Radamés Gnattali - Uma História da Música Popular de Porto Alegre - Capítulo VII

September 20, 2017 | Autor: Arthur de Faria | Categoria: Radamés Gnattali, Música Popular Brasileira
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Radamés Gnattali (e Alexandre Gnattali e Chiquinho do Acordeom e Edu da Gaita…) Radar é água alta, É fonte que nunca seca, É cachoeira de amor, É chorão rei de peteca. O Radar é concertista, compositor, pianista, orquestrador, maestrão. E, mais que tudo, é amigo, Navega junto contigo, É conta de doação. Ajuda a todo mundo E mais ajudou a mim. Alô, Radar, eu te ligo, Vamos tomar um chopinho. Aqui fala o Tom Jobim. Tom Jobim, claro Quem ouviu jamais esquece. Portanto, você certamente lembra. Exemplo um: a suave cama – de flauta, clarinete, violinos, violoncelo, contrabaixo, piano e uma sutil bateria – que levanta seus lençóis para receber pela primeira vez uma valsa popular brasileira. E aí a maviosa voz do jovem Orlando Silva deita e rola. A música é Lábios Que Beijei, o ano é 1937 (no mesmo disco, com a mesma instrumentação, o samba Juramento Falso). Exemplo dois: o tcham-tcham-tcham, tcham-tcham-tchã…TCHAM! tcham-tcham-tcham, tcham-tcham-tchã…-TCHAM! que introduz Aquarela do Brasil, o cartão de visitas nacional desde 1940. 1

Exemplo três: o revolucionário tratamento camerístico, que soa bossa-nova 12 anos antes da Bossa-nova e faz Dick Farney quase sussurrar o samba-canção Copacabana para os 16 músicos que o cercam (oito violinos, duas violas, cello, oboé, piano, violão, contrabaixo e bateria tocada com escovinhas). Em 1946. Mas trabalhemos com a possibilidade do amigo aí não ser lá muito afeito à música anterior ao advento do LP. Então… Exemplo quatro: a gloriosa bandinha pontuada por uma tuba que ilustra o clima marcha-rancho dos anos 1930 do Rancho da Goiabada, cantado por João Bosco em 1976. Nada disso tem registro na memória do amigo leitor? Então para de ler esse negócio e vai ouvir uns discos. (…) Voltou? Pois então.

Radamés bebê

O autor de todas essas revolucionárias façanhas do arranjo nacional é o mesmo. Batizado Radamés Gnattali, foi brilhante não só como arranjador (escreveu, creia, mais de 10 mil arranjos), mas também em todas as outras áreas em que atuou: pianista, maestro, 2

band-leader, compositor erudito e popular. Não por acaso, ganhou no final da longa vida o apelido de Radar. E era mesmo um radar. Um radar que apontou, captou e sinalizou o que de melhor se fez em música brasileira ao longo de mais de 60 anos. E também um emissor de sinais captados por várias gerações de músicos. Gente como dois dos maiores violonistas que o país já viu: garoto, nos anos 1950, e Rafael Rabello, nos 1980, ou nosso maior compositor, Tom Jobim (e, curiosamente, quando ainda morava em Porto Alegre, Radamés chegou a musicar poemas de Jorge Jobim, o pai de Tom, que era gaúcho). O amor de Antônio Carlos Jobim por Radamés era tanto, que, numa fria manhã de inverno de 1991, cedíssimo (a essa hora os chatos ainda estão dormindo), ele falou do mestre por quase uma hora para o redator destes capítulos. Leu o poema que está aí em cima, definiu Radamés como um gauchão misto de sangue italiano e alemão, chegado em vinho, chope e chimarrão e emocionou-se várias vezes. Naquele momento, Tom comemorava o fato de darem o nome de Gnattali a uma sala do Auditório Araújo Vianna – um dos maiores locais para shows em Porto Alegre, situado a poucas quadras da casa onde Radar nasceu: Radamés era uma alma adiantada, um espírito avançado, um precursor que escrevia música para o futuro. Um pai. Não só tinha talento, como era um homem muito generoso. *

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Radamés nasceu aquariano. O ano era 1906, e a data, o mesmo 27 de janeiro que deu ao mundo Mozart e Waldir Azevedo. Veio ao mundo em sua casa, na rua Fernandes Vieira, bairro porto-alegrense do Bom Fim. Foi um dos tantos meninos-prodígio que a música do Rio Grande do Sul teve no começo de século XX. Mas se Dante Santoro se diplomou em flauta aos 15 anos e Octavio Dutra compunha desde essa idade, Radamés ganhou longe: começou no piano aos três anos, com a mãe. E tinha nove e ainda era gago quando, em 1915, ganhou seu primeiro prêmio: uma medalha dada pelo Cônsul da Itália, numa solenidade na Sociedade Italiana. Seu mérito: reger com absoluto sucesso uma orquestrinha de seis músicos em – pasme! – arranjos escritos por ele. E não era só: com essa idade, nosso Mozart do Bom Fim já se saía bem ao piano e ao violino 3

(estudaria o instrumento por oito anos, o que muito lhe ajudou na hora de escrever para cordas).

Adélia Fossati, a mãe

Era o primogênito e a estrela maior de uma família italiana cheia de músicos, na qual também despontou a irmã pianista Aída Gnattali, o irmão arranjador, compositor e futuro colega da Rádio Nacional Alexandre Gnattali e a prima Olga Fossati – violinista erudita de destaque, nascida em Pelotas. Antes disso, havia a mãe, Adélia Fossati Gnattali, pianista e dona de casa, que acabou sendo a primeira professora de música dos fihos. E o pai,Alessandro Gnattali, também professor e maestro. A paixão dos Gnattali pela música em geral e pela ópera em particular era tão intensa que todos seus filhos trabalhariam com música, vários deles sendo batizados com nomes de personagens de Verdi: Radamés, Ernani (que ganharia a vida como copista na Rádio Nacional) e Aída. O quinteto de irmãos se completava com a caçula pianista Maria Terezinha – que morreria muito jovem.

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Alessandro realizando seu sonho

Alessandro havia chegado ao Brasil em 1896, para fazer a América, como tantos outros italianos pobres e imigrantes (como Savério Leonetti, capítulos atrás). Contou o filho, em entrevista ao Pasquim, 80 anos depois: Meu pai era pobre, operário. Veio pra cá ver se melhorava a vida. Seu irmão para se formar em medicina tinha gasto todo o dinheiro da família. O Gnattali pai era marceneiro, mas tocava bandolim e tinha um sonho: ser músico profissional. E aí aplainou, serrou, pregou, pintou e lixou seu sonho até que, já nem tão jovem, conseguiu mudar sua vida. Estudou piano e contrabaixo, se tornou fagotista e, quando morreu, em 1942, era um respeitado maestro. Como bom trabalhador italiano, era também anarquista de carteirinha. Aí, já músico, virou líder sindical. À frente do Sindicato dos Músicos de Porto Alegre, organizou em 1921 a primeira – e, ao que se sabe, única – greve que a categoria fez no estado. A luta foi demorada, mas concertos beneficentes para o fundo de apoio à paralisação seguraram as pontas até a vitória, com conquistas salariais e trabalhistas hoje esquecidas.

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Sim, até fagote Radamés tocava

Radamés cresceu nesse ambiente festivo e agitado, regado a vinho, música e política. A medalha ganha do cônsul garantiu a Alessandro a maior das alegrias: a certeza do talento musical do garoto. E aí, quando o guri que odiava o Ginásio Anchieta fez 14 anos, os pais, liberalíssimos, lhe deram duas opções: continuar os estudos convencionais ou aprender música às ganhas, pra ser, no mínimo, concertista internacional. Claro que ele escolheu a música.

Aos 18, o primeiro recital no Rio

O Conservatório de Porto Alegre (futura Escola de Belas Artes, hoje Instituto de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Sul) era, desde então, uma sólida instituição de ensino de música. Ajudado 6

pela excelente formação musical caseira, do exame de admissão o pequeno já foi mandado direto pro quinto ano de piano. Tinha 14 e logo seria o aluno preferido do renomado pianista e professor mineiro Guilherme Fontainha, a grande estrela da casa. Avô do compositor e cantor Carlinhos Vergueiro e do pianista Guilherme Vergueiro, Fontainha tinha vindo para o Rio Grande do Sul direto de estudos em Paris e Berlim – e concertos por toda a Europa. Naquele momento, além de titular da cátedra de piano, era também diretor do Conservatório. E um apaixonado pelo ensino (tanto que, quando se mudou para o Rio de Janeiro, tinha fundado outras oito escolas de música Rio Grande do Sul afora). Exatamente esse sujeito apaixonado e encantador se encantou pelo garoto talentoso e obstinado, e resolveu apadrinhá-lo.

Guilherme Fontainha

Paralelo aos estudos eruditos, as seduções da música das ruas entravam pela janela dos Gnattali. Resultado: no começo dos anos de 1920, o menino já tinha somado às suas peripécias ao violino e piano mais um instrumento erudito: a viola. Mas, correndo por fora, começava a construir uma fama de craque no cavaquinho e no violão (ainda tocaria razoavelmente flauta, clarinete, sax e trompete). Sessenta anos depois, lembraria com saudade: Nós formávamos, eu, o Sotero Cosme, o Luís Cosme, o Júlio Grau e mais alguns músicos, um pequeno bloquinho de carnaval, 7

meio moderno na época – Os Exagerados. Cada um tocava um instrumento. E como não podia levar o piano, comecei a tocar cavaquinho. Suas estripulias pela música ligeira não o afastariam dos estudos com Fontainha – até porque o mestre também ouvia muitos discos de pianistas de jazz junto com o aluno, pra analisarem juntos as manhas dos então chamados pianeiros. Além do que, era com a música popular que ganhava algum dinheiro tocando piano nas sessões ainda mudas do Cine Colombo. Orçamento reforçado nos bailes e saraus baseados em pot-pourris de operetas francesas e italianas, valsas, polcas e schottischs, onde tocava com os Cosme nos violinos e a flauta de Júlio Grau. Tudo muito belle-époque (só pra constar: se o Colombo tinha Radamés, o Cine Avenida tinha Armando Albuquerque. E o pessoal ainda se ligava nos filmes!).

Bloco Os Exagerados -- ele e Julio Grau

Forma-se em piano em 1924, com grau máximo e Medalha Araújo Vianna, de ouro. Aí, levado por Fontainha, dá um concerto consagrador no Rio, na Escola Nacional de Música, que Guilherme estava dirigindo. Chega uns dias antes pra se preparar, mas acaba passando todo o tempo livre espiando pra dentro do Cine Odeon, com o ouvido espichado. É que dinheiro pra pagar as entradas não havia, mas não eram os filmes que lhe interessavam, e sim o pianista que, como ele, tocava no cinema, só que com um status melhor: no saguão

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de entrada. O tal pianista era tão ligado ao Odeon, que havia até composto um tanguinho brasileiro em homenagem ao cinema. Odeon, tanguinho… Sim! Era Ernesto Nazareth, possivelmente o compositor popular mais respeitado da época. Radamés: Você pensa o quê? Ernesto Nazareth tocava (…) e ninguém dava a mínima pra ele. Era um sujeito comum, simples, tocava na sala de espera! (…). Quem não podia pagar ficava na rua mesmo, ouvindo. (Essa é a estória que está em todas as biografias de Radamés, mas derrubemos mais um mito: o pesquisador Jairo Severiano, que trabalhou bastante com Radamés e conheceu bem o maestro, conta que Ernesto Nazareth tocou no Cine Odeon somente na primeira década do século e início da segunda. Radamés insistia nessa fantasia em que dizia ter ouvido Nazareth no cinema. Realmente, ele deve tê-lo ouvido na Casa Carlos Wehrs, onde Nazareth tocou durante bastante tempo nos anos 20, época em que o Rada esteve no Rio.) *

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Como bem lembraria Tom Jobim, Radamés passou a vida tomando chimarrão.

Empolgado com a possibilidade de estar tão próximo de um de seus heróis, Radamés foi ficando no Rio de Janeiro. Comprou um lote de partituras de Nazareth e se trancou a estudá-las na pensão onde

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estava, na Rua Larga. Só saía dali pra ir espiar o próprio Ernesto e ver como ele interpretava suas próprias partituras. Depois de seis meses, tomou coragem e foi se apresentar pro mestre. Tocou, tocou, e ganhou total aprovação. A partir dali, segundo muitos, Radamés seria, para sempre, o maior intérprete de Ernesto Nazareth, diplomado de fato pelo próprio. Mas esse profundo enamoramento popular não atrapalhou seu desempenho de concertista em ascensão. Na noite de 31 de julho de 1924, o sucesso foi grande. Instituto Nacional de Música. Salão lotado, plateia seleta, alguns dos mais importantes críticos musicais cariocas ansiosos pra ver o pupilo de Fontainha. No dia seguinte, sai n´O Jornal: A execução teve certa grandeza que só os intérpretes privilegiados podem imprimir (…) O estreante de ontem tem dezoito anos e a intrepidez dos que não conhecem o medo dessa pavorosa entidade misteriosa que é o grande público… Arrasou. Se tivesse pai rico, tava feito. Era só esperar uns 10 anos que conseguiria começar a ganhar dinheiro como concertista e recitalista erudito. Mas não era bem assim. Como ele contou em entrevista na década de 1970: Eu tenho muita inveja desses pianistas todos, como o (Arnaldo) Estrella, o (Arthur) Moreira Lima, esses pianistas todos que vivem disso, porque o que eu gosto, mesmo, é de tocar piano. Mas para isso tem que se estudar, no mínimo, oito horas por dia, não se preocupar em ter que trabalhar para ganhar dinheiro. Eu gostaria de ser um grande pianista. Não ajudou muito que, um ano depois desse concerto carioca, tomasse pau de parte da crítica repetindo o mesmo programa do ano anterior (Liszt e um dos filhos de Bach) num recital no Conservatório Dramático Musical de São Paulo – dirigido por ninguém menos que Mário de Andrade. Opinião, registre-se, não compartilhada por Fontainha, que novamente telegrafou empolgado para a família Gnattali: Grande triumpho concerto hontem. Acabou voltando novamente para Porto Alegre, pra mesma vidinha de tocar pros outros se divertirem em cinemas e bailarecos. 10

Por essa época, o igualmente jovem flautista Dante Santoro também tinha tentado o Rio de Janeiro e voltado para os braços de seu mestre Octavio Dutra. E aí vale lembrar aquilo de que já falamos: Dutra praticamente coordenava a vida musical de Porto Alegre nesses anos de 1910 e 20, tendo dado aulas de música pra toda a geração de Radamés. A exceção notável era… Radamés. Tem aquela confusão entre Octavio e Alessandro Gnattali (que contamos no capítulo sobre Dutra), mas também é fato que, com um mestre internacional e dedicadíssimo como Fontainha, quem precisaria de Octavio Dutra?

O Quarteto Henrique Oswald. Sim, tem cinco na foto. Era um contrabaixista no reforço.

E lá ia o Gnattali filho levando a vida. Dava aulas de piano, tocava com os inseparáveis irmãos Cosme e resolve até formar com eles não um novo bloco de Carnaval, mas sim o Quarteto de Cordas Henrique Oswald. Os irmãos nos violinos, Radamés na viola e um violoncelista cujo nome se perdeu. Mandavam ver num repertório que ia de Mozart a Mendelsohn, excursionando por várias cidades do Estado. Ensaiavam diariamente e se tornariam uma das melhores formações de música de câmara de então: Foi um período importante para mim. O grupo de cordas é a base da sinfônica. Quem sabe trabalhar com ele, sabe usar a orquestra.

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Durante toda a segunda metade da década de 1920 ficou assim, numa espécie de compasso de espera. Sempre trabalhando, muito e com destaque, tanto em recitais quanto em bailes, cinemas e teatros. Mas vendo se distanciar a cada ano que passava o sonho de concertista.

Uma raríssima foto com Radamés atacando de violonista de choro. Em Porto Alegre ele já ia de Liszt no piano a maxixe no violão e cavaquinho.

Aí, em 1929, Fontainha mais uma vez o chama ao Rio. Ia apresentar um concerto reunindo os melhores alunos que tinham passado por ele, e Radamés não podia faltar. Para melhorar, o concerto aconteceria no prestigioso Theatro Municipal, e com orquestra sinfônica! Era sua primeira chance de tocar com orquestra. Radamés foi, arrasou… …e voltou mais uma vez pra casa.

O pessoal indo pra revolução... Radamés é o da ponta direita. 12

Mas aí chegou 1930, marcando tanto a história do Brasil quanto a de nosso jovem pianista. Pouco depois de estrear como compositor, mostrando dois Prelúdios para Piano no palco nobre do Theatro São Pedro, o rapaz embarcou com o pelotão do Tiro de Guerra nº 4 para defender as hostes getulistas na Revolução de 30. Estava, como sempre, ladeado pelos irmãos Cosme e, na verdade, queria era ir pro Rio, nem que fosse à bala. Mas mal estavam chegando a Florianópolis quando a Revolução acabou. Washington Luís estava deposto, e o gaúcho Vargas subira ao poder bem mais fácil do que imaginava. Só que aí já era demais. Radamés tinha decidido que agora ia de qualquer jeito. Avisado por Fontainha, tentou uma vaga num concurso de professor no mesmo Instituto Nacional de Música que já lhe tinha dado tantas alegrias. Mas o concurso acabou não acontecendo: Eu já sabia que isso aqui era uma esculhambação. Naquele tempo já funcionava o negócio de pistolão (…) Larguei tudo em Porto Alegre e vim pra cá. Fiquei estudando quatro ou cinco meses (…) mas não houve concurso nenhum. Fez ainda alguns concertos, mas acabou resignando-se ao fato de que não ia dar pra seguir carreira de solista erudito. Recém-casado (em 1932), mandara vir de Porto Alegre a mulher Vera Bieri, também pianista, e as contas pra pagar lhe provavam que já não era nenhuma criança. Tinha 24 anos. E a música popular brasileira começava a ganhar um gênio. (E aqui uma história curiosa. Numa das crônicas que escreveu em 1963 para o jornal Última Hora, de Porto Alegre, Lupicínio Rodrigues fala de Radamés. E conta que ele teria lhe dito depois de um show de Lupi numa boate de São Paulo: Eu tenho uma grande mágoa de nossa terra, que nunca pude esquecer. Quando me formei músico, fiz um concurso para professor. Embora tenha passado com distinção, não fui aceito para lecionar no Belas Artes. Foi por isso que envergonhado eu fui para o Rio de Janeiro, onde me abriram todas as portas para que eu fosse o que hoje sou. Por isso prometi nunca mais pegar em instrumento na minha terra. Passo minhas férias anualmente em São Leopoldo, onde mora

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minha família, mas nem vou a Porto Alegre, para não passar por grosseiro caso receba algum convite para tocar. É difícil saber o que haveria de verdade nisso, mesmo descontando-se os teores alcoólicos de declarante e/ou ouvinte. Teria Lupicínio confundido as histórias? Radamés poderia estar falando justamente desse concurso no Rio, ou há a possibilidade do cronista ter inventado a estória toda, como aposta Jairo Severiano: Esta afirmação do Lupicínio está errada ou mal contada. Nunca ouvi de Radamés (participei de dois depoimentos dele) qualquer referência a concursos no Rio Grande do Sul. O que houve foi uma recusa do governo gaúcho de patrocinar-lhe uma bolsa de estudos, isso lá pelo final dos anos 20. Sua eterna bronca era sobre uma promessa, não cumprida pelo presidente Vargas, de realizar um concurso para lente catedrático do I.N.M., promessa que levou o Rada a se mudar para o Rio. O concurso nunca se realizou: “o Getúlio nomeou dez empistolados e me deixou na mão”, queixava-se o mestre…) Tocando piano como tocava, não foi difícil arrumar emprego em algumas das mais prestigiadas orquestras de baile cariocas. Não que isso desse muito dinheiro: Aquele era o tempo da miséria, da fome. Todo mundo, eu, os músicos, o Murilo Mendes (…) a gente se reunia na casa do Portinari em Laranjeiras. (…) O Portinari ficava pintando o tempo todo… a gente batendo papo. Aí, um dia, vai parar no Cassino do Éden, que ficava numa estação de águas em Lambari, Minas Gerais. Numa tarde tá lá, sozinho, estudando piano, quando um rapazote vai se chegando, se chegando, batucando nas mesas e tal. Ao lado de Radamés, havia uma bateria. Sem parar de tocar e sem saber se o sujeito era músico ou só um batucador maluco, ele lhe endereçou um lacônico senta aí. O rapazote sentou, tocaram juntos o fox Gato no Telhado, e nunca mais se separaram.

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Orquestra All Star, da Rádio Nacional, 1936. No piano, Radamés. Na bateria, Perrone.

Era Luciano Perrone, passando a lua-de-mel no hotel do cassino. Começava ali outro casamento de ambos, e que duraria até que a morte os separasse. Ao longo dos exatos 60 anos em que tocaram juntos, entre muitas outras façanhas, criaram o conceito de bateria brasileira. Radamés ainda não sabia, mas Luciano já era então o cara que, a partir das gravações da Orquestra de Simon Bountman, em 1927, adaptou o instrumento criado pelas jazz-bands americanas para a realidade do samba, da marchinha, do maxixe… Amigo de baterista, não deu outra: o fraque erudito tava definitivamente trocado pelo fraque das orquestras de baile. Adeus pros sonhos de seu pai, que o imaginava disputado pelos mais prestigiados palcos eruditos europeus. Palcos onde, ironicamente, ele se apresentaria, sim. Mas em 1960, graças à mais pura música popular, com seu impressionante sexteto na III Caravana Oficial da Música Popular Brasileira. Passando pela França, Alemanha, Itália, Inglaterra e Portugal e, como bem lembrava Perrone quarenta anos depois, fazendo um sucesso espetacular. Mas pulamos umas três décadas. *** Em 1932, Radamés é contratado pela RCA Victor, gravando muito como pianista das três orquestras regidas ali por Pixinguinha: a Diabos do Céu, a Típica Victor e a Guarda Velha. Aproveita o contrato e monta seu primeiro grupo com Perrone: o Trio Carioca, que se completava com o sax e o clarinete de Luís Americano. Criado em 1937 por encomenda de Mister Evans, o todo-poderoso diretor

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americano da RCA brasileira, o trio tinha a mesma formação usada então pelo popularíssimo clarinetista americano Benny Goodman e gravaria um único disco de 78 rpm. Mas que disco! Estão ali dois choros de Radamés, e um deles, Cabuloso, é até hoje de uma surpresa e um frescor surpreendentes – está no CD 7 da caixa Memórias Musicais da Sarapuí/Biscoito Fino. O trio colocaria Gnattali pela primeira vez na vanguarda do processo evolutivo do choro. Não seria a última. Mas voltemos a Perrone. Sempre feliz de encontrar alguém a fim de escutar suas estórias, o velho baterista, falecido em 2001, aos 93 anos de idade, era uma enciclopédia de causos. Como, segundo ele, a verdadeira versão de uma das lendas mais clássicas da música brasileira: a criação do arranjo de Aquarela do Brasil. Um dia, cansado da incomodação de dirigir um naipe de percussionistas “iletrados” (que não liam partituras) nas gravações dos arranjos de Radamés pra RCA Victor, Perrone sugeriu: - Ô, Radamés, por que você não muda a forma orquestral? Ao invés daquela gente toda, por que é que você não experimenta usar os outros instrumentos da orquestra também pra fazer ritmo!? Resposta-resmungo-padrão Radamélica: - Porque não ia dar certo. No dia seguinte chegou com o arranjo pronto. Tinha dado muito certo. Aproveitando uma sugestão de divisão rítmica ditada pelo próprio baterista na sala do faz-tudo da Nacional, Almirante, os dois tinham acabado de inventar a orquestração de samba. Até então, samba não era pra ter orquestra. O que se fazia, no máximo, era escrever umas melodias pros sopros, deixando o balanço por conta dos instrumentos de base. A partir desse arranjo fundador, rapidamente Radamés foi desenvolvendo uma linguagem orquestral que nada a tinha a ver com o que era feito antes dele. E pouco com as orquestrações americanas para a mesma formação (trumpetes, trombones, saxofones & clarinetes, piano, baixo e bateria). Estávamos no final da década de 1930, e a primeira música arranjada assim não foi, como reza a lenda, Aquarela do Brasil, mas, 16

sim, Ritmo de Samba na Cidade - que, apesar de nunca lançado comercialmente, acabou creditado como composição de Luciano Perrone e Radamés Gnattali. A Aquarela, na verdade, foi a consagração da ideia. (Radamés chegou a contar uma outra versão pra essa mesma história. Segundo ele, o riff da Aquarela partiu de uma sugestão do próprio Ary Barroso: Eu apenas botei no lugar certo. O Ari queria que eu usasse o tema nos contrabaixos, mas não ia fazer efeito nenhum, ia ficar uma droga. Eu disse: “Ary, faz a música que eu faço o arranjo”. Então botei cinco saxes fazendo aquilo. O que eu inventei foi o arranjo pra botar a sugestão no lugar certo. Radamés e Perrone estão mortos. Ary, então, mortíssimo. Jamais se vai descobrir qual versão é a verdadeira – sem falar que Pixinguinha já havia usado dois trompetes com função de ritmo no arranjo de Na Virada da Montanha, gravação do mesmo Francisco Alves, em 1935). O que importa é que em outubro de 1939 sai a gravação de Chico Alves para Aquarela do Brasil com o arranjo definitivo e magistral de Radamés. O feito o torna imediatamente o mais solicitado, mais prestigiado e mais imitado de uma geração de geniais arranjadores – pra ficar em três: Pixinguinha, Lírio Panicalli e Léo Peracchi. Hoje é consenso que Radamés e Pixinguinha são os pais do arranjo brasileiro. Sem falar que, numa prova de que ele não tinha ciúme nem era um cara competitivo, a Rádio Nacional contrataria Lírio e Léo justamente por indicação de Radamés. *** Preferido de gente como Dorival Caymmi e Orlando Silva (que, em sua fase áurea, só gravava uma canção se o arranjo fosse de Radamés), de 1930 até 1943 – quando muda para a Continental – a dupla Gnattali e Pixinguinha assinava quase a totalidade dos arranjos da mais importante gravadora da época: a RCA Victor. E, conforme os anos foram passando, enquanto o velho Pixinga ia sendo relegado à condição de Velha Guarda, Radamés era a vanguarda, seguindo sempre em frente em uma inclassificável carreira sem fronteiras entre a música erudita e a popular. 17

Foi para Orlando Silva que arranjou o já citado Juramento Falso, em 1937, a primeira orquestração de cordas num samba. Todo mundo gostou – menos os críticos, que o acusaram de lacaio do imperialismo jazzista. Radamés mesmo explicaria a conexão: Era porque os compositores de jazz ouviam Ravel e Debussy, e aqui ninguém nunca tinha ouvido. Mesmo nos Estados Unidos, só se passaria a usar cordas em canções populares quatro anos depois de Radamés, com os arranjos de Axl Stordahl pro jovem Frank Sinatra. Jazz é a música popular mais evoluída do mundo e é claro que me influenciou. Mas minha música é toda brasileira, baseada em temas folclóricos e urbanos do Rio de Janeiro. Sobre isso de influência jazzística, a gente conversa depois, com mais calma. Agora, ninguém tira nada do nada, portanto, tem sempre que haver influências. (…) Em 1924 ou 1926, já havia discos do Benny Goodman, do Duke Ellington. Eu ouvia muito. Foi ali que eu aprendi a usar a orquestra popular. Muitas vezes em discos que seu mentor Guilherme Fontainha escutava com os alunos. Só pra não deixar passar, a mesma acusação de excesso de jazz na sua música tinha sido feita na década de 1920, contra Pixinguinha, quando ele lançara a primeira gravação de Carinhoso. Isso não é choro, é jazz, gritaram os puristas. Sim, Carinhoso… E aconteceria novamente com o mais famoso discípulo de Gnattali: Tom Jobim. Este apanhou muito por acusações de americanizado, e respondia da mesma forma que o mestre: que podia ele fazer, se os bebopers também haviam, como ele e Radamés, bebido em Ravéis e Debussys? Por isso, foi natural que Walt Disney se deslumbrasse com a Aquarela do Brasil e convidasse tanto seu compositor Ary Barroso quanto seu arranjador Gnattali pra irem morar nos Estados Unidos, empregados nos Estúdios Disney. Ary até tentou, mas não conseguiu ficar porque don’t have Flamengo. Radamés nem foi. Ao longo da década de 1930, já definitivamente no Rio, umas poucas experiências em música para teatro de revista ou peças teatrais, e muito rádio. Começa na Rádio Clube do Brasil, passa pela Mayrink Veiga, Gazeta, Cajuti e Transmissora, mas começa a fazer fama é a partir da Nacional. No mesmo 1936 em que fez 30 anos e teve seu primeiro filho – Alexandre, como o avô – foi, dia 12 de 18

setembro, uma das atrações da inauguração da emissora. Como pianista da…típica de tango! Logo em seguida assumiu o mesmo posto na jazz band e na orquestra de salão. Rádio Nacional que, em 1940, seria encampada pelo governo Vargas e se transformaria no maior fenômeno radiofônico da história brasileira, fazendo por merecer seu espetacular slogan: “O Himalaia dos Índices de Audiência”. É ali que, aos poucos, seu talento vai sendo notado. Se nos primeiros tempos da emissora música brasileira era invariavelmente acompanhada pelo regional de seu conterrâneo Dante Santoro, aos poucos Radamés começou a escrever arranjos para trios, quartetos, pequenos grupos, ofuscando o grupo de Dante. Jamais tinham sido amigos, agora é que não seriam mesmo. Mesmo que seguissem trabalhando juntos pelos 30 anos seguintes o máximo que Radamés falaria de seu colega era que fazer um confronto entre um choro do Pixinguinha e um do Dante Santoro, a diferença era da água para o vinho – desnecessário dizer quem, pra ele, era o vinho…

A fabulosa orquestra. Garoto no violão. Perrone na bateria. Em 1941, com a mulher e os agora dois filhos (Roberta nascera em maio do ano anterior) é mandado pela Nacional para uma temporada de oito meses em Buenos Aires. Sua missão: montar uma orquestra local para transmitir a Hora do Brasil. Leva junto o inseparável Perrone e o gaúcho Alcides Gonçalves (crooner free lancer da Nacional). Foi tudo um sucesso: vários concertos em sua homenagem, com orquestras e grupos de câmara da capital e até da cidade de Rosário tocando peças suas. De quebra, ainda tirava uns trocos em uma que outra boate, em duo com Alcides. 19

O problema é o efeito colateral: Quando eu cheguei aqui no Brasil, tive uma decepção tão grande… quase que jurei nunca mais sair do Brasil. Porque a volta é triste, sabe? Lá você é respeitado. Quando eu cheguei (em Buenos Aires), uma semana depois fui convidado por um jornalista para um almoço oferecido a mim (…). Eu disse: “Mas eu não fiz nada ainda”. E ele: “Nós já conhecemos o que você fez no Brasil”. Aí fizeram um almoço, com cinquenta pessoas, no teatro Colón, críticos, artistas, cantores, escritores. Eu fiquei maluco, não era possível. Não é pela homenagem, é pelo sentido de que a cultura é outra. Quem é que grava música de concerto no Brasil? Quase cumpriu sua promessa de nunca mais sair pra não se traumatizar na volta. Exceções: duas turnês europeias. Uma já citada, em 1960, com seu Sexteto e Edu da Gaita. Outra, em 1964, em duo com o violoncelista Iberê Gomes Grosso, chega a Israel.

Radamés e Pixinguinha. Deusdocéu. Em 1943, mais uma pequena revolução: cria a Orquestra Brasileira de Radamés Gnattali (também chamada de Orquestra 20

Brasileira de Show): Até essa época não existiam orquestras tocando música brasileira. Eram só os regionais e as orquestras de salão. Sua ideia, simples e revolucionária, veio de uma necessidade imediata: o programa Um Milhão de Melodias, criado pelo diretor artístico da Nacional, Paulo Tapajós, para lançar a Coca-Cola no Brasil. O programa lhe exigia nove novos arranjos por semana, meia hora de música ao vivo, sem interrupções. E como o nome já avisava, arranjos para as mais variadas melodias: um milhão delas. A primeira: Carinhoso, do seu amigo, colega e mestre Pixinguinha. O próprio Tapajós conta: Como Radamés estava à frente da gente uns cinquenta anos, ele compreendeu antes de qualquer um que não era possível continuar mantendo no ar uma audição musical cujo timbre se assemelhava a cada semana, pois a orquestra que ele tinha em mãos era sempre a mesma, baseada em uma pequena sinfônica. Aí ele começou cortando: um arranjo só com cordas, outro só com metais, assim por diante. Só que aí acrescentou um bombardino pra tocar uns maxixes, um bandoneon nuns tangos… E bingo: dois violões e cavaquinho pra tocar choros. Sente o time: Garoto, Bola Sete e Zé Menezes. Pra completar, no fundo da sala, mestre e senhor de um vasto exército de instrumentos de percussão, Luciano Perrone e seu time de percussionistas. O fundão foi logo apelidado pelo pessoal de O Apartamento do Luciano. Para Radamés, foi um grande negócio. Ele que, até então, tinha de ir à rádio todos os dias trabalhar como pianista, passou a atuar exclusivamente como arranjador. O salário não subiu, mas sobrava mais tempo livre – mérito dele, claro, que conseguia escrever nove arranjos em três dias. O programa era nas quartas, ele escrevia de quinta a sábado e entregava pros copistas tirarem as partes de cada instrumentista. Aí descansava no domingo, e sobrava segunda e terça pro que mais viesse pela frente. Vinha cada vez mais coisa.

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Radamés e o primogênito Alexandre. Um Milhão de Melodias e sua orquestra foram um estouro, um ovo de Colombo. A partir dali todas as rádios e gravadoras teriam uma grupo grande de músicos que misturava big band de jazz, sinfônica e regional. Mas aqui é bom fazer justiça a um cara que ficou bem esquecido inclusive neste pioneirismo. Como já vimos no capítulo sobre Octavio Dutra, o violonista e compositor gaúcho tinha tido a mesma ideia em 1926, só que pra tocar música erudita: um arranjo da Protofonia do Guarany, de Carlos Gomes. Outro portoalegrense, Paulo Coelho, também já orquestrava samba em formato de big band já em 1936. Mas o próprio Paulo, em entrevista ao jornal porto-alegrense Folha da Tarde do dia 3 de junho de 1936, faz a ressalva: Radamés Gnattali, no Rio, já pretendeu fazer isso, mas parece que não lhe compreenderam. Ou seja: a se acreditar em Paulo, Radamés já procurava essa síntese conseguida na sua Orquestra Brasileira há quase uma década. Não deixa de ser curioso três porto-alegrenses que se conheciam e conviveram numa mesma cidade e momento terem tido a mesma busca, em décadas diferentes. Taí, de graça, mais um tema pra mestrado em etnomusicologia. 22

Um Milhão de Melodias ficou 13 anos no ar: de 1943 a 1956. E a coisa era tão mega que, além de Radamés regendo a orquestra, ainda era necessário um reforço de Lírio Panicalli na técnica, coordenando a mixagem entre os oito microfones que captavam tudo e retransmitiam ao mundo. Sim, ao mundo. Radamés passou três décadas na Nacional, e era parte importante do “colégio eleitoral”, uma espécie de conselho artístico informal da Emissora. Só saiu dali para a TV Excelsior carioca em 1963 – um ano antes do golpe de 64 praticamente acabar com a Nacional. Mas se você pensa que o cara se encantava com o glamour da emissora mais importante dos Anos Dourados do rádio… Eu trabalhei 30 anos na Rádio Nacional e nunca fui diretor de nada. Um dia, eu cheguei lá e vi no quadro minha nomeação como diretor artístico. Aí eu fui ao (diretor geral) Pedro Calmon perguntar qual seria a minha função. E ele: “A sua função é procurar melhorar o nível da programação”. Eu disse, “então tá, vamos cortar esse programa, esse e esse, porque são uma droga completa”. Aí ele disse: “Ah! mas não pode porque esses aí têm anunciantes…” Eu digo: “Então já não sou mais diretor”, pedi demissão. (…) Eu não gosto nem de lembrar daquilo, era uma exploração desgraçada. (…) Quem ganhava bem lá era a direção. Todo mundo rico, todo mundo tomando whisky. (…) A qualidade das músicas da Rádio Nacional era porque eu fazia, o Leo (Peracchi) fazia, o Lyrio (Panicalli) fazia. Nós éramos responsáveis por todas as coisas boas que se fazia por lá. A orquestra era boa, porque a Rádio Nacional funcionava como vitrine para aquele pessoal que ganhava pouco, mas ia fazer show fora. Por outro lado, tirando o mau humor clássico do maestro… …tinha orquestra sinfônica na Rádio Nacional! Eu podia fazer qualquer coisa na Rádio Nacional. Tenho muita música sinfônica lá. Não tinha esse negócio comercial. A Rádio Nacional não precisava de dinheiro. Quando o Gilberto de Andrade tomou conta da estação, ele disse: “vocês façam o que quiserem, gastem o dinheiro que tiverem”, aquilo era do governo. A Globo, por exemplo (onde Radamés trabalhava quando deu essa entrevista), é uma estação comercial. Tem que dar ao anunciante o que ele quer.

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O lendário quinteto. Te mete Tony Iommi: Menezes e sua Gibson SG! Desde 1943, Radamés trabalhava intensamente como arranjador da gravadora Continental (ainda que ganhando no máximo 50 mil réis por arranjo, o equivalente a um bom par de sapatos). E, a partir de 1949, também acompanharia muitas gravações com o seu Quarteto Continental: ele no piano, Zé Menezes na guitarra, cavaquinho, banjo e o que mais pintasse, Pedro Vidal Ramos no contrabaixo (que há quem diga que é gaúcho, mas ninguém confirma) e, claro, Luciano Perrone na bateria. Grupo que, em 1954, incorporaria o gaúcho Chiquinho do Acordeom e se transformaria no mítico Quinteto Radamés Gnattali – numa formação bastante próxima do padrão dos conjuntos melódicos que logo começariam a pipocar no Rio Grande do Sul. E que cresceria para sexteto de 1955 a 1965, com um segundo piano tocado por sua irmã Aída. Uma turma que seguiria junta e na ativa por exatos 30 anos (até 1985) e deixaria pelo menos três gravações essenciais, feitas com Radamés já entrando nos 70 anos, cercado de seus companheiros cinquentões e sessentões. Cate esses discos, não é difícil, tanto em sebos de vinil quanto na internet: 1)

Radamés Gnattali Sexteto – 1975, com o reforço temporário de Laércio de Freitas no segundo piano.

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O pessoal da Cantata 2) O lado B do LP Cantata Maria Jesus dos Anjos – 1976, onde só a versão do grupo para a Sonatina Coreográfica já vale por álbuns e álbuns (e o lado A, da cantata, também é sensacional). 3) Valzinho, um Doce Veneno — 1979, tributo ao compositor Valzinho, disco do quinteto em parceria com Zezé Gonzaga. A gravadora Continental – muito mais que a RCA Victor – seria a sua casa. Gravaria muito ali, em discos seus e como maestro e arranjador daquele escrete de sonho montado e dirigido pelo compositor João de Barro, o Braguinha. A Continental destes anos ia da música erudita até a série de discos infantis com histórias adaptadas por Braguinha e contadas em canções escritas por ele e arranjadas por Radamés: aqueles disquinhos seriam infinitamente relançados, geração após geração, em 78 rpm, em compactos de vinil e em CD. Sim, aqueles mesmos que você um dia já ouviu, com histórias como a de Chapeuzinho Vermelho. Pois eles foram gravados nas décadas de 1940 e 50, e as orquestrações e arranjos eram do Radamés. Não é à toa que eram tão bons e seguem reeditados infinitamente. Braguinha, que o teve por perto por toda a vida: Radamés foi uma das pessoas que mais me ajudou. Era uma figura excepcional, muito amigo… eu não sei música, ele sempre escreveu todas as minhas músicas, sem cobrar nada…

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É tanto trabalho que resolve começar a se dividir em várias personalidades, e passa a assinar os trabalhos mais simples, “populares”, como Vero – em homenagem à esposa Vera. Chega uma hora em que não dá mais conta. Estamos na década de 1950 quando lhe dão um auxiliar para serviços menores – como escolher a tonalidade mais adequada do arranjo para cada cantor. O tal tipo, jovem e talentoso, se chama Antonio Carlos Jobim. De ouvidos e olhos arregalados, Tom grudou no mestre, transcrevendo suas ideias, pegando dicas e macetes, num riquíssimo aprendizado nada formal (Radamés: Eu acho que ninguém pode ensinar música a ninguém. Eu não sei ensinar, não tenho paciência. Só tive um aluno, de quatro anos, que tinha talento, em Porto Alegre). Tom passou a vida lembrando ao mundo o talento de seu primeiro Radar e o quanto ele fora essencial em sua formação. E quando a gente escuta coisas como as valsas Vaidosa 1 e 2, de Radamés, fica claro o quanto Jobim aprendeu ali. Mas não era só musical a ajuda que Radamés lhe prestava: Naquele tempo Tom tava numa fossa danada. Ia lá pra casa conversar comigo. Falei com ele: – Esse problema seu, eu já tive também. Você tem que deixar sair as coisas que estão dentro de você. Enquanto não sair, você vai ficar nesse troço.

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Décadas depois, juntos e enfarpelados, mestre e discípulo As coisas de Jobim começaram a sair justamente no LP que, em 1954, registrou a primeira obra importante do ainda totalmente desconhecido compositor: a Sinfonia do Rio de Janeiro. Nele, a orquestra era arranjada por Tom, mas regida por Gnattali. E o que havia do outro lado do disco? Os mesmos temas, arranjados por Radamés e tocados pelo seu quinteto. Consagradíssimo, o maestro fazia o que podia pra ajudar o pupilo.

O intimidante time de maestros, juntos...

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Convenceu-o até a participar do atemorizante Quando os Maestros se Encontram (apelidado pelos músicos de Quando os Maestros se Encontram, os Músicos se Fodem). Tom não queria de jeito nenhum. Só conseguiu convencer o intimidado neófito quando lhe sugeriu que escrevesse uma música para piano e orquestra. Ele, Radamés, seria o solista enquanto Jobim regia. O que, na prática, significava que ele ia estar ali, junto, segurando a onda. Segundo contou Tom, quem regeu mesmo foi Radamés. Ele só mexeu os braços, tentando disfarçar o pânico. Paralelo a seus empregos, Gnattali escreve muita música, tanto erudita quanto popular. Seguindo a sua máxima: se um instrumentista toca todos os dias para manter a forma, um compositor deve fazer o mesmo, escrevendo música diariamente. Mas, apesar do trabalho constante, não era um cara para as massas. Seu único hit foi o samba-canção Amargura, com letra de Alberto Ribeiro. Era facilmente explicável: seus choros e valsas são de uma sofisticação rara, apontados seguidamente como influência primordial da futura Bossa Nova. Em muitos casos, muito mais sofisticados que qualquer coisa da bossa. Mas são seus concertos e suítes – a música que ele acreditava ser a essência de tudo o que pretendia – que lhe deram o prestígio que, desde sua morte, só faz crescer. Ele mesmo nutria uma fantasia com relação a isso: Talvez eu gostasse de viver apenas da música erudita, o que é muito difícil. Talvez nos países socialistas não seja assim, mas aqui viver do direito autoral das composições não é possível. Se eu fosse tentar viver das minhas composições eu estaria maluco, já tinha me suicidado. Não dá. A não ser tocando em orquestra de rádio, em cinema, em televisão. A partir dos anos de 1940, algumas de suas peças orquestrais ou de câmara passam a ser interpretadas e gravadas por orquestras como a da Rádio BBC, de Londres, as Filarmônicas de Berlim, Chicago e da Filadélfia e variadas formações da Argentina e Uruguai. Além de, é claro, as melhores orquestras brasileiras, com os melhores solistas e regentes. Pelo lado popular, a influência maior será sempre Nazareth, Pixinguinha, os chorões e a música carioca em geral. O que não o impedirá de, eventualmente, glosar motes de sua terra natal, como 28

nos rebuscados arranjos de Prenda Minha ou no único ballet que escreveu: Negrinho do Pastoreio, inspirado na versão da lenda contada por Simões Lopes Neto. Radamés: Minhas peças prediletas são os 12 concertos para piano, quatro concertos para violino, três para violoncelo, um para saxofone, bandolim, harpa. (…) Uma cantata de umbanda com texto do Bororó – é a cantata Maria Jesus dos Anjos, para coro e orquestra, narrada pelo Milton Gonçalves (…). Nunca me frustrei em fazer música popular, faço isso com todo o prazer e gosto muito. Só de conviver com Pixinguinha, um sujeito fabuloso, com Garoto, Dino, João da Baiana, Jacob do Bandolim, excelentes músicos. Se eu tivesse ido à Europa, poderia ter sido um grande pianista, mas nunca seria um compositor brasileiro. Foi graças a essa profunda admiração pela música popular que muitas vezes ele praticamente dissolve sua fronteira com a erudita. E ganha respeito de seus pares, como Villa-Lobos, que funda a Academia Brasileira de Música em 1945 e lhe dá a cadeira número 3.

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São dessa época obras-primas dessa dissolução, como a Suíte Popular Brasileira para Violão Elétrico e Piano, gravada em 1953 num duo transamericano com o violonista brasileiro Laurindo de Almeida. Uma iniciativa hoje comum e facilitada pela tecnologia, mas imaginem na década de 1950: Radamés gravou os pianos no Brasil, mandou a fita, e Laurindo estreou o primeiro play-back nacional, sobrepondo seu violão elétrico num estúdio norte-americano.

Amigos, gênios, parceiros: Radamés e Jacob do Bandolim Também é dos anos 1950 uma obra que vai acompanhá-lo por toda a vida: a revolucionária Suíte Retratos, para bandolim, conjunto regional e orquestra de cordas, de 1956. O pesquisador e cavaquinista Henrique Cazes, no seu livro Choro – do Quintal ao Municipal, é um dos que afirma que a suíte é um divisor de águas no choro.

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Radamés regendo a suíte, Jacob de solista Três movimentos homenageiam heróis de Radamés: Pixinguinha, Anacleto de Medeiros e, é claro, Ernesto Nazareth. Pra fechar, há um quarto, com uma autora que ele também admirava, ainda que não no mesmo nível: Chiquinha Gonzaga (pela lógica, talvez se esperasse Garoto, não Chiquinha). De cada um, a peça insinua um tema. De Pixinguinha, por exemplo, é Carinhoso. A orquestração é como a de um concerto grosso barroco: só que com o bandolim e o regional representando o grupo de solistas (o concertino), em contraponto à orquestra de cordas (o ripieno). O trabalho, pra não fugir à regra, foi escrito especialmente para que brilhasse nele um amigo músico. No caso, Jacob do Bandolim, que só vai se sentir pronto pra gravá-lo depois de sete anos de estudo. A dificuldade era tanta que Radamés pediu pra Chiquinho do Acordeom tocar a parte de bandolim numa gravação meio improvisada, feita só pra servir de referência e ajudar Jacob a estudar. Quando, em 1964, o LP foi finalmente gravado e lançado (Jacob e Seu Bandolim com Radamés e Orquestra, com uma série de peças para piano tocadas pelo autor no lado B), a repercussão foi pequena. Mas no meio chorão o pessoal tomou um susto. Susto que só seria superado 15 anos mais tarde, com o surgimento da Camerata Carioca. 31

Camerata Carioca? Voltaremos a ela. Mas antes, não dá pra deixar passar outro presente pra um amigo que vira uma joia rara da música brasileira: Paulo Moura Interpreta Radamés Gnattali. O LP, lançado em 1959 pela Continental e relançado em CD pela Warner em 1995, é todo escrito para destacar o brilho de Paulo, 27 anos, um jovem prodígio do clarinete. Mas que grava o LP inteiro com seu segundo instrumento, o sax alto – acompanhado pelo piano de Radamés, o baixo de Vidal, mais um baterista e um rapazinho que prometia no violão: Baden Powell. Todas as oito músicas – incluindo uma das obras-primas de Radamés, Valsa Triste – foram escritas especialmente para Paulo, um novo amigo que o havia encantado por seu fraseado absolutamente original e seu virtuosismo ímpar. .oOo. É a hora de dar uma aprofundada nos outros gaúchos que cercavam o maestro. O primeiro é o mais próximo: Chiquinho do Acordeom.

Sabe lá o que é sair de Santa Cruz e de repente estar sentado num canteirinho com Radamés e Pixinguinha?!? Chiquinho nasceu Romeu Seibel, dia sete de novembro de 1928, em Santa Cruz do Sul. 150km a oeste de Porto Alegre, Santa Cruz é uma típica cidade gaúcha daquelas habitadas basicamente por imigrantes alemães. 32

Terra de indústria fumageira, é até hoje, aparentemente, um lugar onde não há nem muito pobres nem muito ricos. A família Seibel, de classe média alta, era dona de uma confecção e de uma alfaiataria que atendia a elite da cidade. Foi, por exemplo, a primeira casa, em várias quadras, a ter automóvel. E, como bons descendentes de bisavós alemães - o que, no Rio Grande do Sul, se chama de “a alemoada”-, adoravam fazer música em família. O pai, João Walter, se revezava entre o bandoneon e o clarinete. A mãe, Dona Julieta, tocava cítara de mesa. Cítara de mesa, clarinete e bandoneon (invenção germânica): mais alemoada impossível. O apelido “Chiquinho” veio da semelhança com Chico Bóia (no original, Fatty Arbuckle), comediante do cinema mudo, alemão rechonchudo como ele era na primeira infância (aos oito meses já pesada 12 quilos). O apelido ficou mesmo quando, aos oito anos, a semelhança já se esvaíra, graças em parte à sua dedicação ao basquete. Mas foi então que o menino ganhou a primeira gaita (que é como os gaúchos chamam o acordeom). Seu primeiro instrumento, claro, não seria um Scandalli ou um Paolo Soprani, esses acordeons italianos… Era um Alfred Arnold, 100% alemão, a mesma mítica fábrica de bandoneons cultuados até hoje pelos tangueiros do mundo todo (que os chamam de Doble A). Não demorou muito para que, notando o talento do guri, um amigo do pai aconselhasse a família a botá-lo a estudar música - teoria e solfejo, acordeom, piano - com a mais renomada professora da região, Marieta Heuser. Que contava, anos depois, que ele já saíra compondo sua primeira música: uma polca (claro!) chamada Caixinha de Música.

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Aos 14 anos já estava fazendo uma das coisas que faria quase até morrer: animar bailes. No caso, tocando polcas e valsas pela região, com o Jazz Ideal. “Jazz” é como se chamavam os grupos que pipocavam pelo Rio Grande do Sul desde o final dos anos 20, com 34

bateria e sopros, febre disparada pela turnê d´Os Oito Batutas de Pixinguinha nesse formato de jazz band. Era o nome de um tipo de formação instrumental, diferente dos “regionais”, que eram baseados em instrumentos de cordas e, no máximo, pandeiro e flauta. E não, não tocavam jazz. Dois anos depois, o primeiro emprego com carteira assinada, na nobre função de ser um dos fundadores da Rádio Santa Cruz. Tocava, claro. Mas também acumulava as funções de redator e cuidando das contas da emissora - afinal, o pai, para contrariedade do filho, exigiu que ele pelo menos se formasse contador, pelo curso do Colégio Mauá: “desde então nunca mais fiquei duro. Pobre, talvez. Mas não duro”. Podia ter levado a vida assim, tocando pela região, com um emprego fixo no mundo dos números, não fosse um acontecimento absolutamente improvável na Santa Cruz de 1949. Tinha ele 21 anos quando passou por sua cidade a cantora, bailarina, atriz e - atenção! - Miss México Ana Luisa Peluffo. Ainda hoje na ativa, aos 87 anos, aos 20 Ana já abestalhava a todos com a beleza e o talento que a fariam estrelar mais de 200 filmes, séries e programas de TV no seu país natal (e chocaria o país em 1955 com o primeiro nú da história do seu cinema). Tinha estreado no ano anterior, em Hollywood, fazendo uma ponta no último filme do Tarzan Johnny Weissmuller e como essa mulher foi parar em Santa Cruz - com seu padrasto/empresário junto - ninguém sabe. O fato é que precisava de um grupo para acompanhá-la e chamaram Chiquinho, que tinha um trio de acordeom, violão e bateria com dois amigos: Gastão Schuck e Rudy Kasper. Aprenderam rapidamente o repertório de música mexicana e deu tão certo que foram convidados a seguir a moça em sua turnê que seguiria pelo Rio Grande do Sul (tocaram em Candelária e Cachoeira do Sul) e, dali, pelo Brasil afora. Batizados de Trio Gaúcho, lá se foram os rapazes, alegres e faceiros, pra conquistar o mundo…

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Só que a excursão já parou na primeira capital, São Paulo, quando, contrato acertado com a Brahma como patrocinadora da trupe, um milionário empresário paulista de tradicional família de descendentes árabes enamorou-se perdidamente e pediu a mão da moça em casamento. O padrasto deu, ela também topou, e o sonho acabou pros três gauchinhos (cinco anos depois Ana estava de volta ao México, solteira, para retomar a carreira). Mas, já que estavam ali do lado, os três resolveram seguir viagem para a capital federal, o Rio de Janeiro, onde morava Elgo, irmão de Chiquinho. Lá, uau!, conseguem um teste na mítica Rádio Nacional e se saem bem: contrato de um mês. Terminado o tempo, voltaram pra Santa Cruz, excitadíssimos com a aventura. Pros outros dois já tava de bom tamanho. Mas o encanto da Cidade Maravilhosa tinha picado definitivamente Chiquinho. Quem o salvou foi Elgo: garantiu que, se o mano fosse definitivamente pro Rio, tinha casa, comida e roupa lavada até que conseguisse se manter por conta própria. Não deu outra. Em janeiro de 1949, Chiquinho e o Rio de Janeiro casaram-se para sempre.

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Começa tocando na noite, mas logo tem uma chance no Regional de Claudionor Cruz, um dos mais importantes grupos do gênero na época, com quem estreará em disco em 1951. E em 1952, desta vez por influência de um general, sogro de seu irmão, um novo teste na Nacional, a emissora que ostentava o slogan “O Himalaia dos Índices de Audiência”. Desta vez era para um contrato definitivo, não temporário. Mais uma vez, aprovado. E com louvor e surpresa por parte da banca. Conta ele: Meu estilo distinguia-se do Luiz Gonzaga e do (catarinense que faz carreira como “O Gaúcho Alegre do Rádio”) Pedro Raymundo. Eu tocava a música da época, moderna, com mais acordes e harmonia, enfim: uma coisa mais trabalhada. Com apenas 23 anos de idade havia chegado ao melhor lugar possível para um músico brasileiro estar nos anos 1940/50. Ao lado de todos os melhores. Como um deles.

Rodinha de choro: Radamés na flauta, Chiquinho no Acordeom, Garoto no violão, Billy Blanco no pandeiro... E não era só isso. Apaixonara o sujeito que estava provocando uma revolução nos arranjos de música brasileira: o porto-alegrense Radamés Gnattali. Foi amor – correspondido - à primeira vista. O rapazote tocava como o demônio, era também gaúcho e, o mais importante para Radamés: lia música muito bem. Radamés, delicioso resmungão:

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Mário Mascarenhas tinha milhares de alunos de acordeom e eles faziam umas apresentações na Rádio Nacional. Eu não gostava, mas José Mauro, que era o diretor da rádio, queria que eu usasse acordeom nos arranjos. “De jeito nenhum!”, eu dizia. Bota sino, inventa qualquer coisa, mas acordeom, não! Um dia apareceu um magricela fazendo prova pra ingressar na orquestra e percebi logo: “Ah, agora a gente pode usar o acordeom”. Era o Chiquinho. A ele deve-se, para o bem e para o mal, parte da súbita popularidade que seu instrumento ganhou nos anos de 1950, incentivado pela ascensão do baião e o indefectível Método Mario Mascarenhas. Ele era a ponta mais sofisticada dessa onda. E dera a sorte de ser o primeiro acordeonista a aparecer com talento e leitura musical suficientes pra entrar na seletíssima Orquestra Brasileira arranjada e regida por Radamés. Conta Paulo Tapajós, cantor, compositor e um dos bastiões da Nacional: Chiquinho, pela habilidade, pelo gosto, pela finura de toque e sensibilidade, passou a integrar a orquestra (…), e sua presença já era o timbre novo que Radamés buscava tanto. Houve quem combatesse o acordeom no samba. Mas, em compensação, todos diziam que Chiquinho era diferente. Comprovando sua fidelidade aos amigos talentosos, Radamés nunca mais se separará de Romeu. Também, pudera. Que dupla: dois dos maiores músicos brasileiros de qualquer tempo. Mas antes de entrar pra orquestra, ainda em 1952, sua primeira função na Nacional tinha sido no programa noturno (entrava às 11 da noite) Música em Surdina, para a qual criara, com dois colegas, o... Trio Surdina. Era, como se diria então, um ninho de cobras: ele no acordeom, Fafá Lemos no violino e o lendário violonista e compositor Garoto. Seus LPs de estreia, ambos de 1953 (Trio Surdina e Trio Surdina toca Ary Barroso), foram não só dos primeiros lançamentos da gravadora Musidisc como também dos primeiros LPs lançados no Brasil - ainda de 10 polegadas, quatro músicas de cada lado. Está neles, por exemplo, a gravação original do clássico maior de Garoto, Duas Contas. O trio dura apenas cinco anos, sobrevive à morte de Garoto em 55, e faz muito sucesso graças à sua estética ultra-cool, super-moderna pra época.

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Aliás, que ano esse 1953!: Trio Surdina estreando em disco, primeiros bailes do Chiquinho e Seu Conjunto - que só encerrará atividades em 1990 – casamento com Ada Seibel, com quem terá dois filhos em 24 anos juntos... E ainda há o seu maior momento como compositor: São Paulo Quatrocentão, dobrado escrito em parceria com Garoto e o letrista Avaré em homenagem aos 400 anos da cidade, gravado num 78 rpm que vende fabulosas 700 mil cópias e lhe rende, na época, o equivalente a 30 mil dólares. Além disso, fica nada menos que um ano inteiro em primeiro lugar na parada de sucessos mais importante do País. Qual? A da Rádio Nacional, claro. E assim foi levando a vida: gravando muito durante o dia, trabalhando na Rádio na tarde e na noite, e entrando nas madrugadas em boates como a Chez Aimée ou a Monte Carlos, do rei da noite Carlos Machado. Sua principal atuação sempre foi mesmo gravando. Nos estúdios achou seu habitat perfeito. E é importante esclarecer que o sujeito pode ser um excelente músico e não ser excelente músico de estúdio. São habilidades muito específicas as utilizadas em uma gravação, para ajudar um arranjador ou um produtor. Chiquinho, entendia imediatamente o que precisava, sugeria uma enxurrada de ideias que muitas vezes faziam o arranjo escrito ficar discretamente esquecido na estante e que eram a alegria dos engenheiros de som, já que o cara já vinha com sua sonoridade resolvida. Era só apertar o rec. Henrique Cazes, cavaquinista e produtor: Uma vez ele foi gravar um disco comigo, para uma campanha política, e ele tinha um casamento pra ir. Chegou no estúdio às três horas e falou: “três e meia eu tenho que ir embora”. Aí eu botei lá uma

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cifra e uma introdução no forrozinho, demos uma passada e gravamos a base. Quando nós fomos ouvir, ele falou: “espera aí. Em vez de vocês ouvirem, grava logo outro acordeom pra botar do outro lado, pra abrir no estéreo”. Aí era outra levada. “Já ficou pronto aí?”, eu perguntei. “Não, espera aí que tem um detalhe, falta um terceiro canal”, e ele foi fazendo. Quando a gente foi procurar, ele já tinha ido embora. Tinha esse sentimento de como funciona a malandragem do estúdio. O que precisa pôr, o que adianta fazer, o que não adianta. Um esforço a mais que vale a pena, uma coisa que não vale, uma frase difícil que não precisa... Por essas e outras que é, até hoje, um dos recordistas brasileiros em gravação de discos, tendo acumulado 50 mil horas de estúdio (em 1976, quando foi feito um levantamento oficial, já eram 30 mil). Atuava como instrumentista, produtor e/ou arranjador. É dele, por exemplo, o inconfundível acordeom que abre e fecha enchendo de encantamento O Bêbado e a Equilibrista, na mítica gravação de Elis Regina. De Elza Soares a Rita Lee a Clementina de Jesus, passou por toda a música brasileira de seu tempo. Por essas e outras que, quando o grande acordeonista que era Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, queria um toque mais sofisticado em seus discos chamava quem? Chiquinho, que ele sempre considerou o número 1 entre os acordeonistas brasileiros. E quem Sivuca – para muitos, o maior de todos - convidou pra dividir de igual pra igual um disco com dois acordeões, em 1984? Chiquinho, o cara que, como poucos no Brasil, expandiu os horizontes do seu instrumento, indo do Theatro Municipal do Rio de Janeiro aos bailes de subúrdio. Ás vezes na mesma noite, e passando pelo Maracanã – era flamenguista doente - de fraque.

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Discos solo seus é que não chegam a uma dúzia. Há o primeirão, Chiquinho e o Seu Acordeão (1956, Odeon), os da série Dançando no Rio (todos da Continental, década de 1950), e Polcas, Valsas e Outras Coisas – Tudo a Jeito do Chiquinho (1961, Odeon), que reúne quatro das suas poucas composições - que lembram muito suas raízes, como Um Baile em Santa Cruz e Sinimbu, ambas escritas em parceria com Radamés (que assina como “Vero”, por problemas de contrato) e que estão no disco do Quinteto Persch que você tem em mãos nesse instante. Há também o já citado Sivuca e Chiquinho do Acordeom (1984, Ariola), ou seu último trabalho, pela Visom, em 1989: Chiquinho do Acordeom, que lhe dá o terceiro dos então prestigiosos prêmios Sharp (melhor música instrumental, por Amo – no ano anterior levara arranjador, por um disco de Dominguinhos, e melhor disco para Retratos de Radamés Gnatalli, de que logo falaremos). Esse disco de despedida, aliás, tem na ficha técnica praticamente todos os maiores músicos do Rio, das mais variadas gerações: Roberto Menescal, Hélio Delmiro, Gilson Peranzetta, Marcos Valle, Rildo Hora, Dominguinhos, Zé Menezes etc etc etc. Com um detalhe: produção independente, sem grana, todos tocaram sem cobrar cachê. * * * Mas voltemos à parceria com Radamés. Com um ano de Orquestra Brasileira, veio o convite do maestro para que ele se somasse ao time de craques que reunira na Continental. Era o Quarteto Continental. Topou na hora. E, a partir de então, o grupo se desgrudaria da gravadora, adotaria o nome de Quinteto/Sexteto Radamés Gnattali e seguiria junto por décadas,

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gravando discos e excursionando, com alguns intervalos, até a morte do seu titular, em 1988. Titular que escreveu muita música especialmente para Chiquinho: de temas regionais gauchescos lançados em anônimos discos para dançar até uma série de peças eruditas, com destaque para a Sonatina Coreográfica e o pioneiro Concerto para Acordeom e Orquestra. Escrito em 1978 e dedicado a ele, foi o primeiro concerto pra esse instrumento no Brasil - e um dos raros no mundo. Apesar dos 22 anos de diferença, os dois foram inseparáveis parceiros de música e vida por três décadas. Dois exemplos bonitos: quando Radamés, então com 61 anos, viúvo da primeira mulher, se apaixonou por Nelly, 30 anos mais nova, quase todos os amigos se afastaram do novo casal. Menos Chiquinho, que deu a maior força. Anos depois, quando ele se separou, e entristeceu-se profundamente, quem o salvou foi o amigo mais velho, e de um jeito muito Radamés: em vez de ficar lhe consolando a tristeza, escreveu o complicadíssimo concerto para acordeom. Assim ele ocupava a cabeça e não tinha tempo de se deprimir.

Os homens velhos são os reis dos animais: Radamés e Chiquinho, 30 anos depois. Uma maravilha de homenagem póstuma da amizade dos dois é o disco Retratos de Radamés Gnatalli (Kuarup, 1989), onde Chiquinho, Rafael Rabello ao violão e Dininho no baixolão, só os três, interpretam a Suíte Retratos, de Radamés, escrita originalmente para

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bandolim solo, regional e orquestra de cordas. E soa tão bem quanto o original, num disco que se completa com uma versão instrumental de Amargura, canção de Radamés e Alberto Ribeiro, e uma nova orquestração do Concerto para Acordeom que era a preferida de Chiquinho, com uma orquestra de cordas dedilhadas (a Orquestra de Cordas Brasileiras, formada por violões, violas caipiras, bandolins, cavaquinhos etc) substituindo a orquestração original. * * * Outro grande amigo que lhe deu o quinteto/sexteto foi Zé Menezes, que resolveu montar com o guitarrista a banda “pop retrô” Os Velhinhos Transviados que, nos anos de 1960 e 70, lançou nada menos que 14 LPs de sucesso, usando tuba, acordeom, banjo e guitarra pra rearranjar os hits da hora, de Rolling Stones a Baden Powell, sempre com iguais doses de virtuosismo e bom-humor. Detalhe de época: o “velhinho” Chiquinho tinha menos de 40 anos quando começaram o grupo. Essa foi uma das formas que encontrou de driblar a baixa da popularidade do acordeom depois da febre simultânea das guitarras dos Beatles e da Jovem Guarda e dos violões da Bossa Nova e da MPB. E a outra foi justamente, entre 1963 – ano em que ganha o Prêmio Governador do Estado do Rio de Melhor Instrumentista - e 67, mudar-se para São Paulo para ser o diretor musical justamente da TV Excelsior. Sim, a mesma Excelsior que, sob sua jurisdição, lançou o I Festival de MPB. O festival que não só lançou Elis Regina como também a sigla MPB e ainda a febre dos Festivais. * * * Pra fechar, uma linda curiosidade. Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, São Paulo… Nordeste. Chiquinho, típico alemón de Santa Cruz do Sul, conseguiu a mais improvável das façanhas: ser considerado um mestre em ritmos nordestinos. Sivuca e Dominguinhos o chamavam assim: mestre. Gonzagão ia além: o apelidou de O Gaúcho de Cabaceira (cidadezinha da Paraíba). Já com 60 anos de idade, seus palcos preferidos eram as festas de São João nordeste afora, onde era tratado como um artista local. Dominguinhos: Quando foi um dia, a gente começou a gravar junto, de uma hora pra outra ele começou a ser chamado porque precisava ler umas partituras. (…) foi ficando, foi gostando, adorando a música nordestina, dizendo que era uma coisa boa; foi aí que ele não saiu mais. Aí 43

fizemos uma amizade maravilhosa. (…) Fazia meus arranjos, participava das minhas gravações, tanto lá no Rio como em São Paulo. Quando eu mudei, continuou do mesmo jeito. Começou o projeto Asa Branca (que reunia alguns dos maiores acordeonistas do Brasil em torno da figura de Luiz Gonzaga), ele se integrou e terminou a vida dele tocando no projeto. Chiquinho fez foi muitos amigos e uma legião de admiradores em mais de 40 anos de carreira – boa parte deles sendo considerado por muita gente como o maior nome nacional do seu instrumento. No final dos anos 1980, atrás de sossego, mudou-se com a segunda mulher pra cidadezinha de Alegre, no Espírito Santo – mas mantendo a rotina de ir semanalmente ao Rio gravar. Morreu apenas cinco anos depois de Radamés, de enfisema pulmonar, no Hospital São Lucas do Rio de Janeiro, dia 13 de janeiro de 1993. Tinha apenas 64 anos mas currículo para várias vidas. .oOo.

Sente a pinta do bacana: Edu da Gaita E abra-se aqui outro parêntese para mais um assíduo colaborador gaúcho de Radamés: Eduardo Nadruz Nascimento, o Edu da Gaita (gaita de boca é como se chama o instrumento no sul do Brasil, e seu nome “oficial” é harmônica). 44

Edu nasceu em Jaguarão, fronteira do Brasil com o Uruguai, 383 km ao sul de Porto Alegre, dia 13 de outubro de 1916. Aos nove anos de idade virou atração em Pelotas, a cidade mais importante da região, vencendo trezentas outras crianças num concurso de gaitistas. Sua carta na manga: tocar a Protofonia da ópera O Guarany, de Carlos Gomes (sim, aquela mesma do arranjo inovador de Octavio Dutra! Anos depois, jogaria sua vida em seguir esse primeiro e improvável impulso: ser instrumentista erudito de… gaita de boca. Mais um que pulou Porto Alegre (e mais uma que a gente vai fingir que não viu pra poder incluir nesse livro): tinha 17 anos quando o pai lhe dá 300 mil réis pra tentar a vida em São Paulo, ver se conseguia algum dinheiro pra ajudar o orçamento familiar a perigo. Pelo jeito, o forte do Nadruz pai não era a geopolítica: a São Paulo de 1933 havia acabado de ser bombardeada, derrotada numa guerra civil – a Revolução Constitucionalista de 1932, contra o governo de um… gaúcho: Getúlio Vargas! Quando se deu conta que seu sotaque o denunciaria em qualquer tentativa de emprego, passou por uma loja de música e viu sua salvação: uma gaitinha de boca! Ele já não tinha mais o instrumento, mas lembrava, e bem, como se tocava. Convence os donos e passa a tocar na porta da loja, chamando clientes. Esgota o estoque de harmônicas em pouco tempo. No carnaval do ano seguinte, amigos paulistas resolvem ir passar as festas no Rio de Janeiro, de carro, e ele vai de carona. É quando descobre o seu lugar, a sua cidade. Em 1936, Sílvio Caldas o vê tocando na Galeria Cruzeiro, ponto de encontro dos músicos. Pasmo, o arrasta imediatamente pra rádio Mayrink Veiga. Daí em diante, ele passa a fazer aparições na emissora, ganhando de César Ladeira – especialista em dar codinomes aos bois – o apelido de Edu & Sua Gaita, logo abreviado para Edu da Gaita. Chega um momento em que seu virtuosismo esbarra nos limites naturais do instrumento. A frustração é tão grande que ele enche o saco e desiste – mais persistente foi Renato Borghetti, que enfrentou barreira parecida com a também limitada gaita-ponto, mas nem deu bola. Edu foi então camelô, pianista de bordel, secretário de bookmaker, cantor de tangos, datilógrafo e até vendedor de livros didáticos. Até que, em 1939, o amigo de um amigo comentou que tinha trazido da Feira Mundial de Nova York uma curiosidade, um instrumento, segundo ele, recém-inventado: uma gaita cromática! Edu, claro, ficou doido. E tanto fez que, em poucas horas, estava com a bichinha na boca: em vez das sete notas possíveis nas gaitinhas 45

normais (as “diatônicas”), nessa era só apertar uma chave ao lado, que surgiam todos os bemóis e sustenidos. Com esse instrumento já se podia tocar qualquer música, com qualquer nível de dificuldade (choros, por exemplo, eram quase todos “intocáveis” nas gaitas diatônicas, que são como pianos só com teclas brancas). Começa então sua consagração como o maior gaitista/harmonicista da Época de Ouro da música brasileira. Com emprego fixo na Mayrink Veiga, pôde, finalmente, dedicar nada menos que 11 anos de estudo para realizar um sonho quase impossível: tocar o infernal Moto Perpétuo de Paganini na gaita de boca. Se o negócio já é incrivelmente virtuosístico para um violino, com suas 2400 notas espremidas em pouco mais de três minutos, imagina para um instrumento de sopro como esse. Mas deu: em 1956 ele estreia e grava sua versão da peça. Até hoje é difícil acreditar no que está ali.

O extraordinário sexteto (Aída Gnattali de pé), com os reforços para a tour européia: Edu da Gaita e Luiz Bandeira no pandeiro. Foi a partir desse atestado de virtuosismo que ele chamou a atenção de Radamés. E aí, batata: em 1958 ganha o maior presente de sua vida. O Concerto Para Gaita de Boca e Orquestra estreia no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e lhe realiza o mais antigo sonho: um prêmio de melhor instrumentista de música… erudita, dado pela prefeitura carioca. Dois anos depois, é convidado a viajar com o sexteto de Gnattali na III Caravana Oficial da Música Brasileira (de que falamos no começo do capítulo) e ainda gravam dois LPs lançados em 1960 e 61 pela Odeon, reeditados em CD em 2002: Radamés na Europa, com seu sexteto e Edu, Vols. 1 e 2. Estava consagrado.

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Daí até sua morte, em São Paulo, dia 23 de agosto de 1982, gravaria 10 LPs como solista, além de participar de um sem-número de gravações de outros artistas. Seu testamento são os discos de 1979 e 1980, obras-primas produzidas por Theo de Barros para a Gravadora Eldorado: Edu da Gaita Vol. I e Vol. II, vencedores de vários prêmios e também relançados em CD.

Olha ali embaixo a maravilha do xalalá do texto da contracapa Edu morreu com um dever mais do que cumprido, como atestam outros gênios brasileiros do seu instrumento, que só surgiram porque o caminho fora aberto: Maurício Einhorn (nascido em 1932), Rildo Hora (1949), e Gabriel Grossi (1978). Todos, de certa forma, seus seguidores. Bela missão cumprida por quem, como ele mesmo dizia, sobre si: um músico que teve o descuido de tocar um instrumento sem cátedra. Afinal, quando ele fez sua carteira da Ordem dos Músicos, a especificidade ali impressa era: “músico excêntrico”.

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*** E há ainda o irmão mais importante de Radamés. Figura dos bastidores da música brasileira, Alexandre era 12 anos mais jovem e, de certa forma, ficou à sombra do primogênito, mas também tinha muito talento: nasceu em Porto Alegre, dia 4 de fevereiro de 1918, estudou piano com o pai e a irmã Aída, e harmonia e composição tanto na sua cidade natal quanto no Rio, para onde se mudou em 1943 a convite do poderoso Mr. Evans, da gravadora RCA Victor. A partir daí, foi maestro e arranjador da Odeon e da Continental, além de ter integrado a seleção de ouro da Rádio Nacional dos anos de 1940 e 50 – ele também era, por exemplo, um dos astros de Quando os Maestros se Encontram. Dali só saiu, com o irmão, nos anos de 1960. Indo, como ele, pra TV Excelsior.

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Alexandre Gnattali arranjos e regência. Edu da Gaita, solista Foi como arranjador e regente que Alexandre emprestou – principalmente nas décadas de 1950 e 60 – sua excelência musical para artistas tão díspares quanto Emilinha Borba, Dorival Caymmi, Jerry Adriani, Nora Ney, o já citado Edu da Gaita e até Roberto Carlos. É dele, por exemplo, o arranjo de uma das primeiras gravações de um tema de Tom Jobim: a versão original, pré-Bossa Nova, de Outra Vez. Cantada por Dick Farney, ela ombreia com as melhores versões da música – inclusive a de João Gilberto, arranjada por Tom. Alexandre também compôs muito para TV, teatro e cinema, e dirigiu a Orquestra de Alexandre Gnattali, que gravou alguns poucos 78 rpm mas tocou em várias das trilhas que ele escreveu para cinema. Seguiu em atividade até o começo dos anos de 1980, mas nunca com a mesma relevância nem popularidade do irmão. O que, aparentemente, jamais o incomodou. Morreu no Rio, em 1990. *** Voltando ao personagem-tema do nosso capítulo: Ao longo da década de 1960, com a decadência do rádio ao vivo, Radamés perdeu seu grande veículo de projeção. Apesar dos constantes esforços de Tom Jobim em chamar atenção pra seu mestre, durante os anos da Bossa Nova, do Tropicalismo, da Jovem Guarda e da nascente MPB, Radamés e suas orquestrações elegantes, porém arrebatadas, ficaram meio que coisa do passado. Talvez ele nem tenha se dado conta, já que escrevia mais e mais trilhas para cinema e música de concerto – geralmente mais pra seu

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deleite que por saber que as peças seriam tocadas. Para a tela foram entre 48 e 52 longas (os números variam), em exato meio século de trabalho: de 1933 (com Ganga Bruta, mítico filme do pioneiro Humberto Mauro) a 1983 (Perdoa-me por me Traíres, de Braz Chediak, com canção tema assinada por Chico Buarque). É dele a música de filmes que fizeram história, como Tico-Tico no Fubá (Adolfo Celi, 1952, cinebiografia de Zequinha de Abreu), Rio 40 Graus (Nelson Pereira dos Santos, 1955, ponta de lança do futuro Cinema Novo), A Falecida (Leon Hirszman, 1964) ou Eles Não Usam Black-Tie (também Leon, 1981). Sem falar nos seus dois maiores empregadores na área: Mazzaropi e o esquecido Eurides Ramos.

Imagina se o povo não ia falar mal dessa dupla... Em 1968, Radamés é tirado da TV Excelsior pela nascente Rede Globo. É ali que vai trabalhar como maestro e arranjador durante os 11 anos seguintes. E estava de casamento novo também na vida afetiva: em 1964 ficara viúvo e, três anos depois, aos 61, se apaixona por uma cantora, atriz e pianista 30 anos mais jovem: Nelly Martins. Tinham se conhecido em 1959, quando ele escrevera os arranjos de um disco em que ela cantava em duo com Tito Madi: Encontro no Sábado. Muita gente falou mal, certamente incluindo nesse time os homens invejosos – Nelly era uma belezura. O casal quase não segurou a barra, mas os amigos de verdade deram força e o resultado foi: até que a morte os separe. Chegam a gravar um disco em duo de pianos, em 1968, o que aumentou a maledicência. Casariam “oficialmente”, depois de 11 anos, em 1978 (Nelly acabou mudando de profissão, formou-se médica, e hoje zela pelo legado de seu amado). É também em 1968 que volta pela primeira vez à sua cidade natal para um compromisso profissional: o Festival Radamés Gnattali, realizado pela Secretaria Municipal de Educação e Cultura no Auditório Araújo Vianna. A Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, regida 50

pelo autor, recebe como solista o também gaúcho Edu da Gaita num repertório só de Radamés. Só a partir daí, quase meio século depois de sair, é que passaria a ser chamado pra tocar na capital gaúcha. E aí estamos no final da década de 1970, quando, apesar das esporádicas gravações do quinteto/sexteto, quase ninguém fora da música erudita e/ou de sua geração lembrava do velho. Desde os anos 60 pouco tocara em público, e o sexteto estava praticamente desativado. Era o momento de encerrar carreira e curtir os gatos e a aposentadoria. Só que, num belo dia de 1979, o bandolinista Joel Nascimento bate na porta pedindo pra Radamés escrever uma nova versão da sua esquecida Suíte Retratos: sem orquestra, apenas com o regional. Ele, pra não perder o hábito, avisa: - Não vai ficar bom. Escreve tudo em três dias e Joel reúne um grupo especialmente pra tocá-la. Todos teriam de ser músicos de choro, mas com alguma formação erudita. Resultado: a Camerata Carioca. Um time que reunia, entre outros, o menino prodígio Rafael Rabello no violão de 7 cordas, sua irmã Luciana no cavaquinho e o hoje pesquisador e violonista Maurício Carrilho no violão. O primeiro resultado é o espetáculo Tributo a Jacob do Bandolim, sucesso absoluto dirigido por Hermínio Bello de Carvalho, que circula pelo Brasil e é transformado em disco (WEA, 1979) creditado a Joel Nascimento, Radamés Gnattali e Camerata Carioca (depois a mesma suíte ainda teria duas outras adaptações, ambas registradas em disco: para dois violões com o Duo Assad, e para acordeom, violão de 7 cordas e violão-baixo, com Chiquinho, Rafael Rabello e Dininho).

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Bem feliz, no meio da gurizadinha.... O velho maestro empolgou-se tanto com essa jovem turma de músicos que resolveu que ia tocar junto. O pessoal o idolatrava. Um dos novos integrantes da turma era o cavaquinista (e hoje também pesquisador) Henrique Cazes, e lembra: Radamés era mais jovem do que a gente, sempre com aquele impagável humor meio ranzinza. A resposta radamélica a essa frase de Henrique poderia ser: Eu não sei disso, não, eu não acho que eu tenho mau humor (…) eu fico meio chateado, às vezes, é com a burrice, sabe? Em 1981, novo projeto conjunto Camerata-HermínioRadamés: Vivaldi & Pixinguinha, que vira disco no ano seguinte. Sem Hermínio, ainda há o show com a Camerata, Joel, Radamés e a cantora Zezé Gonzaga, sempre citada pelo velho como a mulher mais afinada que ele conhecia. Cada vez mais encantado com o jovem prodígio Rafael Rabello, propõe um duo como os que havia feito com gênios como Laurindo de Almeida e Zé Menezes. O resultado está no LP Tributo a Garoto. No repertório, só músicas de violonista, amigo saudoso de Radamés e herói de ambos. Aliás, é só ouvir o choro Alma Brasileira, de Radamés, composto em 1930 e gravado por Garoto, pra se dar conta de que Radamés foi uma influência importante também para ele: parece Gente Humilde, 15 anos antes.

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Radamés e Rafael: amigos jovens toda a vida de um velho jovem toda a vida O disco se completa com uma versão para violão e piano do Concertino nº 2 para Violão e Orquestra, que Radamés tinha escrito para Garoto, estreada num concerto regido por um injuriado Eleazar de Carvalho que foi pra imprensa reclamar que agora tinha de reger até violão… Em 1983, mais duas obras-primas. O disco Tocar (Polygram), reúne aCamerata no auge do brilho e Radamés pairando em arranjos e composições. Há uma versão camerística de Remexendo - com o próprio ao piano – e duas das melhores valsas radamélicas: Valsa Triste eUma Rosa para Pixinguinha. No pique, monta com Elizeth Cardoso, Túlio Feliciano e a Camerata o espetáculo Uma Rosa para Pixinguinha – que também vira disco. Passa a excursionar por todo o Brasil, tanto com o Quinteto quanto com a Camerata. Segundo Rafael, parecia uma criança que saía sem a mãe: se entupia de vatapá à meia-noite e depois tinha de passear pela noite pra fazer a digestão. Retoma totalmente seu prestígio, que estava hibernando resguardado por gente como Dorival Caymmi – para quem Radamés escreveu alguns dos melhores arranjos das carreiras de ambos. Aos 77 anos, parecia um guri faceiro ao ganhar o respeitado Prêmio Shell na categoria música erudita – com direito a um concerto em sua homenagem, no carioca Theatro Municipal, reunindo a Orquestra Sinfônica do Rio de Janeiro, o Duo Assad e a Camerata Carioca. Em 1984, tinha estabelecido uma meta e tanto:

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Há mais de seis meses estou estudando piano para ver se consigo tocar como tocava quando tinha vinte anos. Tá difícil, mas eu vou chegar lá. Aí, no auge da animação com essa retomada inesperada da carreira às vésperas dos 80 anos, o destino faz uma maldade. Tinha fechado 1985 a mil. Tocara no I Free Jazz Festival com Rafael e a Camerata, seu quinteto tinha agora Zeca Assumpção no contrabaixo, acabara de sair sua biografia Radamés Gnattali, o Eterno Experimentador (de Valdinha Barbosa e Anne Marie Devos). Lançara dois LPs, ambos chamados Radamés Gnattali: um de piano solo, pelo selo Libertas, tocando genialmente pérolas alheias. O outro, pela Funarte, só com dobradinhas bem sacadas: Meu Amigo Radamés, de Tom Jobim, e Meu Amigo Tom Jobim, dele; Sarau para Radamés, de Paulinho da Viola e Obrigado, Paulinho, dele; Um Choro para Radamés, de Capiba, e Capibaribe, de Radamés. Pra completar o LP, Quarteto Popular, para quarteto de cordas, em três movimentos. Uma joia de disco, relançado em CD, e que tem como convidados especiais justamente Tom e Paulinho da Viola, além de Chiquinho e Zé Menezes. Nesse mesmo ano ainda sobrara tempo pra escrever todos os arranjos de um álbum duplo do velho amigo Caymmi, acompanhado pela Camerata Carioca e produzido por Jairo Severiano: Caymmi, som, imagem, magia. Estava feliz: Não estou satisfeito com a situação dos músicos no Brasil, mas estou satisfeito comigo mesmo. Eu sou feliz. Casei duas vezes, muito bem casado. Tenho bons amigos, sempre tive. O Luciano (Perrone) me convida para almoçar todo mês. Tenho meu dinheiro para tomar um chopezinho. Quando não tenho, o Tom paga. Perrone, seu melhor amigo de toda a vida, e que declararia em 1991: O que você botar de elogio ao Radamés eu assino embaixo. E vai ser pouco.

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Os discos que ele fez depois dos 72 anos de idade… Só que aí, mal começava 1986, sofre uma isquemia cerebral que lhe paralisa todo o lado direito. Mas ela não o derruba. Obstinadamente reaprende a falar e escrever. Em julho, já estava compondo novamente. Em outubro, graças a horas e horas de estudos diários, já tocava piano razoavelmente bem. O pessoal do

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quinteto se animava pro concerto em comemoração aos 80 anos e a volta do seu amado chefe. E aí vem uma segunda isquemia e o liquida. Vai morrer só dia três de fevereiro de 1988, depois de uma longa agonia de mais de um ano em cima duma cama. Roberto Gnattali, sobrinho, maestro e aplicado discípulo, lembra emocionado dos meses que o velho passou em coma, quase vegetativo: Radamés não merecia isso. Morreu quando seu talento estava no auge. Uma das últimas frases ditas pelo tio ao sobrinho, pouco antes de deixar de reconhecer as pessoas: - Porra, Roberto, agora que tava ficando bom… * * * Se a fama maior de Radamés veio a partir de seu trabalho como pianista e arranjador de música popular, é no universo erudito que, desde sua morte, ele vem deixando firmada a assinatura de grande compositor. Autoclassificado como um neoclássico nacionalista, nessa ou qualquer outra praia foi um dos eruditos brasileiros que mais produziram. Considerando que, no mais das vezes, escrevia pra dar de presente a composição para quem a tocaria, dá pra dizer que ele sim é que tinha um milhão de amigos. Funcionava assim: ficava primeiro fã, logo vinha a amizade, e aí saía escrevendo um presente. Henrique Cazes: Com um detalhe. Ele dava de presente a partitura original e não tirava nem cópia. O melhor da música de Radamés está justamente naquela fronteira entre o erudito e o popular que tão poucos músicos trilham com maestria. Independente dos resultados sonoros diversos, é algo como o que Astor Piazzolla fez na Argentina, Frank Zappa nos Estados Unidos, Nino Rota na Itália, Kurt Weill na Alemanha. Uma música que tem o rigor da escritura erudita, mas o suíngue e a capacidade de comunicação da popular. Uma música que só pode ser feita por quem, como Piazzolla, Radamés ou Weill, tocou muita música pra dançar. Ou que, como Nino Rota, Zappa, Astor ou Radamés, era mestre na arte de ilustrar com música imagens em movimento.

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Com Piazzolla, então, há mais similaridades além dos momentos onde fica difícil dizer “isso é popular, isso é erudito”: ambos foram pioneiros no uso sistemático da guitarra elétrica em seus grupos, ambos mantiveram por décadas quintetos/sextetos de formações muito similares (acordeom/bandoneon, guitarra, piano, contrabaixo em ambos – só varia entre bateria e violino, instrumentos essenciais em cada tradição de onde partiam). Os dois também conciliavam com rara equivalência as qualidades de instrumentista, compositor e arranjador. E faziam, basicamente, música instrumental, mas com incursões eventuais pela canção. Pra completar: morreram os dois sem realizar o mesmo desejo: escrever uma ópera.

Radamés, seu gato e Rafael. Que trio. Um de seus mais aplicados discípulos, Rafael Rabello, definia bem o mestre. Rafael, que em 1991 tocou literalmente por amor – sem ganhar um tostão – na inauguração da Sala Radamés, em Porto Alegre, acreditava em Rada como um visionário: O que o Villa-Lobos fez com o Brasil folclórico e rural, Radamés fez com o folclore urbano brasileiro. Mais ou menos como o George Gershwin, nos Estados Unidos. E ele nunca deixou de ser um anarquista, como o pai italiano e grevista. Mas, acima de tudo, um humanista. Sem exceção, ajudou todos os grandes nomes da música brasileira.

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Radamés. Nos violões, Garoto e Zé Menezes. Que trio. Foi esse anarquista que escreveu arranjos para formações tão esdrúxulas como piano e sexteto de caixas de fósforos. Concertos para praticamente todos os instrumentos que se possa imaginar: flauta, violino, violão, harpa, gaita de boca, saxofone, bandolim, acordeom, trio de piano, contrabaixo e bateria, e até tumbadoras (!!!). Pra não falar numDivertimento para Marimbafone (?!?) e Orquestra, na Sonata para Guitarra Elétrica e Violonceloou na já citada e esplendorosa Suíte Retratos. Mesmo instrumentos hoje incorporados às salas de concerto, como o violão, foram tratados com respeito por Radamés quando isso ainda não era comum. Como é o caso do também já citado Concertino Nº 2 para Violão e Orquestra, escrito para o grande amigo Garoto. A peça só foi estreada em 1952, depois de muita pressão. Porque não se concebia um instrumento como esse no mesmo Theatro Municipal onde, em 1934, ele brilhara com seu Concerto N° 1 para Piano. Enquanto a saúde permitiu, ele acordava todos os dias às quatro da manhã e escrevia música até as 10. Paulinho da Viola, outro fã, relembra: ele escreveu coisas para naipes absurdos, que sabia que nunca ia ouvir. Mas não importava: escrevia assim mesmo. E isso era uma coisa da qual Radamés muito se orgulhava: instrumentistas, em geral, detestam os maestros. Mas com ele era diferente: sentava e tocava junto com o pessoal, e bem pacas. Com isso ganhava o respeito e a cumplicidade de todos. Paulinho, sempre tímido, sempre o observara de longe, escondido atrás de seu pai, César Faria, que era violonista do Regional Época de Ouro, de Jacob do Bandolim. Só foi conhecer de verdade o mestre em 1980, quando escreveu o choro Sarau para Radamés, criou coragem e o convidou para tocarem a música juntos num especial da Globo. Ele lembra até hoje: Radamés pegou a partitura, que era difícil, e saiu tocando. Sabia tudo. Luís Otávio Braga, o 7 cordas fundador da Camerata Carioca, fez parte do conjunto que gravou Sarau no 59

disco de Paulinho. E se diverte lembrando das caretas de mal disfarçada impaciência do velho a cada vez que alguém errava e tinham de começar tudo de novo. O pior é que geralmente esse alguém era Paulinho, nervosíssimo. Radamés já estava quase desistindo da homenagem quando finalmente rolou o take definitivo. Alceu Bocchino, colega de toda a vida e, como ele, descendente de italianos, maestro, compositor e pianista, escreveu sobre o amigo o que talvez seja sua melhor síntese: Como classificar um músico capaz de escrever, com autenticidade, alentadas obras sinfônicas, concertos para violino, piano, acordeão, harmônica de boca e tantos outros instrumentos; valsas e chorinhos populares e, depois, sentar-se ao piano e executar com precisão o que escreveu e, ainda, obras de outros autores? Se “o estilo é o homem”, conforme Buffon, e, na verdade, o é, devemos consagrar, batizando com o nome Estilo Radamés Gnattali todos os que forem capazes de tais façanhas. A propósito da fantástica capacidade de leitura e improvisação de Radamés, o gaúcho Marcelo Sfoggia, gênio das gravações locais, lembra de um churrasco em sua casa na década de 1980, reunindo o maestro e o saxofonista e clarinetista Paulo Moura. Sem parar de conversar, Radamés deu uma rápida passada de dedos pelo teclado do piano da sala de Marcelo, aparentemente distraído. Em seguida, saiu tocando. Naquela passada tinha fixado na memória as teclas que estavam desafinadas ou emperradas. Na hora de tocar, substituía esta ou aquela nota por outra, e o piano soava perfeito. Outro detalhe interessante revelado pelos amigos é que Radamés escrevia arranjos verticalmente. Explica-se: normalmente se escreve primeiro a melodia, depois, por exemplo, o baixo, a harmonia e assim vai. Mas Radamés tinha tudo tão claro na sua cabeça que escrevia ao mesmo tempo, um compasso por vez. Segundo Nelly, não levava muito mais que meia hora pra terminar um arranjo inteiro. ***

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Radamés e Tom, a vida toda. Rafael Rabello, Henrique Cazes, Paulinho da Viola, Braguinha, Aluísio Didier, Perrone e Tom Jobim foram unânimes nas entrevistas que deram origem a este capítulo. Todos lembraram que, além de grande músico e grande sujeito, ele também cultivava cuidadosamente um falso mau-humor que fazia a delícia dos habitués da sua mesa cativa no Restaurante Lucas, em Copacabana. Era ali que durante todos os finais de tarde na década de 1970 – quando saía da TV Globo –, ele se encontrava com os amigos. Todos numa faixa etária bem restrita: entre os 20 e os 80 anos. Aluísio Didier, maestro, pianista e companheiro de Rede Globo: Ele era um homem de muitos amigos, de amigos que duraram 30, 40, 50 anos, um cara muito afetivo. Zé Menezes, um desses, completa: Ele parecia, assim à primeira vista, uma pessoa esquisita, uma pessoa estranha. Mas ele era um coração maravilhoso, um amigo maravilhoso, (…) um coração de ouro. O negócio dele era o seguinte: ele não admitia que nenhum músico pisasse na bola. (…) Ele chegava na Continental: vamos gravar logo!. Tinha quatro músicas pra gravar, ele queria gravar em 10 minutos, porque ele tinha que ir pro Lucas tomar chope e vambora, vambora, vamos gravar logo isso. Era assim. Didier coletou ao longo de anos uma série de tiradas do seu herói que transformou num precioso livro-vídeo chamado simplesmente Radamés, relançado em 2008 em DVD com o nome deNosso Amigo Radamés. Graças a Aluísio, Roberto Gnattali e Nelly e ao apoio da Petrobrás, há também o sensacional CD-ROM Catálogo Digital Radamés Gnattali, mais difícil de achar, com suas partituras, áudios, recortes de jornal escaneados, composições e discos

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catalogados, distribuído para instituições diversas em 2005, e o completíssimo site radamesgnattali.com.br. Algumas histórias. Em plena mesa do Lucas, o papo-cabeça rolava solto. Os amigos discutiam sobre se Vivaldi, o compositor barroco, era ou não repetitivo. Radamés quieto, visivelmente enfadado. Depois de dezenas de chopes e argumentos, cansam da discussão, e se instala um daqueles silêncios súbitos. Só então, olhando pro fundo do copo de chope, o velho resmunga: – Vivaldi era o Martinho da Vila do Barroco. Discussão encerrada.

Radamés, Jacob do Bandolim e um quase adolescente Hermínio Bello de Carvalho... Outra, lembrada por e-mail por Hermínio Bello de Carvalho: Radamés andava, inquieto, de um lado pro outro no camarim de Zezé Gonzaga. Ela se maquiava. Os músicos ainda não haviam chegado. Percebendo a inquietação do Maestro, ora Zezé lhe oferecia um cafezinho (ou outra qualquer gentileza), e Radamés continua emburrado. Lá pelas tantas, não se conteve: “E quer saber de uma coisa? Vai ser afinada assim na puta que o pariu!”. Mais uma, contada por Henrique: sempre que lhe perguntavam se ainda era simpatizante do Partido Comunista, como o fora na juventude, Radamés respondia: Os comunistas me diziam, “faz a tua música que nós fazemos a revolução”. Eu fiz uma porrada de músicas. E eles até agora nada! 62

E aí, colada com essa: o cantor e compositor Taiguara, no auge de sua fase mais inflamada de protesto, lhe encomenda um arranjo. Radamés chega no estúdio, entrega as partes e os músicos dão uma primeira passada. Taiguara se extasia, abraça o maestro e diz, com os olhos rasos d’água: Radamés, esse arranjo é uma vitória do povo! Sem nem afastar nem retribuir o abraço, Radamés olha pra ele, já puto: O povo não entende nada de música, Taiguara! Esse arranjo é meu! Por fim, o depoimento do pianista e produtor paulista Benjamim Taubkin, que sempre teve Radamés como ídolo, e muito penou até convencê-lo a ir tocar em São Paulo, nos anos 1980: Conheci o Radamés em 84. Convidei ele pra tocar em uma série que eu estava fazendo em um espaço em São Paulo – Engenho e Arte, que abriu um lugar para concertos de música. Eu tinha ficado alucinado com a música dele e queria porque queria que ele viesse tocar em São Paulo. Liguei e ele não mostrou o menor interesse. Insisti, e nada. Liguei um mês mais tarde (tava realmente a fim, e tinha achado que ele recusou por um certo desânimo). Dessa vez ele topou: disse que tinha voltado a ter prazer em tocar, por conta de um jovem violonista, na época com 18 anos: o Rafael (Rabello). Bom… Ele chegou dois ou três dias antes, por conta da divulgação. Convivi com ele nestes dias. Era uma pessoa culta e informada. Acompanhei uma entrevista (o Rafael também estava presente) com um jornalista de um grande veículo de São Paulo (deixa os nomes pra lá…). O cara estava todo entusiasmado e começou a dissertar sobre alguma relação entre os quartetos de Schumann e Schubert. Falou por uns dez minutos. O Radamés quieto ouvindo. Quando ele acabou perguntou a Radamés o que ele pensava. E o Radamés, na lata, respondeu: – Meu filho, quanta bobagem… Era ou não era um grande cara?

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