Rainer W. Fassbinder, O Café

June 6, 2017 | Autor: Claudia Fischer | Categoria: Theater and film, Rainer Werner Fassbinder
Share Embed


Descrição do Produto



David Barnett, Rainer Werner Fassbinder and the German Theater, Cambridge: Cambridge University Press, 2005, p. 128.
Jorge Luís Borges define assim o acto da tradução em "El oficio de traducir", Sur, Buenos Aires, nº 338-339, Janeiro-Dezembro, 1976.
Barnett, op. cit., p. 135.
Cf. Hans-Thies Lehmann, Postdramatisches Theater, Frankfurt am Main, Verlag der Autoren, 1999.
Thomsen, Christian Braad, Fassbinder. The Life and Work of a Provocative Genius, London, Boston, Faber and Faber, 1997.




Rainer Werner Fassbinder, O Café. A partir de Goldoni, tradução de Claudia J. Fischer, TNSJ (Colecção Leituras no Mosteiro - 3), 2016.



Prefácio

O texto como pretexto.
Conversas de café sob o signo da conversão

Claudia J. Fischer



Quando escreveu a peça de teatro O Café (Das Kaffeehaus), em 1969, Rainer Werner Fassbinder encontrava-se no início da sua carreira como realizador, tendo rodado algumas curtas-metragens, colaborando porém paralelamente num projecto de teatro experimental e anti-burguês em Munique o antiteater. Foi aí que levou à cena o Café cuja gravação para televisão, em 1970, acabou por ficar registada como a sua primeira produção em vídeo.
A concepção desta peça surge na sequência de um convite do Teatro Municipal de Bremen (Bremer Stadttheater) para escrever e levar à cena uma adaptação de La bottega del caffè de Carlo Goldoni. Datada de 1750, esta comédia de enganos, passada em Veneza na época do Carnaval, radica na tradição da commedia dell'arte, ainda que revolucionando muitas das suas imposições formais. Mantendo as personagens e aspectos da intriga baseada em enganos e falsidades, Fassbinder cria uma versão em que enfatiza a cadeia de dependências viciosas entre personagens cujos interesses e motivações são invariavelmente susceptíveis de se traduzir em transacções monetárias. Para tal, introduz um leitmotiv que, interrompendo constantemente o fluxo discursivo e uma eventual sentimentalização das cenas (por sua vez, ironicamente accionada por uma moeda introduzida numa jukebox, único objecto referido na didascália inicial), consiste na conversão, enunciada em voz alta pelas personagens, dos valores proferidos em sequins para dólares, marcos e libras. Com esta insistente interferência ao longo de toda a peça, cuja acção se desenrola num café localizado entre um bordel e um casino, Fassbinder "faz colapsar", como o exprimiu David Barnett, "a oposição entre cultura e finança".
Mais do que o enredo em si ou a profundidade dos caracteres, parece interessar a Fassbinder um efeito de anacronismo e a amálgama estilística entre a estética barroca de Goldoni e elementos do mundo contemporâneo, nomeadamente referências cinematográficas, como, por exemplo, a westerns americanos. Esta amálgama reflecte-se muito claramente na linguagem usada pelas personagens e constitui, como tal, um verdadeiro desafio para o tradutor. De forma consciente, Fassbinder opta, em grande parte do texto, por uma linguagem altamente arcaizante, criando, através do pastiche discursivo, a ilusão de uma deslocação no tempo, interrompendo depois essa ilusão mediante uma repentina descontinuidade no registo estilístico. Um exemplo bem evidente desse dispositivo difícil de verter para outra língua é o recurso a toda uma diversidade de formas de tratamento pronominal, algumas já caídas em desuso, que assinalam e estabelecem diferentes relações de poder/dependência entre os falantes. Se formas actuais, como a segunda pessoa do singular (du) e a terceira pessoa do plural com maiúscula inicial (Sie), sinalizam relações de maior ou menor proximidade, encontrando equivalências no português, já formas honoríficas como Ihr e Er, inerentes a um discurso aristocrático desaparecido, marcam de modo subtil o tipo de desnível hierárquico entre os interlocutores, podendo corresponder, no português, ora à arcaizante 2ª pessoa do plural, ora à 2ª pessoa do singular. Mais interessante ainda e desafiante para o tradutor é a presença de passagens inteiras que, embora compostas em prosa, se apresentam em sequências de pés jâmbicos, ou seja, numa cadência métrica própria da escrita dramatúrgica alemã do século XVIII. Contrastando com o restante discurso devido a uma reorganização sintáctica que resulta numa cadência regular e em figuras como hipérbatos e anacolutos, estas passagens obviamente parodizantes, afectadas e abusadoras de clichés literários introduzem desvios no fluir discursivo que também se fazem sentir na versão traduzida aqui publicada, ainda que tendencialmente através de um manuseamento mais artificioso (e artificial) da construção frásica.
Trata-se, na tradução, antes de mais, de não ferir a ironia subtil do texto original, de deixar transparecer a matriz goldoniana grotescamente convertida numa peça fassbinderiana. "Tomando o texto como pretexto" para a sua obra, Fassbinder imprime-lhe o seu ritmo frio e acelerado, assume as dissonâncias resultantes das justaposições de diferentes registos linguísticos, reduz as diversas acções a uma sequência de transacções, fornecendo-nos um palimpsesto cujas camadas cabe preservar na versão traduzida. Ora, neste caso, às duas camadas já referidas o pré-texto de Goldoni e o texto de Fassbinder acresce ainda outra camada a não ser negligenciada numa leitura que tem como horizonte a tradução. Referimo-nos ao registo videográfico, realizado em 1970 para televisão, onde a recusa liminar de uma representação realista reforça a centralidade da palavra e onde, segundo Barnett, "um teatro de linguagem no qual o texto paira livremente sobre a denotação" constitui um passo decisivo no desenvolvimento do teatro pós-dramático, tal como foi descrito por Hans-Thies Lehmann. Longe de se sugerir aqui que as opções cénicas de Fassbinder devem ser directamente tidas em conta na tradução do texto dramatúrgico, considera-se que a complementaridade entre a leitura da peça e a visão/audição da sua encenação pela mão do autor pode viabilizar uma compreensão mais intrínseca do texto. É curioso, por exemplo, observar que, ao longo da peça, todos os actores estão sentados em cadeiras criteriosamente colocadas no espaço e que, quando falam, se movimentam segundo uma coreografia meticulosamente desenhada, como peças num tabuleiro de xadrez. Quanto à dicção, verifica-se, por vezes, uma total dissonância relativamente ao teor psicológico das falas. Parece, sumariamente, vigorar um princípio que desliga as palavras ditas da inflexão vocal e postura corporal de quem as diz, criando um efeito de estranhamento e de quebra de uma continuidade habitual entre palavra e gesto, entre palavra e sentido: paixões são declaradas de forma apática, insultos são formulados como insinuações eróticas e, em geral, o modo excessivamente articulado com que as palavras são pronunciadas pouco tem em comum com uma dinâmica teatral expectável naquele texto. Numa monografia dedicada à obra de Fassbinder, este modo de falar das personagens é descrito pelo realizador dinamarquês Christian Braad Thomas "como se tivessem vindo de outro planeta, por acaso tivessem encontrado o manuscrito e estivessem a ensinar uns aos outros o som e a música das palavras e não o sentido." Dir-se-ia que a corrupção, descrita na intriga das peças de Goldoni e de Fassbinder, estendida a uma dependência já viciada entre palavra e gesto especialmente no grande teatro burguês é aqui desmantelada, reenviando-nos, leitores e espectadores, para uma concepção mais pura da palavra, convertida, paradoxalmente, através do artificialismo.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.