para análise é uma versão remasterizada da gravação original de c. 1915. A referência encontra-se no final deste trabalho, nas “referências discográficas”.

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época e remetem às inflexões e motivos musicais realizados pelos grupos de Choro, que também existiam no sul do Brasil, combinados com seções sobre a base acompanhante da havaneira, célula ritmo-melódica comum a vários gêneros musicais latino-americanos. Esses elementos, portanto, se cruzam às ornamentações executadas pela flauta transversa, e dizem respeito às trajetórias daqueles músicos cujas experiências musicais dialogam no momento da performance para a gravação. Essa performance para gravação é uma das situações impulsionadas pelas emergentes formas de circulação do início do século, configurando um fluido espectro sonoro a partir desse trânsito de músicos e práticas musicais, engendradas nas suas formas de escuta, interação e negociação – gestos sociais da modernidade. O caso da performance em questão de “El Chamuyo”,poderia ser entendida, portanto, como uma colagem musical moderna, possivelmente configurada dessa forma por questões que vão além das tecnologias de gravação, dizendo respeito à interação entre os músicos, cujos códigos compartilhados ou não, usos ou não da partitura, podem ter sido negociados nessa representação musical, atravessada por diversos interesses, de modo que chegasse ao “produto final”: “El Chamuyo”.

Os desdobramentos de construções musicais como essa, realizada talvez aparentemente com a “função” de registrar em disco um sucesso do momento, também podem ser percebidos quando novos sentidos são atribuídos às práticas musicais. Assim como observei em outras gravações de grupos musicais gaúchos, esses discos poderiam passar a ser utilizados inclusive como reprodutores sonoros, dispositivos móveis, para animar os bailes locais. Se pensado para ser dançado, o andamento seria, pois, conveniente para a prática, mas, ao encaixar-se num fonograma com limitação técnica de tempo, resulta na representação discutida, que, certamente, não chegou aos três minutos de duração por força do acaso. Comparando-se ao contexto interacional em que era realizada ou mesmo composta no Prata, há um deslocamento entre a música para ser dançada e para ser escutada. Essas resignificações contam, portanto, sobre a relação dos indivíduos com as novas tecnologias da época e, assim, sobre a própria força capitalista, cujo fluxo incita agentes a transitarem em outros espaços, através de diferentes gestos musicais e sociais. Outro desdobramento pode ser observado a partir da passagem do grupo de Canaro em Porto Alegre. O folclorista Paixão Côrtes que, na década de 1970 fez um esforço para localizar vários discos perdidos da fábrica e antigos músicos participantes das gra-

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vações, relata um episódio rememorado pelo irmão de um acordeonista de origem italiana, Moysés Mondadori, músico da casa e gerente da fábrica. Certa ocasião, quando de uma temporada artística de um certo maestro argentino [Francisco Canaro] aqui em Porto Alegre, vendo seu irmão Moisés, na fábrica da Casa A Electrica, tocando gaita [acordeão] de botão, encantou-se com a qualidade de sua execução e insistiu para levá-lo para Buenos Aires, o que não foi feliz em seu desejo” (Côrtes 1984: 43). Esse relato a respeito de Mondadori, que assistiu a gravação de Francisco Canaro, conta sobre a proximidade que esses músicos platinos tiveram com os músicos locais; cabe notar que as primeiras parcerias de Canaro vieram principalmente da prática musical de tocar em cabarés, cafés e bailes de Buenos Aires, fenômenos modernos, marcantes nas suas concepções composicionais para o gênero que mais marcaria sua carreira. Levando em conta esse contexto, é possível questionar se também não chegaram a conhecer e interagir em outros espaços da cena musical de Porto Alegre naquele momento.

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Esse espectro sonoro apresenta uma pista de como práticas circulavam e como possíveis mitos fundadores podem ser desconstruídos. Os músicos que gravaram “El Chamuyo” relacionavam-se socialmente em diferentes locais, mas compartilhavam o espaço-tempo moderno, onde colaboravam através de suas agências, visto por suas performances e circulações.

3. Conclusões Compreendo que os agentes envolvidos nesse mundo social transformam-no em um campo translocal na modernidade, à medida que fazem suas escolhas e propõem suas ações. Nesse caso, a incorporação de dispositivos de reprodução sonora, como o gramofone e suas gravações em discos, no cotidiano dos sujeitos sociais, colaboram em uma articulação do que se poderia nomear de um paradigma da escuta (Sterne 2003). A experiência pode confrontar algumas sustentações a respeito do conceito de individualismo na modernidade, se pensada articuladamente a uma noção de campo translocal e percebida em uma etnografia da escuta. Essa abordagem, então, entende a dimensão sonora e musical como uma teia de subjetividades que diz respeito a esses mesmos agentes sociais, através de escolhas e projetos que se relacionam socialmente com a música. Além disso, propõe uma

nova abordagem sobre as experiências socioculturais da modernidade, via de regra marcada pela objetificação e racionalização das ciências, em que a observação visual do pesquisador era a grande ferramenta etnográfica. Como Sterne afirma, Tem sido uma grande audácia a alegação de que a visão é a grande chave social da modernidade. Ao mesmo tempo em que eu não alego que a escuta é a chave social da modernidade, ela certamente traça um campo significativo da prática moderna. Existe certamente mais do que um mapa para um território, e o som provê um caminho específico em toda a história (grifo do autor) (Sterne 2003: 3). O que defendo aqui é que, se a visão e a modernidade vieram acompanhadas de práticas individualizadas, conforme muitos teóricos afirmam, a escuta e a modernidade acionaram coletividades e relações sociais ampliadas, através do cruzamento de trajetórias de agentes e mediadores culturais, baseados na música popular, que atravessou fronteiras geopolíticas, tornando esses “produtos comerciais” em constructos de novas experiências musicais, representativos da vida moderna, de seu trânsito, de sua fluência.

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A partir dos laços comerciais estabelecidos entre Améndola e Leonetti, cerca de 100 discos gravados (em Buenos Aires, Montevidéu ou Porto Alegre) por uruguaios e argentinos foram prensados em Porto Alegre, o que possibilitava o envio das cópias de volta para os consumidores destas e de outras cidades. Além de revendidos no interior do Rio Grande do Sul, eram também remetidos para São Paulo, através de outras parceiras do dono da fábrica gaúcha (Vedana 2006: 171; 177). No início do século a intensa migração de italianos para São Paulo formou colônias que não ficaram de fora na aquisição de discos fonográficos. Com efeito, tangos, de Francisco Canaro e até mesmo do famoso Roberto Firpo e solos de acordeão de platinos descendentes de italianos foram recebidos e requisitados nesses espaços de imigrantes em São Paulo e no estado do Rio Grande do Sul. Foi possivelmente por esses trânsitos e conexões que, quando a Casa A Electrica foi à falência em 1924, seu proprietário saiu de Porto Alegre e continuou a trabalhar no ramo fonográfico com o parceiro Alfredo Amendola na Argentina. Acompanhando a conjuntura favorável de difusão mundial de tecnologias como o gramofone e da nascente indústria fonográfica, através da Casa A Electrica, ao longo de seus onze anos de existência, uma ampla gama de gêneros de música popu-

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lar vocal e instrumental circularam pelo país afora, e como pudemos perceber, relacionaram-se com intensidade com a região do Prata. Cabe refletir, portanto, que enquanto as perspectivas pós-estruturalistas pregam as relações entre texto e contexto, de forma que se apresentem novas vozes no coro das interpretações das músicas do mundo, algumas instituições, por algum motivo, se mantêm fora do esquema, como é o caso dessa nascente indústria fonográfica na América Latina. É por isso que as ações decorrentes da Casa A Electrica como a segunda fábrica de discos a ser fundada no Brasil mostram como algumas histórias da música canonizadas obscurecem e abafam os múltiplos circuitos musicais existentes e que, em grande parte, tiveram relações intensas na produção musical do objeto dessas narrativas, ainda que não se perceba. Até mesmo a tentativa de mapeamento cronológico das fábricas ou gravadoras de discos em plano mundial, realizada por Nicholas Cook (2009) não menciona a existência de quaisquer fábricas de discos na América do Sul. De acordo com o que levantei com a pesquisa, existe a possibilidade de a Casa A Electrica ter sido a sexta ou a sétima fábrica de discos estabelecida no mundo e para além desse fato um mundo de novas relações e interpretações a serem traçadas.E eis o esforço para atentar para as redes e cruzamentos musicais,

porque representam agentes e grupos sociais que compartilham ações e formas de relacionamento com a música num mundo social que existiu não como um fenômeno isolado, mas sim como parte do fluxo, do trânsito mundial, que foi justamente por eles construído na modernidade.

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Referências Canoro, Francisco. 1914. “El Chamuyo”. AACCEDER - Red de Contenidos Digitales del Patrimonio Cultural. [Consulta: 17 de novembro de 2012]. Canaro, Francisco. 1999 [1956]. Mis memórias: mis bodas de oro con el tango. 2. ed. Buenos Aires: Corregidor. Cook, Nicholas (ed.). 2009. The Cambridge Companion to Recorded Music. New York: Cambridge University Press. Côrtes, João Carlos Paixão. 1984. Aspectos da música e fonografias gaúchas. Porto Alegre: Proletra. Erlmann, Veit (ed.). 2004. Hearing Cultures: Essays on Sound, Listening, and Modernity. Oxford: Berg. Ferreira, Athos Damasceno. 1940. Imagens sentimentais da cidade. Porto Alegre: Globo. Monteiro, Charles. 2006. Porto Alegre e suas escritas: histórias e memórias da cidade de Porto Alegre. Porto Alegre: EDIPUCRS. Santos, Luana Zambiazzi. 2011. “A Casa A Electrica e as primeiras gravações fonográficas no sul do Brasil: um estudo etnomusicológico sobre a escuta e o fazer musical na modernidade”. Dissertação de Mestrado em Música. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Sterne, Jonathan. 2003. The Audible Past: Cultural Origins of Sound Reproduction. Durham: Duke University Press. Tostes, Theodomiro. 1994 [1931]. Bazar e outras crônicas. Porto Alegre: Fundação Paulo do Couto e Silva. Vedana, Hardy. 2006. A Electrica e os Discos Gaúcho. Porto Alegre: scp.

Referências discográficas Orchestra Típica Francisco Canaro. c. 1915. El Chamuyo. Discos Gaúcho. In: Vedana, Hardy. 2006. A Electrica e os Discos Gaúcho. Porto Alegre: scp. CD 3.

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A música e os músicos dos Clubes Sociais Negros no início do século XX em Porto Alegre Mateus Berger Kuschick1 1 _ Músico e etnomusicólogo, bacharel em música (ênfase em composição) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2008) e mestre em etnomusicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2011). Doutorando em música pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: mateusbk@ hotmail.com

Resumo: As primeiras décadas do século XX são o período histórico em que se concentra o presente artigo. O perímetro é a cidade de Porto Alegre e seus laços afetivos e artísticos com outras cidades em processo de acelerada urbanização, como Rio de Janeiro e Buenos Aires, além de referências mais distantes como Lisboa e Paris. Os personagens destacados neste contexto espaço-temporal são músicos e musicistas identificados com a comunidade afrodescendente da região sul do Brasil. Homens e mulheres que ainda sob uma sombra tardia pós-escravidão encontram espaço para construir Associações e Sociedades organizadas que representarão um contingente populacional importante da cidade de Porto Alegre: os negros do sul do Brasil. Palavras-chave: etnomusicologia; música popular brasileira; negritude; Rio Grande do Sul.

1. Apresentação A cidade de Porto Alegre foi fundada em 1772 e situa-se em uma região do Brasil lembrada sempre pela presença açoriana, italiana e alemã em seu processo de ocupação e povoamento. Por conta disso, o senso comum reproduz uma noção equivocada de que no estado do Rio Grande do Sul, e em Porto Alegre por consequência, não existem negros. Ou seja, a presença do negro nesta comunidade é ainda mais invisibilizada do que em outras regiões do Brasil ou do continente. A impressão difundida verifica-se distorcida no momento em que alguns dados demográficos do passado do município nos chegam e revelam, por exemplo, que em 1873, portanto 101 anos após a data de sua fundação, mais de 30% dos seus habitantes, seriam escravos (Lazzari 2001: 117). Nosso simpósio propõe que regressemos um século a esta mesma cidade e percorramos suas ruas, atentos à música, a seus ouvintes e aos músicos: que andemos, por exemplo, pela principal rua do

centro de Porto Alegre, a rua dos Andradas, com uma grande variedade de estabelecimentos comerciais, praças, e próxima ao cais do porto. Nela, uma intensa circulação de moradores e visitantes, concentrando e repercutindo muito dos conflitos, anseios, carências da população, mas também reunindo em torno de si uma importante parcela da produção e difusão da música local, o foco deste simpósio. Em minha dissertação realizei uma etnografia por espaços sociais de forte identificação com a comunidade negra: clubes, associações, bares, escolas de samba. Através de entrevistas e de levantamento histórico-documental, conheci dois clubes sociais negros que no início do século XX desempenharam importante papel sociocultural e musical: a Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora, fundada em 1872, e a Sociedade Sattélite Portoalegrense, de 1902. O Rio Grande do Sul tem atualmente 55 Clubes Sociais Negros cadastrados: é o número mais expressivo dentre todos os estados brasileiros (Escobar 2010: 205).

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Este texto busca trazer elementos que contextualizem a atuação da população negra no âmbito musical nas primeiras décadas do século XX em Porto Alegre, dialogando com as questões trazidas pelos três colegas do simpósio VI. Cada um traz contextos e protagonistas que em algum momento estabelecem elos entre esta temática que aqui apresento: proponho um contraponto à visão de que esta região do Brasil, tanto no passado como atualmente, não tenha sido marcada culturalmente por uma comunidade negra atuante. Para tanto serão apresentados elementos auxiliares à reconstituição do contexto histórico, em que a música popular de identificação nacional interagia com formações orquestrais e gêneros musicais marcados pela alteridade estrangeira (como as big bands com suas orquestras de swing e os conjuntos de jazz) e com as inovações tecnológicas de captação e reprodução do som. Pretendo destacar a inserção, circulação e estratégias de afirmação dos músicos negros e da música feita por estes nas primeiras décadas do século XX em Porto Alegre e de que maneira a música neste contexto contribuiu para a construção de uma negritude afirmativa que reverbera até nos dias atuais no campo musical.

2. Floresta Aurora e Satélite Prontidão: clubes sociais negros Dentre os espaços de sociabilidade musical negra, a S.B.C. Floresta Aurora foi um local de destaque, onde conjuntos de jazz e orquestras de swing se apresentavam com frequência. Fundada em 1872 por negros forros antes ainda da extinção oficial da escravidão no Brasil (18882), é o mais antigo clube de negros atuante no país. Em sua maioria os sócios eram operários, mas havia também funcionários públicos, jornaleiros, motoristas e até um “proprietário”, segundo os registros históricos. Inicialmente, tinha como um de seus objetivos, prestar assistência a famílias negras em caso de óbito de seus provedores, assumindo os gastos com o funeral. Com o tempo, o aumento do quadro social possibilitou o crescimento do clube: bailes, atos públicos, protestos e homenagens passaram então a fazer parte do calendário da entidade. A Associação Sattélite teve inicialmente um forte vínculo com as festividades do carnaval na cidade: conviveu a partir dos anos 20 com o Clube Promptidão, com o qual se uniu no ano de 1956, fazendo surgir a atual Associação Satélite Prontidão (ASP). A entidade realizava atividades culturais e tinha 2 _ O Brasil foi o último país da América Latina a formalizar a abolição da escravidão, em 1888.

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como missão especial o preparo educacional da sua comunidade através de mutirões promovidos pelas mulheres associadas, atuando no trabalho de alfabetização de alguns de seus sócios e de crianças do entorno da sede social. Além disso, em sua sede costumava ocorrer festas como os famosos bailes do chope, as festas juninas, os bailes de carnaval e os bailes de aniversário da entidade. É neste contexto e com estes sujeitos que pretendo apontar cruzamentos e trocas musicais ocorridos entre o samba, a música dos países platinos e os gêneros ligados ao jazz.

3. Festejos carnavalescos: entrudos, blocos e cordões Na busca por expressões culturais coletivas da população negra de Porto Alegre no início do século passado, ainda sem destacar expoentes individuais do âmbito musical, encontrei nos festejos carnavalescos seu principal espaço de manifestação, seja de forma espontânea e desorganizada, nos entrudos, seja através dos blocos e cordões carnavalescos. As festas de entrudo chegam ao Brasil (e à América Latina de um modo geral), importadas da península ibérica, dentro dos festejos que antecedem a entrada da quaresma, e seriam associadas ainda a práticas sociais da pré-modernidade, portanto, rejeitadas, pelo pensamento de ambição

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modernista vigente. “Ao contrário dos luxuosos bailes de máscara e dos desfiles em carros (...), o entrudo é caracterizado pelas corridas desordenadas em que as pessoas atiram umas nas outras, água suja, ovos, fezes, farinha e outras substâncias” (Krawczyk; Germano e Possamai 1992: 11). No caso de Porto Alegre, escritos da época demonstram o quanto a população local, principalmente as camadas mais pobres, e por consequência os negros, aderia ao jogo de entrudo e tomava conta das vias públicas. Vale ressaltar que Porto Alegre, movida por ideais da modernidade, desde o final do século XIX, vai passar por um processo de higienização, tanto física quanto moral, pretendendo estabelecer novos padrões de conduta e de sociabilidade naquele fim de século. Além da higienização física, que visava a estabelecer em Porto Alegre ares de uma metrópole, pretendia-se “moralizar” a sociedade local. A adoção de festejos carnavalescos ordeiros, elitizados, classistas, europeizados, portanto, alinhava-se ao ideal moderno. A partir da segundo metade do século XIX, a cidade recebe uma série de melhoramentos significativos, como, a instalação de transportes coletivos (bondes), a regularização da coleta de lixo, o início do saneamento, entre outros. Conforme os historiadores sobre a cidade moderna, todas estas medidas demonstram um

projeto municipal de higienização moral e física da cidade, visando a um “combate à desordem e à imoralidade”: ou seja, os adeptos dos jogos de entrudo que não se adequassem a tal projeto seriam alvo desta repressão moral, e se necessário, física. Disto, podemos deduzir que a condenação do entrudo e a tentativa de estabelecer um novo modelo de carnaval - produzido pelas elites - tenham sido também uma estratégia encontrada no sentido de não mais precisar encarar os pobres, como por ocasião do entrudo, passando a exibir-se em elegantes desfiles e bailes fechados. Mesmo com o declarado rechaço às festas de entrudo e a expressões das camadas mais populares, em poucos anos uma significativa parcela desta população pobre, e negra, se adaptaria a esta nova “preferência” das autoridades do município, fundando seus próprios blocos carnavalescos, também com fantasias padronizadas, máscaras e carros. Tais organizações carnavalescas das comunidades negras locais são fundadas justamente para adequarem-se ao projeto de cidade moderna, idealizado principalmente pela elite branca local, espelhada por sua vez em um modelo de progresso e civilidade difundido pela capital federal Rio de Janeiro.

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Nas primeiras décadas do século XX, se vê a cidade de Porto Alegre abrigando um sem número de cordões carnavalescos organizados pelas camadas mais carentes da população, como Os Turunas, os Tesouras, Os Prediletos, Não Vai pra Ti. A imprensa local afetada ainda por um pensamento escravagista, dominante em um passado recente, destacava timidamente a existência de tais agremiações populares, enfatizando com mais entusiasmo os clubes Venezianos e Esmeralda, baluartes de um carnaval ordeiro e classista, que propunha uma festa em que alguns desfilavam e outros assistiam. Os cronistas dos principais jornais da época, entre eles um que assinava com o pseudônimo Léo Pardo, dedicavam algum espaço ao carnaval dos clubes negros: Passa um cordão de mascarados, estandarte à frente, a gaita roncando e os violões acompanhando. Uns cantam, outros dançam, estes gritam, aqueles saltam, todos formam um pandemônio insuportável. É o clube de qualquer coisa. No estandarte – um retângulo farpado e de pano barato – estão as iniciais ou então o nome por inteiro. Então vem à tona a borra da sociedade, sacudida, no fundo em que repousa, pela loucura desses três dias. E os

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becos e as vielas despejam na rua, a rua dos Andradas. (Correio do Povo, 21 fev. 1904. In: Lazzari 2001: 186). Apesar de uma opinião pública predominantemente classista, o movimento organizado de reposicionamento dos negros em uma cidade pretensamente moderna, encontra voz em um jornal precursor no Brasil, criado por estes mesmos negros fundadores dos clubes sociais. Batizado com o nome O Exemplo, teve seu tempo de existência de 1892 a 1930, com intervalos. A seguir, um recorte de um anúncio deste periódico sobre o carnaval dos clubes sociais negros e a menção à pouca atenção do poder público dada a estes: Nas noites de reis, carnaval, etc., os sons das fanfarras, o alarido popular, dissipando o silêncio, desperta no mais humilde lar até as crianças: só a polícia que é preciso ser chamada! Mas bem sabemos a razão pela qual as autoridades deixam-nos em completo abandono, quando andamos em festas pelas ruas! Quando a tradição envolvia a pretos e brancos (...) os ternos eram ouvidos à distância com o respeito silencioso às grandes comemorações, porém agora que só a gente de cor tomou a si o glorioso encargo, é preciso

um pretexto para desmoralizar os nossos créditos, para justificar as violências que nos façam. (O Exemplo, 13, Nov. 1902. In: Lazzari 2001: 195).

4. Expoentes artísticos: a dupla Os Geraldos Certamente, inúmeros expoentes individuais negros se destacaram e construíram sólidas carreiras artísticas na época em que estamos tratando. O fato de Porto Alegre sediar a gravadora de discos A Elétrica, de Savério Leonetti (vide o trabalho de Luana Zambiazzi dos Santos) foi importante estímulo para que músicos e musicistas locais prosperassem, fosse como acompanhantes de artistas estrangeiros, ou como compositores, instrumentistas, cantores. Dedicarei atenção ao cantor, compositor e dançarino Geraldo Magalhães (1878-1970), gaúcho, mulato que gravou diversos discos e desenvolveu-se artisticamente no Rio de Janeiro, com passagens exitosas por Paris e Lisboa. De 1907 a 1913, Geraldo fez dupla com a cantora, também gaúcha e mulata, Nina Teixeira (c. 1880 - c. 1940) no grupo denominado Os Geraldos, “que se apresentavam em espetáculos teatrais, circos, picadeiros, revistas, (...) interpretando um variado repertório de gêneros, que vai desde Romanzas, Modinhas, Motivos Humorísticos e Cançonetas, até o gênero

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então nascente do Samba, do qual foi um dos pioneiros do Brasil” (Côrtes 1984: 41). Na década de 10 gravou em Porto Alegre muitos discos para diversos selos: com A Elétrica foram 15; para o selo Phoenix, 10 músicas; para os Discos Gaúcho foram 45 músicas. A fama e a qualidade da dupla lhes fez viajarem para Paris e Lisboa. O músico e jornalista Arthur de Faria, além das informações estatísticas a respeito da discografia da dupla, traz um vívidorelato do sucesso da dupla logo após seu retorno ao Brasil: E é em Paris que Geraldo e Nina lançam, com estrondoso sucesso, o tango-chula Vem Cá, Mulata (tango-chula ou polca-chula, segundo as variantes classificações em discos e partituras). A canção tinha sido composta em 1902 pelo carnavalesco Arquimedes de Oliveira, em parceria com o poeta e teatrólogo Bastos Tigre. Emplacaria razoáveis vendas numa versão instrumental, de 1906, mas faria sucesso é com a gravação dos Geraldos, no ano seguinte à estada parisiense da dupla. E que sucesso! Foi um dos seis discos mais vendidos e executados da primeira década do século, com novos surtos de popularidade a cada carnaval. Na abertura da deliciosa

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gravação, que capitaliza ao máximo o recente êxito europeu, o locutor anuncia: O popular Vem Cá, Mulata, cantado pelo Geraldo para a Casa Edison, como se estivesse em Paris… E, lá pelas tantas, num dos diálogos entre as estrofes, os dois ainda brincam: Ele:Vê lá como estão gostando! Ah, Nina, mas lá no Brasil é que é gostoso. (…) Eles tão de boca aberta, olhando pra gente! Ela: Olha aquele francês: tá todo babado! (Faria 2011) Nas imagens divulgadas na época da dupla Nina e Geraldo, percebe-se a elegância de Geraldo, aparecendo sempre de casaca, cartola e monóculo, ao lado da companheira igualmente elegante em vestidos cheios de lantejoulas. O caso destes artistas negros configura apenas um dentre tantos exemplos possíveis de artistas que por intermédio da música cruzaram o país, e mesmo continentes, reforçando todo um movimento de afirmação de uma identidade nacional, em que a população negra procurava espaços de expressão. A música, neste sentido, foi um importante canal para que negros e negras obtivessem reconhecimento em Porto Alegre e além fronteiras.

Há pelo menos vinte anos, muitos trabalhos acadêmicos vêm dedicando-se a trazer uma discussão mais consistente quanto à participação da comunidade negra na construção de uma identidade histórica/cultural local, de afirmação, adaptação e principalmente de resistência. São teses, dissertações, artigos que confirmam uma ação silenciosa/ silenciada do negro em Porto Alegre na imprensa, na política, na cultura, na universidade, e que vêm potencializando a atuação do povo negro na formação de uma ideia de país, desde a declaração de independência, em 1822.

5. Considerações Finais Este artigo pretendeu trazer mais alguns elementos que contextualizam a atuação da população negra no âmbito musical nas primeiras décadas do século XX em Porto Alegre. Neste sentido, proponho um contraponto à visão de que esta região do Brasil, tanto no passado como atualmente, não tenha sido também amplamente influenciada por uma comunidade negra atuante e culturalmente presente. É importante apresentar elementos auxiliares à reconstituição de um contexto histórico em que uma música de identificação nacional convivia estreitamente com formações orquestrais e gêneros musicais vindos do exterior (as big bands com suas orquestras de swing, os conjuntos de jazz, os

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grupos de tango, as orquestras de música ocidental europeia) e também com as inovações tecnológicas na captação e reprodução do som, avanços que mudariam profundamente a relação entre a música e o ser humano. Pode-se pensar que a pouca presença de expoentes negros nos registro relacionados à música em Porto Alegre (e em outras regiões da América Latina também, provavelmente) não se deve a não existência destes, mas sim a processos de invisibilidade social ao qual foram submetidos nos registros musicais historiográficos. Aqui, tive intenção de destacar espaços negros no projeto de cidade moderna que era a Porto Alegre das primeiras décadas do século XX, e a participação destes sujeitos em um contexto de profundas transformações nas relações sociais: a inserção, circulação, afirmação de músicos e musicistas em um ambiente em que os negros necessitavam encontrar novas maneiras de ser e estar. Também, busquei apresentar condições para a reflexão sobre como a música neste contexto histórico contribuiu para a formação de uma comunidade musical ativa, criativa e heterogênea, que reverbera até os dias de hoje, refletir sobre a música que fazemos, escutamos e consumimos na mesma cidade, cem anos depois. Certamente, minha experiência pessoal como músico e etnomusicólogo branco nascido em Porto Alegre

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transformou-se profundamente após o trabalho de campo e a pesquisa realizada para o meu mestrado (Kuschick 2011),aproximando-me ainda mais da música afro-brasileira feita pelos meus conterrâneos no passado e no presente.

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Referências Côrtes, J. C. Paixão. 1984. Aspectos da música e fonografias gaúchas. Porto Alegre: Proletra. Escobar, Giane Vargas. 2010. “Clubes sociais negros: lugares de memória, resistência negra, patrimônio e potencial”. Dissertação de mestrado em ciências sociais e humanas. Universidade Federal de Santa Maria. Santa Maria. Faria, Arthur de. 2001. “Os Geraldos... ou os gaúchos que levaram o maxixe a Paris (e foram dos primeiros cantores a gravar no Brasil)”. Sul21 [Consulta: 20 de janeiro de 2012]. Germano, Iris G. 1999. “Rio Grande do Sul, Brasil e Etiópia: os negros e o carnaval de Porto Alegre nas décadas de 1930 e 40”. Dissertação de mestrado em história. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Krawczyk, Flávio; Germano, Iris e Possamai, Zita (eds.). 1992. Carnavais de Porto Alegre. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura. Kuschick, Mateus B. 2011. “Suingueiros do Sul do Brasil: uma etnografia musical nos becos, guetos, bibocas e bares de dondocas de Porto Alegre”. Dissertação de mestrado em musicologia/etnomusicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Lazzari, Alexandre. 2001. Coisas para o povo não fazer: carnaval em Porto Alegre (1870-1915). Campinas: ed. da Unicamp.

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Da Tosca ao Lundu: a prática musical das cantoras dos cabarés de Porto Alegre no início do século XX Fabiane Behling Luckow1 1 _ Fabiane Behling Luckow, cantora e etnomusicóloga. Bacharel em Artes Visuais, habilitação em Gravura (2006), bacharel em Música com habilitação em Canto(2008), ambos pela Universidade Federal de Pelotas, RS e mestre em Etnomusicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

Resumo: Neste trabalho, apresento algumas reflexões presentes em minha dissertação de mestrado, defendida em maio de 2011, em que procurei tratar, desde uma perspectiva etnomusicológica, as relações de gênero, tendo como objeto de estudo a trajetória das cantoras/chanteuses dos cabarés e/ou clubes noturnos de Porto Alegre (RS) nas primeiras décadas do século XX. A partir de suas performances artístico-musicais, busquei compreender como estas personagens do campo artístico negociavam suas identidades no contexto da cidade moderna.

Palavras-chave: etnomusicologia, chanteuses, gênero, performance, cabarés.

1. Introdução Em uma cidade moderna, em transformação, vemos surgir novas formas de experimentar o mundo. As sociabilidades ganham novos espaços e novas configurações. As ruas são tomadas pelas multidões e seus habitantes convivem com um número crescente de pessoas, muitas delas totalmente desconhecidas, em ambientes abertos e fechados. A comunicação acelera-se. O passo também. A cidade ferve. E fervia também Porto Alegre no início do século XX. Os grandes fenômenos da modernidade ganham lugar também em suas ruas: bondes, automóveis, luz elétrica. Além da tecnologia, a ampliação da vida pública propicia o surgimento de novos espaços de sociabilidade e lazer, como cafés, teatros, cinemas e os clubes noturnos. As grandes reformas urbanas favorecem a “conquista” da cidade. Suas ruas são tomadas por transeuntes. A caminhada passa a fazer parte do cotidiano de seus moradores.

Nesse contexto, ganha espaço o cabaré. Fenômeno da época, ele é moderno, é urbano, é louco. Desde o inicio do século XX, toda metrópole exibia alguns estabelecimentos que ofereciam música, dança, alegria, bebidas, petiscos e, é claro, lindas mulheres, para sua clientela. Esse é o cenário em que adentraremos neste artigo.

2. Referencial teórico As pesquisas, tanto no campo da Etnomusicologia quanto da Musicologia, principalmente a partir dos anos 1980, têm sido influenciadas pelos rumos contemporâneos da área das humanidades, na busca por um contexto mais amplo a partir do qual possa compreender as práticas culturais. Dentre as novas abordagens, estão as questões relacionadas a gênero e à sexualidade, buscando dessa forma incorporar na análise outras vozes, de forma a construir seu objeto não como “um objeto com limites claramente definidos que fixam significado, mas um conjunto de discursos” (Williams 2007:

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30). Ouvir a voz das chanteuses, por meio de seus repertórios e de suas performances, torna-se um meio de revigorar a historiografia musical, através de personagens considerados não tão óbvios. A musicóloga Susan McClary (2002: 8) observa que os códigos contidos no discurso musical adquirem novos significados com o passar do tempo, da mesma forma que a feminilidade. Embora algumas representações permaneçam através dos anos, é possível apreender vários insights sobre a história social de uma cultura através do repertório musical. No âmbito desse trabalho, pode-se perguntar quais signos podem ser apontados nesse repertório, que proporcionem uma entrada no universo social das chanteuses. No contexto dos clubes noturnos na cidade moderna, as performances musicais femininas encontravam-se fortemente associadas à sexualidade. O ambiente dos musichalls, dos cabarés corrobora esse entendimento. O acesso às artistas, cantoras ou dançarinas, era facilitado pelo espaço físico, pois circulavam entre a plateia no entreato de suas apresentações, sentando-se à mesa, bebendo champanhe e travando relações com os frequentadores. Além disso, algumas casas possuíam “reservados”, onde encontros particulares entre as artistas e os frequentadores poderiam acontecer com

discrição, funcionando literalmente como bordeis. Essa proximidade entre artistas e público, que pode ser notada na figura 1, faz com que a conexão entre o palco e o sexo se acentue. O palco passa a ser, além de local onde as artes têm espaço, um lugar de exposição dessas “mercadorias sexuais” que cantavam e dançavam, um tipo de mostruário humano.

Figura 1: Salão do Clube dos Caçadores (Anúncio Revista Máscara, Ano 1, número 1, 06 fev 1918, s/n)

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A sensualidade, o comportamento coquete, que provoca o desejo para depois frustrá-lo, era encenado sobre o palco e performatizado também nas relações entre as artistas e os frequentadores dos clubes. Para compreender a maneira como esse jogo é encenado no ambiente do cabaré, busquei identificar o repertório interpretado por essas chanteuses e lançar hipóteses sobre suas escolhas.

3. A modernidade em Porto Alegre a partir dos cabarés É na moderna cidade que essas tensões e negociações têm lugar. Como em qualquer metrópole do mundo na época, o cabaré aparecia como um importante espaço da sociabilidade masculina das elites de Porto Alegre (Monteiro 2006: 490), dentre os “espaços fechados de sociabilidade” que surgem com a ampliação da chamada “vida pública” (Maroneze 1994: 6). O cabaré abre as portas para um mundo moderno, onde a busca por prazeres não tem limites, ou seja, para uma vida blasé, conforme a expressão consagrada por Georg Simmel. E haviam diversos cabarés espalhados pela centro da cidade, para atender aos mais diversificados públicos. Em minha pesquisa, pude constatar que em Porto Alegre no inicio dos anos 20, funcionavam 12 cabarés ou clubes noturnos, e duas pensões exclu-

sivas para artistas, diretamente relacionadas aos cabarés. Colaborou na formação desse cenário o grande fluxo de estrangeiros que chegou ao Brasil nesse período. Enquanto a Primeira Guerra Mundial se desenrolava na Europa, a América recebeu uma grande leva de imigrantes. Dentre eles, estavam as míticas “prostitutas polacas”, moças judias, recrutadas nos países pobres do Leste Europeu, muitas vezes seduzidas e enganadas por supostos noivos, que as alistavam na prostituição. Chegando na América Latina, mais precisamente em Buenos Aires, eram “distribuídas” para o mercado sul-americano (Kushnir 1996). Muitas dessas moças passavam por uma espécie de “estágio” na França para que, quando aportassem na América, se passassem por francesas, conferindo mais lucro aos seus cafetões. Dentre estas “polacas”, é provável que diversas tenham atuado também como artistas nos clubes noturnos. Essa prática é corroborada pelo termo comumente utilizado na imprensa e nas crônicas brasileiras da belle époque, para anunciar-se as cantoras dos cabarés: chanteuses. O termo francês conferia-lhes status, sobretudo, em relação às cantoras nacionais, que também competiam por visibilidade no nascente mercado dos music halls. Esse status, acrescentado ao repertório e à performance, contribuiu na construção social da figura des-

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sas mulheres nas urbes modernas. Ainda que nem todas fossem francesas ou de origem europeia, a imprensa utilizava o termo para se referir a artistas de diversas nacionalidades. Mas o que o que afinal sabemos sobre essas mulheres? O que cantavam essas artistas? Quais as relações entre o repertório executado e o público de cada clube? Seria o repertório um elemento de distinção entre os clubes e mesmo entre as cantoras? Busquei descobrir quem eram essas personagens da cidade, no contexto de meu trabalho. De certa forma, é como se elas existissem apenas na efemeridade de suas performances. Muitas foram citadas nos anúncios e nas crônicas dos jornais e revistas em que pesquisei, totalizando cerca de 200 nomes compilados no período 1918-1925. Era comum que as artistas chegassem às cidades em grupos ou companhias artísticas multiculturais, com presença de artistas brasileiras e latino-americanas, conforme pode-se perceber na figura 2, onde encontram-se nomes como La Criolitta, Princezita, Toledita, que sugerem uma origem hispânica. Estabeleciam-se por algum tempo no local, apresentando-se em diversos estabelecimentos. Essas companhias cumpriam um roteiro entre as maiores cidades da América Latina, vindo do Rio de Janeiro, passando por São Paulo, Porto Alegre,

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Montevidéu e Buenos Aires ou vice-versa. Os grupos hospedavam-se em pensões que acolhiam exclusivamente artistas e nas quais as moças poderiam receber visitantes, servindo também como rendez-vous. Essas hospedarias localizavam-se nas proximidades dos cabarés, o que colocava as chanteuses em contato direto com os transeuntes da cidade moderna, que descobriam o prazer da caminhada, conquistando a rua. O espaço de sociabilidade pública da cidade moderna é democrático e nele convivem os diferentes estratos da sociedade (Maroneze 1994: 114).

Saindo das pensões, caminhando em direção ao cabaré, elas experimentavam a cidade e nela eram vistas. Chegando ao ambiente de trabalho, o que acontecia por lá? Segundo relatam as crônicas e anunciam os reclames publicados em jornais e revistas da cidade, uma grande variedade de espetáculos e repertórios eram apresentados e era intensa a circulação de artistas entre os diversos estabelecimentos.

4. Abrem-se as cortinas: repertório e performance das chanteuses Como afirma boa parte da literatura sobre a modernidade, Paris era o modelo a ser copiado e, por consequência, as artistas francesas despontavam como as preferidas, tanto pelos frequentadores como pelos donos dos clubes. Estes viam nelas o chamariz para seus estabelecimentos e também um elemento de distinção em relação aos demais clubes, “limitados” às atrações nacionais.

Figura 2: Anúncio do cabaré Clube dos Caçadores (Fonte: Revista Máscara, Ano 1, n. 11, 20 abr 1918, s/n.)

O status atribuído aos elementos internacionais reflete-se também no repertório escolhido pelas chanteuses. O repertório que cantavam também distinguia os clubes da elite dos mais populares, onde a diversão ficava por conta do repertório nacional. Cabarés frequentados pela elite econômica, social e política da capital gaúcha, contavam com

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a presença de cantoras detentoras de um certo capital cultural que lhes permitiam apresentar desde árias famosas de óperas italianas até a “música ligeira”, sobretudo canções adaptadas de operetas como A viúva alegre, e zarzuelas. As crônicas publicadas na imprensa local retratavam com pinceladas vivas estas performances, dando grande importância ao jogo do corpo dessas artistas e revelando uma perspectiva masculina dos espetáculos posto que, provavelmente, seus autores fossem homens. Outro gênero recorrente no repertório destas artistas eram as canções napolitanas, ao lado de tangos, provavelmente o platino, valsas, habaneras, cançonetas brasileiras e francesas cujo acesso era cada vez mais favorecido pelo crescente mercado das gravações em disco na região platina. Incluem-se ainda as revistas musicais, que devido à variedade de nacionalidades e turnês por diferentes países de seus grupos artísticos, eram montadas com o repertório de peças musicais acumulado pela intensa circulação, aproveitando as pièces de résistence das cantoras do elenco, proporcionando um espetáculo com grande variedade de gêneros musicais. As revistas musicais eram muito populares no Brasil, nesse período, revelando diversos talentos nacionais.

Além de apresentarem um certo grau de dificuldade, os repertórios escolhidos também contemplavam personagens femininas com alto conteúdo moral. As heroínas das óperas ou mesmo as mocinhas das operetas eram mulheres valorosas, que lutavam pelo amor de forma honrada, apresentando personagens romantizadas e idealizadas, que remetiam a uma imagem bastante diversa daquela mulher que enlouquece por causa de seu amor não correspondido a atira-se aos vícios, ou mesmo da messalina, comumente associada às artistas dos cabarés. Enquanto isso, em clubes cujo status estava associado à frequência pelas classes mais modestas, músicas nacionais, como cateretês, cantos caipiras e lundus, interpretadas por cantoras negras e mulatas, eram anunciadas nos reclames. Ainda assim, estas mesmas canções nacionais, recorrentes no repertório popular, eram interpretadas pelas cantoras dos cabarés da elite, entre árias de ópera e canções internacionais, dando mostras da popularidade que este gênero vinha adquirindo. Era prática comum incluir marchas e sambas que faziam sucesso no carnaval para comporem as revistas musicais. A marcha “A baratinha”, da autoria de Mário São João Rabelo, exemplifica essa prática. Sucesso no carnaval carioca de 1918, é citada den-

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tre o repertório apresentado nos cabarés da capital gaúcha, tanto nos estabelecimentos da elite quanto nos mais populares. O acompanhamento desse repertório era executado por uma orquestra ou por conjuntos que, ao que se infere a partir das imagens das salas de espetáculo dos cabarés (figura 1, por exemplo), não era muito numerosa. Também aqui pode-se perceber o aspecto da circulação e das trocas musicais, tão marcantes na cidade moderna. Os músicos que atuavam nas gravações fonográficas da Casa A Electrica, bem como nos clubes negros e mesmo nos teatros e cineteatros, provavelmente também trabalhassem nos clubes noturnos, revesando-se entre os diversos espaços musicais de Porto Alegre, fazendo com que circulassem, em diferentes meios, um variado repertório e práticas de performance. Muitos, entretanto, permaneceram anônimos, enquanto os maestros tinham seus nomes destacados e os clubes mais famosos contratavam nomes conhecidos nacionalmente para dirigir seus músicos. Considerando-se as escolhas diversificadas de repertório musical e suas performances ao vivo, pode-se compreender como essas cantoras negocia-

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vam suas identidades enquanto artistas mulheres a fim de melhor posicionarem-se no campo artístico oferecido pela modernidade urbana no Brasil.

5. Final Fenômeno social da modernidade, o cabaré estava inserido em um campo artístico-musical e social mais amplo, no qual outras relações de identidade e construção social estavam sendo negociadas. Por sua pluralidade de nacionalidades, de idiomas, de repertórios, o cabaré despontava como um exemplo de ambiente moderno e cosmopolita. O novo modo de viver encontrava nele sua plenitude, com espaço para vícios e vogas, para novas atuações sociais. Como observou Pilar Ramos (2010: 14), a performance pode subverter o significado da letra e do texto musical, por mais carregado que seja de preconceitos anti-femininos. E, portanto, subverter também a identidade atribuída às suas intérpretes. As mudanças modernizantes na cidade e nas sociabilidades incidiram sobre os códigos culturais de gênero como mostra a literatura sobre o tema. O palco do cabaré passa a ser também um palco onde as relações de gênero são negociadas no mundo moderno, onde a chanteuse liberta-se dos estereótipos socialmente construídos, da posição

de vítima muitas vezes estabelecida pelas representações masculinas, àquela que atribui novos significados que a empoderam como agente de sua própria vida. As novidades do mundo moderno, o dia-a-dia das grandes cidades em formação tem reflexo nessas negociações. As mulheres, nesse momento, lutam pelo direito ao voto, pela sua independência. Passam a circular pelas ruas da cidade, bem como buscam uma colocação profissional, que as tornem livres da dominação masculina.

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Referências Kushnir, Beatriz. 1996. Baile de Máscaras: mulheres judias e prostituição: As Polacas e suas associações de ajuda mútua. Rio de Janeiro: Imago. Luckow, Fabiane. 2011. “Chanteuses e Cabarés: a performance musical como mediadora dos discursos de gênero na Porto Alegre do início do século XX”. Dissertação de Mestrado em Música. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Maroneze, Luiz Antônio Gloger. 1994. “Espaços de sociabilidade e memória: fragmentos da ‘vida pública’ porto-alegrense entre os anos de 1890 e 1930”. Dissertação de Mestrado em História. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. McClary, Susan. 2002. Feminine endings: music, gender, and sexuality. Minneapolis: University of Minnesota Press. Monteiro, Charles. 2006. Porto Alegre e suas escritas: história e memórias da cidade. Porto Alegre: EDIPUCRS. Ramos, Pillar. 2010. “Luces y sombras en los estudios sobre las mujeres y la música”. Revista Musical Chilena 213 (64): 7-25. Willians, Allastair. 2007. Constructing Musicology. Burlington: Ashgate.

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Radamés Gnattali - O samba do “Malandro” gaúcho entre as estudantinas, jazz bands e cafés de Porto Alegre, RS (1920-1924) Rafael Henrique Soares Velloso1 1 _ Saxofonista e etnomusicólogo. Bacharel em Música com habilitação em Saxofone, pela Universidade Estácio de Sá (1998), Licenciado em Música (2010) e Mestre em Musicologia/ Etnomusicologia (2006) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente cursa o doutorado em Etnomusicologia no PPGMúsica da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]

Resumo: Nesta comunicação apresentaremos as etapas iniciais de um projeto de tese de doutorado em Etnomusicologia, que tem como objetivo o estudo das trajetórias do compositor, pianista e arranjador musical brasileiro Radamés Gnattali (1906-1988) e do musicólogo, antropólogo e ativista político americano Alan Lomax (1915-2002). Por ser esta uma pesquisa que trata das relações entre a música popular e as construções de identidade nacional, iremos tratar nesta comunicação o período de formação musical de Gnattali na cidade de Porto Alegre, e seus primeiros contatos com o ambiente cultural da capital, Rio de Janeiro, tendo em vista as transformações socioculturais da modernidade. Acreditamos poder, desta forma, contribuir com outras versões possíveis para a historiografia da música brasileira.

Palavras-chave: Radamés Gnattali; samba; redes; música popular.

1. Introdução Com o intuito de nos afinarmos com as propostas apresentadas pelos demais colegas que integraram nossa mesa e em sintonia com o tema simpósio do qual este trabalho se originou, iniciaremos o presente artigo com uma reflexão acerca do uso da biografia nos estudos acadêmicos focados em temas musicais. Mais especificamente, procuraremos discutir se o estudo da trajetória de um indivíduo, pode de fato contribuir para a compreensão de determinados sistemas normativos gerais. A trajetória do compositor e arranjador Radamés Gnattali, de forma semelhante aos outros compositores brasileiros do início do séc. XX, se caracteriza pela necessidade de uma rápida adaptação aos modernos meios de comunicação como a gravação fonográfica, o rádio, e a televisão, na perspectiva da severa mudança que a introdução destes novos

canais de difusão e entretenimento provocou na sociedade moderna, através da ampliação da circulação de pessoas, repertórios e artistas. Tomado como um exemplo típico desta situação, seu projeto de vida enfrenta instituições, diferenças regionais e, longe de atingir seus objetivos principais, seu sucesso ocorre muito mais pelo desvio em sua trajetória, o que possibilita sua inserção dentro da máquina de produção comercial de música popular e da propaganda nacionalista do Estado Novo encampada pela Rádio Nacional a partir de 1937, passando desta forma a fazer parte da historiografia de um importante período da música brasileira. Podemos supor que Gnattali além de um caso típico foi também um caso extremo, ou seja, por conta do desvio em sua trajetória passou a configurar, para alguns contextos, como um caso marginal. Tal dualidade nos exige que consideremos ambas as possibilidades analisando sua trajetória através das alternâncias em seu registro biográfico, para desta forma compor uma descrição que respeite

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sobretudo suas crises, dificuldades, êxitos e posições divergentes. Tendo como base este contexto plural descrito por Pierre Bourdieu em A ilusão biográfica como uma individualidade biológica socialmente estabelecida pela nomeação, propriedades e poderes à ela atribuídos que fornece (em alguns casos) “uma superfície social, isto é, a capacidade de existir como agente em diferentes campos” (Bourdieu 2006: 190), que procuraremos posicionar Gnattali junto a outras trajetórias que tiveram relação direta com as atividades em que se envolveu nos primeiros anos de sua vida profissional. Assim é através da análise do habitus individual que podemos estabelecer uma relação com o habitus do grupo. Segundo Bourdieu, tal modelo pode ser determinado a partir da disposição individual, se a considerarmos como uma variante estrutural dos demais. Vemos ainda que é por meio desta superposição de trajetórias que podemos identificar a existência da oposição entre normas e práticas, entre indivíduos e grupos, entre o ‘determinismo’ da vida acadêmico-musical ou a ‘liberdade’ da música popular. Desta forma nos deparamos com as incoerências que cercavam os diferentes agentes e que possibilitaram as transgressões destes sistemas normativos. Assim a desconstrução de narrativas

que dão ênfase ao individualismo artístico e às trajetórias espetaculares, e que ainda constituem boa parcela da historiografia da música brasileira, incluiriam como estratégias retóricas tanto a inclusão destas oposições e crises, como suas relações com as análises dos contextos e textos musicais, tarefa que esboçamos no presente trabalho.

2. Formação musical: entre o Conservatório e a Jazz Band do Café Colombo Radamés Gnattali apresentava desde jovem as características necessárias a um hábil concertista, tal como descrito por membros de sua família, em seu histórico escolar e nas críticas que foram publicadas ao longo de sua curta carreira como concertista. Além das capacidades técnicas de um bom pianista, Radamés desde seu tempo pueril apresentava uma leitura e escrita musical muito bem treinada, fruto de um convívio musical familiar intenso e da orientação de sua mãe Adélia Fossati, reputada como exímia pianista. Contudo não tinha muito interesse em estudar teoria musical ou composição, nutria sua atenção, sobretudo, na prática musical e no contato com músicos, estimuladas pelo nascente ambiente boêmio e multicultural de uma metrópole regional dinamizada pelo processo de modernização-industrialização de inícios do século XX.

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No conservatório musical da cidade, Gnattali estabeleceu seu primeiro contato com o ambiente acadêmico de ensino formal de música, aos moldes europeus, visando sua formação como concertista. Seu colega de conservatório, Luiz Cosme, que também nasceu de uma família musical e iria se tornar um reconhecido compositor de estética modernista, apesar da rotina de estudos que era exigida aos jovens estudantes, tinha muitos contatos entre diversos músicos da cidade e organizou, no período em que estudaram juntos, além de um bloco de carnaval outros conjuntos musicais para atuarem profissionalmente. Tal relação com a música popular iria acompanhar Gnattali nos quatro anos de estudos no conservatório, iniciado em março de 1921 e finalizado em dezembro de 1924, quando a convite de seu professor Guilherme Fontainha, Radamés foi para o Rio de Janeiro a fim de se preparar para seu primeiro recital público no Instituto Nacional de Música. Segundo entrevista concedida por Gnattali para a Associação Portinari2 ele teria ficado por seis meses na cidade na casa de seu professor estudando para a sua estreia, voltando a Porto Alegre somente em outubro, para participar de um recital no Thea2 _ Entrevista concedida em 20 de abril de 1983, para o programa depoimentos, conduzida pelas entrevistadoras Maria Christina Guido e Rose Ingrid Goldschmidt, como parte do projeto Portinari, coordenado pela PUC-RJ.

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tro São Pedro, realizar as provas finais do curso de piano e de um concurso promovido pela instituição de onde saiu consagrado e laureado com a medalha de ouro. A família de Radamés por ser composta de músicos e artistas, não podia sustentar sua atividade como concertista, assim o pianista, em seu retorno a Porto Alegre mesmo com o êxito obtido, teve de atuar como professor particular e músico profissional em diversos contextos como podemos notar através das fotos pertencentes ao acervo da família que integra o CDROM produzido por seu sobrinho Roberto Gnattali (2005)3, e dos anúncios de aulas particulares publicados nos jornais locais. Desde antes de sua ida ao Rio de Janeiro, a partir dos contatos feitos no conservatório, com personagens que transitavam entre os mundos acadêmicos e os circuitos boêmios que a Porto Alegre moderna oferecia, mediados por seus colegas de turma, como Luiz Cosme, Júlio Grau e Sotero Cosme, Radamés estabeleceu contato com a música popular feita em diferentes espaços da cidade. Por exemplo, durante o período carnavalesco, tocava cavaquinho em um bloco denominado Os Exagerados. Encontramos no jornal Correio do Povo de 23 de fevereiro de 1922, uma descrição acerca das ati3 _ Disponível também em www.radamesgnattali.com.br

vidades performáticas do grupo que, em forma de glosa, parodiava as estudantinas e performances musicais acadêmicas, num clima que remetia aos novos elementos estéticos da modernidade que estavam repercutindo nos círculos intelectuais do país neste início de década. Conforme registra o jornal: O lord Fumaça promete tirar faíscas de seu violino encantado. Para-Raio promete surpresas com o seu inseparável companheiro Rabecão. O Lord Folia já estudou mais de 50 improvisos e prepara-se para recitar um soneto de sua lavra que consta da insignificante quantidade de 349 estrophes... ...O Conde do Foles fará uma conferencia “patehumoristiphantastica” sobre o thema “Marimbau não é gaita” . (Correio do Povo, Porto Alegre, 1922: 4) Menos evidente e não por acaso, esta parodiagem estava prevista para ocorrer em Porto Alegre exatamente nos dias em que ocorria em São Paulo a ruidosa SAM (Semana de Arte Moderna), marco inaugural do modernismo nas artes no Brasil4. Os jo4 _ A Semana de Arte Moderna (SAM) é considerada um marco estético e histórico das artes no Brasil, ocorrido na cidade de São Paulo em fevereiro de 1922, organizada por um grupo de intelectuais de São Paulo liderado pelo musicólogo e literato Mario de Andrade, o evento foi muito discutido e contestado for diversas

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vens músicos falavam da vida moderna através das brincadeiras musicais e assim revelavam os elementos da modernidade a que estavam expostos no ambiente intelectual e plural das ruas centrais da cidade, onde conviviam com o conservatório, os teatros, os cinemas, confeitarias, os cabarés, lojas de disco, cafés e clubes sociais.

3. Experiência como músico profissional em Porto Alegre Enquanto Radamés apenas iniciava sua vida acadêmica e profissional em Porto Alegre, seu pai Alessandro Gnattali imigrante italiano, artesão de ideais anarquistas, que aprendeu a tocar fagote por conta própria nos momentos de folga, dirigia orquestras e associações musicais, dava aulas de música e fazia arranjos musicais.Foi um dos fundadores da Associação Musical Porto Alegrense, entidade que iria se transformar no Sindicato dos Músicos Profissionais de Porto Alegre. Era de se esperar, portanto, que ao perceber a tendência do filho primogênito em seguir seus passos, demonstrasse o desejo de lhe passar o seu ofício e indicá-lo para trabalhos musicais a partir de seus contatos, muitos dos quais músicos atuantes nas orquestras de cafés, cabarés e cinemas da cidade. correntes intelectuais no país, sendo alvo de inúmeras discussões, artigos e críticas publicadas pela imprensa no período.

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Dentre as diversas formações musicais em que Radamés trabalhou, as que mais se destacavam na cidade pela sua novidade sonora e de repertórios internacionais eram as jazz bands, e dentre elas a Ideal Jazz Band. A partir da biografia sobre o autor, Radamés Gnattali o eterno experimentador, de autoria de Barbosa & Devos (1986), pudemos notar que a foto, (fig. 1)5, tirada em 1924, identificada como sendo do grupo Jazz Colombo era na verdade a Ideal Jazz Band da Confeitaria Colombo. A mesma foto seria utilizada para a colagem da capa da partitura de um samba composto na mesma altura por Radamés - “Malandro”6, (fig. 2) - alardeado como um grandes sucessos da Ideal Jazz Band. Curiosamente, segundo relatos de familiares de Gnattali, malandro acabou sendo, também, o seu apelido na família.

5 _ Disponível em www.radamesgnattali.com.br 6 _ Disponível em www.radamesgnattali.com.br

Fig. 1: Ideal Jazz Band, Porto Alegre, RS ( c.1924)

Fig. 2: Capa partitura samba Malandro, com as fotos dos integrantes da Ideal Jazz Band e assinatura do compositor

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Márcio de Souza (2010) em seu trabalho sobre o compositor e chorão Otávio Dutra, contemporâneo do jovem Gnattali, chama atenção para o fato de alguns grupos musicais da cidade adotarem o nome dos estabelecimentos comerciais onde atuavam. Desta forma os estabelecimentos ofereciam ao público as jazz band como atração musical, e aproveitavam para divulgar outra atividade comercial bastante praticada na época, a venda de partituras. Era comum, segundo Souza, as casas de edições musicais como a D’Aló, que lançou a composição de Gnattali, publicar além das músicas de seu catálogo nacional e internacional, alguns compositores locais, o que indica a possibilidade de trocas musicais na formação dos repertórios entre grupos de diferentes centros urbanos. 4. Contextos da criação de “Malandro” A partir dos relatos acima, podemos inferir algumas ideias iniciais sobre o contexto em que a música “Malandro” foi concebida. Radamés relata em depoimento à historiadora e radialista Lilian Zaremba em 19787, no período em que ficou se preparandopara o recital no Rio de Janeiro, teve o primeiro contato com a música popular que era tocada nos cinemas e cabarés da cidade, conhecendo de perto músicos importantes para a formação da música 7 _ Arquivo pessoal da pesquisadora - Rio de Janeiro.

popular urbana do Rio de Janeiro como o famoso pianista e compositor Ernesto Nazareth, o que certamente o marcou na composição do samba “Malandro” e em suas atividades musicais, no seu retorno a Porto Alegre. No mesmo depoimento, Radamés ao falar sobre o choro e o samba na década de 20, afirma que em Porto Alegre ninguém sabia como se tocava a música popular, e samba mesmo era no Rio de Janeiro, tal como tocado pelos “pianeiros” Nonô, Zequinha e Cardoso de Menezes. Em entrevista com o neto professor de Gnattali, o pianista Guilherme Fontainha, fomos informados sobre o fascínio que ambos nutriam pelo estilo dos pianistas cariocas deste período. Tal fascínio fez inclusive que seu mestre passasse a administrar a partir de 1925 uma tradicional casa de comércio musical no centro do Rio de Janeiro, a Vieira Machado, local onde os pianeiros e o próprio Nazareth tocavam e vendiam suas partituras. Podemos inferir que esta observação atenta de Gnattali aos pianeiros, com quem, segundo o autor aprendeu a tocar samba, pode ser melhor compreendida se a tomarmos não só do ponto de vista sonoro, mas também enquanto uma performance. Gnattali, que neste momento estava sendo exposto pela primeira vez à música popular carioca, iria

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tornar-se posteriormente reconhecido justamente por esta facilidade em incorporar a linguagem da música popular nos arranjos, composições ou performances ao piano. O músico, ao recriar esta performance, atinge o reconhecimento dos seus pares pela agilidade e versatilidade com que lidava ao apresentar tais elementos, bem como pela ousadia em trazê-los a um contexto ainda pouco receptivo a tais práticas, tais como as salas de concerto que eram destinadas à música erudita. 5. Análises – mixagens dos textos e contextos musicais Considerando-se o ambiente e as práticas musicais ao qual o compositor foi exposto neste primeiro contato com a música popular, partiremos então para os comentários acerca da partitura do samba “Malandro”. Em seu livro Acertei no Milhar (1982), Claudia Matos refere que o termo malandro, que dá o título a uma das primeiras composições de Gnattali, teria tido origem no Rio de Janeiro nos anos vinte no contexto dos grupos que cultivavam o samba em caráter informal. A palavra malandro teria sido posteriormente relacionada a um estilo de vida, a uma espécie de vadiagem ligada à prática da música popular, atribuída, por vezes de forma jocosa, como

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um apelido dado pela imprensa e pelo público consumidor aos sambistas que se formaram em torno do bairro do Estácio e da primeira escola de samba carioca Deixa Falar. Avessa às políticas ditatoriais do Estado Novo que pregava o culto ao trabalho, a expressão ganhou um grande espaço na mídia, antes de ser oficialmente proibida, no final da década de 30.

estabelecido para o acompanhamento das vozes da versão de Gnattali, possuía também elementos em comum aos sambas que começaram a ser gravados por volta de 1917, claramente amaxixado, (padrões 1 e 5) utilizado, por exemplo, por João da Bahiana na gravação do samba “Pelo Telefone”, e pelo grupo de Pixinguinha no acompanhamento do samba “Les Batutas”.

Mas o que podemos inferir deste samba de Gnattali a partir da redução da performance da jazz band para uma partitura para piano? A análise da escrita musical do arranjo, que segue a forma rondó muito utilizada nas composições executadas pelos grupos de Choro, apesar de não representar a performance “real” dos músicos, revela nos acompanhamentos harmônicos da parte A e B, e nas cadências presentes na parte C, conforme indicação da tabela abaixo, a representação de padrões rítmicos comuns à polca e ao tango brasileiro, (padrões 2 e 3) tal como utilizado, por exemplo, pelo compositor e pianista Ernesto Nazareth em suas músicas. Tal relação se estabelece em parte devido ao contexto da performance dos pianistas, que atuavam em cinemas e cafés a partir de um repertório comum. Contudo, se pensarmos em Malandro em relação a outras composições denominadas samba, podemos observar que o padrão

Tabela 1: padrões de acompanhamento do samba “Malandro”

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Percebemos ainda, que é através das linhas melódicas sincopadas e das cadências típicas dos grupos de choro presentes na parte C (padrões 5 e 6), que podemos identificar um jeito malandro e desafiador de se tocar, tipificado pelos grupos cariocas, tal como referido por Piedade (2005) através do que denominou‘Tópicas: Brejeiro’,em umaadaptação para a música instrumental brasileira da linha conceitual proposta por V. Kofi Agawu (1991). Conforme Piedade: O brejeiro na musicalidade brasileira é brincalhão, difere do gesto que se entende por scherzando, por seu caráter menos infantil e mais malicioso e desafiador. A figura do malandro na cultura carioca e brasileira em geral alude a este tópico: o malandro que ginga com os pés é esperto e competente (na ginga), desafiador (quem me pega?). A expressão musical deste caráter da brasilidade se dá através das ‘Tópicas: Brejeiro’. (Piedade 2005: 4) Assim foi tendo em vista o significado do termo “malandro”, associado na época à esperteza de alguns personagens ligados a música popular, nos espaços deixados pelo antagonismo entre o capital e o trabalho e incorporado na performance practice de músicos cariocas, principalmente entre os pia-

neiros com quem teve contato no período, que Radamés incorporou na sua criação musical um imaginário do samba que mesclava elementos da sua própria experiência musical em Porto Alegre, como por exemplo as breves citações melódicas alusivas à música folk gaúcha, produzindo assim uma versão de samba, que podemos inferir como uma nova configuração da ‘Tópicas: Brejeiro’, sugerida por Piedade (2005). Ao identificarmos estas diferenças musicais, estando cientes dos mitos construídos sobre a formação do samba no Rio de Janeiro, conforme descrito por inúmeros autores, acreditamos que uma nova leitura ocasionada pela revisão crítica destas interpretações, principalmente à luz de novos fatos e indícios históricos como os oferecidos pela reflexão acerca da trajetória de Gnattali e da partitura de “Malandro”, pode nos mostrar que tal construção foi de fato historicamente condicionada, principalmente pela recorrência de narrativas construídas em cima das trajetórias dos músicos, que eram descritos como fiéis representantes da tradição, mas que talvez se valeramdos mesmos processo que Radamés para a sua criação musical. Para Jason Toynbee, em seu artigo Music, Culture and Creativity (2003), a criatividade musical deve ser tomada como um processo cultural, mais do

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que como o produto de um indivíduo, tomado no conceito romântico, como gênio e único responsável por sua produção. A nova produção musical ou a música que possui um sentido original, é feita por atores sociais que trabalham em rede de forma colaborativa, e que por vezes, entram em conflito com a indústria cultural e a audiência. O tema da autoria musical é recorrente nos trabalhos etnomusicologicos. John Blacking, no seu livro Music, Culture & Experience (1995), afirma, contudo, que é difícil definir precisamente quando a música produzida passa a ser mais do que um elemento de socialização ou de função social, transformando-se em um movimento estético ou mercadológico específico. Podemos inferir, portanto, apenas que Gnattali tinha, no contexto de sua formação profissional em Porto Alegre, cidade em vias de modernizaçãoe deexpansão de sua diversidade cultural, uma grande capacidade de combinar tais representações de forma distinta dos outros compositores populares do período. O samba “Malandro” representa, portanto, uma ocorrência relevante ao pensarmos na desconstrução das narrativas sobre a música brasileira e suas origens, apresentando desta forma novo ângulo que acreditamos ter relação direta com a formação das identidades nos diversos contextos de criação e divulgação da música popular no Brasil.

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6. Conclusão Procuramos realizar neste breve artigo, uma análise inicial acerca dos processos de criação e representação musical protagonizados pelo compositor e arranjador Radamés Gnattali, com uma ênfase sobretudo no estudo de sua trajetória, que acreditamos ter influência direta tanto nos discursos posteriores sobre a formação da música popular brasileira, como nos anos 30 e 40, chamada pelos historiadores emblematicamente como “Época de Ouro”, e que caracteriza-se também como o período de maior produção musical de Gnattali. Tais processos estão diretamente ligados a trajetória de um dos mais emblemáticos músicos e arranjadores do período, que orbitando em torno de um gênero igualmente emblemático como o Samba, acreditamos poder nos auxiliar na reflexão sobre o papel da socialização de músicos oriundos de outras regiões do país na construção desta representação musical centrada na música popular do Rio de Janeiro. Procuramos ainda, a partir da rede social que se formou em torno de Gnattali no período de sua formação e inserção no mercado musical, bem como do espaço social em que o autor estava inserido, apontar alguns indícios de como a mesma foi expandida a partir do desvio de sua trajetória, determinada já nos primeiros contatos que teve com a

música popular tanto em Porto Alegre como no Rio de Janeiro. Desta forma procuramos mostrar como, a partir das atividades de um único personagem, podemos perceber o comportamento e a organização social em torno da cultura brasileira em um período considerado fundamental para a compreensão da construção da música popular como símbolo de representação nacionalista. As análises baseadas tanto nos contextos históricos como nos elementosmusicais, nos proporcionaram uma aproximação às performances dos músicos da época, contrapondo tais aspectos com as práticas sociais que se realizavam em torno da música e das posteriores narrativas sobre suas origens. Acreditamos que futuramente, no contexto desta pesquisa, tais análises, aliadas às metodologias e teorias contemporâneas sobre as práticas culturais das chamadas “sociedades complexas”, possam nos aproximar mais de uma leitura desveladora de algumas das motivações que estão por detrás destas práticas musicais e que foram responsáveis pelos movimentos culturais e políticos, fundamentais para a criação de uma determinada identidade brasileira na qual se baseia a atual crítica em torno de sua representação.

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