Rádio Brincadeira: os jogos sonoros e performances do corpo nos programas infantis

July 21, 2017 | Autor: Rodrigo Fernandes | Categoria: Radio, Sound studies, Children's Play, Jogos
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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Rodrigo Fonseca Fernandes

Rádio Brincadeira: os jogos sonoros e performances do corpo nos programas infantis

Doutorado em Comunicação e Semiótica

São Paulo 2014

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Rodrigo Fonseca Fernandes

Rádio Brincadeira: os jogos sonoros e performances do corpo nos programas infantis

Doutorado em Comunicação e Semiótica Tese apresentada à banca examinadora como exigência parcial para obtenção do título de doutor em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Norval Baitello Junior.

São Paulo 2014

Rodrigo Fonseca Fernandes

Rádio Brincadeira: os jogos sonoros e performances do corpo nos programas infantis

Tese apresentada à banca examinadora como exigência parcial para obtenção do título de doutor em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob a orientação do Prof. Dr. Norval Baitello Junior.

Tese defendida e aprovada pela comissão julgadora em: _____/______/______

Membros da Comissão Julgadora

_________________________________________ Prof. Dr. Norval Baitello Junior – PUCSP (Orientador) _________________________________________ Prof. Dr. José Eugenio de Oliveira Menezes – Faculdade Cásper Líbero _________________________________________ Prof. Dr. Irineu Guerrini Junior – Faculdade Cásper Líbero _________________________________________ Profa. Dra. Carmen Lúcia José – PUCSP _________________________________________ Profa. Dra. Pollyana Ferrari Teixeira – PUCSP

Para Mi com amor

AGRADECIMENTOS

Aos meus pais Rosangela e Roberto e à minha irmã Bárbara À Michely Vogel, pelo amor e pelas revisões de formatação e normas. Ao meu orientador, Prof. Dr. Norval Baitello Junior, pelo percurso de pesquisa À CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoa de Nível Superior), pela bolsa concedida Aos Professores José Eugenio de O. Menezes, Irineu Guerrini Jr, pelos preciosos conselhos na banca de qualificação e mesmo em outros momentos, e também a Carmen Lúcia José, Pollyana Ferrari, Christian Pelegrini e Herom Vargas por fazerem parte desse encerramento. Aos colegas dos Grupos de Pesquisa Comunicação e Cultura do Ouvir e Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (CISC), pelas discussões e trocas. Aos colegas professores da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, FIAMFAAM, Belas Artes e FAINC pelo apoio. A todos os amigos que colaboraram com afetos, dicas e sons que confundiram a cuca

RESUMO Esta pesquisa investiga as tensões entre as lógicas lineares da produção radiofônica e as possibilidades criativas e libertadoras da linguagem do rádio. A partir da análise de programas voltados às crianças, pretende-se demonstrar que o rádio é ambiente de vinculação através de performances sonoras oriundas dos corpos. Desta forma, busca-se responder ao seguinte problema: em que medida os jogos sonoros presentes nos programas infantis permitem a liberdade de criação e desmontagem de elementos lógicos narrativos entre as crianças? O objetivo é compreender a partir dos programas existentes em emissoras de rádios brasileiras as performances sonoras como possíveis gestos de desmontagem das características lineares do rádio tradicional. A pesquisa tem como corpus os seguintes programas: Rádio Maluca e Estação Brincadeira, ambos da Rádio MEC/RJ; programa Para Ouvir e Aprender, veiculado na Rádio Rural de Santarém-PA; projeto-piloto A Loja do Tio Nico, desenvolvido pelos alunos da Universidade Municipal de São Caetano do Sul; áudio didático Projeto Faz de Conta, produzido pela Rádio Cultura e utilizado nas escolas do Estado de São Paulo. Foram observadas as performances sonoras ao vivo no auditório da Rádio Nacional, de onde é transmitido o programa Rádio Maluca, entre os anos de 2011 e 2012. É proposto como referencial teórico o conceito de jogo em Huizinga e Caillois, que opera nas construções de ambientes culturais presentes em Bystrina, Wulf, Gebauer e Baitello Junior. A operação do lúdico no rádio é possível através de performances com sonoridades que foram observadas a partir de Schafer, Schaefffer, Sperber, Arnheim, Deharme e Menezes, buscando os elementos estéticos e de vinculação presentes nas paisagens sonoras do rádio. Observou-se que os jogos veiculados pelos programas infantis de rádio exploram a criatividade da criança a partir de elementos da visualidade, em detrimento da criação puramente sonora. Palavras-chave rádio infantil; jogos sonoros; vínculos sonoros; rádio-arte; cultura do ouvir

ABSTRACT This research investigates the tensions between the linear logic of radio production and the creative possibilities and liberating the language of radio. From the analysis of programs geared to children, we intend to demonstrate that the radio is a binding environment through sound performances from the bodies. In this way, we try to answer the following problem: to which extent the sound games present in children's programs allow the freedom of creation and disassembly of logical narrative elements among children? The goal is to understand the sound performances of the programmes in Brazilian radio stations as possible gestures of disassembly of the linear characteristics of traditional radio. The research has as corpus the following programs: Rádio Maluca and Estação Brincadeira MECRJ, both from Rádio MEC-Rio de Janeiro; Para ouvir e aprender program, broadcasted on Radio Rural de Santarém/Pará; pilot project Loja do Tio Nico, developed by students of Universidade Municipal de São Caetano do Sul; didactic audio Projeto Faz de Conta, produced by Rádio Cultura and used in schools in the State of São Paulo in Brazil. The performances were observed live from the Auditorium of Rádio Nacional, where it is broadcast Rádio Maluca program, between 2011 and 2012. The theoretical framework is based on concept of game in Huizinga and Caillois, which operates in constructions of cultural environments present in Bystrina, Wulf, Gebauer and Baitello Junior. The playful radio operation is possible through performances with sounds that have been observed in Schafer, Schaefffer, Sperber, Arnheim, Deharme e Menezes, looking for the aesthetic elements and binding present in radio soundscapes. It was observed that the games aired by radio children's programs explore the creativity of the child from elements of visuality, rather than purely sound creation. Keywords children's radio; sound games; sound bounds; radio-art; culture of hearing

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 10 1 CRIANÇAS QUE BRINCAM, OUVEM E TECEM VÍNCULOS ......................................................... 19 1.1 Os laços primitivos: ontogênese das comunicações infantis ............................................ 19 1.1.1 A etologia: empatia, pertencimento e o corpo como mídia primária ......................... 24 1.2 Os jogos e as crianças: as brincadeiras de mimicry........................................................... 27 1.3 A relação entre Meios de comunicação e a criança .......................................................... 30 1.4 Afinal, o rádio é mais imaginativo que a TV? Alguns estudos empíricos .......................... 33 2 RÁDIO CRIANÇA: OS PROGRAMAS INFANTIS ........................................................................... 41 2.1 Rádio Racional ................................................................................................................... 41 2.2 Rádio infantil para ouvir e consumir ................................................................................. 44 2.3 Rádio Nacional: programas Rádio Maluca e Estação Brincadeira ..................................... 47 2.4 Para ouvir e aprender........................................................................................................ 57 2.5 Web Rádio Criança ............................................................................................................ 61 2.6 Algumas considerações ..................................................................................................... 62 3. RÁDIO BRINCADEIRA: BRICOLAGEM SONORA E ESTÉTICA DO CORPO QUE BRINCA ............. 64 3.1 Rádio surreal: Paul Deharme e o rádio dos sonhos .......................................................... 64 3.1.1 Rádio-arte: relações entre rádio, cinema e teatro ....................................................... 68 3.2 A experiência da Loja do Tio Nico ..................................................................................... 71 3.3 Bricolagem: o rádio das mãos e do corpo ......................................................................... 79 3.3.1 Desmontagens: maneirismos, distúrbios e afetos ....................................................... 85 3.5 Faz de conta: rabiscos de imaginação ............................................................................... 87 4 BRINCADEIRAS FINAIS .............................................................................................................. 98 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................. 102 BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ............................................................................................... 106

LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Quadrinhos Little Orphan Annie e Buck Rogers........................................................ 46 Figura 2 - Performance de Mariano e Zé Zezuca ........................................................................ 49 Figura 3 - Zé Zezuca com chapéu e Mariano .............................................................................. 50 Figura 4 - Zé Zezuca entrevista as crianças ................................................................................ 51 Figura 5 - Homepage da Webradio Criança ................................................................................ 62 Figura 6 - Matheus brinca com aparato que imita sons do mar................................................... 73 Figura 7 - Matheus roda aparato que imita sons de um timão..................................................... 73 Figura 8 - Atores vestidos de preto agitam “conduítes” e golpeiam cabides de alumínio. ......... 75 Figura 9 - Matheus brinca de espadas e os sons são captados por microfones. .......................... 75 Figura 10 - Menina e Matheus vestem máscara e participam da brincadeira.............................. 76 Figura 11 - Matheus brinca de imitar sons a pedido da bailarina................................................ 77 Figura 12 - Bailarina e Desmontado dançam no final do programa............................................ 78

INTRODUÇÃO Conhecido popularmente como “amigo do ouvinte”, o rádio se faz presente no cotidiano das grandes cidades até dos vilarejos mais longínquos. Veículo de prestação de serviço, de entretenimento, de divulgação cultural, transmitido por pequenos aparelhos instalados nos carros, nas casas e nos dispositivos móveis. O rádio é o companheiro do futebol, das paqueras, e oferece a instantaneidade da informação e a distração durante o trânsito carregado. Ouvem rádio os engravatados em fim de expediente, as senhoras em expediente caseiro, os jovens em expedientes escolares. Contudo, o rádio não parece participar com intensidade de um dos momentos mais significativos da vida de um indivíduo: a sua infância. Uma pesquisa acadêmica que se proponha a analisar programas infantis no rádio certamente se encontrará de frente com o problema da baixa quantidade de produtos dessa natureza. A ausência de programas infantis no rádio trará sempre à tona o debate sobre o interesse do público infantil em produções de entretenimento que não contem com o recurso visual. Em 1988, Dóris Fagundes Haussen investigava em sua dissertação de Mestrado as razões pelas quais as emissoras de rádio não investiam em produções de conteúdo para crianças. A autora entrevistou jornalistas, radialistas e publicitários, mapeando as percepções do mercado radiofônico em relação a esse tipo de programação. Jornalistas e produtores se queixam da falta de interesse por parte da publicidade em anunciar no rádio produtos voltados ao público infantil, enquanto publicitários alegam que as produções infantis deixam a desejar no retorno em audiência, prejudicando o investimento financeiro. Através de pesquisas com crianças em forma de questionário, Haussen expôs a grande defasagem do rádio em relação à TV nos hábitos infantis É interessante salientar de início que, de maneira geral, ao responderem as questões sobre o rádio, as crianças mantinham uma atitude que se pode chamar de “normal”, mas ao chegar aos itens sobre a televisão seus rostos praticamente se iluminavam, demonstrando claramente sua afinidade maior com esse veículo de comunicação (Haussen, 1988, p. 105).

Para levar adiante a discussão sobre a ausência de interesse das crianças nos programas radiofônicos, é necessário um mergulho na essência do ouvir como corporeidade. As questões levantadas nesta pesquisa não podem ser tratadas como 10

avaliação de qualificação das audiências, nem como conjunto de percepções das crianças ao material apresentado. O que está em jogo é a participação efetiva da criança na construção (ou desmontagem) dos programas de rádio; o que pode ser alcançado pelas operações lúdicas provocadas pelas sonoridades dos programas infantis. Trata-se, portanto, de um estudo da ontogênese do ouvir, desde os estágios mais primários da constituição corpórea, sensorial e cognitiva das crianças. Parte-se do princípio de que os programas radiofônicos são elaborados a partir da construção linear de narrativas, compostas pela voz do locutor, trilhas sonoras e efeitos musicais. Este modelo é resultado do desenvolvimento do fazer radiofônico ao longo de décadas; grades de programações, blocos comerciais, patrocínios, participação do ouvinte, jornadas esportivas e boletins de giro de notícias são apenas alguns exemplos dos formatos que caracterizam o rádio como meio de comunicação e sincronização social. A instrumentalização do rádio cumpre, portanto, a promessa de uma sociedade informada, organizada e preparada para o progresso. Configurado como tal, o rádio deixa de exercer em sua plenitude a função de meio de experimentações sonoras e construções coletivas de conhecimento. Soma-se a essa problemática, o fato do rádio concorrer diretamente com a televisão pela atenção dos consumidores, incluindo os “consumidores-mirins”. A partir do cenário apresentado, a pesquisa parte da pergunta-problema “em que medida os jogos sonoros presentes nos programas infantis permitem a liberdade de criação e desmontagem de elementos lógicos narrativos entre as crianças?”. Ressalta-se novamente que não é possível analisar a operação do lúdico nos programas infantis levando em conta necessidades comerciais baseadas nas medições de audiência. O que buscou-se ao longo da pesquisa foi a efetiva participação da criança na programação radiofônica; até que ponto essas crianças foram envolvidas pelo fazer instrumentalizado das técnicas radiofônicas e em que medida suas atitudes (performances) colaboraram para a desmontagem da lógica da narrativa no rádio. Desta forma, o rádio não foi tratado nesta pesquisa como meio de comunicação, de transmissão de informações, mas como ambiente de construções sonoras e de performances do corpo. Rádio como ambiente: A importância de se estudar os produtos e os processos midiáticos, notadamente no rádio, como fenômenos circunscritos a ambientes de comunicação, vem sendo 11

reverberada pelo Grupo de Pesquisa Comunicação e Cultura do Ouvir, sediado na Faculdade Cásper Líbero desde 20091. Esta pesquisa mostra-se alinhada com as reflexões provocadas pelos pesquisadores do grupo, que procuram intensamente compreender as relações entre corpo, som, informação e vínculos, que são tecidos pelas narrativas orais do rádio. Uma das abordagens metodológicas utilizadas para estudar o rádio como ambiente de vínculos é a etnografia, notadamente a proposta pelo antropólogo belga Yves Winkin (1998; 1981). Para o autor, que é um estudioso das obras de Erving Goffman, é através das performances coletivas dos “atores sociais” que se constroem os processos de comunicação. A contribuição de Winkin está, portanto, no seu olhar antropológico da comunicação, fundamentado nas linguagens do corpo e da fala que se desenrolam em um determinado ambiente. Alguns desdobramentos da relação entre performances corporais e produtos radiofônicos foram tratados na pesquisa de Mestrado “Jogos Orquestrais: vínculos sonoros nas jornadas esportivas da Eldorado/ESPN” (Fernandes, 2010). Tanto no caso de uma transmissão esportiva quanto na produção de um programa infantil, o rádio desempenha a função de mediatizar um ambiente lúdico (do estádio de futebol ou do estúdio preparado para a brincadeira infantil), a partir de sonoridades, de forma que os ouvintes/participantes possam recriar este ambiente em seu local de recepção, jogando não apenas com o programa radiofônico, mas com os outros corpos à sua volta. O termo “jogos orquestrais” foi pensado a partir do conceito de comunicação orquestral (Winkin, 1998), indicando que a metáfora da orquestra, conforme foi proposta por Winkin para estabelecer um olhar sobre a dinâmica da comunicação, é aproveitada neste estudo também no sentido de propor um ambiente rizomático e organizado de troca de informações, experiências e sensações. Com efeito, este sentido de orquestra se amplia a partir do momento em que imputamos ao som um papel fundamental na sincronização e na vinculação entre os atores sociais numa partida de futebol. Existe, neste caso, o sentido da música orquestral, do som no centro do evento (Fernandes in Menezes e Cardoso, 2012, p.233).

Parte desta abordagem antropológica será utilizada na construção metodológica da presente pesquisa, visto que os elementos lúdicos serão mapeados através das performances corporais das crianças. Para tanto, foi necessário buscar programas de rádio que possibilitassem a exploração das operações lúdicas como construção de O autor desta pesquisa é membro do Grupo desde sua fundação em 2009. Informações: http://dgp.cnpq.br/dgp/faces/grupo/visualizar/visualizar_grupo_pesquisa.jsf?faces-redirect=true

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ambientes sonoros e de quebra da linearidade da narrativa. Desta forma, foram selecionados como corpus de pesquisa os seguintes programas: Rádio Maluca: programa transmitido ao vivo a partir do auditório da Rádio Nacional e veiculado pelas frequências da Rádio MEC e Rádio Nacional, emissoras públicas de rádio. Para ouvir e aprender: programa educativo veiculado pela Rádio Rural, de Santarém no Pará. Um exemplo importante de programa de rádio que atende as crianças de uma região afastada dos grandes centros. Projeto-piloto Loja do Tio Nico: uma produção universitária que propõe novos formatos de programas para crianças, desde sua linguagem até as formas de veiculação, trazendo as formas online de transmissão de conteúdo. Projeto Faz de Conta: material em áudio utilizado em sala de aula nas escolas estaduais de São Paulo. Produzido pela Rádio Cultura, o programa extrapola os formatos do rádio tradicional e propõe o exercício desenvolvimento criativo através do áudio na relação professor-alunos. Também foi citado um exemplo de canal de rádio voltado às crianças e totalmente produzido e veiculado pela internet. É o caso da webradio Criança, produzida pela Rádio Educadora da Bahia. Metodologia A pesquisa se construiu a partir da análise dos programas infantis citados anteriormente. A ideia é que não fossem feitas apenas escutas dos programas, mas que também fosse possível o exercício de observações in loco. Durante os anos de 2011 e 2012 foram feitas quatro visitas ao auditório da Rádio Nacional, no Rio de Janeiro, durante a apresentação ao vivo do programa Rádio Maluca. Embora tenha se estabelecido o contato com a produção do programa e com o próprio apresentador, decidiu-se pela não realização de um questionário nem com as crianças nem com os apresentadores. O objetivo da visita era poder observar e anotar as diversas performances ocorridas tanto no palco quanto na plateia, sem a intervenção do pesquisador. Também não se buscou mapear o perfil das crianças presentes ao auditório, pois o estudo não leva em conta fatores socioeconômicos, nem sequer pretendia registrar em forma de texto as impressões das crianças em relação ao programa. Por outro lado, as observações realizadas no auditório foram fundamentais para o desenvolvimento de análises 13

Os programas Estação Brincadeira e Para Ouvir e Aprender foram acompanhados à distância pela audição do material veiculado em streaming pelos portais de ambas as rádios. Como não é objetivo desta pesquisa a medição temas, expressões, ou qualquer outra fonte de natureza quantitativa, não foram realizados monitoramentos em um período específico. Um dos programas analisados, o projeto-piloto Loja do Tio Nico foi acompanhado desde sua concepção, já que este pesquisador era responsável pela orientação dos alunos no desenvolvimento do trabalho. Contudo, coube aos alunos a elaboração de laboratórios de experimentações sonoras com as crianças, bem como a confecção dos aparatos sonoros que foram utilizados durante as gravações. Ao orientador coube o aporte teórico e o acompanhamento das etapas de produção e gravação e edição dos programas. Rádio e pedagogia A pesquisa que se apresenta propõe um olhar antropológico das performances infantis no rádio, tendo como pano de fundo os jogos sonoros como provocadores dessas performances. Portanto, como já foi dito, pretende-se explorar os aspectos do desenvolvimento ontogenético do ouvir, observando os vínculos sonoros criados no ambiente de produção e recepção dos programas infantis. É necessário ressaltar importantes linhas de pensamento do desenvolvimento cognitivo nas crianças, notadamente a proposta pelo pensador Lev Vigotski (2007), que não é aprofundada nesta tese, mas precisa ser destacada. Vigotski apresenta na obra “A formação social da mente” (2007) as relações entre o desenvolvimento da criança e seu aprendizado. Em termos gerais, o autor apresenta três posicionamentos prévios sobre a relação entre desenvolvimento e aprendizado, a saber: um pressuposto de que os processos de desenvolvimento independem do aprendizado; o segundo pressuposto afirma que aprendizado é desenvolvimento; o terceiro pressuposto que tenta “superar o extremos das outras duas, combinando-as” (Vigotski, 2007, p. 90). O que é importante destacar neste estudo é a possibilidade de observarmos o aprendizado como um elemento estritamente ligado ao desenvolvimento ontogenético, mas como entes diferenciados. Em outras palavras, esta pesquisa se foca no desenvolvimento humano, processo que se dá, segundo Vigotski, nas relações do indivíduo com o seu entorno. Não se trata, portanto, de analisar nos programas radiofônicos quaisquer ferramentas de

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aprendizado, de construção de conhecimento, mas de processos relacionais que configuram o desenvolvimento ontogenético da criança. Outro aspecto importante nas teorias de Vigotski é a relação da criança com o brinquedo. O que está em jogo, neste caso, é a ideia do brinquedo como instrumento de prazer à criança. Vigotski argumenta que o brinquedo realiza desejos não realizados da criança, que projeta em sua imaginação e no brinquedo essas ações não realizadas. “Se todo brinquedo é, realmente, a realização na brincadeira das tendências que não podem ser imediatamente satisfeitas, então os elementos das situações imaginárias constituirão, automaticamente, uma parte da atmosfera emocional do próprio brinquedo” (Vigotski, 2007, p. 110). Fica evidente, portanto, a preocupação do autor com as construções cognitivas possíveis na relação criança e brinquedo, diferente da abordagem do lúdico como performance do corpo que foi proposta nesta pesquisa. Com relação à função desempenhada especificamente pelo rádio como meio de educação, destaca-se, sobretudo, o esforço de Edgard Roquette-Pinto no início do século XX para estabelecer um rádio que não apenas atuasse como um medium de entretenimento, mas como um ambiente de aprendizagem e divulgação da cultura brasileira. Embora não seja intenção desta pesquisa uma análise histórica ou política dos primeiros anos do rádio brasileiro, é importante ressaltar que enquanto a Europa vivia um momento de grande reflexão acerca do papel e do futuro do rádio, com autores como Rudolf Arnheim e Paul Deharme, que serão apresentados adiante, no Brasil as emissoras se configuravam, em sua maioria, como modelo comercial semelhante ao desenvolvido nos Estados Unidos, apesar dos esforços de Roquette-Pinto em pensar este veículo como ferramenta de divulgação cultural. Os rumos seguidos pelo rádio brasileiro influenciaram profundamente na sua linguagem; também no Brasil a publicidade se apropriou em breve tempo não apenas da programação, mas também da plástica radiofônica. Ao contar a história da Rádio MEC, Milanez aponta alguns questionamentos que já atingiam o rádio em seus primeiros anos. A que padrões de linguagem radiofônica [o rádio] deveria obedecer? Vícios de pronúncia e erros de linguagem poderiam ser aceitos? Dever-se-ia impor a pronúncia oculta? Questões conceituais, como essas, apresentaram-se desde o início, e estão na raiz da importante contribuição que o rádio deu para a homogeneidade linguística do país. E tudo começou ali, com aquele pessoal da Rádio Sociedade. E ali também nasceu a ideia do rádio educativo – ideia que amadureceu enquanto Roquette-Pinto dirigia a estação, e que estava pronta quando ele fez a doação ao governo (Milanez, 2007, p. 100). 15

Notadamente, os esforços de Roquette-Pinto foram fundamentais para que houvesse no Brasil uma programação radiofônica atenta às manifestações culturais e engajada em seu papel de educadora. Contudo, atualmente a estética radiofônica brasileira é pensada na prática, por seus atores. A preocupação com a qualidade de conteúdo, com a linguagem e os gêneros divulgados, além do papel educador do rádio, parece vir apenas dos profissionais ligados às emissoras públicas. Antes da transformação do rádio em meio fundamentalmente de programação musical, com o surgimento das emissoras em frequência modulada, Mário Drummond de Andrade já alertava para a possibilidade de criações radiofônicas pioneiras sem necessidade do uso de elementos que são, segundo ele, de “mau gosto”. Há nas emissoras particulares alguns programas que não seriam possíveis se a estação de Roquette-Pinto não houvesse habituado o público a exigir do rádio mais do que este costuma dar-lhe. Ainda agora, com a PRA-2 em plena renovação por artes do inquieto e imaginoso Murilo Miranda, assistimos ao aumento espetacular de seu índice de audiência, e isto se faz sem concessão ao mau-gosto, pela preservação e aprimoramento de um nível quase impecável (Mário Drummond de Andrade In Milanez, 2007, p. 50-51).

Portanto, foge dos objetivos desta pesquisa as diversas abordagens do papel educador do rádio, seja em sua faceta política, seja a partir de seus elementos estéticos. Fica o registro da importância de futuros estudos a esse respeito. Novas plataformas, novas possibilidades Se os programas infantis já não encontram espaço entre as emissoras tradicionais de rádio, o cenário das novas plataformas de transmissão de conteúdo radiofônico pode despontar como oportunidade em curto prazo. Notadamente, hoje é possível encontrar em portais de rádio como o TuneIn uma quantidade considerável de webradios com músicas voltadas para crianças, como a Rádio Radinho, ou a Kids 80 Web Rádio, além de canais com conteúdos religiosos segmentados para o público infantil. Em sua dissertação de Mestrado, Johan van Haandel (2009) aponta para novas formas de criação e transmissão de áudio online. O autor destaca os sistemas de reprodução sonora em streaming ou download, que possibilitam a criação de diversos novos canais de reprodução de áudio. Contudo, a maior parte desses conteúdos infantis presentes no ciberespaço é composta por playlists de músicas infantis. Como esta pesquisa observa os jogos corporais no rádio, não é possível tomar esses canais de áudio como corpus de

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pesquisa. Mas deve ser ressaltado que estes formatos são de grande importância como tendência da produção radiofônica em curto prazo, como ressaltou Roberto D’Ugo: Nos últimos anos temos assistido a uma acelerada popularização do uso de programas de computadores (softwares) que permitem a livre troca, pela internet, de arquivos [...] a generalização dessa prática tecno-sociocultural, ainda que circunscrita aos limites difusos da chamada cibercultura, aponta para o desenvolvimento de novos paradigmas comunicacionais que parecem incidir, de maneira peculiar e significativa, sobre a paisagem sonora de nosso tempo (D’Ugo citado por Zaremba, 2009, p.16)

Outro valor desse tipo de formato virtual para o futuro da programação radiofônica infantil é o fato de destacar das grandes emissoras e conglomerados de comunicação a possibilidade da construção de conteúdo de rádio. Com efeito, já se notam esforços de pessoas que não estão relacionadas ao meio radiofônico, mas são pais e demais interessados em reproduzir conteúdos de qualidade. É o caso da Rádio Radinho, produzida por André Prado e Roberto Coelho, além do apresentador de TV Edgar Piccoli. Também é notável o crescimento de produções fonográficas para crianças, como o grupo Palavra Cantada, que colaboram com o crescimento do interesse dos pais nesse tipo de conteúdo. Organização da tese No primeiro capítulo são levantadas questões sobre o desenvolvimento dos laços afetivos nas crianças, desde seu nascimento. Com o aporte de teóricos como Wulf, Freud, Maturana e Winnicott, foi feito um breve mapeamento das construções afetivas e simbólicas das crianças nos primeiros anos de vida. Também são apontados estudos da etologia, citando autores como Montagner, Cyrulnik, Harlow e De Waal, com o objetivo de compreender as relações de jogo, comunicação e afetos entre os animais como exemplo de performances que extrapolam a ideia do pensamento logocêntrico. O conceito de jogo é estudado a partir de Huizinga e Caillois, relacionando as operações do lúdico com as performances radiofônicas em diversos formatos de programas, com destaque aos infantis. Por último são mapeados estudos realizados em diferentes momentos por pesquisadores de diversos países sobre a relação da criança com o rádio e a televisão. O objetivo é demonstrar algumas diferentes linhas metodológicas que normalmente são utilizadas nesse tipo de estudos. Destacam-se os trabalhos de Singer e Valkenburg.

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No segundo capítulo o rádio é analisado como meio de comunicação submetido aos ditames da economia capitalista, configurado de forma a garantir o ritmo da produção em série e da otimização do tempo do trabalho. Em seguida é feito um breve trabalho de levantamento dos primeiros programas infantis nos Estados Unidos, demonstrando que a origem da programação para crianças já obedecia a uma lógica racional de produção, sujeita às necessidades econômicas que se apresentam na relação entre as emissoras e os anunciantes. Também são apresentados alguns dos programas infantis que fazem parte do corpus de pesquisa, a saber: Rádio Maluca, Estação Brincadeira, Para ouvir e aprender e Webradio Criança. Estes programas estão agrupados por fazerem parte de emissoras tradicionais de rádio, que mesmo sendo geridas pelo poder público, carregam em suas propriedades os modelos comerciais de produção de conteúdo radiofônico. No terceiro capítulo encontram-se os programas infantis que foram produzidos fora do contexto das rádios tradicionais, a saber: o projeto-piloto Loja do Tio Nico e o Projeto Faz de Conta. Neste capítulo o rádio é pensado como meio de quebra da linearidade narrativa presente no rádio tradicional. A partir dos conceitos de Paul Deharme, são expostos elementos dos sonhos e dos jogos nas construções sonoras do rádio. Essas construções seriam possíveis através das performances corporais provocadas pelas atividades lúdicas nos estúdios, nas salas de aula e em qualquer outro ambiente de recepção sonora. Tal trabalho corporal foi denominado “bricolagem”, dando ênfase ao trabalho manual, ou seja, os gestos da pele em contato com o ambiente, sem a intervenção direta dos instrumentos como microfones. Desta forma, seria possível pensar em um tipo de programa de rádio feito por crianças e para crianças, que seja um ambiente de imprevisibilidades, de improvisos que são resultados das brincadeiras sonoras.

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1 CRIANÇAS QUE BRINCAM, OUVEM E TECEM VÍNCULOS O objetivo deste capítulo é problematizar as formas tradicionais de produção de conteúdos radiofônicos para crianças. Para tanto é necessário um trabalho de resgate dos rastros mais primitivos da comunicação das crianças, buscando compreender a importância da sonoridade não apenas como informação, mas como agente de vinculação da criança com as pessoas e o ambiente. As performances miméticas das brincadeiras infantis serão abordadas como fenômeno lúdico, baseado nas categorias propostas por Roger Caillois (1990) para o estudo dos jogos.

São apresentados também exemplos de pesquisas empíricas no

campo da psicologia behaviorista realizados nos Estados Unidos e na Holanda, que buscam apontar em que medida o rádio e a televisão estimulam o desenvolvimento criativo entre as crianças. O objetivo é buscar elementos nestas pesquisas que ajudem na elaboração de novas propostas de conteúdos radiofônicos voltados ao público infantil.

1.1 Os laços primitivos: ontogênese das comunicações infantis Desde o momento em que o feto repousa no útero da mãe, os vínculos entre mãe e filho operam como um complexo tecido de sensações. O corpo da criança se constrói no contato com o útero, com o liquido placentário e com as vibrações sonoras do mundo exterior. Sons que não precisam fazer sentido, ainda não representam, não são signos. São apenas vibrações. A partir da idade de quatro meses e meio, um feto é capaz de reagir a estímulos sonoros. Nesse momento, do ponto de vista anatômico, o desenvolvimento da orelha está completo e o nervo auditivo começa a funcionar. O feto ouve a voz de sua mãe, sua respiração, os barulhos da circulação do sangue e da digestão. Ele percebe de longe as vozes de seu pai e de seus irmãos e irmãs, assim como os barulhos agradáveis e perturbadores que são mensagens do exterior dos quais ele reage. O sentido do ouvido se desenvolve muito antes que o sentido da visão, e muito antes dos outros sentidos começarem a funcionar (Wulf, 2007, p. 57-58).

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O artigo intitulado “O ouvido”, de Christoph Wulf, mostra como o sentido da audição opera no corpo de um feto, e durante sua infância, como um elemento de corporeidade, de presença. É o sentido que vem antes de todos os outros. A criança se desenvolve sensivelmente antes de adquirir habilidades de cognição, e o faz se religando ao mundo. Sonoridades, tonalidades e timbres recorrentes criam a intimidade da pequena criança com o seu meio. Em particular, a aparição ritualizada de sons e vozes idênticas ajuda no “enraizamento” da criança, que com a ajuda do ouvido ancora-se no mundo e “conecta-se” com ele (Wulf, 2007, p.59).

Tais ritualizações são a base do desenvolvimento social e cognitivo da criança. Essa ideia está muito presente no pensamento de Wulf e Gebauer (2004), que busca compreender as raízes ritualizadas, performáticas e lúdicas da práxis social. Segundo os autores a mimese é uma ação carregada de vestígios, rastros das performances culturais ao longo de séculos. As gestualidades do corpo humano ajudam a contar a história social e cultural de cada grupo. Desta forma, já desde antes de nascer, estamos sujeitos às gestualidades – sonoras inclusive – que os corpos dos nossos pais e de todos aqueles que entram em contato pelo exterior do ventre materno nos impõem. Gestos estes que ajudam a dizer quem nós somos: o idioma, as tonalidades vocais, as canções, os rituais de contato dos pais com o bebê no ventre. Incontáveis laços comunicativos se desenvolvendo antes mesmo do parto. Os rituais de comunicação dos pais com a criança no ventre respeitam o silêncio; não se grita com a criança, não se diz “não” à criança. Os pais contam com palavras, sons e gestos o que esperam do bebê: idas ao estádio de futebol, estudos, passeios no parque, futuro profissional, entre outros. O processo de construção da consciência da criança, tanto como consciência corporal como constituição do Eu2, está estritamente ligado às relações corporais e sensoriais com os pais, como apontam Maturana e Verden-Zoller, fazendo referência ao desenvolvimento do feto como um processo de epigênese. Após a íntima relação no útero entre o bebê que cresce e sua mãe, o processo epigenético inicial mais importante para o desenvolvimento da consciência humana ocorre na musicalidade elementar dos ritmos corporais vibratórios e sonoros da relação materno-infantil, enquanto a

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O termo Eu como designação de self ou ego é utilizado pelo tradutor Paulo Cesar de Souza (Freud, 2011), que o estabelece como mais apropriado.

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mãe dá de mamar, acaricia, embala, fala, acalanta e balança o berço do recém-nascido (Maturana e Verden-Zoller, 2004, p.151).

Pode-se considerar a comunicação entre os corpos dos pais e dos bebês como uma comunicação “primitiva”, ou seja, as primeiras performances comunicativas do corpo humano. O aparelho psíquico tem no Eu o canal entre o mundo exterior e interior, alimentado por experimentações sensoriais que, armazenadas no aparelho psíquico, podem emergir no consciente em forma de representações verbais. Na experimentação do mundo exterior, pré-verbal, o sensorial sonoro é fundamental na construção de uma memória psíquica. Maturana e Verden-Zoller (2004) falam em ritmos e ambientes melódicos e harmônicos no engajamento corporal de mãe e filho. Esses ritmos corporais, que são resultados de gestualidades, além de sonoridades, são fundamentais para a criança perceber o espaço e o tempo onde estão inseridas, entrando em ressonância com o corpo da mãe, respeitando intervalos de tempo, além de diferentes tessituras vocais, melodias, harmonias. Também no brincar está uma fase fundamental da constituição psíquica das crianças, como aponta D. W. Winnicott. Em outros termos, é a brincadeira que é universal e que é a própria saúde: o brincar facilita o crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia; finalmente, a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros (Winnicott, 1975, p. 63).

De influência freudiana, Winnicott atribui à brincadeira um papel fundamental no exercício da psicanálise. Segundo o autor, brincar é um processo fundamental para que o terapeuta consiga trabalhar o aparelho psíquico do paciente; é necessário que terapeuta e paciente brinquem e, desta forma, se comuniquem. Winnicott afirma que na brincadeira a criança cria a sua espacialidade e sua relação com o mundo ao redor através do que ele chama de “objetos transicionais” (Winnicott, 1975; Bittencourt e Maia, 2006). É justamente a partir desses objetos transicionais que as psicólogas e pesquisadoras brasileiras Maria Inês Bittencourt e Maria Vitória Mamede Maia procuram descobrir (2006) qual a diferença entre o ato brincar com um carrinho de rolimã e com um aparelho de vídeo game. O objetivo das pesquisadoras é descobrir no espaço lúdico onde ocorre o brincar elementos de 21

criatividade no contato com o brinquedo. Porém, entrevistas com as crianças revelam um preocupante número de respostas relacionadas ao comodismo e imediatismo na relação brinquedo/criança: O brincar está limitado às possibilidades do programa ou à impossibilidade de sujar, rasgar, lidar com cartas caras. O brinquedo está ali para ser visto, não para ser vivenciado. Essas questões ficam evidentes nas falas das crianças ouvidas pela pesquisa efetuada por Bittencourt (Bitterncourt e Maia, 2006, p.113).

Para a psicologia que segue a linha de pensamento de Winnicott, os déficits de criatividade entre os jovens podem estar relacionados a problemas na fase de convivência com os objetos transicionais. Sem que as crianças consigam interagir com o mundo ao redor através desses objetos, construindo sensorialmente seus espaços e se alimentando de experiências, seu desempenho criativo fica prejudicado. Seria precipitado fazer qualquer tipo de relação entre o rádio e os objetos transicionais, ou então propor que o rádio funcionaria, em si, como ferramenta (brinquedo) de desenvolvimento criativo. Porém, é possível afirmar que programas radiofônicos que levem em conta tais necessidades cognitivas no crescimento de uma criança poderiam oferecer conteúdos que colaborassem com a interação da criança com o espaço ao seu redor, incentivando-a e a seus pais a explorar sensorialmente, com seu corpo, o espaço ao redor. Fica evidente a importância do corpo no desenvolvimento cognitivo da criança e, por consequência, das possibilidades do rádio como catalizador destas performances corporais. Em outras palavras, os programas radiofônicos infantis deveriam ser produzidos para serem ouvidos com o corpo – e entre os corpos. Não se deve menosprezar a característica do rádio em ser um meio de comunicação capaz de falar com milhões de ouvintes, mas com uma linguagem intimista, que aproxime o locutor do ouvinte – “o meu amigo”. Porém, ao produzirmos conteúdos infantis com as mesmas intenções perdemos alguns elementos de vinculação que são dos mais primitivos, ou seja, o toque de pele dos pais com os filhos. Conforme sugerido no título do capítulo, as crianças brincam, ouvem e tecem vínculos mas, para isso, precisam ter garantidos meios de apropriação dos espaços, dos objetos e dos corpos ao redor. O rádio é, segundo Harry Pross (citado por Baitello Junior, 2010), uma mídia terciária, ou seja, um aparato que codifica e decodifica sinais na comunicação entre dois corpos. A partir desta definição, Pross afirma que o princípio básico de qualquer comunicação é que ela começa e termina nos corpos. Em seu livro “A serpente, a maçã 22

e o holograma” (2010), Norval Baitello Junior afirma que “tomando o corpo como base e ponto de partida de toda comunicação, põe em xeque o próprio conceito de comunicação como simples conexão” (2010, p.105). Tais bases epistemológicas apontam para uma teoria dos corpos na mídia, tornando fundamental o estudo das características ontogenéticas e filogenéticas do corpo humano. Em nosso caso, o que está em jogo são as performances que colaboram com o desenvolvimento ontogenético das crianças, ou seja, como o brincar com o rádio e com as sonoridades aproxima – espacialmente – os corpos das crianças com seus pais, professores, colegas permitindo, assim, que tais entrelaçamentos sensoriais sejam parte da construção simbólica das relações sociais dessas crianças. A mídia primária continua repetindo as aventuras da hominização de maneira miniaturizada e estilizada na evolução ontogenética da comunicação. Cada recém-nascido reconquista o mundo aéreo por meio de seus sentidos; seu choro e suas fezes, seu cheiro e suas caretas; seu sugar e seu arrotar são as primeiras estratégias de captura do mundo em seu redor. Se os vínculos comunicativos primordiais na ontogênese se podem traduzir por amor materno, não demorará muito para esta primeira tipologia de vínculos ser capturada pela habilidade do pequeno em se alimentar com carícia e calor, com gestos de satisfação e saciedade que respondem e retribuem o primeiro ato. (Baitello Junior, 2010, p.106).

A relação entre a mídia primária o rádio já foi abordada anteriormente por Eugenio Menezes em seu livro Rádio e Cidade (Menezes, 2007), também fazendo referência aos conceitos de Harry Pross e Norval Baitello Junior e ressaltando os mistérios da comunicação em sua origem, o que reforça ainda mais a complexidade do estudo do rádio como meio de vinculação entre corpos. “Considerando os gestos feitos com as mãos como textos culturais, tecidos durante um processo histórico, percebemos que pouco conhecemos de alguns processos comunicativos, como o cuidado dos primatas para com seus filhotes, a importância do toque de um adulto em uma criança e a beleza da carícia entre homem e mulher (Menezes, 2007, p. 28).

Os vínculos que são tecidos através da comunicação verbal, mas também pelos gestos, pelos cheiros, pelos toques, pelo calor, pela vibração sonora e por todos os outros elementos sensoriais, são responsáveis pela construção de ambientes de comunicação. Quando se fala em uma ecologia da comunicação, deve-se ter em conta o sentido etimológico da palavra “eco”: do grego oikos, que significa “casa”. Esta casa, ou ambiente, é um espaço tecido por gestualidades diversas, incluindo as sonoras, que são 23

marcas de um passado distante; das ritualidades e performances anteriores mesmo ao Homo Sapiens Sapiens. Para este trabalho arqueológico da comunicação entre crianças e adultos é necessário buscar elementos e metodologias das pesquisas em etologia.

1.1.1 A etologia: empatia, pertencimento e o corpo como mídia primária A partir da década de 1960, se consolidam os estudos sobre o desenvolvimento infantil baseado nas metodologias da etologia (Montagner, 2012), notadamente a partir dos estudos de comportamentos sociais entre os primatas. Foi na Conferência Internacional de Etologia de Estocolmo em 1967 que houve a eclosão de estudos do comportamento humano baseados na etologia. A partir da Conferência da Suécia, um instituto de etologia humana foi criado na Alemanha por I. Eibl-Eibesfeldt, um dos alunos de K. Lorenz; no mais, diversos livros de etologia humana foram publicados e numerosos colóquios internacionais foram organizados com a participação de etólogos do Homem. O movimento foi lançado. Era necessário, então, contribuir para o seu desenvolvimento (Montagner, 2012, p.29)3.

O exemplo da etologia é fundamental para a compreensão dos rituais performáticos do ser humano como uma marca profunda da construção cultural, como afirmaram Wulf e Gebauer. O pesquisador holandês Frans De Waal (2010) busca no comportamento dos primatas o sentido de empatia que muitas vezes imputamos aos seres humanos como uma condição simbólica autoritária, enquanto entre os primatas comportamentos semelhantes se desenvolve de forma orgânica. Assim, De Waal procura nos mostrar que sentimentos como empatia estão na constituição filogenética do Homo Sapiens Sapiens. Nas pesquisas de Harry Harlow (1972) são notáveis os laços de dependência do filhote com a mãe que vão além da provisão alimentar. Harlow coloca um filhote de macaco Rhesus em total isolamento da sua mãe. Para substituí-la são montadas duas estruturas que têm a forma semelhante a um macaco adulto: a primeira feita apenas de arames e com um recipiente como uma mamadeira com leite; a segunda não oferece Tradução livre para o texto : Depuis la Conférence de Suède, un institut d’éthologie humaine a été créé en Allemagne par I. Eibl-Eibesfeldt, l’un des élèves de K. Lorenz ; en outre, plusieurs livres d’éthologie humaine ont été publiés et de nombreux colloques internationaux furent organisés avec la participation active d’éthologistes de l’Homme. Le mouvement était lancé. Il fallait, alors, contribuer à son developpement.

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alimentos, mas é envolta em pelo sintético, simulando a pele da mãe. Na maior parte do tempo, o filhote se enlaça à estrutura envolta por pelos, se soltando apenas para conseguir alimento. Em outro momento, Harlow provoca sustos no filhote, com o objetivo de descobrir em qual das estruturas “mães-postiças” ele buscaria refúgio. Em todos os experimentos, o filhote corria para os braços da mãe de pelúcia. Durante o crescimento dos filhotes Rhesus, o pesquisador experimenta uma gradual ressocialização entre os pares, usando outros jovens macacos que tiveram um crescimento “normal”, ou seja, acompanhado da mãe. O resultado é que, com a ajuda de outros companheiros, os filhotes antes isolados podem tornar-se jovens e adultos aptos a viverem em um grupo social. Contudo, os laços empáticos entre mãe e filho são comprovados e independem da sujeição a qualquer regra cultural. Uma criança ao nascer é inserida em um complexo ambiente simbólico, chamado por Boris Cyrulnik de mítico. A relação da criança com seu entorno é de ordem ecológica, ou seja, ela é parte das estruturas simbólicas que a rodeiam, ao mesmo tempo em que tentará modificá-las. “A criança que acaba de nascer se depara com um mundo já estruturado por um mito, e é nessa ecologia humana impregnada de cultura que ela vai tentar trocar e realizar suas promessas biológicas, psicológicas e sociais" (Cyulnik, 2000, p.75)4. Esta noção de ecologia, conforme já havia sido ressaltado anteriormente, é fundamental para a análise do papel do rádio como meio de participação efetiva do público infantil. O rádio é uma possibilidade de realização sonora, verbal e não verbal, de fazer parte do desenvolvimento psíquico e social da criança. É possível pensar em uma estética radiofônica que valorize a aventura infantil de descobrimento das linguagens, através não somente das falas, mas dos gestos, das mímicas e vocalizações, como afirma Cyrulnik. Esta estrutura é ecológica e social claro, mas ela é principalmente semântica: as palavras constituem as estrelas, as frases desenham as constelações, e as ideias formam os sentimentos e as ações. Para um pequeno ser humano, experimentar a aventura da palavra é, inicialmente, uma maneira de se fazer conhecer, uma maneira de fazer gestos, mímicas e vocalizações que permitem amar, trocar afetos e agir sobre a pessoa amada. Adquirir uma língua é aprender um código,

Tradução livre para o texto: “L’enfant qui vient de naître tombe dans um monde déjà structuré par un mythe, et c’est dans cette écologie humaine imbibée de culture qu’il va tenter d’échanger et de realiser ses promesses biologiques, psychologiques et sociales" 4

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mas é, sobretudo, tomar o seu lugar afetivo em uma cultura já estruturada pela língua (Cyrulnik, 2000, p.78)5

Tais estruturas simbólicas permeadas pela linguagem são abordadas pelo semioticista tcheco Ivan Bystrina, que denomina o universo simbólico de “segunda realidade”, enquanto o mundo biológico compõe a assim chamada “primeira realidade”. As linguagens operam no trânsito entre estes universos, influenciando diretamente na (re)organizações dos organismos biológicos e simbólicos. Com efeito, as crianças, inseridas desde o nascimento na segunda realidade, desenvolvem sua linguagem reconhecendo a fala dos pais, fazendo conexões entre formas, cores, texturas etc. A estrutura simbólica da cultura vai sendo aos poucos enraizada na criança através, principalmente, do uso do verbal. Os sons, que no útero não tinham necessidade de representar nada, agora começam a dar significado às coisas. As vozes que traziam conforto agora dão lugar às narrativas e aos contos de fadas, repletos de códigos hiperlinguais (Bystrina citado por Baitello Junior, 1999). A criança já é capaz de manipular o tempo, exigindo que as histórias tenham coerência, ou seja, começo, meio e fim. Inserida no ambiente simbólico a criança brinca, reorganizando as estruturas míticas da cultura. Norval Baitello Junior apontou em O animal que parou os relógios (1999) que no pensamento de Bystrina o jogo e as brincadeiras não são direcionados a um fim prático, como normalmente acontece nos códigos culturais. Segundo o pesquisador, é justamente a aparente superfluidade das atividades lúdicas, a “perda de um nexo reconhecível com as necessidades imediatas da sobrevivência, o seu l’art pour l’art que transvaloram estas atividades em fenômeno cultural, portanto em “segunda realidade”. Bystrina aproxima assim os universos do chamado “não-sério” com o seu oposto, demonstrando que o lúdico perpassa toda geração de códigos, portanto, qualquer procedimento comunicativo do homem (ou dos animais), porque está em sua raiz (Baitello Junior, 1999, p.58).

É necessário, portanto, ampliar a reflexão sobre os jogos e brincadeiras infantis no rádio, levando em consideração que esses jogos operam como desmontagem de Tradução livre para o texto : Cette structure est écologique et sociale bien sûr, mais elle est surtout sémantique : les mots constituent les étoiles, les phrases dessinent les constellations, et les idées façonnent les sentiments et les actions. Pour un petit d’homme, tenter l’aventure de la parole, c’est d’abord une manière de rencontrer, une manière de faire des gestes, des mimiques et de vocalisations qui permettent d’aimer, d’échanger de l’affect, et d’agir sur la personne aimée. Acquérir une langue, c’est apprendre un code, mais c’est surtout prendre sa place affective dans une culture déjà structurée par cette langue. 5

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códigos culturais. Bem entendo, as regras do próprio fazer radiofônico estão sujeitas a reorganizações pelos jogos e brincadeiras das crianças, o que não pode de forma alguma ser vista como algum tipo de ameaça às técnicas estabelecidas para as práticas do rádio. Adiante, serão apresentadas diferentes abordagens do conceito de lúcido, na busca de subsídios para a análise dos conteúdos radiofônicos para crianças.

1.2 Os jogos e as crianças: as brincadeiras de mimicry Qualquer programa de rádio produzido para crianças tem, tanto nos seus argumentos de venda, quanto em sua linguagem, o lúdico como elemento fundamental. O rádio só é infantil se souber brincar com a criança, não importa em que ambiente (dial ou internet) ele esteja sendo veiculado. Locutores, contadores de histórias, heróis, personagens mirins, todos desempenham performances sonoras baseadas em brincadeiras, no lúdico. Johan Huizinga (1971) apontou o lúdico como manifestação biológica e simbólica, a partir do momento que ela encerra um significado, mesmo sem que este tenha um objetivo prático. Outra obra fundamental para o estudo do lúdico é o livro de Roger Caillois Os jogos e os homens (Caillois, 1990), onde o autor classifica o jogo em quatro princípios básicos: agôn, ou o jogo da competição; alea, para representar os jogos de azar; mimicry, como os jogos de imitação; ilinx, que diz respeito aos jogos de vertigem. Todas [as categorias] se inserem francamente no domínio dos jogos. Joga-se à bola, ao berlinde ou às damas (agôn), joga-se na roleta ou na lotaria, faz-se de pirata, de Nero ou de Hamlet (mimicry), brincase, provocando em nós mesmos, por um movimento rápido de rotação ou queda, um estado orgânico de confusão e desordem (ilinx) (Caillois, 1990, p.32).

Desta forma, Caillois propõe uma hierarquização antagônica entre as formas de jogo. Para o princípio da diversão descompromissada, do improviso, da subversão, o autor denomina paidia. O oposto, as regras e as dificuldades (ou obstáculos) impostos ao jogo, que exigem esforços de superação na realização dos objetivos, Caillois denomina ludus. É curioso notar que o autor definiu para a brincadeira inconsequente e improvisada o nome paidia, que em grego tem o mesmo significado que criança. As brincadeiras infantis como esconde-esconde, pega-pega, amarelinha, pulacorda, etc. demonstram um caráter fortemente corpóreo entre os participantes. Os elementos de ludus estão presentes nas regras e objetivos claros do jogo, como procurar 27

o companheiro escondido e tocá-lo com as mãos, mas também são numerosas as possibilidades de improviso (paidia) que se apresentam, por exemplo, nos esconderijos escolhidos, nas trapaças durante a contagem (contar até cem pulando os números, ou numa velocidade que impede até que os números sejam pronunciados verbalmente), ou nas risadas e gritos soltos durante a correria. No caso das brincadeiras infantis que envolvem ou poderiam envolver o rádio e suas características técnicas, é necessário um aprofundamento no princípio de mimicry. Com efeito, o rádio em sua linguagem perpassa todas as classificações propostas por Caillois, desde o agôn presente nas competições ou alea dos sorteios organizados pelos locutores, oferecendo ingressos para show ou outros brindes, ou pelo jogo de ilinx das partidas de futebol transmitidos pelo rádio, quando ouvimos milhares de pessoas saltarem e gritarem simultaneamente nas arquibancadas. Porém, mais importante para o estudo dos programas infantis é o jogo de mimicry, praticado por quem quer que seja, profissional ou não, e desempenhando fundamentalmente um papel de jogos de “máscaras”. Através do aparelho fonador, o locutor tem a capacidade de criar diversas personalidades, jogar com a imaginação do ouvinte, construir, auxiliado por recursos técnicos, como a sonoplastia, ambientes sonoros que não representam necessariamente um mundo real. Um programa humorístico, por exemplo, pode jogar com a imaginação do ouvinte se o locutor imitar a voz de personalidades da TV, colocando esses personagens em situações embaraçosas como um trote telefônico (Cf. Nunes, 1993). Tanto em um programa infantil, como em qualquer outro programa radiofônico, a imitação é ferramenta e inspiração. Mímica e disfarce são assim os aspectos fundamentais desta classe de jogos. Na criança, trata-se sobretudo de imitar o adulto. Daí o sucesso dos acessórios e dos brinquedos em miniatura que produzem ferramentas, utensílios, armas e máquinas de que se servem os mais crescidos. A menina brinca às mães, às cozinheiras, à lavadeira, à engomadeira; o rapazinho finge ser um soldado, um mosqueteiro, um agente de polícia, um pirata, um cowboy, um marciano, etc. Faz de avião estendendo os braços e fazendo o barulho do motor. Não obstante, as condutas de mimicry extravasam largamente da infância para a vida adulta. Abrangem igualmente toda a diversão a que nos entreguemos, mascarados ou travestidos, e que consista no próprio fato de o jogador/ator estar mascarado ou travestido, bem como nas suas consequências (Caillois, p. 41, 1990).

A imitação do adulto pela criança como citado por Caillois está, de fato, presente nos brinquedos, como também apontou Benjamin (1994; 2002). O brinquedo está imbuído dos rastros culturais de tempos primitivos, desempenhando ao longo da história 28

papeis diversos na relação com a criança e a sociedade. Benjamin traça essa evolução no texto “História cultural do brinquedo”, concluindo que Hoje podemos ter a esperança de superar o erro básico segundo o qual o conteúdo ideacional do brinquedo determina a brincadeira da criança, quando na realidade é o contrário que se verifica. A criança quer puxar alguma coisa e se transforma em cavalo, quer brincar com a areia e se transforma em pedreiro, quer se esconder e se transforma em bandido ou policial (Benjamin, 1994, p.247).

Com efeito, o brinquedo é uma extensão da imaginação da criança e não um substituto. Os brinquedos projetam as realizações adultas nas performances lúdicas das crianças, agindo como objetos de condicionamento cultural através da sedução. “Pois quanto mais atraentes são os brinquedos, no sentido usual, mais se afastam dos instrumentos de brincar; quanto mais eles imitam, mais longe eles estão da brincadeira viva” (Benjamin, 1994, p. 247). É possível aplicar este pensamento ao rádio, levando-se em conta que este cumpre também uma função de brinquedo em sua relação com a criança. Em outras palavras, o rádio que se presta a seduzir a criança para as realizações adultas está tirando delas a chance de mergulharem no universo dos sons como expansão da imaginação. Os programas infantis jogam os elementos lúdicos da vida adulta. Deixam de explorar uma característica fundamental do jogo de mimicry que é fascinar o espectador e mergulhá-lo em um mundo imaginário – Caillois se refere à suspensão do real (1990, p.43) – sem que esse laço se rompa. A representação performática no programa infantil é um jogo6 coletivo, liderado pelo ator (adulto ou mirim) e dependente da aceitação da criança. Este princípio está presente em qualquer jogo de representação, como afirma Caillois: “para o espectador consiste em prestar-se à ilusão sem recusar a priori o cenário, a máscara e o artifício em que o convidam a acreditar, durante um dado tempo, como um real mais real do que o real” (Caillois, p.43, 1990). A sedução é, portanto, um jogo performático corpóreo e coletivo, não uma promessa de realização precoce de um universo cultural que ainda não pertence à criança. Uma alegoria desse pensamento está presente no romance Sonho de uma noite de verão de William Shakespeare (2001) na cena em que os artesãos representam a peça

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Neste caso é importante ressaltar o significado do termo “jogo” em outros idiomas: em inglês to play, no francês jouer, no alemão spielen e no holandês spelen. Nesses casos, o verbo denomina ao mesmo tempo as ações de brincar, jogar, representar, tocar e reproduzir. Fica clara, portanto, a proximidade etimológica dessas ações e, por consequência, das performances dos atores.

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teatral de Píramo e Tisbe. Os atores, mal vestidos e mal ensaiados, deixam claro em seu texto que são apenas atores e que o leão que está sendo representado não faria mal a nenhuma senhora na plateia. O mesmo aconteceu com os personagens do muro e do luar. O resultado trágico e cômico da peça teatral dentro da peça teatral de Shakespeare é um exemplo, ele mesmo lúdico, da operação do mimicry. Ao definir o termo mimicry em sua classificação, Caillois também faz alusão ao mimetismo presente entre os insetos como forma de organização e sincronização social. O autor deixa claro que as diferenças entre organizações de insetos e humanos são bastante diferentes em complexidade e nas realizações simbólicas, mas sustenta o termo para deixar claro o caráter visceral da mimese entre os humanos. Estão colocadas, portanto, as reflexões sobre um olhar arqueológico da comunicação humana, que levantam questões sobre as possibilidades para o rádio no crescimento cognitivo e sensorial das crianças. Antes de apresentar exemplos concretos de programas infantis e analisa-los sob os pontos de vista levantados, os próximos subcapítulos procuram apresentar de que forma o rádio e a televisão têm sido abordados nos estudos acadêmicos em sua relação com o público infantil.

1.3 A relação entre Meios de comunicação e a criança A relação entre processos comunicacionais – em qualquer suporte midiático – e o universo infantil é estudado normalmente a partir de pontos-de-vista epistêmicos como: a função dos meios de comunicação como produtores de conteúdo e gestores de negócios voltados ao público infantil; os efeitos cognitivos da exposição das crianças aos conteúdos veiculados nos meios de comunicação tradicionais, notadamente Televisão e Rádio; a linguagem midiática em relação com o desenvolvimento da linguagem infantil. Uma das obras mais marcantes sobre o desenvolvimento cognitivo e imaginário das crianças foi escrita por Dorothy e Jerome Singer, intitulada The House of MakeBelieve (Singer e Singer, 1990). Nela, os autores apontam diversas personalidades entre escritores e intelectuais, ressaltando a importância da infância de cada um deles como momento de consolidação do imaginário. Presumimos que o começo dos jogos imaginativos é o precursor dos futuros pensamentos fantasiosos, e propomos que tal jogo tem características adaptativas particulares. Quando crianças se envolvem em jogos simbólicos elas estão praticando habilidades mentais que as 30

manterão mais tarde em bom lugar, assim como a prática da caminhada, equilíbrio ou da natação ajudam no desenvolvimento de habilidades motoras7 (Singer e Singer, 1990, p.22).

Os autores permeiam em seu texto diversos elementos essenciais ao desenvolvimento criativo entre as crianças. A abordagem behaviorista do texto não deixa de lado a importância das operações lúdicas como formação estrutural do imaginário. Com base em Jean Piaget, são delineados os três estágios principais das brincadeiras: a brincadeira prática, simbólica e jogos com regras. A forma mais básica de brincadeira prática é a imitação, o que envolve um “prazer funcional” da brincadeira. Aqui fica clara uma aproximação de Singer e Singer com as ideias de Caillois e Wulf, mas sem levar em conta aspectos mais aprofundados da mimese. A brincadeira permite à criança o desenvolvimento da empatia, a capacidade para compreender outros pontos de vista. A ampla gama de emoções que uma criança experimenta e aprende nos primeiros meses de vida podem ser mais tarde utilizadas em jogos de imitação8 (Singer e Singer, 1990, p. 54).

Singer e Singer também apontam uma grande deficiência na quantidade de programas televisivos com propósitos realmente educativos. As exceções ficam por conta dos programas Sesame Street9 e Mister Roger’s Neighborhood10. O segundo ancorado pelo apresentador Fred Roger, cujo programa permaneceu mais de 40 anos no ar. Para ele, a televisão era um meio de grande potencial na divulgação de palavras de amor e afeto, mas infelizmente muito poucos a utilizavam com esse objetivo. Roger era criticado pela fala exageradamente suave e pela falta de dinamismo em suas performances televisivas, mas ainda assim era uma figura querida entre as crianças espectadoras. No capítulo Television – Viewing and the Imagination, Singer e Singer dedicam um trecho à comparação entre a leitura, o Rádio e a Televisão no estimulo à imaginação, mapeando diversas pesquisas de impacto de programas audiovisuais entre

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We assume that early imaginative play is a precursor of later fanciful thought, and we propose that such play has particular adaptive features. When children engage in symbolic games they are practicing mental skills that will later stand them in good stead, just as practice in walking, balancing, or swimming aids the development of motor skills. 8 Play allows a child to develop empathy, the capacity for understanding another’s point of view. The broad range of emotions a child experiences and learns to recognize in the early months of life may later on be utilized in games of pretend 9 No Brasil veiculado como Vila Sésamo. 10 O programa ficou no ar pela PBS até 2001, mas o portal infantil da emissora ainda mantem uma página dedicada ao programa. Nela é possível encontrar jogos, vídeos, canções e páginas para colorir. Disponível em http://pbskids.org/rogers/. Acesso em jan. 2014.

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as crianças. A preocupação de tais estudos é com a capacidade criativa que é gerada com a exposição das crianças aos conteúdos de Rádio e Televisão. Um dos principais estudos a esse respeito indica a seguinte conceituação para “imaginação criativa”: Imaginação criativa é definida como a capacidade para gerar diferentes ideias originais ou não usuais. É um aspecto central do pensamento narrativo, que envolve narrativas, pensamentos imaginativos, cujos objetos não são verdade, mas “verossimilhança” ou “naturalidade” [...] o processo criativo envolve o potencial para a originalidade imaginativa, na qual existe um fluxo livre de ideias, imagens, e mini histórias, todas as facetas de processos divergentes, seguidas por uma avaliação da qualidade dessas ideias em um domínio de especialização11 (Valkenburg e Calvert, 2012, p.158).

No Brasil, encontramos no livro organizado por Kely Cristina Nogueira Souto, Marco Antônio de Souza e outros intitulado A infância na mídia, alguns exemplos de abordagens epistemológicas citados anteriormente. Destaca-se o trabalho de Maria Cristina Soares de Gouveia, com o artigo “Infantia: entre a anterioridade e a alteridade”. Nele, a autora busca raízes culturais na constituição das linguagens infantis, considerando a criança como sujeito da cultura que, ao mesmo tempo, se apropria e modifica a linguagem. Sob o signo da alteridade, Gouveia analisa as relações das crianças com os adultos, afirmando que tal fenômeno é herança profunda das culturas primitivas. A autora também aponta que o racionalismo moderno gerou uma crise na alteridade, que desembocou numa subvalorização dos indivíduos não pertencentes ao universo da potência racional e científica, como as crianças, mulheres, negros, pobres etc. A partir desse ponto, a pesquisa aponta para os desdobramentos políticos e sociais do conceito de infância até a contemporaneidade, seguido por uma análise da linguagem infantil, afirmando que Definida pela ausência da fala, é na linguagem que a criança se faz sujeito. É através da linguagem que as experiências são subjetivadas, significadas e compartilhadas. A criança o faz a partir de um sistema de signos cuja objetividade impõe-se à experiência, ao mesmo tempo que a modela. (Gouveia in Souto, Souza e outros, 2009, p.24).

O artigo de Maria Cristina Gouveia permeia diversos aspectos da cultura infantil, passando pelo brincar e pelo sentido do lúdico e baseado nos trabalhos de 11

Creative imagination is defined as the capacity to generate many different novel or unusual ideas. It is a central facet of narrative thinking, which entails story-like, imaginistic thinking, whose objects is not truth but “verisimilitude” or “lifelikeness” […] the creative processes involves the potential for imaginative novelty, in which there is a free flow of ideas, images, and mini stories, all facets of divergent processing, followed by an evaluation of the quality of these ideas within a domain of expertise

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Schiller; também aborda a imitação como mecanismo de aprendizagem e desenvolvimento, além das questões de imaginação e estética. Em resumo, são questões que permeiam as reflexões propostas nesta tese. Por último, Gouveia aborda a questão do “grupo de pares”, o que retoma a questão da alteridade. Definido como grupos etários reunidos por semelhança social, os grupos de pares agem na interação da criança com seu ambiente. Em outras palavras: A criança necessita do grupo para situar-se no mundo, estabelecendo uma relação diferenciada da que constrói com os adultos, com códigos próprios. Esse universo grupal infantil não é despido de regras, mas, ao contrário, é carregado de normas, leis e punições que não reproduzem o universo social adulto, mas o ressignificam e reconstroem. (Gouveia in Souto, Souza e outros, 2009, p.41).

Outro autor, também citado por Gouveia, é William Corsaro, que traz à discussão o conceito de grupos de pares, definindo-os como “um conjunto estável de atividades ou rotinas, artefatos, valores e preocupações que as crianças produzem e compartilham em interação com as demais” (Corsaro, 2011, p.128). O foco do autor está no lugar e na participação das crianças na produção e reprodução cultural e não na internalização privada de habilidades e conhecimentos adultos pelas crianças. Em outras palavras, é na rotina cultural, ou seja, na participação da criança como membro entre seus pares, que as crianças desempenham um papel ativo na produção de cultura. Em relação às mídias, Corsaro argumenta que é necessário compreender a negociação que existe entre crianças e adultos no acesso aos conteúdos infantis, notadamente no que diz respeito, por exemplo, ao papel dos personagens da marca Walt Disney na vida das crianças, tanto em relação aos pais quanto aos grupos de pares. Adiante são apresentados três exemplos de pesquisas de comportamento infantil e que partem de premissas semelhantes a de Singer, se referindo à imaginação criativa através da capacidade de elaboração de proposições originais às histórias apresentadas em áudio e vídeo.

1.4 Afinal, o rádio é mais imaginativo que a TV? Alguns estudos empíricos O início das pesquisas de impacto do consumo infantil no rádio data das décadas de 1930 e 194012, período em que o rádio era o grande meio de comunicação de massa. 12

Dentre eles, o artigo de Weston R. Clark de 1940 no Journal of Social Psychology intitulado “Radio listening habits of children”.

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Como será demonstrado adiante, a preocupação dessas pesquisas é com o desenvolvimentos de metodologias eficazes no levantamento de dados a respeito da exposição de crianças ao Rádio e à Televisão. Para tanto, foram selecionados três estudos de épocas e pesquisadores distintos que serão analisados aqui como um pequeno mapeamento das questões, hipóteses e metodologias que vem pautando o estudo da criança em contato com as mídias terciárias. Vale ressaltar que essas pesquisas não compõem necessariamente o corpo teórico e metodológico da presente tese, embora muitos dos problemas levantados devam ser levados em conta nas argumentações dos próximos capítulos. Também não está sendo considerado o intervalo de tempo entre as pesquisas e o tempo atual, relevando eventuais questionamentos que surgem ao se pensar essas pesquisas no cenário tecnológico atual. O primeiro estudo apresentado é o do pesquisador americano Mark Runco, com o auxílio de Kathy Pezdek. Em artigo publicado no periódico Human Communication Research (1984), Runco propõe, após criticar um excesso nos estudos de recepção de programas televisivos, uma comparação entre o impacto da TV e do Rádio no desenvolvimento criativo das crianças. Para tanto, parte do conceito de criatividade como a habilidade de ter desenvolver ideias em certa medida uteis: “Por exemplo, dada uma questão aberta, indivíduos criativos produzirão mais ideias (‘fluência ideacional’), e mais ideias que são estatisticamente não frequentes (‘originalidade ideacional’)13” (Runco e Pezdek, 1984, p. 110). As crianças eram expostas a conteúdos televisivos e radiofônicos e, em seguida, três diferentes padrões de pensamentos divergentes eram analisados: fluência de ideias, flexibilidade e originalidade (Runco e Pezdek, 1984, p.112), que eram comparados entre os grupos de crianças estudadas. O resultado da pesquisa apontou que não há diferenças entre os meios Televisão e Rádio na avaliação dos três padrões de pensamento. O trabalho de Patricia Greenfield e Jessica Beagles-Ross (1988) parte dos conceitos de McLuhan em Understanding Media para comparar os impactos cognitivos em crianças expostas a conteúdos de Rádio e Televisão. As autoras já apontavam controvérsias nos métodos de pesquisa empírica dos efeitos da exposição de crianças aos meios eletrônicos de comunicação. Como forma de buscar saídas metodológicas que trouxessem resultados diferenciados, Greenfield e Beagles-Ross optaram por pesquisar crianças de grupos étnicos diferentes. For example, given an open-ended question, creative individuals will produce more ideas (‘ideational fluency’), and more ideas that are statistically infrequent (‘ideational originality’).

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Embora televisão e rádio sejam meios de massa (e quase universais), nenhum estudo comparou seus impactos em diferentes classes sociais e grupos étnicos. Vários grupos são conhecidos por diferirem em seus hábitos e atitudes ao assistir televisão. Pessoas negras têm mais atitudes positivas e assistem mais televisão do que pessoas brancas; trabalhadores têm mais atitudes favoráveis e assistem mais televisão do que pessoas de classe média. Esses são os grupos que escolhemos para nosso subgrupo de comparação14 (Greenfield e Beagles-Ross, 1988, p. 72).

A ideia é que, pelo fato da Televisão ser um meio audiovisual e o Rádio puramente auditivo, a comparação com o mesmo grupo de espectadores daria uma noção precisa dos efeitos específicos das imagens (Televisão) na cognição das crianças. Outro diferencial metodológico seria apresentar um mesmo conto do folclore africano em Rádio (áudio-tape) e na Televisão; a mesma coisa seria feita com um conto folclórico italiano. Desta forma, a representação étnica se daria, teoricamente, apenas nas imagens televisivas, já que os personagens eram caracterizados pela cor da pele e pelas vestimentas. A primeira pergunta-problema da pesquisa era descobrir se o Rádio era, de fato, mais estimulante à criatividade infantil do que a Televisão. A hipótese é de que o Rádio, por não possuir um suporte imagético, seria mais libertário para o desenvolvimento imaginativo da criança. Este efeito pode ser atribuído ao fato de que o rádio, na falta de imagens visuais, deixa mais espaço para a imaginação: isso permite ao ouvinte construir os seus ou as suas próprias imagens mentais, que podem ser expressas verbalmente ou visualmente. Contudo, os resultados não foram completamente esclarecedores. Runco e Pezdek não encontraram uma diferença entre televisão e rádio no estímulo à “criatividade” infantil (operacionalizado da forma que definimos em geral a imaginação)15 (Greenfield e Beagles-Ross, 1988, p. 73).

Outra questão elaborada pelas pesquisadoras procurava saber se a televisão transmitia mais informação do que o Rádio entre classes sociais e étnicas diferentes. Nesse caso, está em jogo a capacidade dos conteúdos de Televisão se fixarem mais 14

Although television and radio are mass (and almost universal) media, no study has compared their impact in different social class and ethnic groups. Various groups are known to differ in their televisionviewing habits and attitudes. Black people have more positive attitudes toward and watch more television than white people; working-class people have more favorable attitudes toward and watch more television than middle-class people (9, 12). These are the groups that we chose for our subgroup comparisons 15 This effect may be attributable to the fact that radio, lacking visual imagery, leaves more to the imagination: it allows the listener to construct his or her own mental images, which can then be expressed verbally or visually. However, results have not been entirely clear-cut. Runco and Pezdek did not find a difference between television and radio in stimulating children’s “creativity” (operationalized in a way that falls within our general definition of imagination)

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rapidamente nas mentes das crianças. As autoras argumentam que estudos anteriores já demonstravam que, ao contrário dos adultos, as crianças tinham um recall mais eficiente nas imagens pictóricas do que nas imagens sonoras. Assim, as crianças foram expostas às duas histórias, que apresentavam exatamente o mesmo conteúdo em áudio e em vídeo (incluindo as trilhas sonoras). Os grupos foram divididos em dois: metade das crianças foi exposta à história italiana em audiovisual e à história africana em áudio, enquanto a outra metade assistiu à história africana pela TV e ouviu a história italiana pelo Rádio. Ambas histórias eram interrompidas antes do final, assim era sugerido à criança que ela mesma criasse um final para a história. Contrariando a hipótese das pesquisadoras, a história africana não gerou mais recall verbal entre as crianças, embora seja uma narrativa com origem em uma cultura oral majoritariamente. Mais especificamente, havia evidências em ambos estudos, sobre imaginação e a interferência de resultados, que o rádio ou o áudio seriam mais eficazes como estímulo à imaginação, enquanto materiais apresentados em formato audiovisual ou televisivo seriam mais memoráveis. A presença de imagens de dinâmicas visuais parecia ser um prejuízo à imaginação, mas um benefício à memória. Foi sugerido que crianças criam mais finais imaginativos simplesmente porque eles se lembram da história no rádio ou em condições de áudio16 (Greenfield e Beagles-Ross, 1988, p. 86).

Portanto, os resultados apontam para uma maior eficiência da Televisão para a memória das ações. O suporte imagético auxilia a criança a fixar ações, mas não é eficiente como o Rádio no estímulo à elaboração do final da história. Outra curiosidade sobre os resultados é um aprimoramento dos valores cognitivos (imaginação e memória) obtidos quando as crianças ouviam primeiro a história pelo Rádio e na semana seguinte assistiam pela TV, do que quando acontecia na ordem inversa. As pesquisadoras acreditam que “quando a primeira exposição da criança no estudo era para o rádio, isso gerava expectativa de maiores esforços mentais, uma expectativa que perdurava na segunda seção uma semana depois17” (Greenfield e Beagles-Ross, 1988, p. 88). More specifically, there was evidence from both the imagination study and the inference results that radio or audio was more powerful as a stimulus to the imagination, while material presented in an audiovisual or television format was more memorable. The presence of dynamic visual images seemed to be a detriment to the imagination but a boon to the memory. It has been suggested that children make up more imaginative endings simply because they remember less of the story in the radio or audio condition. 17 when a child’s first exposure in the study was to radio, it set up an expectation of greater mental effort, an expectation carried over to the second session a week later. 16

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A terceira pesquisa foi conduzida pela professora e pesquisadora da Universidade de Amsterdam Patti M. Valkenburg (1997). A autora contesta as bases das pesquisas que afirmam que as crianças têm mais facilidade em criar novas ideias a partir da escuta de programas radiofônicos do que os televisivos, sob o argumento de que quando expostas a histórias no Rádio e na TV, as crianças têm dificuldades em dissociar as imagens televisivas no exercício de criar novas imagens. Contudo, os resultados das experiências de comparação midiática também podem ser explicados de forma diferente. De acordo com uma hipótese contrária [...] apresentações de rádio suscitam mais ideias originais do que apresentações televisivas, não porque as apresentações de rádio são mais estimulantes para a imaginação criativa, mas porque elas seriam menos bem lembradas. De acordo com essa hipótese da memória-falha, ouvintes de rádio seriam menos capazes de incorporar elementos repetidos nas suas respostas criativas do que os espectadores de televisão, pois as apresentações de rádio estariam menos claras nas suas mentes. As ideias originais produzidas pelas crianças nas suas condições de rádio poderiam não ser respostas criativas, mas irrelevantes fabricações inventadas para compensar a memória falha18 (Valkengurg e Beentjes, 1997, p. 23).

Desta forma, o estímulo à criatividade infantil pelo rádio não estaria ligado ao poder criativo do som, mas à falta de clareza das imagens sonoras no cérebro do ouvinte. Temos, portanto, duas hipóteses que são cotejadas pela pesquisadora holandesa: a hipótese da visualização, que coloca o rádio como um meio mais libertário em relação à televisão, devido à dificuldade que as crianças têm em dissociar as imagens visualizadas das imagens frutos de sua imaginação; a hipótese da “memória falha”, que atribui a criatividade infantil após a audição de um programa radiofônico ao simples exercício inventivo e não ao estímulo da memória através do som. Para tentar comprovar a hipótese da memória falha, Valkenburg seguiu metodologia semelhante aos estudos anteriores, expondo crianças de diferentes idades a histórias contadas pelo Rádio e pela TV. Após a audição, as crianças deveriam dizer o maior número possível de elementos presentes na história (memória) e criar um final

However, the results of the previous media comparison experiments can also be explained in a different way. According to a rival hypothesis […] radio presentations elicited more novel responses than television presentations, not because radio presentations were more stimulating for creative imagination, but because they were remembered less well. According to this faulty-memory hypothesis, radio listeners were less able to incorporate repetitive elements in their creative responses than were television viewers, because the radio presentation was less clear in their minds. The novel ideas produced by children in the radio condition might not have been creative responses but irrelevant fabrications invented to compensate for faulty memory. 18

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para a história (criatividade). Em contato com Patricia Greenfield, Valkenburg usou de histórias produzidas nos mesmos estudos de sua predecessora; o conto folclórico africano também foi cogitado, mas em seguida descartado por apresentar uma linguagem de difícil compreensão entre as crianças. As proposições originais19 das crianças para o final das histórias foram classificadas tanto pelo número quanto pelas suas características (qualidades); a ideia é estabelecer um método consensual de análise dos conteúdos produzidos pelas crianças. Neste estudo nós derivamos três pressupostos para a hipótese da memória-falha. O primeiro pressuposto, que diz que a dupla apresentação da história no rádio leva a poucas ideias originais e mais ideias redundantes no complemento das histórias do que a uma única apresentação, ainda não foi confirmada. Duas apresentações de rádio provocam tanto elementos originais ou redundantes nas histórias quanto as apresentações únicas. O segundo pressuposto, que a lembrança da história está associada a poucos elementos originais e mais elementos repetitivos no complemento das histórias, também não está fundamentado. Lembranças de histórias estavam relacionadas mais significativamente a ideias originais no complemento das histórias e não eram significativamente relacionadas ao número de ideias redundantes. O terceiro pressuposto, de que a complementação de histórias em resposta à dupla apresentação de uma história no rádio teria uma maior qualidade do que aquelas em resposta a uma única apresentação, também não foi confirmada ainda. Nossos resultados mostraram que a qualidade de complementação de histórias em resposta a uma única apresentação de uma história radiofônica não era inferior à qualidade de histórias terminadas após duas apresentações. Como nenhum dos pressupostos derivados da hipótese da memóriafalha foram confirmados, não há razão para assumir que a hipótese oferece uma explicação contrária plausível em relação ao que foi encontrado previamente, de que apresentações de rádio provocam mais ideias originais do que as apresentações televisivas20 (Valkenburg e Beentjes, 1997, p. 35).

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No original em inglês, Valkenburg se refere a novel propositions.

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In this study, we derived three predictions from the faulty-memory hypothesis. The first prediction, that double presentation of a radio story leads to fewer novel and more repetitive ideas in the story completions than does a single radio presentation, was not confirmed. Two radio presentations elicited as many novel and repetitive elements in the story completions as a single radio presentation. The second prediction, that superior story recall is associated with fewer novel and more repetitive elements in the story completions, also was not supported. Superior story recall was related to significantly more novel ideas in the story completions and was not significantly related to the number of repetitive ideas in the story completions. The third prediction, that the story completions in response to a double presentation of a radio story are of a higher quality than those in response to a single radio presentation (H3), was not confirmed either. Our results showed that the quality of story completions in response to a single presentation of a radio story was not inferior to the quality of story endings after two presentations. Because none of the predictions derived from the faulty-memory hypothesis was confirmed, there is no reason to assume that the hypothesis provides a plausible rival explanation for the finding in previous experiments that radio presentations elicit more novel ideas than do television presentations.

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Em resumo, os três estudos apresentados apontam métodos e resultados diferenciados, cada um deles assumindo suas abordagens teóricas: a pesquisa de Runco e Pezdek buscando padrões de criatividade; a pesquisa de Greenfield e Beagle-Ross focada nas diferenças de impacto entre etnias diferentes e na capacidade de cada uma delas em produzir “novel ideas”; a pesquisa de Valkenburg contestando as metodologias e padrões métricos das pesquisas anteriores. Mesmo entre as pesquisas de cunho psicológico e, por vezes, behaviorista, existem teóricos preocupados com uma abordagem ecológica das performances infantis. É o caso de Marianne Bloch e Anthony Pellegrini (1988) que apresentam o conceito de “environmental press” para ressaltar a preocupação com os fatores que cercam as ações criativas entre as crianças. Imprensa ambiental [environmental press] é um termo usado pelos psicólogos ecológicos ao se referirem à influência combinada de forças que trabalham em um ambiente para moldar o comportamento e desenvolvimento das pessoas nesse cenário. A imprensa ambiental

surge das circunstâncias que enfrentam e que cercam um indivíduo que geram impulso psicológico que tende a orientar o indivíduo em uma determinada direção21 (Bloch e Pellegrini, 1988, p.19).

Não cabe a esta pesquisa o aprofundamento no tema proposto pelos autores acima, mas é necessário apontar as diversas variáveis do pensamento behaviorista e de que forma isso afeta os resultados das pesquisas entre crianças e meios de comunicação. De qualquer forma, o aspecto ecológico será levado adiante nos apontamentos produzidos pela presente tese, mas sempre no sentido de colocar a sonoridade presente nos produtos radiofônicos como agente protagonista dos vínculos entre a criança e os conteúdos/brincadeiras. No segundo capítulo serão mapeados programas radiofônicos voltados ao público infantil. O objetivo é apontar elementos estéticos dos programas, levando em conta o envolvimento que eles causam nas crianças. Mais do que a exposição aos conteúdos sonoros, busca-se nesta pesquisa a efetiva participação da criança no ambiente sonoro, seja em casa próximo às caixas de som, seja no auditório participando do programa ao lado dos locutores/apresentadores. Environmental press is a term used by ecological psychologists in referring to the combined influence of forces working in a setting to shape the behavior and development of people in that setting. Environmental press arises from the circumstances confronting and surrounding an individual that generate psychosocial momentum tending to guide that individual in a particular direction

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A crítica inicial aos métodos behavioristas levantados é que ainda não se leva em conta a efetiva participação do corpo na comunicação. As crianças ainda não estudadas como mentes abertas ou não à recepção e ao entendimento dos sinais informativos transmitidos pela tela ou pelos alto-falantes. O desenvolvimento da criatividade depende, como vimos, da participação efetiva das performances do corpo, nossa mídia primária, nos rituais comunicativos. O Rádio é um instrumento, uma técnica, mas carrega em si uma história de manuseios e audições. Com efeito, um meio de comunicação que já nasceu com responsabilidades políticas e econômicas (como veremos adiante), terá em suas entranhas os vícios do savoir-faire racionalista e mecanicista. O produto final, usado pelos pesquisadores citados anteriormente, já é em si um convite ao racional, a uma amarra criativa que está presente no logocentrismo das narrativas modernas. A oralidade, citada e pesquisada por Greenfield e Beagles-Ross, tem sua característica cíclica e ritual que não pode ser ignorada ao ser transformada em produto audiovisual.

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2 RÁDIO CRIANÇA: OS PROGRAMAS INFANTIS Neste capítulo serão apresentados exemplos de programas de rádio voltados ao público infantil, sem restrição de cronologia ou nacionalidade. O objetivo é analisar o rádio não apenas como um veículo de comunicação gerido a partir de interesses comerciais, mas como um importante meio de construção de conhecimento e ambiente de desenvolvimento da criatividade. Sem a pretensão de traçar linhas históricas, este capítulo pretende analisar e cotejar programas infantis independente da época em que foram produzidos, levando em conta principalmente a participação infantil e a contribuição para o desenvolvimento da criatividade da criança produtora e ouvinte. Em “Rádio Racional” o jogo de palavras tem como objetivo propor uma flutuação entre o que Murray Schafer (1991) pensou sobre uma “rádio radical” em contraponto com as obrigações financeiras das emissoras de rádio públicas e comerciais, inseridas em uma economia liberal e uma cultura racionalista. Este conflito influencia diretamente na quantidade e qualidade dos produtos radiofônicos voltados para crianças. Em seguida serão apresentados os quadros que compõem o programa “Estação Brincadeira” e “Rádio Maluca”, da Rádio MEC AM do Rio de Janeiro. A análise destes quadros levará em conta elementos da estética radiofônica que colaboram ou não com a efetiva participação da criança na criação de ambientes sonoros, despertando assim uma criatividade sonora e imaginativa nas crianças. Os programas “Para ouvir e aprender” e “Radioweb criança” subsidiam a formação de um panorama atual de produções radiofônicas infantis em duas situações distintas: um programa veiculado em rádio tradicional (dial), de emissora católica sediada numa cidade no interior do Pará; uma emissora virtual totalmente voltada para o público infantil, contando com o suporte hipertextual da internet.

2.1 Rádio Racional O rádio é um meio cuja estratégia de comunicação baseia-se na emoção da voz humana em conjunção com as técnicas de plástica sonora, formando assim uma sintaxe do texto radiofônico (Silva, 1999). Nas universidades e cursos profissionalizantes, os 41

alunos aprendem as diversas técnicas de manipulação do som eletrônico e também do aparelho fonador, além de se conscientizarem da importância da escrita para o texto radiofônico. Contudo, por trás dessas estratégias está o fato do rádio carregar consigo uma herança de técnicas de produção que obedecem a lógicas racionalistas das sociedades modernas de economia capitalista. O rádio é resultado mimético dos acontecimentos sociais e políticos que marcaram a Europa e Estados Unidos na transição do século XIX para o século XX. A crítica ao modelo racionalista da produção radiofônica encontra elementos na obra do músico e professor canadense Murray Schafer, que propõe o termo “rádio radical” (Schafer, in Meditsch e Zuculoto, 2008) para se referir a produções sonoras pré-industriais e tecnológicas. O som tem função sincronizadora desde as lendas religiosas e organizações sociais primitivas até as complexas cidades modernas. Da voz de Deus, aos sinos de igreja e emissoras de rádio, como nos demonstrou Menezes (2007), produções sonoras são fundamentais em qualquer organização social. O problema, segundo Schafer, está na submissão do rádio às dinâmicas impostas pela tecnologia e pelo pensamento racional moderno: “a radiodifusão ocidental é tiranizada por um instrumento que aceitamos como inviolável: o relógio” (Schafer, in Meditsch e Zuculoto, 2008, p.238). Desta forma, seria inviável a produção de conteúdos radiofônicos que deem conta da complexidade sonora – e mesmo narrativa – de uma sociedade. Em outras palavras, uma rádio mexicana, por exemplo, seria incapaz de funcionar como uma caixa de ressonância de toda sua complexidade cultural. O rádio cumpre sua função de transmitir com velocidade informações de interesse para a manutenção de uma dinâmica social racional. Em uma análise da obra de Murray Schafer, Carmen Lucia José e Marcos Julio Sergl (2006) mapeiam em diferentes momentos da história a relação das sonoridades com as organizações sociais. Organizado ao redor da máquina, o homem contemporâneo povoou seu cotidiano com som de motores, que se caracterizam pela baixa informação e pela redundância. Ao seu redor, tudo apita para dizer “está concluído”; tilinta para dizer “me atenda”; buzina para dizer “perigo” ou “sai da frente”; estala para dizer ‘liga/desliga”; soa extensamente: na fábrica, para dizer “pode parar” e, nas ruas e avenidas, para dizer “emergência”; acelera para dizer “vamos mais depressa”; etc. Com um clic tem-se uma fotografia; com um toque de dedo tem-se o som do rádio, do cd player, da TV; com vários toques de dedo, escolhe-se o som da campainha do telefone celular e vários sons avisam de seus erros e acertos nos comandos do computador; com um movimento mecânico programado o disco roda na vitrola a 42

canção popular ou com um movimento manual o disco rola ao contrário, inventando uma nova música e uma nova dança (José e Sergl, 2006, p. 06-07).

Vivemos em ambientes saturados de sonoridades, muitas delas produtos da ação de máquinas, responsáveis pela potencialização do tempo e da força de trabalho. As jornadas de trabalho de 40 horas semanais submetem os corpos a esforços além de suas capacidades. O tempo cronológico é loteado e apropriado pelo sistema econômico, que tem na mídia um forte aliado na manutenção de uma verticalidade das forças de poder. Harry Pross já apontava para uma “economia dos sinais”, em que a mídia eletrônica, através das técnicas de difusão, coloniza o tempo de vida dos trabalhadores, saturando seus olhos e ouvidos com sinais do consumo. A construção de recursos técnicos para superar as restrições da percepção elementar pode ser interpretada como o motor da sociologia cultural, uma vez que os donos desses recursos podem colonizar o tempo de vida dos outros. A começar pelo tambor da selva e os sinais de fumaça até a radiodifusão e a Internet, os donos dos meios de comunicação conseguem alcançar simultaneamente mais pessoas num espaço maior e em menos tempo do que lhe seria possível de outra maneira em toda a sua vida. O trabalho fisiológico de percepção de muitos acumula-se em forma de lucro de poucos operadores da mídia. Esse processo, com sua repetição periódica, produz efeitos econômicos (reciclagem...) tanto no ritual elementar quanto na programação eletrônica (Pross, 1997).

O Rádio, que traz para a atualidade características dos tempos da oralidade, está contaminado pelo logocentrismo e pela racionalidade moderna. Esta passagem das sociedades orais para as sociedades modernas, baseadas nas técnicas sustentadas por uma economia liberal, também influencia a percepção de infância e criança. Segundo Postman (1999), no período das sociedades orais o conceito de criança e de adulto era pouco definido. A leitura é flagelo da infância porque, em certo sentido, cria a idade adulta. A literatura de todos os tipos – inclusive mapas, gráficos, contratos e escrituras – reúne e guarda segredos valiosos. Assim, num mundo letrado, ser adulto implica ter acesso a segredos culturais codificados em símbolos não naturais. Num mundo letrado, as crianças precisam transformar-se em adultos. Entretanto num mundo não letrado não há necessidade de distinguir com exatidão a criança e o adulto, pois existem poucos segredos e a cultura não precisa ministrar instrução sobre como entendê-la (Postman, 1999, p. 28).

É impossível analisar criticamente os produtos radiofônicos infantis sem levar em conta esta problemática. De outra forma estaríamos reduzindo a discussão à simples 43

função profissional de jornalistas, produtores radiofônicos e publicitários, estes já impregnados dos vícios do savoir faire dos produtores de informação. A qualidade das produções radiofônicas está estritamente ligada às suas necessidades tecnológicas. Em outras palavras, Klaus Schöning (in Sperber, 1980) afirma que o rádio não é fruto de movimentos artísticos, mas do desenvolvimento tecnológico. Isto quer dizer que a peça radiofônica, expressão artística característica deste meio, é desde o seu início um gênero artístico diferenciado. Já no início da história da peça radiofônica tornou-se evidente uma chance e uma problemática que não era pertinente às artes tradicionais: a peça radiofônica não deveria ser apenas articulação artística, mas deveria também satisfazer esta exigência, como ars multiplicata, num meio de comunicação massa acessíveis a todos. Não apenas a produção, mas ao mesmo também, ou quase sempre, a publicação garantida dentro de um programa non-stop permanente. Arte para todos. Arte de massas? Artes dentro de um meio de comunicação de massas (Schöning in Sperber, 1980, p.168-169).

Portanto, é necessário investigar em que medida os primeiros programas infantis de rádio já se sujeitavam aos ditames das lógicas consumistas e da colonização do tempo de vida dos trabalhadores. No subcapítulo a seguir serão apresentados dois exemplos da subordinação dos conteúdos infantis ao modelo publicitário de produção radiofônica.

2.2 Rádio infantil para ouvir e consumir Nos Estados Unidos, berço do modelo de gestão da radiodifusão brasileira, as emissoras aliaram-se precocemente às empresas de bens de consumo. No contexto infantil, encontram-se na década de 1930 os primeiros exemplos de sucesso de audiência, que colaboravam com o aquecimento do mercado de produtos para crianças. Segundo Mark West, já desde o final do século XIX a criança começava a se tornar agente de seu próprio consumo, sem que houvesse a intervenção direta dos pais. Essa divisão básica caracterizou a cultura das crianças americanas durante os anos 1920. No começo dos anos 1930, contudo, numerosos anunciantes começaram a enxergar as crianças como consumidoras indiretas. Esses anunciantes perceberam que as crianças poderiam influenciar na decisão de compra dos pais. Essa percepção, combinado com o crescimento da popularidade do rádio, impulsionou numerosos

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fabricantes a patrocinar programas infantis no rádio22 (West, 1987, p. 102).

No afã das empresas em atingir o público infantil no estímulo direto ao desejo de consumo, era inevitável que a mídia de maior impacto na época, o rádio, fosse o principal alvo das experimentações. O primeiro grande exemplo da transformação das peças radiofônicas em veículos de ligação entre consumo infantil e as massas talvez tenha sido o programa americano Little Orphan Annie. Foi na década de 1930 que a empresa Americana de achocolatados Ovaltine decidiu experimentar uma nova forma de publicidade no rádio, não mais oferecendo o produto aos pais, mas falando diretamente com as crianças. Para tanto, era necessário pensar em uma estratégia de comunicação que atingisse o público infantil de forma eficiente. A saída encontrada foi a adaptação para o rádio das histórias em quadrinhos da personagem Little Orphan Annie, de Harold Gray, que começaram a ser impressas em 1924 (West, 1987, p. 103). O programa de rádio foi ao ar em 1930 na NBC, ocupando o horário do final da tarde. As histórias em quadrinhos eram adaptadas ao formato de peça radiofônica, seguindo um modelo comum à época de teatralização das falas, com auxílio de efeitos sonoros. As histórias eram contadas em forma de capítulos, o que possibilitava garantir a atenção dos ouvintes por dias, além de ser uma excelente estratégia de vendas dos produtos Ovaltine. O locutor-narrador iniciava os programas dizendo à criança para pedir um Ovaltine para os pais, com o argumento de que o produto aumenta a quantidade de nutrientes no leite, além de ajudar na digestão. Apenas depois desta apresentação que a história é retomada, a princípio pelo narrador, seguido pela teatralização. Após o sucesso de Little Orphan Annie, outras grandes marcas direcionadas a crianças adotaram estratégias semelhantes. Exemplo da Kellogs que adaptou a história em quadrinhos Buck Rogers in the 25th Century, de John Dille. Bem como as intervenções da Ovaltine, o narrador sugeria o consumo de Kellogs, recomendado pela grande quantidade de nutrientes, fundamentais para o desenvolvimento fisiológico das crianças.

22 This basic division characterized American children's culture well into the 1920s. In the early 1930s, however, a number of advertisers began to view children as indirect consumers. These advertisers realized that children could influence their parents' purchasing decisions. This realization, combined with the growing popularity of radio, caused a number of manufacturers to sponsor children's radio programs

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Figura 1 - Quadrinhos Little Orphan Annie e Buck Rogers

Portanto, durante seu período de auge como meio de massa, o rádio americano testemunhou uma quantidade importante de programas infantis ligados a produtos de consumo. “Em 1938, crianças podiam escutar The Tom Mix Ralston Straight Shooters, The Lone Ranger, Popeye the Sailor, Flash Gordon, Dick Tracy, Terry and the Pirates, Superman, e muitos outros23” (West, 1987, p. 103). Bem entendido, não é intenção desta pesquisa levantar o histórico de produções radiofônicas para o público infantil, nem no Brasil nem nos Estados Unidos. A ideia é simplesmente ilustrar as reflexões trazidas por Schöning de como as peças radiofônicas, com um conjunto de características estéticas bem diferenciadas e com grande potencial de difusão cultural e educativa acaba se vendo atrelado de forma perversa aos ditames do mercado de consumo. Tal cenário é ainda agravado pelo surgimento da TV no começo da década de 1950. Com a consolidação da Televisão nos lares as narrativas infantis ganham formas e cores. Atualmente as crianças são expostas a enormes telas de alta definição, que exibem personagens em performances gestuais que prendem a atenção. Das sonoridades ainda restam as leituras em voz alta, os contadores de histórias que animam festas de aniversário, os CDs de música infantil que ainda resistem nas estantes. Enquanto grandes redes de livrarias dedicam espaços generosos às crianças, oferecendo diversos tipos de produtos que vão de livros ilustrados a miniaturas de By 1938, children could listen to The Tom Mix Ralston Straight Shooters, The Lone Ranger, Popeye the Sailor, Flash Gordon, Dick Tracy, Terry and the Pirates, Superman, and several others.

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personagens de filmes, muito pouco é feito pelas emissoras de Rádio para atrair o público infantil e seu “poder de compra”. Atualmente as grandes emissoras de Rádio de São Paulo praticamente ignoram o público infantil em suas grades de programação. Mesmo a Rádio Disney FM apresenta uma programação voltada ao público adolescente, se aproximando na linguagem e na programação musical, das rádios jovens tradicionais, como Jovem Pan e Mix Fm. Dentre os programas de rádio infantis atualmente transmitidos no Brasil, foram selecionados, com o objetivo do presente capítulo de levantar e problematizar os aspectos sonoros e lúdicos dos conteúdos para criança, três programas em diferentes plataformas, a saber: um programa veiculado em emissora pública de radiodifusão; um programa produzido e veiculado por uma comunidade no norte do Brasil, em plena Amazônia; um portal na internet dirigido a crianças e vinculado a uma emissora de Rádio da Bahia.

2.3 Rádio Nacional: programas Rádio Maluca e Estação Brincadeira a) Rádio Maluca Aos sábados, próximo à hora do almoço, o auditório da Rádio Nacional, espaço que viveu seu auge nos anos 1950, é tomado por crianças de colo a adolescentes que, ao lado dos pais, ocupam as cadeiras azuis do teatro. No palco, o cenário é composto à frente da cortina de veludo azul e do painel verde onde repousam em letras prateadas as palavras “Rádio Nacional”, um dos poucos elementos remanescentes da configuração original do auditório. Uma colcha de retalhos cobre a beirada do palco, enquanto à direita se encontra uma mesa, coberta pela mesma colcha, repleta de brinquedos, como buzinas de ar, tambores, cornetas, pequenos atabaques de madeira, chocalhos. Atrás da mesa, uma armação de metal serve de suporte a outros objetos, como canecas, pratos de percussão, uma frigideira e uma chupeta gigante, todos à espera do golpe que fará o ar vibrar até os potentes microfones. No centro do palco fica o microfone principal; em poucos minutos lá estará o protagonista dessa jornada lúdica. Às onze horas todos ouvem atentos às caixas de som, que espalham as vozes do boletim de notícias pelo teatro. Não sabemos onde eles estão. Aquele espaço só pensa em brincadeira. Após a vinheta da Rádio MEC, ouve-se a abertura do programa: 47

Do Auditório da Nacional, ou de um buraco de rato, talvez. Entrando pelo fio de um microfone, chegando de mansinho, pelos fundos do seu rádio. Está entrando no ar, para confundir a sua cuca, a Rádio Maluca! Na sequência ouve-se a música de abertura do programa: Passa o rádio tocando, vem no rádio tocar / traz o peito da vaca, que o bebê quer mamar. / Quem não mamou não demora a berrar / Salve a Rádio Maluca que acabou de chegar. / Os cachorros, papagaios, mexem as roupas no varal / Escondem frutas, melancias, melodias no cordão. / E o rádio “Heya”!, grita “Heya!”, emoção. / Temos artistas, divertindo, colorindo a multidão. E o mundo “Heya!”, pinta “Heya!”, coração. / Passa o rádio tocando, vem no rádio tocar / traz o peito da vaca, que o Dedé quer mamar. / Quem não mamou não demora a berrar / Salve a Rádio Maluca que acabou de chegar (Zezuca, s.d.). Ao entrar pelo fio do microfone e pelo fundo do rádio, os atores do programa estão convidando a criança a participar como extensão do auditório da Rádio Nacional. O programa chega para confundir a cuca, provocar a criança em suas vontades, gostos, fantasias, sensações. Segundo Maturana e Verden-Zoller as relações humanas se dão no “espaço relacional do conversar” (2004, p. 09). Também se apropriando dos estudos da etologia, os autores afirmam que as relações se dão como fenômeno biológico, através de fluxos de ordens comportamentais, os quais denominarão “linguajear”. Contudo, esse fluxo é submetido a ações de cunho emocional, que entrelaça as ações do linguajear, muda seus cursos. A esse entrelaçamento os autores denominam “conversar”.

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Figura 2 - Performance de Mariano e Zé Zezuca

Confundir a cuca, portanto, é uma ação de emocionar, mudando o fluxo codificado da linguagem. A Rádio Maluca se presta a suspender a criança de seu espaço lingual tradicional, para que ela viaje pelos buraquinhos do alto-falante em uma teia de provocações emocionais. A partir desse momento, a Rádio MEC AM e a Rádio Nacional são extensões de toda performance experimentada no auditório. As crianças são conduzidas pelo protagonista Zé Zezuca que, após as saudações, lança a pergunta: “vocês sabem quem eu sou?”: Eu sou aquele que fala cantando / Eu sou aquele que vive tocando / Vou convidar você pra brincar, lalala / Eu sou o Zé, o amigo Zé Zezuca... As palavras Zezuca, maluca e cuca jogam e rimam no ritmo musical da abertura do programa. Tal jogo sonoro não apenas facilita a atenção e a memória da criança, como a estimula sensorialmente a mexer seu corpo e participar ativamente, em seus cinco sentidos, das brincadeiras; estejam elas no auditório ou ouvindo pelo rádio.

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Figura 3 - Zé Zezuca com chapéu e Mariano

O companheiro de Zé Zezuca no programa é Mariano, responsável por tocar os instrumentos musicais, além de manter constantes diálogos com o apresentador. Boa parte da conversa entre os dois termina em comida. Como diria Zezuca: “Mariano, você só pensa em comida”. É logo após as apresentações que Zé Zezuca chama seu primeiro quadro.

Eu vou te provocar Neste quadro as crianças começam de fato a participar do programa. A cada episódio é proposto um tema a ser debatido nos espaços do teatro. Zé Zezuca desce do palco e interage com as crianças, levando o microfone aos grupos que já se formam entre as poltronas e na boca do palco. Neste momento, muitas das crianças já não estão mais sentadas em suas poltronas; muitas correm em direção ao apresentador, outras se encolhem em sua timidez e procuram proteção nos corpos dos seus pais. As perguntas normalmente se referem a preferências ou percepções, como por exemplo: você tem um bicho de estimação em casa? O que dá para ver da sua janela? Qual a sua comida preferida? Quem apresenta o tema do dia e os canais de interação é a chamada “voz da produção”, momento em que a pessoa responsável pela produção do programa entra em off, sem que as crianças no teatro saibam onde ela está. Esta voz convoca as crianças que estão ouvindo o programa a participarem pelo telefone, e-mail ou pela página do programa na rede social Facebook. Ao final do programa são sorteados brindes aos ouvintes, como livros e CDs.

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Figura 4 - Zé Zezuca entrevista as crianças

O apresentador desce do palco até as poltronas do teatro, onde crianças experimentam diferentes tipos de sensações e performances corpóreas. Muitos se projetam para próximo ao palco, na tentativa de ser o primeiro a ser abordado por Zezuca. Outros buscam refúgio no colo dos pais, assim como os pequenos filhotes Rhesus pesquisados por Harry Harlow (1972). Zezuca aponta o microfone para as crianças, buscando aqueles mais ágeis; por vezes segue uma ordem lógica pelas fileiras do teatro. Mas sempre causando um grande alvoroço entre as crianças presentes. Está claro que a provocação não se restringe ao tema abordado e a uma simples resposta, mas se trata de um jogo corporal, tal qual um jogo de “pega”. O espaço entre o palco e as poltronas é invadido por crianças que tentam chegar primeiro ao apresentador, como em um jogo de âgon, ávidas em participar da brincadeira que consiste em responder questões no microfone. Como exemplo, um dos temas foi o folclore brasileiro, logo a provocação do dia era saber qual dos personagens do folclore a criança mais gostava. O Antônio, de 6 anos de idade respondeu “Saci Pererê”, já o Jean Luca e o Cauã, ambos de 4 anos, responderam a Mula sem Cabeça. A Cuca também foi citada, pela menina Bárbara de 10 anos. No fim das perguntas, Zezuca pergunta a Mariano seu personagem preferido, que responde gostar do Saci, pois este rouba as comidas das casas alheiras. Mas Mariano, você só pensa em comida.

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Repórter Mirim Criação e apresentação de uma pequena reportagem ligada ao tema do programa. A criança apresenta ao vivo durante o programa um produto muito semelhante aos formatos tradicionais das reportagens de rádio. A reportagem, que já fora editada e finalizada, conta com a participação ativa da criança, sempre desenvolvendo um assunto relacionado ao tema do dia no programa. Normalmente este quadro é produzido por crianças de uma faixa etária mais elevada entre os ouvintes da rádio (algo em torno de 7 a 10 anos de idade). Aparentemente este quadro não cumpre uma função de oficina de produção de conteúdo radiofônico, mas serve como espaço para que a criança desenvolva um assunto, usando de argumentos textuais que, em seguida, serão transformados em conteúdo sonoro.

Entrevistinha Momento em que Zezuca volta descer do palco e encontrar as crianças na plateia para uma nova rodada de perguntas, todas elas ainda sobre o tema do dia. O apresentador não perde em momento algum a posição de líder da brincadeira, cuidando do andamento não só do programa (este também sujeito aos ditames do cronômetro), mas também da brincadeira entre as crianças. Contudo, este é o momento do programa em que observamos a efetiva participação das crianças, respondendo às perguntas de forma a expor um pouco de sua fantasia. Tomando novamente o exemplo do folclore brasileiro, ao serem perguntadas sobre qual seria a festa folclórica mais legal, poucos se dispunham a responder; uma das crianças chegou a dizer que era a festa da sua amiga dos pirilampos, o que levou Zezuca a responder entre risadas que esta não era uma festa folclórica. Em seguida, perguntado se tinha medo de Mula Sem Cabeça, o menino respondeu: “eu só tenho medo se ela entrar lá em casa”. Muitas das respostas das crianças demonstram uma criatividade aguçada, além da vontade de participar da brincadeira expondo suas fantasias que, por vezes, são confundidas com simples erros. É evidente, neste caso, a perda de oportunidade de exploração da criatividade infantil ao se privilegiar a dinâmica radiofônica tradicional do jogo de perguntas-e-respostas. b) No palco: contar histórias e fantasiar-se Em uma das visitas ao auditório, minha chegada antecipada ao Rio de Janeiro possibilitou o acompanhamento mais próximo do processo de montagem do palco e ensaio com as crianças. Nesse dia a contadora de histórias fez sua performance com a 52

ajuda de uma criança da plateia. Foi escolhida uma menina de aproximadamente cinco anos de idade, que vestia uma fantasia de fada. A contadora de histórias trouxe consigo uma maleta repleta de brinquedos, que serviriam de apoio para a história da “Dona Baratinha”. Durante o ensaio, ainda com a plateia vazia, ao abrir a maleta, a contadora deu um animal de brinquedo à criança, dizendo que este queria casar-se com a Dona Baratinha. A participação da menina consistiu em imitar o som do animal que ela tinha em mãos, para que a Dona Baratinha se assustasse com o som e desistisse de casar com cada um dos animais. Mas já durante o ensaio a pequena fada se agitava pelo palco da Rádio Nacional, dando ao cavalo que estava em suas mãos o poder de voar. Apesar das tentativas da contadora de histórias em manter a menina próxima ao microfone, a pequena fada conduzia o cavalo de plástico pelos ares, impedindo a continuidade da história que se desenvolvia em frente ao palco. Este pequeno acontecimento é importante para que se observe a dificuldade de um adulto em trazer a criança para performance marcada teatralmente. A fantasia já estava acontecendo naquele momento na cabeça da criança, embora não estive de acordo com a proposta da contadora de histórias. Em seus gestos, a menina nos revelava ritualizações comuns nossa cultura: o cavalo que voa, como diversos cavalos alados em histórias infantis; a própria fantasia de princesa que a criança vestia já a colocava mimeticamente em um universo fantástico, onde seria perfeitamente aceitável o uso de um cavalo voador em suas histórias mentais. c) Estação Brincadeira O programa Estação Brincadeira estreou na Rádio MEC AM no mês de agosto de 2011. Vai ao ar aos sábados das 9hs às 11hs, seguida do programa Rádio Maluca, o que soma três horas consecutivas de programação para criança. É composto pelos seguintes quadros:

Café com som O quadro Café com Som traz uma seleção musical variada, contando com um grande número de canções de folclore e artistas brasileiros de talento. A ancoragem fica por conta de jovens locutores, seguindo os padrões tradicionais da radiodifusão. Textos curtos e falas em formato “bate-bola” entre os apresentadores dão um tom de artificialidade à fala das crianças. O jogo da representação desponta novamente como uma preparação para o fazer radiofônico adulto. A plástica do programa (vinhetas) é 53

produzida também com as vozes infantis dos apresentadores, no melhor formato “rádio jovem”. É possível notar a musicalidade infantil na plástica do quadro apenas na música de abertura, que traz a seguinte letra: “de manhãzinha quando o galo me acorda e os passarinhos na janela vêm cantarolar. O toca-disco vai tocando uma seresta. Eu vou tomar café com som”. O próprio nome “Café com Som” sugere atividades adultas, ligadas ao trabalho ou a encontros de negócios ou intelectuais. O termo “café da manhã” não é explorado em sua totalidade, o que poderia sugerir melhor uma refeição ao lado da família e ouvindo a rádio.

Carro-céu O quadro que vai ao ar das 10h às 11h leva o nome do veículo que conduz os personagens por aventuras temáticas. A cada episódio, os heróis são chamados a resolver problemas relacionados ao tema que se pretende debater. Fazem parte da aventura os personagens: Macaco Tião, Aerogata Mimi, Robô-computador Jeca-Bite, o vilão Doutor Malvadez e Pirraça, seu assistente. Nas aventuras, Dr. Malvadeza realiza alguma peripécia que irá desencadear no tema que se pretende apresentar. Em uma das histórias o vilão disseminou em uma casa abandonada na cidade de São Gonçalo larvas do mosquito Aedes Aegypti. A proliferação do mosquito estava causando ataques de espirros entre os habitantes, o que obrigou a equipe de heróis a viajar com o Carro-céu até a cidade de São Gonçalo. Neste momento é feita uma pequena explicação, pelos próprios personagens, sobre a cidade, indicando que ela é a segunda maior do Estado do Rio de Janeiro. A cidade também é uma das que mais apresentam problemas de urbanização, tornando-se um foco frequente da dengue. Ao descobrir o local onde as larvas foram depositadas, os heróis, com a ajuda do Robô-computador (espécie de elo científico da história) aprendem que a banana tem propriedades que ajudam a combater alguns dos sintomas da doença. Por isso, então, que todos os personagens sofriam de ataque de espirros, menos o consumidor de bananas Macaco Tião. Após eliminar o foco da dengue no local, os personagens se indagam como combater os mosquitos que já se espalham pela cidade. Nesse momento, entra na história o carro “Fumacê”, figura frequente nas ruas dos subúrbios cariocas. Normalmente uma caminhonete equipada com um aparelho que pulveriza substâncias venenosas ao mosquito, o “Fumacê” possui um cheiro e uma sonoridade muitos específicos. O efeito sonoro utilizado no programa imitava a passagem do carro “Fumacê” pelas ruas de São Gonçalo, provocando no ouvinte 54

oriundo dessas regiões mais do que a sensação de pertencimento, mas um mergulho nas reações sensoriais provocadas pela passagem do inseticida. Este pesquisador, que cresceu nas ruas dos bairros de Olaria e Penha, no subúrbio do Rio de Janeiro, certamente pôde se transportar por segundos aos tempos de infância, ouvindo pela janela do quarto o som do carro que chegava pela esquina espalhando um cheiro desagradável nos dias quentes de verão. Este fenômeno foi tratado por Menezes (2007) como “trânsitos sonoros”, ou seja, as imagens geradas em nossas cabeças (endógenas)24 são um complexo de memórias sensoriais profundas, retomadas pelos estímulos sonoros, que nos vinculam. Neste sentido, as vinculações acontecem não apenas pelos signos de reconhecimento (Lotman, 1996), mas também influenciando diretamente o aparelho psíquico do ouvinte, religando-o, nos termos de Michel Serres (2003), ao ambiente. Além do eu penso, logo existo, proposto por Descartes, e do eu me religo, logo sou, proposto por Serres, que citamos anteriormente, acrescentamos: eu ouço, logo sou, para indicar que na cultura do ouvir o rádio provoca a ação criativa de imagens endógenas (Menezes, p.99, 2007).

O veículo Carro-Céu retorna da aventura, cumprindo sua função proporcionando experiências sensoriais profundas e fundamentais para o estabelecimento de uma cultura do ouvir entre as crianças.

Outros quadros Outros quadros da Estação Brincadeira são “Pipocontos”, chamada de “máquina de fazer histórias” e “Álbum de Figurinhas”, apresentado por Fernanda Ribeiro e produzido por Zezuca, que traz grupos musicais brasileiros. Este quadro foi um dos vencedores do Prêmio Roquete Pinto, da Associação das Rádios Públicas do Brasil. Ainda faz parte do programa Estação Brincadeira o quadro “Carro céu”, com os contadores de histórias Jujuba e Ana Nogueira, com uma linguagem próxima às brincadeiras dos palhaços circenses. São propostos jogos de charadas e trava-língua com humor. Já o quadro “Pingue-pongue” propõe um bate-bola com um artista convidado. O quadro “O que você vai ser?” apresenta a cada episódio uma profissão diferente, entrevistando um profissional da área. Este quadro contou com a participação da filha do pioneiro do rádio brasileiro, Edgar Roquete Pinto, Carmen Roquete Pinto 24

O termo “Imagens endógenas” será tratado com maior profundidade no Capítulo 4.

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falando de sua infância e sua relação com o rádio. “Toques e Dicas” é o quadro que apresenta um formato de agenda cultural. d) Ondas públicas, empresa estatal, conteúdo comercial Logo na abertura da Rádio Maluca, o apresentador Zé Zezuca ressalta que o programa é veiculado simultaneamente pela Rádio MEC AM e pela Rádio Nacional, além de ser retransmitido em Brasília e no norte do país. Em seguida ouve-se a vinheta: “Sabe quando dois amigos, ou duas amigas, se juntam para fazer uma brincadeira? Foi assim que a Rádio Nacional e a Rádio MEC resolveram brincar pelo rádio. Entre nessa roda. Rádio Nacional, Rádio MEC e você, de mãos dadas com a Rádio Maluca”. É notável e exclusivo que duas emissoras de rádio tenham em sua programação três horas seguidas de conteúdo voltado ao público infantil. Como apontado por Haussen (1988), os programas infantis têm pouco apelo publicitário devido à concorrência com a televisão e à falta de empenho de jornalistas e produtores na elaboração de programas inovadores. Fica claro, portanto, que apenas emissoras públicas teriam a oportunidade de veicular em suas grades uma quantidade tal de programas para crianças. No livro “Rádio Nacional: o Brasil em sintonia” (2005), Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virgínia Moreira apontam diversos exemplos em que a Rádio Nacional assumiu parcerias com empresas na difusão de seus programas. Destaca-se a época do sucesso do concurso “Rainha do Rádio”, no final da década de 1940, em pleno auge do rádio como meio de comunicação de massa. O programa atraía multidões ao teatro da Rádio Nacional e, consequentemente, as atenções dos anunciantes. A votação se fazia através de cupons a serem recortados das revistas especializadas – como Radiolândia e, especialmente, a Revista do Rádio, de Anselmo Domingos –, o que vinculava o artista ao poder econômico de seus patrocinadores. Então interessada na produção do Guaraná Caçula, a Companhia Antártica Paulista assegurou seu apoio a Marlene, sob a forma de um oportuno cheque em branco (Saroldi e Moreira, 2005, p.123).

Tal movimentação fez o mercado publicitário agir diretamente na eleição das cantoras como rainhas do rádio, o que escancara desde a época dourada a tendência econômica nas produções, em detrimento das premissas de difusão das manifestações culturais, que pautam as emissoras públicas de rádio. Ao contrário da época das Rainhas do Rádio, a Rádio Maluca tem dificuldades em reunir ouvintes e participantes no teatro da Rádio Nacional ou do Sesc, de onde 56

desde 2013 tem sido veiculado o programa, devido a reformas no prédio da Praça Mauá. Normalmente a ocupação da plateia é baixa, o que exige um grande esforço por parte dos apresentadores em manter o clima de alegria durante as brincadeiras. Como não usa efeitos sonoros para mascarar o público, a produção do programa conta com um animador de plateia que passa o programa a soar buzinas de ar e pedir às crianças presentes que faça muito barulho. O animador também estica as mãos e bate palmas em direção ao microfone do tipo boom, responsável por captar sons ambientes, colocado acima das crianças na plateia. Notadamente, embora transmitido por emissoras públicas, o programa tem em seu cerne os vícios do fazer radiofônico submetido às dinâmicas do consumo. Como apresentado no subcapítulo “Rádio Racional”, o rádio está imbuído da necessidade de velocidade e sonho de sucesso, independente do modelo de gestão ao qual esteja submetido. Em outras palavras, não importa se é veiculado em rádio pública ou comercial, o programa deve aparentar sucesso, dinamismo e ritmo (velocidade), cumprindo assim seu papel de transmissor de informações.

2.4 Para ouvir e aprender Outro exemplo de programa infantil em rádio tradicional é o “Para ouvir e aprender”, vinculado ao Projeto Rádio Pela Educação25. De cunho educativo, o programa é parte de uma metodologia pedagógica que envolve o desenvolvimento de material didático, capacitação dos professores para o uso do programa radiofônico em sala de aula e a produção do programa em parceria com professores e alunos. Durante trinta minutos o programa leva para a sala de aula 14 sessões alternadas, que contemplam a realidade da Amazônia, a voz das crianças e adolescentes, professores/as e comunitários/as, das zonas urbana e rural. Todas as sessões estimulam a leitura dos gêneros textuais presentes na escola e na sociedade (livros, cartazes, histórias, causos, rádio, tv, jornal, etc)26.

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Criado em 1999, funciona como espaço de desenvolvimentos de projetos voltados à educomunicação em escolas do Pará, notadamente em Santarém e região. Em parceria com a Prefeitura de Santarém e a Diocese de Santarém, o PRPE recebe apoio da UNICEF, do Projeto Criança Esperança e da Fundação Banco do Brasil. O PRPE possui um blog no endereço www.radiopelaeducacao.blogspot.com.br. 26 Disponível em www.radiopelaeducacao.blogspot.com.br/p/o-que-e-o-projeto-radio-pelaeducacao_4771.html. Acesso em 25/01/2014.

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O programa é veiculado às segundas, quartas e sextas, no período matutino e vespertino, na Rádio Rural de Santarém, no Pará. Esta emissora é vinculada à Diocese de Santarém, através de sua Pastoral da Comunicação. Com meia hora de duração, o programa segue alguns formatos tradicionais do gênero variedades, como boletins informativos, leitura de cartas dos ouvintes, reportagens especiais, agenda cultural, entre outros. A locução é feita por adultos e crianças, sendo que os adultos são normalmente representados pela figura do professor. Embora siga uma estética radiofônica clássica, o programa se apresenta como uma extensão da sala de aula, ou um elo entre a família, a igreja e a escola. Entre os quadros do programa estão:

Que dia é hoje? Apresentado no começo do programa, este quadro conta as curiosidades e acontecimentos importantes que são comemorados na data da transmissão. No dia 28 de abril de 2014 comemorou-se o Dia da Educação, com narrações de textos que homenageavam o pedagogo Paulo Freire. Os locutores ressaltavam que, para Paulo Freire, o problema central do homem não era a alfabetização, mas a valorização da dignidade. O programa do dia 22 de novembro de 2013 foi dedicado ao Círio de Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Santarém, que aconteceria no dia 08 de dezembro. Através de uma reportagem especial, foram dados os detalhes da festa que se aproximava; o grande evento do ano na cidade de Santarém, organizado pela Diocese e tendo a Rádio Rural como o seu medium oficial. Esta reportagem foi apresentada pelo repórter adulto Antônio Barreto.

Seção Aurelinho Neste momento as próprias crianças explicam o significado de algumas palavras – normalmente relacionadas ao tema do dia, ou ao evento importante comemorado naquela data. As crianças perguntam aos seus ouvintes “viu como é fácil aprender, turma?”, logo após explicarem o que são eclipse, outono e Terra, por exemplo.

Papo dez Entrevistas realizadas pelos repórteres da rádio nas diversas comunidades da região de Santarém. Os temas são normalmente atrelados aos acontecimentos da região; 58

são entrevistados personagens locais, como professores, artistas ou escritores de cordel. É interessante notar neste quadro o forte caráter regional do programa.

Vamos ler juntos? Quadro que apresenta uma leitura dramática de poemas, de literaturas de cordel ou cantigas de rodas. Apresentado por adultos e crianças, o quadro é posicionado no final do programa, normalmente seguido de dicas pedagógicas sobre o assunto levantado pela leitura. No programa do dia 30 de abril de 2014, o poema de Antônio Juraci Siqueira, declamado por uma criança, falava de botos; após a leitura, a professora sugeriu que em sala de aula as crianças fizessem pesquisas sobre os botos, os comparando com os golfinhos. Em outro programa, foi proposto aproveitar o dia do músico, que se comemorava no mesmo dia da transmissão, para que cada aluno escolhesse uma música para brincar em sala de aula, com o objetivo de estimular a audição e curtir uma boa música. Nota-se mais uma vez a efetiva participação do programa nas dinâmicas pedagógicas dentro da sala de aula, funcionando efetivamente como ferramenta de aprendizagem e vínculos entre alunos e professores.

Correio do aluno Quadro com a participação mais ativa das crianças, o correio do aluno é o momento em que os locutores leem as cartas enviadas pelas crianças das escolas de comunidades próximas a Santarém. São notáveis os vínculos sonoros presentes na seção de correspondências entre ouvintes e o programa. Muitas das crianças que ouvem e participam do programa moram em aldeias afastadas de Santarém. Elas escrevem as cartas com o auxílio de suas professoras e, normalmente, elogiam o programa, os locutores e a escola onde estudam. Costumam mandar beijos e abraços aos colegas de sala, à professora e aos pais. É o caso da aluna do 4º ano do colégio Rotary que diz gostar do programa e da professora. Manda abraços aos funcionários e aos amigos da escola, além dos pais e dos irmãos. Da comunidade de Peixuna, no Tapará, uma aluna da 7ª série na Escola Nossa Senhora Aparecida mandou alô aos professores e colegas de escola, nomeando todos, e aos pais. Em leitura resumida da carta da Raiana de 12 anos, 7ª série, os locutores entoam: “se fosse uma roseira te dava uma flor, como sou ouvinte te dou um alô”.

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Os alunos da Escola São Domingos, da Comunidade Nova Sociedade no Rio Arapinhus, “escrevem com imenso prazer ao programa para mandar um alô para os professores e amigos”, como no caso da aluna Carina Lopes. Já a aluna Maria Vanderlaine, de 12 anos, escreve pela primeira vez e acha o programa uma maravilha; manda abraços para os colegas, citando seus nomes, aos pais e avós, e termina com o pequeno poema: “Escrevi numa rosa branca “rádio para a educação”. Veio um pássaro e disse “Escreva no seu coração”. Os alunos das comunidades da região de Santarém são efetivos participantes do programa, reforçando seus vínculos familiares e afetivos através das cartas lidas ao vivo pelos apresentadores. Trata-se de vínculos que perpassam as mídias primárias, secundárias e terciárias, dos corpos dos alunos em vínculo com os de seus colegas, em brincadeiras na escola, no contato com os professores, que se codificam em abraços grafados em papéis e enviados à emissora, posteriormente lidas e irradiadas por ondas magnéticas novamente às aldeias, fechando um ciclo de pertencimento que extrapola os limites dos muros das casas, escolas, cidades e da emissora. A menina Raiana, bem como as outras crianças, dedicou um tempo de vida a sentar ao lado da professora e, juntas, escreveram uma carta para os colegas, pais e, principalmente, reforçaram os laços que as unem, gravando em sinais gráficos e auditivos os momentos vividos juntos na sala de aula. Contudo, esteticamente o programa faz uso de recursos repetidos por praticamente todas as outras propostas de rádio infantil, exigindo das crianças uma performance em frente ao microfone que é mimetismo, no sentido de repetição, das locuções dos adultos, com o agravante de seguirem roteiros de difícil compreensão e dicção. Muitas vezes as crianças pronunciam frases complicadas, desenvolvem (ou repetem) raciocínios elaborados para o texto escrito. Embora tenha um papel fundamental como ferramenta de aprendizado escolar e, principalmente, de vinculador entre alunos e professores das escolas de Santarém e região, falta ao programa a oportunidade de oferecer às crianças um espaço de criação e brincadeiras sem obrigações pedagógicas. Como apontava Postman, este problema está presente no modelo moderno de ensino e aprendizado, onde a escola forma adultos instruídos. Como a escola se destinava a formar adultos instruídos, os jovens passaram a ser vistos não como miniaturas de adultos, mas como algo completamente diferente: adultos ainda não formados. A aprendizagem na escola identificou-se com a natureza especial da infância [...] E assim como no século dezenove a adolescência passou a ser definida pelo alistamento militar obrigatório, nos séculos 60

dezesseis e dezessete a infância foi definida pela frequência escolar. A palavra school-boy (colegial) tornou-se sinônima da palavra child (criança) (Postman, 1999, p. 55-56).

Isto quer dizer que o problema apontado na produção do programa Para Ouvir e Aprender não é isolado e reflete um sistema de aprendizado que perpassa todos os níveis educacionais. Também não é função desta tese problematizar os métodos pedagógicos em vigor, tampouco propor soluções em forma de programação radiofônica que aponte para novos horizontes da relação ensino-aprendizado. Pretendese apenas apontar que o ensino do rádio e pelo rádio está sujeito a métodos que não são necessariamente libertadores no sentido de se buscar novas formas de ouvir e produzir peças radiofônicas.

2.5 Web Rádio Criança A webradio, caracterizada pelo baixo custo de produção e veiculação, é o medium por onde se tem criado o maior número de programas infantis. Na Bahia, a Rádio Educadora, vinculada ao IDERB (Instituto de Radiodifusão Educativa da Bahia), lançou em seu portal a Web Rádio Criança. Em sua página, a rádio funciona como um repositório musical dividido em três categorias: MPB, músicas de ninar e músicas de cinema e TV. Todas elas, claro, com vínculos infantis. O layout do site27 convida para “músicas, histórias e games incríveis para você curtir e compartilhar com a galera”. Usando dos recursos da hipertextualidade, o site da Rádio Criança disponibiliza um jogo da memória, um quebra-cabeça, jogo dos 7 erros e um espaço para desenhos. Além disso, as crianças podem também acessar pelo site conteúdos infantis da TVE da Bahia e da “Assembleia de Palhaços”. Este formato de programação infantil, cada dia mais comum no ciberespaço, induz a criança ao uso individualizado dos recursos sonoros e imagéticos disponíveis no portal. Funcionando como um reprodutor musical e como espaço de brincadeiras interativas, a webradio extrapola os limites da radiodifusão tradicional, oferecendo todo um ambiente virtual de navegação para a criança.

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http://www.irdeb.ba.gov.br/radiocrianca

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Figura 5 - Homepage da Webradio Criança

Contudo, é notável a perda das possibilidades de criação sonora em tal ambiente. A brincadeira solitária da criança, fundamentada em elementos lúdicos de imagem pictórica, não provoca a criança a fabricar seus próprios sons. Na verdade, a música acaba servindo como um segundo plano nas atividades propostas pelo portal. Categorizado por gêneros, os sons são um acompanhamento distante de uma navegação preparada para o entretenimento, mas ainda pouco cuidadosa com o aprendizado e com o estímulo à criatividade.

2.6 Algumas considerações Como ficou demonstrado, existem atualmente diversos formatos de programas radiofônicos voltados para o público infantil, contemplando praticamente todos os modelos de gestão radiofônica (rádios públicas, comerciais e na web). Apesar das diferenças nas formatações dos programas, é notável que todos eles fazem uso das técnicas tradicionais de produção radiofônica, inserindo forçosamente a criança nos moldes racionalistas e voltados ao consumo que ditam os caminhos do rádio. Em um momento em que os pesquisadores do rádio e das mídias sonoras voltam suas atenções e suas preocupações para as novas tecnologias de radiodifusão, é necessário ressaltar que, 62

para que se assegure a manutenção deste meio de comunicação, não se pode perder a essência do ouvir. O rádio não mais pode ser tratado como técnica de transmissão de informações, tampouco as novas tecnologias devem ser recebidas como novos horizontes para o crescimento da audiência. Se desaprendermos a ouvir, perdidos entre os ruídos e sons maquinais, tomados pela angústia da ditadura da velocidade, não haverá novidade mercadológica que coloque novamente o rádio em seu devido lugar: os ouvidos e a pele dos que estão antes e depois dos aparelhos. No lugar do sonho do rádio moderno, o que se propõe adiante, no próximo capítulo, é o sonho do rádio radical. A construção coletiva de ambientes sonoros que valorizam o mais profundo das sensações humanas. Sem negar a importância das máquinas, voltar ao fazer mais primitivo da comunicação: o fazer corporal, presencial, valorizando todas as formas de produção sonora através da mídia primária, do aparelho fonador às pontas dos dedos.

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3. RÁDIO BRINCADEIRA: BRICOLAGEM SONORA E ESTÉTICA DO CORPO QUE BRINCA Como ficou demonstrado no capítulo anterior, embora seja possível encontrar programas radiofônicos infantis de bom nível de produção e importante função pedagógica, poucos ou nenhum entre eles trabalha as potencialidades sonoras do rádio como estímulo à criatividade infantil. São notáveis as características racionalistas e lógicas das narrativas radiofônicas, na obrigação da criança em repetir técnicas de locução e interpretação consagradas no rádio tradicional, com uma clara função de preparar essas crianças a um fazer “adulto” radiofônico, sem que elas tenham a chance de desenvolver suas habilidades em ouvir e produzir sons. O objetivo deste capítulo é trazer a problemática da falta de experimentação sonora no rádio para o âmbito do estético. Comparando as teorias estéticas radiofônicas consagradas, pretende-se apontar caminhos para o desenvolvimento de experimentos no rádio que valorizem as características do brasileiro em lidar com sonoridades, oferecendo às crianças um ambiente solto das amarras tecnicistas dos manuais radiofônicos, dando espaço aos sonhos, aos jogos e brincadeiras e, principalmente, valorizando todo o corpo na produção sonora.

3.1 Rádio surreal: Paul Deharme e o rádio dos sonhos No Brasil o estudo da estética do rádio é fundamentado normalmente nos conceitos do alemão Rudolf Arnheim através de sua obra Estética Radiofônica (Arnheim, 1980). Valendo-se dos elementos sonoros como elementos em movimento e que compõem uma ambientação sonora completa para a compreensão, o autor coloca o rádio numa posição não apenas de meio de comunicação, mas também de suporte para realizações artísticas. Em outras palavras, Arnheim afirma que a composição sonora veiculada pelo rádio é complexa o suficiente para que possamos apreciá-la sem que seja necessário criarmos as imagens “pictóricas” em nossas cabeças, como se estivéssemos de frente para um aparelho de televisão.

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Notadamente, é um esforço constante na carreira de um locutor – podemos tomar os narradores esportivos como exemplo – a tentativa de passar para o ouvinte um cenário completo o suficiente em sonoridades para que este consiga desenvolver em sua mente uma reprodução mais fiel possível da realidade. Neste ponto, podemos dizer que falha o rádio em seu potencial estético e artístico, embora do ponto de vista da transmissão de informação, seja um exercício respeitável. No que diz respeito às crianças, tal tentativa de trazer a realidade para o mundo sonoro do rádio é ainda mais perverso. Dar às crianças subsídios para a criação sonora não é apenas um exercício pedagógico, mas também artístico. Como já demonstra Zé Zezuca e a trupe da Rádio Maluca, o rádio se presta a confundir a cuca, desmontando a realidade que o rádio insiste em trazer para dentro de si como elemento estético. Por outro lado, o mesmo programa tem como tema a frase “o programa que você vê pelo rádio”. Tal contradição é marca da prática radiofônica, que se esforça em trabalhar visualidades a partir do uso dos sons. Em outras palavras, o rádio parece ser produzido para ser visto. Como ficou demonstrado anteriormente, atualmente o aprendizado está cada vez menos relacionado às experiências do corpo, mas à constante exposição às visualidades. Portanto, não é de se estranhar que as produções radiofônicas sejam resultado de dinâmicas sociais contemporâneas, que desvalorizam sobremaneira o aprendizado – a experimentação – através de todos os sentidos. Ainda no primeiro capítulo, discutiu-se a apropriação sensorial das crianças em sua relação com seu ambiente, ou seja, o aprendizado corporal que será gradualmente substituído pela educação racional cartesiana e pela grande exposição visual durante seu desenvolvimento ontogenético. Portanto, quem melhor que as próprias crianças para nos demonstrar a importância do exercício sensorial como forma de aprendizado? Para aprofundar este debate, serão utilizados os conceitos estéticos do teórico francês Paul Deharme, autor da obra Pour un art radiophonique lançada em 1930. O objetivo desta análise é propor uma continuação da pesquisa de Michel Collomb, da Universidade de Montpellier, que traçou um breve mapa da origem dos estudos de estética radiofônica na França, levando em conta três manifestos ocorridos na primeira metade do século XX: a teoria estética de Paul Deharme; o manifesto futurista de Pino Masnata, na década de 1930; os “Cadernos de estudos do rádio e da televisão”, escritos por Jean Tardieu em 1954.

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Paul Deharme, que antes trabalhava como vendedor de aspiradores de pó, começou sua carreira radiofônica em 1923, cuidando de anúncios publicitários para uma agência francesa. Graças à sua esposa, a poetisa Lise Deharme, ele teve seus primeiros contatos com os artistas do movimento surrealista, através das figuras de André Breton e Robert Desnos. Deharme desempenhava em seu trabalho a tarefa de criar elementos de linguagem radiofônica que fossem capazes de reter a atenção dos ouvintes aos anúncios publicitários. Suas estratégias sonoras o aproximaram de Alejandro Carpentier, o que impulsionou Deharme a buscar novas produções radiofônicas que não tivessem relação com o formato publicitário. Contudo, os esforços do ex-vendedor não foram suficientes para cativar os líderes do movimento surrealista. Em seu artigo intitulado “From Surrealism to Popular Art: Paul Deharme’s Radio Theroy”, Anke Birkenmaier questiona o fato dos surrealistas, notadamente André Breton, não terem levado adiante as experiências com o rádio, já que se tratava de um medium que prometia a “liberação da ‘escrita’ do raciocínio analítico e a garantia de acesso à audiência de massa que era até então inalcançável” (Birkenmaier, 2009, p. 358). Com efeito, André Breton tinha pouco interesse em sons, declarando que “as imagens sonoras eram, de fato, inferior às imagens visuais, não apenas na clareza como no rigor” (Breton citado por Birkenmaier, 2009, p. 358). Tal posição de Breton, somada à sua resistência em popularizar as obras de seus artistas, levou ao afastamento de Deharme do movimento surrealista francês. Na Radio-Paris, Deharme irradiava palestras de Robert Desnos sobre o surrealismo e também sobre música cubana, por influência de Alejo Carpentier. Em 1928, a mesma rádio veiculou a dramaturgia Un incident au Pont du Hubont, com uma grande repercussão. A partir desse sucesso, Deharme se lançou a propor novas formas de criação radiofônica, chegando ao artigo intitulado Propositions d’un art radiophonique, publicado na N.F.R. em 1928, que culminou com o livro lançado em 1930. O artigo da NFR apresenta doze propostas para tirar o rádio da situação de parente pobre das grandes orquestras e dos grandes teatros e dar a ele meios de responder às necessidades da imaginação e da transformação lírica que o público exprime, segundo Deharme. Elas se reagrupam em torno de duas interrogações maiores: como utilizar a qualidade sonora do meio rádio para desencadear a faculdade de imaginação entre os ouvintes e os conduzir para universos oníricos ou fantásticos desconhecido por eles? Como manter os ouvintes nesse

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estado de sonho por um tratamento adequado do conto radiofônico? (Collomb, 2008, p. 117)28

Fica evidente, a partir das leituras de Freud e das consultas com o psicanalista Pierre Allendy, a preocupação de Deharme em levar o ouvinte a um mundo onírico através das sonoridades. Não se trata mais de reconstruir as paisagens sonoras do mundo concreto pela a mente, mas uma elevação da realidade através de uma espécie de explosão da imaginação. As imagens mentais seriam, portanto, não recriações da realidade, mas recriações dos sonhos. Ele estava convencido de que a rádio deveria procurar criar entre os ouvintes imagens comparáveis àquelas dos sonhos. Pois como um medium sonoro permite uma concentração total e uma percepção aguda, o ouvinte poderá ser guiado através de uma cena onírica que responderá às suas necessidades do irreal. O sentimento de estranhamento e de distanciamento que acompanha o ouvinte radiofônico o fará mergulhar em um estado de privação, um relaxamento propício à libertação da atividade subconsciente. O roteiro radiofônico será concebido de tal maneira que ele estimule a produção de imagens psíquicas (Collomb, 2008, p. 117)29.

Os conceitos de Paul Deharme, aqui levantados por Michel Collomb, mostram uma inversão fundamental nos propósitos da linguagem radiofônica. A realidade não é mais nem ponto de partida nem objetivo das peças sonoras. Toda performance radiofônica acontece no mundo dos sonhos, jogando com as “percepções mais agudas” dos ouvintes, os tocando em sensações, memórias que são revividas através dos sons, através de mergulhos profundos no que Collomb chama de “ausência”, ou seja, um estado de relaxamento que propicia a liberação da ação subconsciente. Para que tal mergulho fosse possível, Deharme propunha novas técnicas de voz e de plástica sonora. A ideia é que a narrativa fosse permeada por elementos subjetivos, ou seja, lacunas que fossem preenchidas pelas sensações dos ouvintes. O conceito de

Tradução livre para o texto: L’article de la NFR presente douze propositions pour sortir la radio de sa situation de parente pauvre des grandes orchestres et des grands théâtres et lui donner les moyens répondre aux besoins d’imagination et de transformation lyrique que le publique exprime, selon Deharme. Elles se regroupent autour de deux interrogations majeures : comment utiliser la qualité sonore du média radiophonique pour déclencher la faculté d’imagination des auditeurs et les conduire vers des univers oniriques ou fantastiques inconnus d’eux ? Comment maintenir les auditeurs dans cet état de rêverie par un traitement adéquat du récit radiofonique ? 29 Il était convaincu que la radio devait chercher à créer chez l’auditeur des images comparables à celles des rêves. Parce que le médium sonore permet une concentration totale et une perception très aigue, l’auditeur pourra être guidé vers une scène onirique qui répondra à son besoin d’irréel. Le sentiment d’étrangeté et d’éloignement qui accompagne l’audition radiophonique le plongera dans un état d’absence, un relâchement propice à la libértation de l’activité subconsciente. Le scénario radiophonique sera conçu de telle sorte qu’il excite la productions d’images psychiques. 28

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“filme radiofônico” afastava a linguagem da dramaturgia radiofônica da linguagem teatral. Deharme preferia uma construção mais parecida com a da montagem cinematográfica, que permitiria, por exemplo, uma divisão sonora em planos diferenciados. Paul Deharme morreu em 1934 em um acidente, deixando a empresa Phoniric, de produção publicitária, sob os cuidados do amigo Roberto Desnos (Binkemaier, 2009, p.361).

3.1.1 Rádio-arte: relações entre rádio, cinema e teatro Paul Deharme, como vimos, pensava em um mergulho no subconsciente através de elementos sonoros. Ao relacionar a linguagem radiofônica à cinematográfica, o autor prioriza uma maneira de criação sonora que se aproxima de um “rádio-filme” (Timponi, 2012). As décadas de 1920 e 1930 testemunharam a tentativa da emancipação do rádio como expressão artística, primeiro em relação à música e, em seguida, em relação ao teatro e ao cinema. O historiador francês André Timponi (2012) compara o conceito de “rádio-filme” proposto por Deharme com a ideia de “recepção por distração” de Walter Benjamin no ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. Deharme afirma, em outras palavras, que se trata de um “filme interior”, e que o filme é composto apenas por imagens suscitadas por elementos sonoros cuidadosamente conjugados para favorizar um processo de associações mentais, logo um encadeamento, parecido com a ideia de montagem cinematográfica, processo que será o centro das questões levantadas por Benjamin em seu ensaio. O estado de demi-sommeil se parece com a noção de recepção distraída: assim, esta é uma modalidade de atenção menos propícia a criar uma relação de distanciamento do que permitir uma identificação em relação à narração apresentada, o que é também demonstrado por Benjamin como um dos efeitos exercidos pela montagem do cinema sobre o espectador30 (Timponi, 2012) (grifos do autor).

Desta forma, o rádio se distancia de suas características de reprodução musical para uma linguagem narrativa própria, baseada em montagens sonoras que identifiquem Deharme précise en outre qu’il s’agit d’un “film intérieur”, et que ledit film n’est constitué que d’images suscitées par des éléments sonores soigneusement conjugués pour favoriser un processus d’associations mentales, donc d’enchaînement, semblable à l’idée du montage cinématographique, procédé qui sera au cœur des questions soulevées par Benjamin dans son essai. L’état de demisommeil ressemble à bien des égards à la notion de réception distraite : comme celle-ci, il s’agit d’une modalité d’attention moins propice à créer une relation de distanciation qu’à permettre une identification par rapport à la narration présentée, ce qui est aussi démontré par Benjamin comme l’un des effets exercés par le montage sur le spectateur de cinéma

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o ouvinte, ou seja, que permita o mergulho do ouvinte na história através de sua relação com os sons utilizados na narrativa. Vale ressaltar que Deharme pensava nessa montagem radiofônica levando em conta a relação com o onírico desde a produção, e não apenas como um fator de recepção. Também o músico francês Pierre Schaeffer relacionou o rádio e o cinema em seus aspectos estéticos e em suas técnicas. Ambos trazem em suas linguagens uma espécie de releitura da realidade; em oposição ao teatro realista, o rádio e o cinema reconstroem a realidade com seus próprios elementos estéticos. Schaeffer afirma que a simples mimetização dos fenômenos não é suficiente para construir uma linguagem radiofônica em sua plenitude. Como técnica, o rádio não funciona apenas como transmissor de informações codificadas sonoramente. O músico afirma: Somos irresistivelmente levados a pensar que ao cinema e ao rádio caiba não o papel exclusivo de transmitir imagens e sons, mas fazê-los dizer alguma coisa. A imagem de um objeto, a modulação de um ruído já não nos chegam como tais, em função tanto da significação que lhes é associada quanto da sugestão da qual são portadoras. E isso nos leva ao importante descobrimento que o rádio e o cinema não são exatamente comparáveis às artes das quais parecem mais próximos, com as quais amiúde se comparam: música, pintura. Pode-se dizer que a música e a pintura sejam unas: elas não comportam duplo uso; elas são um agenciamento de cores e sons, de proporções e harmonias; elas moldam diretamente seu objeto; elas jamais são úteis; elas não têm outra vocação exceto a arte. E para ser exato, a música e a pintura “não querem dizer nada” (Schaeffer, 2010, p. 67).

Em outras palavras, a música e a pintura são obras resolvidas em suas linguagens, sem abertura para outro uso que não seja estético, que não seja a arte em si. O rádio, por outro lado, carrega em sua linguagem a possibilidade do inesperado, da constante reconstrução das narrativas. Inversamente, desde a aparição da linguagem e seu uso nas artes correspondentes (poesia, teatro, romance etc.), surge a confusão, não só possível, mas obrigatória e permanente. A linguagem tem duas funções e a primeira é ser um instrumento e não uma arte, um relé e não uma criação. Ela é útil e utilitária antes de gratuita e capaz de beleza. Ela designa antes de sugerir. Ainda que só por essa semelhança fundamental e funcional, o cinema e o rádio deveriam ser comparados à escrita e à linguagem (Schaeffer, 2010, p.68).

Na obra “Entre Ouvidos” (2009) organizada por Lilian Zaremba encontram-se diversos exemplos de experimentações sonoras baseadas na linguagem e nos suportes radiofônicos, mas que apresentavam características artísticas particulares. É o exemplo da instalação “O que eu sonho é rádio”, de Augusto Malbouisson (Zaremba, 2009), 69

construída no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro no ano de 2008. A instalação consistia em um exaustor colocado entre a rua e a praia que rodeiam o prédio do museu. A circulação do ar no tubo funcionava como um autofalante gigante. Em seu artigo homônimo, Zaremba procura as “dobras” para o despontar da arte sonora nos produtos radiofônicos cotidianos. A autora também recorre à ontogênese do ouvir, ressaltando a importância da voz humana em contato com o feto no líquido placentário; a voz que era massagem e que, já nas vias aéreas, como fala, servirá como meio de relações com o ambiente, dando a este significado. O rádio participa, portanto, como reverberação de um jogo entre a fala e o ouvir. Ali [no rádio], as vozes perambulam impondo suas ideias e produtos desenhados no limite do consumo, na frequência negociada pelo mundo civilizado. As vozes, mesmo aquelas sem corpos, nunca foram inocentes, emanam palavras e sons que parecem aprisionados pela linguagem corrente no fluxo cotidiano repetindo o mantra encantatório das emissoras radiofônicas (Zaremba, 2009, p.12) (grifos da autora ao citar Cynthia Gusmão).

O rádio é ao mesmo tempo fala e escuta, um espaço – ambiente – de imbricação das palavras, dos sons, das narrativas, das poesias, numa composição estética que transita entre a informação e o entretenimento. É justamente neste vão, ou nesta dobra, que Zaremba acredita estar a força das manifestações artísticas nos veículos radiofônicos, pois “não se trata de perseguir uma utopia radiofônica mas traçar um objetivo de trabalho ao produzir um deslocamento resistente e pontuado, embora coerente com o restante, na grade de programação de uma emissora” (Zaremba, 2009, p.14-15). Também são feitas nesta obra referências ao músico John Cage e ao escritor modernista Samuel Becket, como exemplos de que a literatura, o teatro e a música são capazes de desmontar as bases da linguagem radiofônica e produzir conteúdos diferenciados, sem que o rádio perca suas características. Outro espaço de grande importância para a experimentação sonora é o meio acadêmico. Programas produzidos por alunos universitários são fundamentais para que o rádio infantil se desenvolva em seus dois lados: a formação dos produtores, locutores, diretores; a participação ativa das crianças na produção dos programas infantis. Na sequência, será apresentada uma experiência radiofônica desenvolvidas por alunos.

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3.2 A experiência da Loja do Tio Nico No primeiro semestre de 2013, um grupo de alunos31 da Universidade Municipal de São Caetano do Sul, em virtude da elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso, produziu um programa-piloto infantil de rádio intitulado “A Loja do Tio Nico”. O programa consiste em uma teatralização baseada em improviso, a partir de um tema proposto pelos personagens (adultos) com a participação da criança na construção não apenas da história, mas também de toda a ambientação sonora. O personagem Tio Nico possui uma loja onde os brinquedos tomam vida e interagem com as crianças. Em cada episódio, os próprios brinquedos conduzem as crianças pelo ambiente da loja (acompanhados ou não pelo personagem Tio Nico), propondo jogos de improviso baseados em sonoridades. No programa-piloto gravado pelos alunos, a criança era conduzida pelos personagens “Capitão” (pirata) e “Desmontado” (um boneco que perdeu seu braço). Apenas o argumento principal da história é colocado para a criança: ajudar a localizar o braço perdido do personagem “Desmontado”. Para que a proposta desse certo, os alunos gravaram o piloto em um estúdio de TV decorado especialmente para as brincadeiras. Para a captação sonora foram usados microfones do tipo lapela para cada um dos atores e crianças, além de um microfone do tipo boom responsável pela captura das sonoridades ambientes e dos sons dos brinquedos. Portanto, no palco estavam, além dos atores e crianças, alunos que atuavam como técnicos de som, não interferindo na história e nas performances. No estúdio os atores e as crianças dispunham de um grande número de brinquedos sonoros que poderiam ser usados livremente durante a improvisação, como será exemplificado adiante.

As brincadeiras Enquanto o estúdio terminava de ser preparado para a gravação, as crianças aguardavam ansiosas no camarim ali próximo. Com o sinal da produção, a criança era encaminhada para a porta de entrada do estúdio e, ao abri-la, se deparava com o personagem Tio Nico. Este se apresenta, dá boas vindas à loja e convida a criança a entrar; pergunta seu nome e a criança responde em voz baixa: Matheus. Dentro do estúdio, Tio Nico ouve um barulho estranho e pede ao Matheus que o aguarde. Ana Catarina Santilli, Brenda Oliveira, Gustavo Batistão, Lucas Costa, Paulo Victor Trajano, Rafael Viana e Richard Borges.

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Imediatamente, pelo outro lado do estúdio, adentra a dupla Capitão e Desmontado em tom de discussão. Desmontado acusa Capitão de ter roubado seu braço e o pede de volta. Por sua vez, Capitão afirma que nada tem a ver com o sumiço, afinal “tem os sete mares a desbravar”. Ao perceber a presença de Matheus, os personagens o inserem na discussão perguntando sua opinião sobre o sumiço do braço do Desmontado. Não há outra coisa a fazer, senão procurar o braço perdido do pobre personagem. Assim, o Capitão convida Matheus a desbravar os mares para que Desmontado seja ajudado. O primeiro jogo começa quando os três participantes sobem em um palco no formato de um barco. Sobre o palco estão adereços como uma roda de bicicleta que, em contato com um pedaço de plástico, produz o som de um timão. Também há um grande lençol de pano preso em uma ponta ao teto do estúdio que, agitado na outra extremidade, imita o som de uma vela, além de pequenos instrumentos de percussão que simulam os sons do mar. A brincadeira funciona como uma espécie de iniciação, ou chamada para a aventura, da criança no universo fantástico que está sendo proposto. Com a ajuda de um violão, o personagem Capitão toca a canção que ensina a criança a se tornar um marujo. Os primeiros versos dizem “para navegar escute o mar”; perguntado por Desmontado se já era possível escutar o mar, Matheus responde negativamente. “Ainda não? Então vamos começar com a primeira lição”: Sinta a onda do mar / Seu barco ela vai levar. Para você navegar, sinta o mar ritmar. O vento sopra na vela / Seu barco o vento leva Sinta que música bela o vento bater na vela. Enquanto o Capitão toca seu violão, Matheus e Desmontado agitam recipientes cheios de areias e pedras que imitam o som do mar. Desta forma a canção vai sendo construída naquele momento na composição sonora do mar com a melodia cantada pelo Capitão.

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Figura 6 - Matheus brinca com aparato que imita sons do mar.

Na sequência da canção, Matheus é novamente provocado a sentir o ritmo da música em relação ao mar. Diz a letra: “Agora o ritmo tem que sentir para o navio conduzir / Gire o seu timão no ritmo dessa canção”. Cada volta da roda de bicicleta dava a impressão do timão conduzindo o barco de um lado para o outro. Desmontado completava o ambiente sonoro com gritos de “cuidado!”, “você está indo bem!”, “um Iceberg!”.

Figura 7 - Matheus roda aparato que imita sons de um timão.

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A última tarefa da canção é essencial na vida de qualquer marujo: varrer o convés. Assim dizia a canção: “não basta navegar, do navio tem que cuidar / para ser um bom marujo, limpe o barco sujo”. Em seguida eram ouvidas as vassouras em atrito com o carpete que cobre o palco, enquanto Matheus praguejava: “que chatice!”. A canção segue sua melodia: “varrer e esfregar para o navio limpar”, dando o ritmo dos golpes de vassoura no chão sujo do barco. A canção funciona como elemento sincronizador das performances sonoras, sem que o que fosse produzido pela criança tivesse a obrigação de complementar uma obra fechada. A ideia era simplesmente proporcionar à criança um ambiente em que ela pudesse com seu próprio corpo, mãos e aparelho fonador, reconstruir a partir de suas fantasias uma narrativa sonora. Para isso, Matheus se apropriou de aparatos sonoros (bacia com pedras, roda de bicicleta, panos e vassoura) que fazem parte de seu universo simbólico para que pudesse livremente manipulá-los. Isto quer dizer que a criação sonora está fundamentada em suportes que cumprem uma função determinada, ou seja, a vassoura serve ao propósito de limpar o convés e produzir som. A novidade está no ritmo e nas fantasias propostas pelo menino no manejo destes aparatos; ao passar a vassoura no chão, Matheus não se furtou a dizer o quão chata era esta atividade, e sua exclamação passou a compor a música, junto com a melodia cantada pelo Capitão. As “lacunas” sonoras deixadas pelo andamento da brincadeira são materiais preciosos para os ouvintes, que irão complementá-las com suas próprias imagens endógenas. Ao contrário da maioria dos programas radiofônicos infantis tradicionais, que transmitem o ritmo da obra musical acabada, o piloto “Loja do Tio Nico” provoca a criação de novas sonoridades, expandindo os limites da mediatização e chamando o ouvinte/receptor à criação de conteúdo. Ao final da canção do Capitão, o estúdio é invadido por figurantes simulando uma invasão ao barco. Sons de espadas são produzidos utilizando cabides de metal em atrito. O golpe de bastão em bacias de plástico no chão produzem sons de canhão. Um tubo de plástico flexível do tipo “conduíte” girado em alta velocidade fazia o som do vento forte. Matheus é levado a participar de uma batalha contra os invasores. Além dos sons fabricados pelos instrumentos, é notável a quantidade de sons do próprio corpo, como grunhidos, gritos e risadas características de piratas, que são emitidos durante a brincadeira.

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Figura 8 - Atores vestidos de preto agitam “conduítes” e golpeiam cabides de alumínio.

Figura 9 - Matheus brinca de espadas e os sons são captados por microfones.

Aos gritos de “fujam!”, “saiam!”, os piratas são expulsos do estúdio, ocasionando uma grande comemoração entre os personagens. Em seguida o Capitão dá o sinal de “Terra à vista” e todos se dirigem ao outro lado do palco, onde o Tio Nico os aguarda: “vejo que conheceram o meu amigo Matheus”. No decorrer das gravações diversas crianças participaram dos mesmos jogos, levando a reações diferentes. Uma menina que já havia participado do programa, demonstrando muita timidez e

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dificuldade em interagir em alguns jogos, pediu para ficar próxima ao cenário observando o desenvolvimento do programa com outras crianças. Durante a brincadeira das espadas citadas acima, a menina não se conteve nos bastidores do estúdio, vestiu uma máscara negra, e partiu com os figurantes para brincar.

Figura 10 - Menina e Matheus vestem máscara e participam da brincadeira

A terceira e última brincadeira começa quando os personagens ouvem uma melodia característica das caixas de música decorativas. A cortina que cobria uma janela do estúdio cai e revela um personagem feminino que carrega a caixa de música enquanto baila. Confusos, Desmontado e o Capitão indagam Matheus sobre quem é aquela curiosa figura. Seria uma sereia, um anjo, uma bruxa, um pássaro ou uma bailarina? A ideia é que Matheus imite os sons de cada uma dessas figuras, usando a própria voz ou pequenos instrumentos dispostos pelo estúdio. “É uma bailarina”, festejam os personagens. Ela estava em posse do braço perdido do Desmontado, mas para tê-lo de volta, exigia uma recompensa: Matheus deveria executar uma canção semelhante a da caixinha de música. Ao ser aberta, a caixinha de música enche o estúdio com sua melodia enquanto a pequena bailarina rodopia sobre a superfície de metal magnetizada. Matheus então solfeja a melodia de forma tímida, enquanto os outros personagens o auxiliam com pequenos instrumentos.

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Figura 11 - Matheus brinca de imitar sons a pedido da bailarina

A música não era reprodução da melodia da caixa de música, mas uma livre brincadeira que visava ludibriar, como nos jogos de mimicry, a bailarina, convencendo-a de que esta era a imitação perfeita que ela almejava. Dando-se por satisfeita, a bailarina devolve o braço ao Desmontado. A história se encerra com a interrupção do personagem Tio Nico, que desfaz o tempo e o espaço do jogo, levando a criança para fora do estúdio. Enquanto isso os personagens dançam pelo palco, terminando a historinha com a conciliação entre Desmontado já novamente com seu braço e a bailarina.

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Figura 12 - Bailarina e Desmontado dançam no final do programa

Apesar das dificuldades técnicas e pessoais dos alunos, o produto final apresentado em banca de defesa foi satisfatório. Entendeu-se que o objetivo do programa foi alcançado e que, corrigindo-se as falhas, era possível ter em mãos um produto de muita qualidade e grande aderência junto ao público infantil. Em 2014, o projeto concorre no Prêmio Expocom (Exposição de Pesquisa Experimental em Comunicação) na região Sudeste, promovido pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). O maior mérito do projeto “Loja do Tio Nico” foi demonstrar que as crianças, quando provocadas a participarem efetivamente da composição sonora da história, imprimem suas próprias fantasias, desamarradas da sintaxe radiofônica e apontando para novas formas de ouvir rádio. Também escancara a necessidade do rádio em se reinventar, face às novas tecnologias de transmissão, como meio que extrapola os limites da comunicação telegráfica do emissor/receptor. Mais do que pensar o receptor como agente produtor de informação, o programa de rádio infantil pode ser simultaneamente ambiente de construção coletiva de sonoridades no estúdio e nos 78

espaços onde as caixas de som reverberam seus sinais. Em outras palavras, os corpos antes e depois dos aparatos estão em sincronia rítmica, ansiando cada um em seu ambiente, a participação de outros corpos na composição sonora: as crianças e os atores/locutores no estúdio e as crianças com seus pais, amigos, professores ou familiares em frente ao aparelho receptor. Com efeito, a efetiva participação dos pais na audição de um programa radiofônico como a “Loja do Tio Nico” possibilita a mimetização das performances ritualísticas dos primeiros meses de vida do bebê, quando mãe e filho se vinculam pelo tato e pelas vibrações sonoras. Em resumo, trata-se de uma forma primitiva de criar sonoridades a partir do próprio corpo. Uma espécie de sintaxe radiofônica diferenciada, que une a voz às sonoridades corporais, ao fazer manual. Na sequencia este conceito de “fazer manual” será desenvolvido levando em conta alguns estudos referentes ao desenvolvimento de habilidades criadoras, sejam elas frutos do imaginário ou da aprendizagem ferramental.

3.3 Bricolagem: o rádio das mãos e do corpo No exemplo do programa Loja do Tio Nico, as performances sonoras produzidas pelos corpos dos atores e da criança reverberam pelas caixas de som dos aparelhos de mp3, computadores, etc. com a função de provocar a reação do ouvinte, como um jogo orquestral de corpos que ouvem e refazem os sons. As lacunas deixadas para as brincadeiras podem funcionar, como previa Deharme, como momento de mergulho profundo dos ouvintes mirins em seus próprios mundos de fantasia. Neste caso, ainda é possível pensar que tal mergulho possa ser compartilhado com os pais ou outras crianças durante o jogo sonoro. Trata-se de um trabalho de bricolagem32 sonora. O termo, que deriva do verbo francês bricoler, apresenta a ideia do fazer manual. A criança apropria-se das ferramentas sonoras, como a roda de bicicleta, os “conduítes”, os cabides de roupa, imputando novos significados a esses objetos a partir de suas performances sonoras. Tal

O termo bricolagem deriva do verbo francês bricoler, que é assim definido pelo dicionário Le Petit Larrousse (2006): BRICOLER v.i. Fam. 1. Faire de petites réparations, des aménagements de ses propres mains, chez soi ou à l’extérieur. 2. Gagner sa vie en faisant des petits travaux, des besognes diverses, peu durables.  v.t. Fam. Réparer sommairement. Bricoler un moteur. 32

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apropriação foi levantada pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss como a função do bricoleur. Como a imagem, o signo é um ser concreto, mas ele se assemelha ao conceito pelo seu poder referencial: um e outro não se referem exclusivamente à eles mesmos, eles podem substituir uma outra coisa qualquer. De toda forma, o conceito possui sob esse ponto de vista uma capacidade ilimitada, ao passo que a do signo é limitada. A diferença e a semelhança estão nítidas no exemplo do bricoleur. Olhemos sua obra: atirado pelo seu projeto, sua primeira tarefa prática é, contudo, retrospectiva: ele deve se voltar a um conjunto já constituído, formado de ferramentas e de materiais; fazê-los ou refazêlos, inventariá-los; enfim e, sobretudo, engajar consigo uma espécie de diálogo, para repertoriar, antes de escolher entre eles, as respostas possíveis que o conjunto pode oferecer ao problema que se coloca para ele. Todos esses objetos heteróclitos que constituem seu tesouro, ele os interroga para compreender o que cada um deles poderia “significar”, contribuindo assim para definir um conjunto a ser realizado, mas que será diferente do conjunto instrumental apenas pela disposição interna das partes (Lévi-Strauss, 2009, p.32)33.

Fantasiados de piratas, mascarados em seus jogos de mimicry, os atores e as crianças transformam o espaço do estúdio em uma oficina de desmontagem de objetos. E não é outra coisa senão a brincadeira que conduz esses personagens a manipularem os instrumentos e seus próprios corpos, constituindo uma paisagem sonora que é a própria narrativa. A bricolagem, portanto, se dá a partir do momento em que o conhecimento estabelecido – um cabide serve para pendurar roupas; um tubo amarelo de PVC serve parar conduzir os fios elétricos pela parede – é desmontado pelo próprio corpo, construindo um novo saber que é, por sua vez, destacado do estúdio para as caixas de sons, podendo ser novamente apropriado e ressignificado pelos corpos que estarão de frente para os aparatos receptores. A ação de criar ambientes sonoros com o corpo implica uma percepção tátil do mundo ao redor. Em seu artigo sobre a Cultura do Ouvir, Menezes traz à discussão o 33

Tradução livre do texto: Comme l’image, le signe est un être concret, mais il ressemble au concept par son pouvoir référentiel : l’un et l’autre ne se rapportent pas exclusivement à eux-mêmes, ils peuvent remplacer autre chose que soi. Toutefois, le concept possède à cet égard une capacité illimitée, tandis que celle du signe est limitée. La différence et la ressemblance ressortent bien de l’exemple du bricoleur. Regardons-le à l’oeuvre : excité par son projet, sa première démarche pratique est pourtant rétrospective : il doit se retourner vers un ensemble déjà constitué, formé d’outils et de matériaux ; en faire, ou en refaire, l’inventaire ; enfin et surtout, engager avec lui une sorte de dialogue, pour répertorier, avant de choisir entre elles, les réponses possibles que l’ensemble peut offrir au problème qu’il lui pose. Tous ces objets hétéroclites qui constituent son tresor, il les interroge pour comprendre ce que chacun d’eux pourrait « signifier », contribuant ainsi à definir un ensemble à réaliser, mais qui ne différera finalement de l’ensemble instrumental que par disposition interne des parties.

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texto do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty publicado no livro O visível e o invisível (2012a), apontando para uma “reversibilidade dos movimentos da fonação e do ouvir” (Menezes in Menezes e Cardoso, 2012, p.28). Em outras palavras, o corpo é ao mesmo aquele que vê e que é visto, ou seja, um produto da visibilidade. É preciso que nos habituemos a pensar que todo visível é moldado no sensível, todo ser táctil está voltado de alguma maneira à visibilidade, havendo, assim, imbricação e cruzamento, não apenas entre o que é tocado e quem toca, mas também entre o tangível e o visível que está nele incrustado, do mesmo modo que, inversamente, este não é uma visibilidade nula, não é sem uma existência visual (Merleau-Ponty, 2012a, p. 131). Da mesma forma, a sonoridade é fruto dos movimentos corporais e do aparelho fonador, mas também é ela mesma elemento fundamental na constituição do corpo que produz som. O locutor que, em seu estúdio, projeta a frase “Oi, gente!” para os microfones, se faz sonoridade; e pela sonoridade é tomado e constituído como locutor. A reversibilidade do vidente e do visível, do tato e do tangível e, repetimos, da fonação e do ouvir, é sempre iminente e nunca realizada de fato. Percebemos nossa existência como seres que se entreveem, que veem pelos olhos uns dos outros, e especialmente como seres sonoros (Menezes, 2012).

O rádio tradicional carrega grande responsabilidade do fazer sonoro ao aparelho fonador. Desde as jornadas esportivas que na década de 1930 eram marcadas pelas locuções detalhadas e cheias de emoção de Nicolau Tuma e que, ainda hoje, são palco de espetáculos retóricos das falas emocionadas dos locutores, até os bordões consagrados como “Oi gente” de Eli Correa, o rádio é performance fundamentalmente verbal. Renegadas a segundo plano, ou ao termo BG (Background) no linguajar técnico, as mãos operam as máquinas que sintetizam os sons, dão dinâmica e velocidade aos programas que, casados com a voz aguda e projetada dos locutores, criam verdadeiros ambientes de excitação sonora. Desta forma, as mãos perdem sua importância como operadoras de bricolagem. As mãos, bem como a voz, desenham no ambiente um conjunto de sonoridades, de jogos performáticos de curta duração, frutos das nossas experiências sensoriais profundas. O corpo se mistura com o ambiente e com os outros corpos também pela sonoridade, como afirmou Menezes; somos seres que se entreveem, que se relacionam pela tridimensionalidade do som acariciando toda sua pele e seus ouvidos. A criança 81

que brinca de imitar a bailarina no estúdio permite que a criança que escuta do outro lado do aparto recrie as imitações e se religue, assim, ao seu próprio ambiente. O que está em jogo, portanto, é oferecer paisagens sonoras ricas em elementos de fantasia e do lúdico, diferente da transmissão de informações verbais. Tal qual um desenho infantil, o programa radiofônico poderia se tornar a pele com a qual o nosso corpo escuta e recria sons. Mais que o “rádio que você vê pelos buraquinhos”, é o rádio que você sente através da película de celulose dos alto falantes, da energia elétrica que é convertida em calor e energia acústica. Trata-se de dar um testemunho, e não mais de fornecer informações. O desenho não deverá mais ser lido com antes, o olhar não mais o dominará, não mais buscaremos nele o prazer de abarcar o mundo; ele será recebido, nos dirá respeito como uma fala decisiva, despertará em nós o profundo arranjo que nos instalou em nosso corpo e através dele no mundo, terá a marca de nossa finitude, mas assim, e exatamente por isso, nos conduzirá à substância secreta do objeto do qual só tínhamos, há pouco, o invólucro (Merleau-Ponty, 2012b, p.243-244).

O rádio é, assim, capaz de conectar dois ambientes que são potenciais espaços de criação lúdica: o estúdio, onde atores e crianças propõem jogos sonoros e o ambiente de recepção, que será provocado pela paisagem sonora mediatizada, mas que exige complementação a partir das performances corporais dos ouvintes. Em outras palavras, tão importante quanto fazer o rádio com as mãos é também escutá-lo desta forma. O som é tridimensional, ou seja, é um movimento de deslocamento de ar, de vibração sonora que é sentido pela nossa pele. É fato que escutamos com o ouvido e com todo o corpo, mas no caso da escuta radiofônica é necessário que se reflita sobre a escuta com as mãos, ou seja, uma escuta que seja reconstrução, desmontagem da paisagem sonora mediatizada, retroalimentando a memória afetiva no cérebro com sensações corporais que são ao mesmo tempo escuta e recriação. Na provocação da mente o impulso de criar com o próprio corpo, mãos e voz um universo sônico vinculador, que faça vibrar outros corpos ao redor. Como aponta o antropólogo Yves Winkin (1981; 1998), a comunicação se constrói de forma orquestral, ou seja, a partir das performances dos atores da comunicação, que se desenvolve como um jogo, uma brincadeira com os códigos culturais (gestos, palavras, vestimentas, etc). Também Frans de Waal aponta o corpo humano como um sistema que produz e intercambia sensações, sendo estas fundamentais para constituição das relações sociais. O nosso cérebro não é um pequeno computador que dirige o corpo à sua volta. A relação entre o corpo e o cérebro é uma via de mão dupla. O corpo produz sensações internas e se comunica com outros corpos, 82

e é com base nisso que conseguimos constituir conexões sociais e avaliar a realidade à nossa volta. O corpo intervém em tudo o que percebemos ou pensamos (de Waal, 2010, p.90).

No rádio o corpo não desenha sonoramente o ambiente, mas ele projeta suas sonoridades, em forma de verbalizações, nos microfones colocados à frente dos locutores. A voz sofre um processo de “mecanização”, mesclando-se com os efeitos sonoros nos softwares de edição ou automação para, então, preencher os ambientes sonoros ao redor das caixas de som. “A introdução de um fenômeno acústico no microfone (mono) significa seu desligamento de todas as coordenadas espaciais e sua inclusão numa nova continuidade acústica com sentido próprio e estruturada temporalmente” (Klippert in Sperber, 1980, p.13). O desenho radiofônico é, portanto, um desenho técnico, linear, fundamentado em roteiros, deixando aos corpos apenas a função da verbalização. O microfone parece, finalmente, à criança uma ferramenta de especialização, como nos conta Mario Pedrosa: É que o lápis é um instrumento especializado demais para o delicado e sempre inédito registro das ações do inconsciente. A sua utilização cotidiana lhe deu uma funcionalidade absorvente e única. Pode, por isso mesmo, tornar-se um intermediário rombudo demais para entre o papel e a imagem eidética que habita no mundo interior da criança [...] O dedo é um instrumento mais dócil aos ditames repentinos da alma infantil, e através dele o eu pode exprimir-se mais diretamente. A própria perturbação que o desloca do mundo dos “normais” se transmitiria com mais facilidade pela “ponta dos dedos”; não é, aliás, quando a lição está “nas pontas dos dedos” que o aluno a domina melhor? Lambuzando as falanges nos tubos de tinta, o garoto risca o papel à vontade, e desses riscos saem grossos contornos de brinquedos, de objetos sem definição precisa, que parecem de consistência de arame: casas, caras de gente, caras de lua cheia, carros, rodas, árvores ou sinais caligráficos indecifráveis ou “abstratos” (Pedrosa, 1947).

Os dedos que se lambuzam de tinta são os dedos que se lambuzam de ritmos, desenhando sonoridades no espaço, preenchendo-o por todos os lados. As crianças imitiam sons da natureza, do cachorro, do gato, dos pais, das músicas, dos assobios. Não se trata de imitar ou reproduzir a realidade, mas brincar com ela; devolver ao mundo um conjunto de gestos que são produto de um jogo entre corpo e natureza. O desenho da criança no microfone se aproxima do que Walter Benjamin dizia ser a performance do ator no cinema.

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No cinema, o que importa não é o fato de o intérprete apresentar ao público um outro personagem que não ele mesmo; é antes o fato de que ele próprio se apresenta no aparelho (Benjamin, 2000, p.236).

Se o microfone cumpre um papel de ferramenta especializada, local para onde se direcionam as verbalizações, não conseguiremos achar soluções para novas criações sonoras para as crianças. Se a brincadeira infantil se faz no estúdio, ela se faz apesar da presença do microfone e não à sua revelia. A arte infantil é uma performance libertadora da linearidade do roteiro, um exemplo de rádio cujo sonho é o ponto de partida, como desejava Paul Deharme. Apontar o microfone para a boca da criança, aguardando a construção de um raciocínio coerente, como é feito nos programas aqui estudados, é retirar da criança a possibilidade de sonhar enquanto brinca de sons, especializando-a com nossas ferramentas da razão. Tal especialização ocorre nas escolas, como apontou Mário Pedrosa. O autor cita o exemplo de Franz Cizek (Pedrosa, 1996) que, ao chegar em Viena, teve contato com a criação artística infantil, observando os desenhos gravados nas cercas de madeiras de ruas do subúrbio da capital austríaca. Cizek notou que as formas dos desenhos da rua se diferenciavam consideravelmente daqueles produzidos pelas crianças em sala de aula. “Lá fora, os garotos esqueciam completamente as instruções do professor de desenho, e tudo o que faziam tinha coerência, constância, homogeneidade e vida, obedecendo a uma mesma maneira de desenhar” (Pedrosa, 1996, p. 64). Nessa mesma época, ao final do século XIX, os jovens austríacos contestavam o fazer artístico acadêmico e fundavam o movimento Sezession. À criança deve ser deixada a possibilidade de escolher o material com que exprimir-se. A experiência com o material escolhido deve ser levada até o amadurecimento de acordo com o ritmo próprio de seu desenvolvimento. Nada de acelerar esse processo artificialmente, ou alterá-lo para satisfazer os adultos. E nunca, insistia Cizek, se louvem a destreza, a perícia, em detrimento ou às custas das ideias criadoras” (Pedrosa, 1996, p. 66).

Aparentemente, para que o corpo desponte como produtor de sons no rádio, será necessária uma força subversiva que desmonte o caráter linear do rádio; a mesma força que impulsiona boa parte dos movimentos artísticos como o dadaísmo ou o surrealismo; força que está presente nas brincadeiras infantis, nas performances dos artistas ou nos distúrbios dos doentes mentais.

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3.3.1 Desmontagens: maneirismos, distúrbios e afetos Na obra de Osório Cesar intitulada “A expressão artística dos alienados” (1929) a estética da arte infantil é comparada à dos desenhos primitivos. O autor afirma que essas obras são em grande parte simples e desprovidas de fantasia (Cesar, 1929, p. 8). A criação artística das crianças nos primeiros anos de vida é fruto da percepção instintiva, da manifestação do inconsciente. A criança já se diverte em representar traços de pessoas e animais de estimação sem ainda ter a capacidade de classifica-los simbolicamente. As expressões artísticas infantis seriam, então, resultado dos seus afetos com o mundo exterior e com os corpos mais próximos (mãe, pai, irmãos, amigos etc.). Trata-se de uma arte primitiva por não ter ainda sido impregnada pela linguagem em toda sua complexidade. A dificuldade em lidar com os códigos culturais, seja entre as crianças ou entre pessoas com distúrbios mentais, produzem obras artísticas que merecem reflexão. Ao analisar pacientes esquizofrênicos, Leo Navratil (1972) observa que há diferenças entre a noção de talento e força criadora, sendo a primeira uma qualidade mimética, ou seja, baseada em imitação. Pacientes em crise de psicose esquizofrênica buscam habilidades criadoras como forma de expressão de afetos. Durante muito tempo se tendeu a considerar a esquizofrenia como um “processo de embrutecimento” consequência de uma enfermidade orgânica do cérebro (dementia praecox). Ao observar-se que as funções intelectuais do esquizofrênico não se perdiam, creu-se que a dolência se devia a um “isolamento afetivo”, termo destinado a descrever uma certa destruição organicamente condicionada da zona afetiva. Atualmente se duvida também do “defeito afetivo” desses enfermos. Assim, Bleuler opina que o pensamento dos esquizofrênicos está dominado mais intensamente pelos afetos do que o das pessoas sãs. Supõe que com a enfermidade os afetos não se destroem, mas que se alteram funcionalmente ou que atuam obstaculizados, algo assim como o estupor sem afetos que pode dominar uma criança transportada repentinamente a um ambiente estranho (Navratil, 1972, p. 26-27)34.

Durante mucho tempo se tendió a considerar la esquizofrenia como un “proceso de embrutecimiento” consecuencia de una enfermedad orgánica del cerebro (“dementia praecox”). Al observarse que las funciones intelectuales del esquizofrénico no se pierden, se creyó que la dolencia se debía a um “aislamiento afectivo”, término destinado a describir una cierta destrucción orgánicamente condicionada de la zona afectiva. Actualmente se duda también del “defecto afectivo” de estos enfermos. Así, Bleuler opina que el pensamiento de los esquizofrénicos está dominado más intensamente por los afectos que el de las personas sanas. Supone que con la enfermedad los afectos no se destruyen, sino que se alteran funcionalmente o que actúan obstaculizados, “algo así como el estupor sin afectos que puede dominar a un niño trasladado repentinamente a un ambiente extraño”. 34

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Se um aparente bloqueio afetivo dos esquizofrênicos pode funcionar como estratégia de proteção, a arte se apresenta como meio de expressão dessa afetividade reprimida. Mais uma vez estamos diante da criação artística como uma forma de relação entre o mundo dos sonhos com o mundo dos códigos. Para analisar os desenhos de seus pacientes, Navratil traz o conceito do maneirismo, um estilo35 aplicado por artistas contemporâneos ao Renascimento na Itália do século XVI. Para o autor, a arte maneirista expressa formas humanas fora do padrão estabelecido pela regras da época, evocando formas tortuosas e grotescas. A fronteira entre sonho e realidade não é clara, os temas dos quadros se convertem em “sonhos pintados”. O “sorriso enigmático” se converte na forma de expressão que domina tudo. Juntam-se de um modo fantástico objetos que não harmonizam (grotesco, surrealismo) (Navratil, 1972, p.32-33)36.

O estilo se caracteriza pela mistura de cores, pelos contrastes entre luz e sombra, entre formas que não se relacionam. O enigmático e o desarmônico presente nas obras maneiristas aponta para as tensões entre o mundo dos sonhos, dos sentidos e o mundo da razão, este muito valorizado na Europa renascentista. A cara como máscara, impenetrável, enigmática, corresponde ao labirinto como alegoria do que não se adivinha. Em contraste com isso, certas manifestações da representação maneirista são particularmente abertas. A penetração intelectual recebe a prioridade ante a manifestação dos sentidos (Navratil, 1972, p.33)37.

O artista do maneirismo é, portanto, alguém que busca uma beleza rebuscada e contraditória, alheio ao formalismo. “O homem do maneirismo, que tem medo do espontâneo e que ama a escuridão, orgulha-se pelo fato de descobrir o sensível através de metáforas abstrusas e se esforça por captar o fantástico (meraviglia), graças a uma linguagem sumamente rebuscada” (Hocke, 1974, p.17). Navratil relaciona, portanto, o estilo maneirista com a expressão artística dos seus pacientes esquizofrênicos. O autor consegue traçar um estilo artístico entre os 35

O termo “estilo” é proposto por John Shearman (1978) evocando o próprio sentido da palavra “maniera” em italiano. O autor argumenta que o maneirismo é confundido com um movimento como outros ocorridos nos séculos XIX e XX (1978, p.14), devido ao seu sufixo “ismo”. Preferiu-se, portanto, tratar o maneirismo nesta pesquisa como um estilo e não um movimento artístico. 36 La frontera entre sueño y realidad se desdibuja, los temas de los cuadros se convierten em “sueños pintados”. La “mueca enigmática” se convierte en la forma de expresión que lo domina todo. Se juntan de un modo fantástico objetos que no armonizan (grotesco, surrealismo). 37 La cara tipo máscara, impenetrable, enigmática, corresponde al laberinto como alegoría de lo que no se adivina. En contraste con esto, ciertas manifestaciones de la representación manierista son particularmente diáfanas. La penetración intelectual recibe la prioridad ante la manifestación de los sentidos.

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esquizofrênicos, provando através de seus desenhos que o essas pessoas estão muito mais conectadas ao nosso universo cultural do que imaginávamos. Se a arte é constituída historicamente, através das relações com o meio social que a engloba em diversas épocas, a manifestação artística dos esquizofrênicos – assim como a das crianças – se desenvolve independentemente do encadeamento de tempo. Uma característica essencial da arte é o aspecto histórico-sociológico. Não obstante, também há arte fora da história. A ela pertencem as produções originais das crianças, os inocentes e os esquizofrênicos. Sempre que se quer empreender algo novo na arte, os artistas dirigem o olhar a essas fontes do original e criador38 (Navratil, 1972, p.175).

Desta forma, a arte infantil seria vista como uma origem das expressões artísticas; criação essencialmente sensorial, destacada das relações histórico-culturais. Levando esse pensamento para as produções radiofônicas, entende-se que os programas infantis, ou a expressão infantil nas ondas radiofônicas, é uma oportunidade de retorno às origens do ouvir. Se as crianças produzem elas mesmas os sons dos anjos, dos fantasmas, das bailarinas, dos piratas, elas estão nos oferecendo novas possibilidades estéticas que não deveriam ser renegadas ao plano de fundo das verbalizações adultas. Por enquanto o que se apresenta como alternativa para programação infantil no rádio são produções culturais que valorizam o estímulo à imaginação a partir do som, mas com resultados (ou produtos) imagéticos. A seguir será demonstrado um exemplo de programa que estimula a criatividade da criança na relação entre os sons escutados e os desenhos que são produzidos a partir desses sons. O estilo visual que se produz é, portanto, resultado dos jogos sonoros que foram experimentados em sala de aula, ladoa-lado com colegas de sala e professores.

3.5 Faz de conta: rabiscos de imaginação O projeto Faz de Conta é um material sonoro educativo produzido pela Rádio Cultura e distribuído pelas escolas públicas do Estado de São Paulo. Contando com cinco programas em forma de histórias, o objetivo do projeto é servir como ferramenta Un rasgo esencial del arte es el aspecto histórico-sociológico. No obstante, también hay arte fuera de la história. A ella pertenecen las producciones originales de los niños, los naïves y los esquizofrénicos. Siempre que se quiere emprender algo nuevo en arte, los artistas dirigen la mirada a estas fuentes de lo original y lo creador. 38

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de interação aluno-professor em sala de aula, através de atividades baseadas em sonoridades, estimulando a imaginação dos alunos e exercitando a sua percepção auditiva, conforme descritivo presente no material39 em áudio cedido em 2013 pelo Prof. Irineu Guerrini Jr. A função do material não é servir como cópia, mas como estímulo para o desenvolvimento de novas atividades em sala de aula. Segundo a apresentação oficial do projeto, o conteúdo permite aos alunos e professores: escrever outras histórias, dramatizar a mesma história, montar uma peça teatral, construir jogos, desenhar, fazer figuras de argila, etc. O objetivo é criar em sala de aula o momento da história, um momento de descontração, para alguém da escola ou da comunidade contar uma história, promovendo uma maior integração entre a escola e a comunidade. Em orientação aos professores, o programa traz as seguintes descrições:

1)

2) 3)

4)

As crianças gostam tanto de ouvir quanto de contar história, basta deixa-las livres. Mas preste atenção: O primeiro modelo de história que as crianças conhecem é o conto de fadas. O modelo é bom, trabalha com a realidade interior das crianças, com seus temores, alegrias, angústias, amores e ódios. “O Rei que andava jururu”, um de nossos programas, tem um pouco de conto de fadas. Uma história trabalha com vários níveis de realidade; a imaginação, a fantasia, os sentimentos, a realidade que a gente vê. É o caso do nosso quarto programa, “A casa assombrada”. Existe uma diferença entre cena e história: uma cena é feita de uma só personagem, ou só um grupo e focaliza um só momento. A cena não tem suspense; sozinha, isolada ela não apresenta o porquê do acontecimento. Os textos dos livros didáticos têm uma cena só, mas grande número de textos dos livros didáticos têm só descrições. O nosso primeiro programa “História sem palavras” compõe-se de três cenas. Não são propriamente histórias; cada uma das cenas permite uma continuação. É divertido continuar uma cena para descrever uma história. Para exercitar o ouvido, as crianças abaixarão as cabeças sobre as carteiras, fecharão seus olhos e procurarão escutar todos os ruídos que puderem. Depois cada aluno contará o que ouviu e se o som vinha de longe, de perto, de baixo, de cima ou então qual ruído ouviu antes ou depois; e qual a duração, o tempo de cada som. Não se esqueça que para ouvir histórias, tanto estas quanto outras, o ideal afastar as carteiras e sentar no chão sobre papel de jornal, ou de embrulho, ou almofadas. Quanto mais descontraído o ambiente, melhor.

Notadamente, temos um material semelhante em seus objetivos ao apresentado pela pesquisadora Patti Valkenburg ainda no primeiro capítulo. A diferença é que a 39

O material em questão é a digitalização de áudios de um dos programas, originalmente registrado em fitas K7.

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pesquisa da holandesa se preocupava com o mapeamento das reações das crianças, enquanto a presente pesquisa procura saber em que medida o corpo está jogando com o conteúdo apresentado pelo programa Faz de Conta. Sentados sobre papéis de jornal, afastados das suas carteiras – um dos símbolos do aprendizado moderno – as crianças se permitem as trocas sonoras e corpóreas. Com a ajuda dos sons, as crianças preencherão as lacunas das histórias, construindo a partir de seus próprios imaginários um final para a narrativa. Contudo, é necessário ressaltar que o papel da criação não se encerra em contar o final da história. A real fabulação está na corporeidade, em como essas imagens sonoras reverberam nas mentes e nos corpos das crianças. É necessário descobrir como esses trânsitos sonoros vinculam as crianças, ou seja, em que medida operam as imagens sonoras entre a narrativa, os sonhos (imaginário) e as performances do corpo (lúdicas) na escuta de um programa como o Faz de Conta.

História sem palavras O programa começa com o aparecimento de sons aleatórios; podemos ouvir latidos de cães, canções de grilos, apitos de navios, trovões. Em seguida ouve-se a voz do locutor40: Que barulheira é essa? O que está acontecendo? Você sabe o que está acontecendo? Ei, Siqueira, para tudo! Assim. Eu sou o Sílvio Varjão e toda barulheira que você ouvia era uma mistura de sons que o Siqueira fez para este programa de rádio. Sabe, os ruídos, os sons sempre podem virar alguma coisa. Por exemplo, um apito assim (apito de navio) vira um enorme navio na nossa imaginação. Agora, um som assim (trovões) vira um dia de chuva, de raios e relâmpagos. Mas se eu usar duas cuias e batê-las no meu peito, sabe o que viram? (cuias imitam som de cavalgada) Um cavalo...eia cavalinho, upa, upa..vamos que já vai anoitecer. (sons de grilos e das cuias) - Nossa, está tudo escuro..virou noite! E tem muitas outras coisas que a gente pode imaginar quando ouve um som ou vários sons. (cachorro latindo) - Passa cachorro! Passa! Passa! - Pois é. Os sons, os ruídos, os barulhos, tudo isso pode ser usado para fazer a gente imaginar. Imaginar o que está acontecendo. Às vezes 40

Na transcrição da fala do locutor constarão palavras em parênteses e itálico, que correspondem aos sons que complementavam as narrativas do apresentador.

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fica difícil a gente imaginar algumas coisas. Mas se os sons forem aparecendo um por um, de maneira bem pensada, eles viram até uma história com começo, meio e fim. Você quer ver? Quando eu me calar, você vai ouvir uma história contada só pelos sons. Agora é só prestar atenção e imaginar.

Em seguida tem início uma narrativa não-verbal, baseada em construção de paisagens sonoras. Os primeiros sons que ouvimos são o tique-taque do relógio, seguido de roncos, um despertador tocando e objetos que se chocam. O personagem, que não pronuncia sequer uma palavra articulada, se faz notar por constantes gemidos, resmungos e respirações fortes. É percebida uma mudança de paisagem sonora quando abrir e fechar de portas, combinados com sons de passos, nos levam ao ambiente do banheiro, onde ouvimos o som da água escorrendo pela pia, a descarga do vaso sanitário, além da escova em contato com os dentes do personagem. Durante boa parte da narrativa percebemos que o personagem produz diversos tipos de sons de pancadas, acrescentados de gemidos, o que nos leva a crer que se trata de alguém bastante desajeitado. O personagem segue para a cozinha, onde são ouvidos sons do atrito das louças como talheres, pratos e xícaras. Em pouco tempo ouve-se o barulho de algo caindo no chão e se quebrando. Após mais resmungos do personagem, o som da vassoura em contato com o chão toma o ambiente sonoro. Em seguida, novos passos nos levam a um outro ambiente, onde portas ou gavetas se abrem e se fecham; também são ouvidos diversos sons de objetos como roupas e chaves. A porta se fecha. Você conseguiu imaginar essa história? Eu ainda não. E você conseguiu imaginar os lugares, os acidentes, a pessoa? Eu imaginei. Eu imaginei que era um homem todo atrapalhado; imaginei ele se levantando da cama, ele no banheiro, ele na cozinha, ele saindo de casa. Você deve ter imaginado alguma coisa. Cada pessoa deve ter imaginado essa história do seu jeito. E sabe por que? Porque não existe um jeito certo nem errado de se imaginar uma história. Agora, se a gente pode imaginar livremente, por que não passar toda nossa imaginação para o papel? É, desenhar, escrever, fazer rabiscos, cortar o papel, enfim, o que você quiser. Sabe, eu preparei alguns ruídos só para você ter uma ideia. Vai começar com uma música.

Uma melodia executada na flauta é acompanhada pelo violão. Também se ouve sons de pássaros ao fundo. Aos poucos a música vai sumindo ao fundo, destacando os pássaros que antes estavam em segundo plano. Sem seguida surgem sons de um objeto em atrito com madeira, terminando no som da queda de uma árvore. Então pegue todo seu material de desenho, ou sua caneta e o seu caderno e pinte ou escreva a ideia que você imaginou.

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(silêncio)

O projeto Faz de Conta apresenta uma proposta que alia a imaginação estimulada sonoramente às produções de imagens pictóricas. O valor pedagógico deste projeto está na sinestesia entre imagem e som proposta nas atividades, servindo como estímulo para o desenvolvimento criativo dos alunos em sala de aula. Este trabalho revela experimentações da criança com suas memórias sonoras e sua capacidade de expressar essas memórias através de desenhos. O quadro apresentado a seguir provoca outros tipos de atividades expressivas, mas ainda fundamentado na relação do aluno com o suporte papel. Interessa, portanto, além da descrição da narrativa sonora contida no quadro, as potenciais formas de expressão dos jogos imaginativos das crianças em contato com o produto sonoro.

Caça ao Tesouro O segundo programa que compõe o Projeto Faz de Conta é o Caça ao Tesouro. Antes de explicar a atividade aos alunos, os personagens da história são mostrados em ação; trata-se de um pirata e seu papagaio. Em sua fala, o pirata apresenta um caricato sotaque francês: - (papagaio) Levantar as velas, meu capitão...homem ao mar, meu capitão. - (pirata) Ferme la bouche, [...] du diable...ninguém pode escutar. - (papagaio) oui, oui... - (pirata) Somente eu sei o que tem aqui, ninguém mais (risadas). Um dia eu voltarei para buscar o que escondi (risadas)...um dia eu voltarei (risadas). - (papagaio) (risadas) tarei, tarei...

Feita a ambientação, o locutor aparece para propor a atividade aos alunos. São muitas as histórias de piratas. Pelos sete mares eles saqueavam navios, atiravam homens ao mar e enterravam os tesouros em pequenas ilhas desabitadas. Essas histórias foram escritas em livros, desenhadas em gibis, viraram filmes de cinema e televisão. O mocinho sempre acabava descobrindo um mapa e saía em busca do tesouro escondido. E quem é que não gostaria de ser o mocinho nessas horas? Para partir em busca de um grande tesouro. E que tal uma caça ao tesouro de verdade? Com pistas, com charadas, adivinhações e muitos perigos. Para essa caça ao tesouro você não precisa de muita coisa; é só ouvir com atenção as minhas pistas. Mas antes você tem que se preparar para essa aventura. Você tem que ter um equipamento próprio: folha de papel, lápis, borracha, régua e apontador para qualquer emergência. Vá preparar o seu equipamento. Quando essa música terminar, começa a nossa caça ao tesouro.

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Enquanto a criança se prepara, providenciando os materiais pedidos pelo locutor, ouve-se uma melodia muito comum em histórias de piratas veiculadas em outros meios de comunicação. Em seguida, o locutor começa a explicar de que forma será feita a caça ao tesouro: Gostei de ver. Todo mundo com papel, lápis, borracha, régua e apontador. Agora você está pronto para partir em busca do tesouro. Mas como partir sem ter nenhum mapa, nenhuma pista? Se prepare que eu agora vou dar as primeiras pistas pra você. Usando o lápis, divida a folha em duas partes: a de cima e a de baixo. (sons de relógio) Agora bem no meio da folha, faça um risco de cima para baixo. Assim a folha vai ficar dividia em quatro partes. (sons de relógio) Essas quatro partes representam as quatro regiões do mapa que você vai seguir. Não é um trabalho fácil, você tem que prestar muita atenção no que eu vou dizer: primeiro vamos numerar cada região para ninguém se perder. Na parte de cima do papel, lado esquerdo, marque número um; a parte de cima do papel, lado direito, marque número dois; a parte de baixo do papel, lado esquerdo, marque número três; a parte de baixo do papel, lado direito, marque número quatro. (repete) Mas só isso não basta, você precisa de uma dica que é muito importante: cada lugar é uma região bem diferente da outra; em algumas você vai encontrar pistas, em outras perigos, em outras armadilhas. Em cada região tem um barulho diferente. Atenção! Cada região tem um barulho diferente e sempre vai ser o mesmo barulho naquela região. Vamos saber quais são. Para não esquecer, anote em cada lugar que você numerou o som que você vai ouvir. Onde você marcou número um você vai ouvir isto aqui.

A paisagem sonora da primeira região faz alusão a uma praia, com sons de ondas, de gaivotas e do vento. Os elementos sonoros presentes na paisagem são de fácil compreensão. Onde você marcou número dois você vai ter este som:

A região número dois é composta por tambores que são tocados de forma ritmada, lembrando sonoridades tribais. A região que tem o número três tem este som:

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São ouvidos sons de pássaros, assobios, grilos e outros elementos que compõem uma paisagem sonora característica de florestas tropicais. Na região que tem o número quatro o som é este: Uma melodia de flauta compõe sozinha a ambientação sonora da região de número quatro. A partir de agora tudo depende de você, de sua memória. Quem não conseguir decifrar as charadas, ou escapar dos perigos dessa caça ao tesouro, sai da brincadeira. A primeira pista é uma charada. Para descobrir, escreva do outro lado do papel a palavra que eu vou soletrar. Escreva em letra de forma. A palavra está com as letras trocadas. Eu vou soletrar: C – O – R – O – Q – U – E – I (repete). Descubra que palavra é essa. (som de tique-taque de relógio) Agora vire o papel outra vez. A resposta é: “coqueiro”. Agora você vai ouvir um som que você já ouviu antes, é de uma região. Ali você tem que desenhar um coqueiro.

Os sons da onda, do vento e das gaivotas indicam que as crianças devem desenhar o coqueiro na região número um. É dado um tempo considerável para que todos consigam fazer o desenho no local indicado pelos sons. Que coqueiro bonito. Agora olha só a surpresa. Eu vou tirar do meio das folhas do coqueiro um envelope. Aqui dentro tem a próxima pista. Atenção que eu vou ler. “Dê dois passos à esquerda da árvore e concentre-se. Desenhe uma escada que leve você para baixo, para esse lugar”:

Ouvimos a paisagem sonora da floresta, que indica a região número três. Ao dividir a folha em quatro partes, o quadrante número um se encontra imediatamente acima do quadrante número três. A criança desenha uma escada que a leve para o quadrante de baixo enquanto ouve os sons característicos da região três. Olha só onde você foi parar. Que matagal! Tome cuidado! Aqui há uma grande armadilha, sim uma armadilha muito perigosa. Qual que é? Eu não posso dizer, mas eu tenho um racha-cuca. Se você souber a resposta desse racha-cuca, vai saber qual é a armadilha. O racha-cuca é esse: “quanto mais se tira, mais aumenta; quanto mais se põe, mais diminui” (repete). Você está bem perto da armadilha...cuidado, você pode cair! Você vai cair dentro dele! É um buraco! Marque aí um buraco no seu mapa. Quem não caiu no buraco siga em frente. Isso, ande em frente, em direção à região número quatro. Quando não der mais, apague a linha. É a linha que divide as duas regiões. 93

Neste ponto, a criança já começa a traçar um complexo mapa que transita entre as quatro regiões demarcadas no papel. Embora a narração executada pelo locutor seja fundamental para a compreensão da atividade, é notável como o som participa de forma decisiva no “caminhar” das crianças pelos ambientes. Cada uma dessas paisagens sonoras esconde no imaginário de cada criança perigos e aventuras, marcados no cantar dos grilos e das gaivotas, no soprar dos ventos e dos assobios. Essas crianças não estão lidando com informações, mas com os medos e as vertigens (jogos de ilinx) mais profundas do seu subconsciente. A aventura segue com o ressurgimento da paisagem sonora da quarta região, a melodia da flauta. As crianças já venceram o buraco e saltaram da região três para a vizinha região quatro. Nós já andamos bastante. Assim que esse som parar, você vai ouvir um barulho. Tente descobrir que barulho é este. (som de água corrente, remetendo a um rio ou córrego) Desenhe o que você ouviu na região em que você está. Invente uma maneira de atravessar. Do outro lado tem mais uma pista.

Novamente ouve-se o som da água corrente enquanto a criança desenha o rio e inventa uma forma de atravessá-lo. Bem entendido, ao contrário dos estudos de Valkenburg, não caberia ao presente estudo o mapeamento desses desenhos como forma de analisar as respostas criativas das crianças. O que está em jogo é capacidade dos jogos sonoros, veiculados pelo rádio ou similares, em trabalhar a imaginação da criança através de elementos lúdicos do som. Mas vamos voltar ao locutor: Pronto, a pista é a seguinte: trace uma linha reta direto para cima. Comece a traçar a linha. (tambores que compõem a região dois) Você chegou no último lugar do mapa. Aqui é um lugar deserto, não existem árvores, nem tem mato, nem tem gente. Aqui só mora um touro super bravo. Ele não suporta caçadores de tesouro. Ele só para quando vê uma cerca pela frente. Você tem que desenhar uma cerca antes dele aparecer. Ande rápido! (ritmo dos tambores acelera gradualmente; som de touro) Espero que todo mundo tenha escapado do touro. Para quem escapou, atenção. Você que passou por tantos perigos, eu lhe digo: o tesouro está bem escondido a três passo da árvore lá no início.

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Mais uma vez é possível notar como é possível criar jogos de vertigem (ilinx) com sonoridades simples, como tambores que soam em um ritmo que vai sendo acelerado na medida em que o touro se aproxima. Sonoramente, a criança está inserida num mundo imaginário, como afirma Wulf: “com a ajuda da imaginação, o jogar produz um mundo de fantasia com relativa autonomia, que ao mesmo tempo se relaciona com diversos mundos fora deste” (Wulf, 2013, p.143). Graças aos tambores que ressoam nas caixas de som, a criança é capaz de acreditar, ou em outras palavras, de se permitir a imersão na ilha onde está escondido o tesouro. Não apenas as suas memórias afetivas estão sendo provocadas, mas seu corpo está alerta, percebendo a tensão do rufar dos tambores, sentindo na pele a vertigem e o perigo da aproximação de um touro. De volta à região número um, onde se encontra o coqueiro, os vencedores ouvem, além da ambientação da praia, sons de pás cavando o chão, seguidos de sons de madeira e ferro. Por último, as moedas de ouro escorrem da arca para a mesa, ressaltando o tilintar característico do manejo das moedas. Você conseguiu chegar até o fim da nossa caça ao tesouro. A arca foi desenterrada, foi aberta, foi revirada. Descobrimos um tesouro mágico, que nem eu, nem você, nem ninguém pode vê-lo ou tocá-lo. É um tesouro mágico que está em cada um de nós, está em você. Cabe a você por no papel a aventura que você viveu; de verdade ou na sua fantasia.

Novamente a melodia característica das histórias de pirata, que foi tocada no começo do programa, volta à cena para encerrar a aventura. O projeto Faz de Conta provoca a imaginação da criança através de jogos sonoros em plena sala de aula. Novamente é necessário retomar o significado de jogo em outros idiomas como o inglês, o francês ou o alemão; palavras que significam jogo e também brincadeira, representação e reprodução. As brincadeiras sonoras propostas na caça ao tesouro implicam na participação efetiva da criança na aventura, ou seja, há uma elevação do mundo real para um mundo fantasioso que é performático. As crianças caminham pelos espaços propostos no mapa, constroem cercas para o touro, pontes para atravessar o rio. Um novo espaço é constituído imaginativamente na mente de cada criança, implicando em representações, brincadeiras e jogos. Contudo, a performance lúdica no caso do Projeto Faz de Conta apresenta uma singularidade importante: trata-se de uma performance instrumentalizada, ou seja,

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mediada pelo lápis e pelo papel. A expressividade do jogo é concentrada nas mãos das crianças, que a projetam em forma de imagens nas folhas em branco. Jogos são encenados e performados. Suas formas são performativas. Como tal, eles estão fisicamente ligados, expressiva e ostentativamente. Em muitos casos, eles são uma série de encenações de imagens mentais, que são a cada vez recontextualizadas e oferece possibilidade de manifestar imagens interiores em performances físicas. Os jogos podem ser criados e tornam algo visível. Eles acontecem. Neles, emoções são expressas e tornam-se visíveis. Muitos jogos tem um lado demonstrativo. Eles não são apenas representações e pretendem tornar visível aquilo que expressam. Eles precisam da liberdade criativa possibilitada pelas diferenças na execução e encenação. O lado ostentativo dos jogos é acompanhado de seu caráter expressivo (Wulf, 2013, p.146).

Christoph Wulf deixa claro o caráter demonstrativo das performances lúdicas. Como na Rádio Maluca, ou na Loja do Tio Nico, as crianças oferecem seus corpos fantasiados e em movimento à visualização por todos que dividem o espaço do jogo. Ao aceitar a brincadeira, a criança mergulha plenamente – corporalmente – no espaço, ou no mundo novo que está sendo proposto. A imaginação expande os limites da mente e do corpo e invade o espaço em movimentos do corpo e do aparelho fonador, religando sua performance àquela das crianças ao redor. Contudo, quando instrumentalizamos a expressão lúdica, projetamos as suas manifestações em suportes, ou aparatos, como a folha de papel. O mundo provocado sonoramente é devolvido ao ambiente em forma de imagem pictórica. O valor pedagógico dessas expressões é inquestionável e não se coloca em jogo nesta análise, mas é necessário se pensar nas limitações que são impostas às crianças na instrumentalização das performances lúdicas. Como extensão da aquisição mimética de um conhecimento prático, o indivíduo adquire novas competências. O jogador, com o seu corpo, sua linguagem e seus sentidos, sua encenação e performance de uma versão do jogo, realiza seu engajamento individual numa execução pública aos outros. No jogo o indivíduo exterioriza e expande seu repertório de ação. Há uma expansão de seus sentimentos, habilidades e oportunidades. Os princípios de organização do jogo tornam-se certezas [...] (Wulf, 2013, p.147-148).

Há, portanto, um grande valor pedagógico nas brincadeiras corporais em sala de aula. O que está em jogo nesta análise é a possibilidade de se pensar o rádio como meio de provocar essas brincadeiras e essas performances; uma forma de se compreender as falas

e

os

sons

mediatizados

como

modos

de

aprendizado

não

apenas

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instrumentalizados, mas como um conhecimento social, corporal, organizacional e, principalmente, imaginativo.

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4 BRINCADEIRAS FINAIS “O que você quer ser quando crescer? - Adulto”. (Guilherme, de 3 anos, respondendo à pergunta de Zé Zezuca)

Foram apresentados neste estudo diferentes programas infantis no rádio, contemplando as atuais plataformas tecnológicas, como as webradios e os podcasts, passando também pelas ondas do rádio tradicional das emissoras públicas; do programa de auditório ao playlist musical, passando por reportagens, entrevistas, leituras de cartas e performances que beiram o teatral. Diversas facetas sonoras que animaram, distraíram, provocaram e fizeram as crianças trabalhar sua imaginação. Do lúdico ao pedagógico, do ferramental ao toque das mãos, as crianças continuam provando a experiência radiofônica, mesmo que de forma escassa e esparsa. Foi possível, portanto, responder a pergunta-problema da pesquisa e mapear as performances lúdicas que provocam e subvertem as técnicas tradicionais da produção radiofônica. É importante destacar novamente tais performances, a fim de expor as qualidades lúdicas dos atuais programas infantis, mas também apontando para futuras possibilidades que ampliem ainda mais as iniciativas de desenvolvimento de programas para crianças. No caso da Rádio Maluca, a presença da criança no auditório ao lado dos animadores é fundamental para operação do paidia, como nos mostrou Caillois. Mesmo estimuladas a obedecerem ao roteiro, as crianças correm, gritam, se escondem do apresentador, vestem asas, se dispersam, não respondem o que deles se espera: “o que você quer ser quando crescer?” “Adulto”; “Ninja”; “Fada do dente”. O que faz de cada programa da Rádio Maluca único é a imprevisibilidade das performances das crianças, em contraste com a redundância da formatação do programa e dos quadros. O apresentador Zé Zezuca é “aquele que fala cantando”, aquele que vai te provocar, conduzindo as crianças pelo espaço do auditório, enquanto Mariano toca violão, frigideira, caneca e frango de borracha. Contudo, a Rádio Maluca é “o programa que você vê pelo rádio”, que se apresenta às crianças do outro lado do aparato como ambiente de visualidade, acessível ao olhar pelos “buraquinhos do rádio”. A brincadeira

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parece circunscrita ao auditório, privando dos ouvintes a performance corporal do ouvir e brincar junto. O programa “Para ouvir e aprender” vincula crianças de diversas comunidades na região de Santarém. Apresenta-se, nesse caso, um conjunto das características mais tradicionais da produção radiofônica, como as reportagens, entrevistas e quadros educativos. Contudo, é na seção de leitura de cartas que a corporeidade mais se faz presente. O momento da efetiva participação das crianças no programa, sem que suas vozes sejam captadas pelos microfones, mas para que suas palavras abracem os professores, os pais, os avós, os amigos. A brincadeira, a imprevisibilidade está nos poemas, nos jogos textuais que viajam de barco das casas até o estúdio e que, lidos, vinculam os corpos de apresentadores e ouvintes, extrapolando os conceitos de transmissão e interatividade no rádio como um simples jogo de pingue-pongue. Mas os mesmos jogos de improviso, ou de imprevisibilidade, não estão presentes na condução roteirizada do programa. Crianças emprestam suas vozes para a enunciação de quadros previamente formatados e explicativos; os verbetes do dicionário ressoam como aprendizado na voz de criança para o ouvido de criança. Os microfones especializam os conteúdos, obrigando as crianças a impostarem suas vozes, a pronunciarem as palavras claramente tal qual um locutor radiofônico consagrado. Estão se preparando para a vida adulta. A Loja do Tio Nico expõe a viabilidade de se pensar um programa radiofônico que valorize performances sonoras que vão além da verbalização. Com efeito, produzir efeitos sonoros manualmente, com a ajuda de pequenos instrumentos, não é novidade entre as produções radiofônicas. O que se apresenta como novidade é a possibilidade de criação sonora a partir das fantasias infantis; uma forma de levar adiante a proposta de uma rádio dos sonhos de Paul Deharme. A criança veste a máscara e deixa os bastidores do estúdio para brincar com as outras crianças, jogando como um pirata em pleno combate, sem perceber o microfone, confeccionando suas próprias sonoridades. Os jogos sonoros construídos no estúdio envolvem os atores de forma a modificar o ambiente, os gestos, as performances; todos estão usando máscaras (mimicry) em seus próprios aparelhos fonadores, nas suas próprias peles. As lacunas oferecidas no programa também possibilitam as performances lúdicas do outro lado do aparato, das crianças com seus brinquedos, com seus pais ou amigos, estendendo a brincadeira pelos espaços que estão conectados apenas pelas redes elétricas, pelos satélites e pelas ondas sonoras. 99

O Projeto Faz de Conta leva os jogos sonoros para dentro da sala de aula. Na presença do professor, as crianças mergulham nas aventuras sonoras propostas pelo programa, com o auxílio de aparatos como lápis e papel. A expressão da criatividade infantil, neste caso, está relacionada com a transição entre estímulos sonoros e visuais. Os corpos aceitam a brincadeira, se estimulam pelas sonoridades, mas as devolvem ao ambiente em forma de imagens pictóricas. As brincadeiras sonoras acontecem fundamentalmente na mente de cada uma das crianças, embora a exposição ao conteúdo seja feita de forma coletiva. Os tambores ritmados anunciam a chegada do perigoso touro, as vibrações atiçam a pele e os ouvidos das crianças, que se apressam em traçar na folha em branco rabiscos que representem uma cerca firme o suficiente para mantêlas seguras do animal. Tais performances lúdicas levantadas na audição dos programas ainda não são suficientes para se pensar em um crescimento substancial da audiência infantil. Também seria necessário levar em conta as novas tecnologias de transmissão de áudio online para se pensar no futuro das produções infantis. Mais que garantir um futuro próspero para o rádio, o importante nas reflexões propostas por esta pesquisa é problematizar os modos de escuta do rádio. Não é possível pensar em audiência infantil sem pensar na escuta infantil, nem é possível falar em futuro do rádio quando gerações de ouvidos mal preparados e desrespeitados continuam sendo expostas a narrações frenéticas, sonoplastias mecanizadas e programações legitimadoras de um modo de vida racionalista e capitalista. Não está provado empiricamente que o rádio é mais ou menos libertador que a TV no estímulo à criatividade das crianças, mas é fato que a linguagem radiofônica carrega uma necessidade intrínseca de visualização, como uma espécie de concorrência com a estética da televisão. Seja pelas câmeras instaladas nos estúdios divulgando imagens pela internet, seja por fazer a criança “ver o programa pelo rádio”, a hiperexposição imagética a qual somos sujeitos diariamente influencia diretamente nas elaborações dos programas de rádio. Desde os locutores esportivos que nos estimulam a reconstruir a imagem do campo de futebol às reportagens das emissoras all news que nos apresentam notícias em forma de verbalizações, abstraindo as sonoridades. Portanto, ao se falar em visibilidade, não se trata necessariamente de uma ideia da imagem pictórica no rádio, mas da subtração do sonoro em prol da construção narrativa verbal, mais eficiente e econômica – como demonstrou Harry Pross – na transmissão de informações. 100

Nos programas observados durante a pesquisa são notáveis os momentos em que a visualidade se faz presente, como no já citado programa “que você vê pelo rádio”, mas também nas entrevistas no formato “o que você quer ser quando crescer” presentes na Estação Brincadeira, ou na fala adulta e especializada e nas reportagens produzidas pelo programa Para ouvir e aprender, ou ainda pela produção de desenhos por parte dos alunos ao ouvir a história do Projeto Faz de Conta. Os sons que confundem a cuca são agentes da subversão do savoir faire tradicional do rádio; uma espécie de retorno à corporeidade, aos vínculos mais primários e sólidos, que estão na vibração do som na pele, no sopro do aparelho fonador, no golpe da mão no couro do tambor, nas pedrinhas coloridas que se precipitam de um lado para o outro da bandeja, imitando o som do mar; está na fala inesperada da criança, provocando expressões de surpresa no rosto do apresentador. Confundir a cuca não é desafio ao intelecto, é a chamada do corpo para a brincadeira. As máscaras serão vestidas naquele ambiente de grandes possibilidades sonoras, apenas à espera dos primeiros gestos corporais que irão desencadear construções coletivas de afetos. Discretamente, o microfone transforma essas energias sonoras em energias elétricas e calor, que serão transportadas a outros ambientes, gerando novamente energia sonora, vibrando nas peles e dando partida a novos jogos sonoros, novas máscaras, novos afetos.

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