“Rastos e sombras” de uma corte passada - alguns aspectos de Corte na Aldeia e Noites de Inverno (1619) de Francisco Rodrigues Lobo.

Share Embed


Descrição do Produto

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

“Rastos e sombras” de uma corte passada Alguns aspectos de Corte na Aldeia e Noites de Inverno (1619) de Francisco Rodrigues Lobo

André Filipe Neto Mestrado em História – 1º Ano Ano Lectivo 2014/2015 Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna Docente: Professora Doutora Ana Isabel Buescu Junho de 2015 Faculdade de Ciências Sociais e Humanas Universidade Nova de Lisboa Avenida de Berna, 26-C


1

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

Fermoso Tejo

“Fermoso Tejo meu, quão diferente Te vejo e vi, me vês agora e viste: Turvo te vejo a ti, tu a mim triste, Claro te vi eu já, tu a mim contente. A ti foi-te trocando a grossa enchente A quem teu largo campo não resiste; A mim trocou-me a vista em que consiste O meu viver contente ou descontente. Já que somos no mal participantes, Sejamo-lo no bem. Oh! quem me dera Que fôramos em tudo semelhantes! Mas lá virá a fresca primavera: Tu tornarás a ser quem eras de antes, Eu não sei se serei quem de antes era.”

in LOBO, Francisco Rodrigues, Poesias (selecção, prefácio e notas de Afonso Lopes Vieira), Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1940, p. 83.


2

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

Índice

Nota introdutória

4

1. O Portugal de Seiscentos e a Corte na Aldeia

4

2. Lereno, cantor de entre os tempos

7

3. Corte na Aldeia e Noites de Inverno

9

4. Uma literatura autonomista? Lisboa, Capital do Império?

12

5. Rodrigues Lobo, “jardineiro da língua portuguesa”

14

6. Corte na Aldeia - um manual para o cortesão?

17

Notas finais

24

Fontes e Bibliografia

26

3

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

Nota introdutória Analisar Corte na Aldeia e Noites de Inverno, de Francisco Rodrigues Lobo surgiu como opção de trabalho para o seminário de Sistemas dos Saberes na Época Moderna. Esta escolha surgiu por sabermos que esta é, pelas as suas características, uma obra singular na literatura do comportamento social em Portugal - tema que nos interessa - e que levou a querermos analisar e interrogar mais demoradamente o texto. Por outro lado, por ser obra de fronteira entre estilos literários e tempos, convidou ao diálogo. Finalmente a sua inserção numa temporalidade, no concernente à conjuntura socio-política em que surge, cativou o nosso olhar. Em termos metodológicos, o momento da leitura e e a análise da obra constituíram os passos fundamentais, nas suas diversas edições e impressões. Desde a edição original, de 1619, às edições e estudos introdutórios que citamos ao longo deste trabalho, é necessário imediatamente realçar o fundamental contributo de José Adriano de Carvalho. Por questões meramente logísticas, utilizámos a edição da Editorial Verbo para as citações.

1. O Portugal de Seiscentos e a Corte na Aldeia Corte na Aldeia e Noites de Inverno, obra de Francisco Rodrigues Lobo, foi publicada pela primeira vez em 16191 . Ao lermos as suas páginas somos interpelados, continuamente convidados a pensar questões que vão desde a forma ao conteúdo, sendo a riqueza temática, e os vectores de análise sugeridos, uma das várias características que singularizam a obra. Que Portugal é o de que nos fala Rodrigues Lobo? De onde nos escreve o autor? Que corte é esta que surge pintada na aldeia? Quem são os cortesãos que se encontram ao redor da mesa? Que aldeia é esta que pinta a corte? Que espaço é criado pelo autor e de que forma nos fala desse outro que o rodeia? E, circularmente, voltamos à pergunta inicial: que reino é este que é objecto e sujeito de Rodrigues Lobo? Parece-nos pertinente que seja esta a pergunta de que partimos para entender as dimensões sociais e culturais com que a obra dialoga. Antes de suspendermos o olhar na figura de Francisco Rodrigues Lobo, nascido na década

1

Corte na Aldeia e Noites de Inverno saiu, pela primeira vez, dos prelos de Pedro Craesbeeck, em 1619. Da oficina Craesbeeckiana surgem ainda as ediçõess de 1630, 1646 e 1670. Ainda no século XVII, a obra vem à luz pela tipografia de António Pedrozo Galrão, em 1695. Cf. LOBO, Francisco Rodrigues, Corte na Aldeia (introdução, notas e fixação do texto de José Adriano de Carvalho), Editorial Presença, Lisboa, 1992, p. 8. 4

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

de setenta de 1500 e que morre dois anos após a publicação do seu livro, é preciso que sondemos algumas características, a título de nota introdutória, acerca do Portugal do século dezassete. Coincidentes com o período de vida de Rodrigues Lobo são os sessenta anos de poder filipino em Portugal. É, de alguma forma, a ideia destas cortes de aldeia que marca alguma da historiografia que a longo do tempo olhou este período2, uma imagem de ausência, impressa também no imaginário colectivo. E é, outrossim, de ausência que nos fala a obra, é através dela que se constrói e é, de alguma forma, como resposta a esse afastamento da corte que Francisco Rodrigues Lobo recria uma corte possível, uma aproximação ao que poderia ser. Torna-se necessário referir que o Portugal de Seiscentos é um tema cujo debate, centrado tantas vezes na relação com o(s) poder(es) sediado(s) em Madrid, continua. Por um lado, encontramos a imagem de uma corte régia não residente no reino, mas no “sertão”3 - nas palavras de Manuel Severim de Faria - e de um panorama de dispersão (de cortes pelas aldeias) que, segundo alguns autores, começara já antes de 15804. Por outro lado, se essa dispersão contribui para um “eventual afastamento dos centros de poder durante esse longo período”5 , pode simultaneamente ter influído numa nova formação dos cortesãos portugueses, expostos a uma realidade palaciana e cortesã distinta6. A casa de Bragança, num movimento que não lhe é novo, “manteve a sua própria corte e uma dimensão territorial notável (…) preservou essa corte alentejana com um ritual e espaços de representação próprios”7 , assumindo-se como fundamental pólo cultural e de mecenato, sendo certo que “apesar da sua discreta atitude política, neles estavam postas as esperanças de grande parte da nação”8. Sabido é que, depois de 1640, Portugal assistirá a mudanças significativas no que toca à realidade cortesã: uma nova sociedade e sociabilidade de corte em formação que difere tanto da anterior como de “todas as configurações curiais precedentes”9. É também no ser criadora dessa 2

Nuno Gonçalo Monteiro diz-nos que “a imagem de marca continua a ser a de um famoso livro de Francisco Rodrigues Lobo” - a fonte que aqui pretendemos sondar. cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “Idade Moderna (Séculos XV-XVIII)” in RAMOS, Rui (Coord.), História de Portugal, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, p. 286. 3 FARIA, Manuel Severim de, Discursos Vários Políticos, (introd., actualização e notas de VIEIRA, Maria Leonor Soares Albergaria), Imprensa Nacional Casa da Moeda, s/l., 1999, p. 12. 4 Cf. MONTEIRO, Nuno Gonçalo, D. José I, Temas e Debates, Mem Martins, 2008, p. 38. 5 MONTEIRO, “Idade Moderna (Séculos XV-XVIII)”, p. 286. 6 CARDIM, Pedro, ‘'As ‘cortesias’ no mundo palaciano português'', in Nuno Gonçalo Monteiro (Coord.), História da Vida Privada em Portugal – A Idade Moderna, Vol. II, Círculo de Leitores, Lisboa, 2011, p. 165. 7 MONTEIRO, D.José I, pp. 36-37. 8 REIS, Carlos (dir.), História Crítica da Literatura Portuguesa, CARVALHO, José Adriano de, PIRES, Maria Lucília Gonçalves, Volume III - Maneirismo e Barroco, Editorial Verbo, Lisboa-São Paulo, 2001, p. 15. 9 MONTEIRO, D. José I., p. 36. 5

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

realidade, mesmo que ideal e a longo prazo, que nos interessa olhar a obra de Rodrigues Lobo. Afastados de uma tradição, da escola romântica, de ver as Letras seiscentistas marcadas pela sombra10, ao analisarmos a obra de Rodrigues Lobo, vemos que pode inserir-se naquilo a que alguns autores chamam literatura autonomista, literatura de resistência ou, até, literatura nacionalista, sendo por vezes identificada com um pessimismo e decadência (adjectivações que evitaremos) que marcam, para alguma historiografia, este período. Para lá da busca de uma mais precisa definição, adiante referiremos algumas obras desta cronologia e que se inserem num âmbito mais lato que podemos designar por “literatura sob os Filipes”.

2. Lereno, cantor entre tempos

Francisco Rodrigues Lobo nasce nos finais da década de setenta do século XVI11, em Leiria. O pai, André Luís, era cristão-novo e a mãe “meia-cristã-nova”12. A situação social do seu nascimento não impediu, contudo, que Rodrigues Lobo tenha sido um “satélite (…) do sol brigantino que tanto queria ver rebrilhar”13 , tendo-se relacionando com a alta aristocracia de Leiria e do reino. Nenhum dos processos inquisitoriais de que a família foi alvo terá apontado o nome do poeta14 , embora, como refere Selma Pousão-Smith, Tomás de Noronha15, num poema escrito após a morte do autor, afirme: “Pastor Lereno, a morte injustamente/te acometeo; mas dizem que queima-

10

Cf. SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, Vol. IV, O Governo dos Reis Espanhóis (1580-1640), Editorial Verbo, 2ª edição, s/l, 1990, p. 426. 11 A data de nascimento de Rodrigues Lobo continua incerta. Joaquim Veríssimo Serrão aponta a data por volta de 1580, enquanto José Adriano de Carvalho, Óscar Lopes e António José Saraiva indicam os anos de 1573 ou 1574. Cf. LOBO, Francisco Rodrigues, Corte na Aldeia (introdução, notas e fixação do texto de José Adriano de Carvalho), Editorial Presença, Lisboa, 1992, p. 7; LOPES, Óscar, SARAIVA, A. J., História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, 16ª edição, Porto, s/d, p. 407 e SERRÃO, op. cit., p. 427. 12 LOPES; SARAIVA, op. cit., p. 407. 13 JORGE, Ricardo, Francisco Rodrigues Lobo: estudo biográfico e crítico, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1920, p. 92. 14 POUSÃO-SMITH, Selma, “The Judaism of Francisco Rodrigues Lobo” in The Modern Language Review, vol. 78, nº 2, Modern Humanities Research Association, s/l, 1983, p. 329. 15 D. Tomás de Noronha, poeta contemporâneo de Francisco Rodrigues Lobo, nasce em Alenquer em data incerta, e morre em 1651. A sua produção poética encontra-se compilada na colectânea de poesia barroca portuguesa, Fénix Renascida, obra coligida por Matias Pereira da Silva e publicada em cinco volumes, entre 1716 e 1728. 6

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

do/Havias de morrer naturalmente”16 . Seria Rodrigues Lobo um “crypto-Jew or an imaginary one”17 ? Permanece questão em aberto. Forma-se em Direito em Coimbra, onde terá recebido “ordens menores”18 e é junto ao Mondego que se estreia nas letras, com a publicação do seu Romanceiro (1596)19 . De alguma forma, aspecto que nos interessa apenas referir, é sob uma tendência castelhanizante que inicia a sua carreira sendo que depois a influência camoniana acentuar-se-á20 . Desde muito cedo adopta o nome literário Lereno, “para melhor se vincular pelo sentimento à terra natal”21 .

Lança três livros pastoris, formando estes um “corpo harmónico”22 : A Primavera (1601), O Pastor Peregrino (1608) e O Desenganado (1614). Numa linha de “tradição nacional”23 publica as Éclogas (1605) e meia década depois lança o poema heróico O Condestabre de Portugal D. Nuno Alvarez Pereira, ligação à Casa de Bragança, inserido-se numa linha de exaltação do passado de Portugal que vislumbramos na Corte na Aldeia e Noites de Inverno, título que publica em 1619. Depois de 1614, publica maioritariamente em prosa24, regressando à poesia em 1619, num movimento que aponta num sentido, segundo alguns distinto, de louvor a Filipe III de Portugal, aquando da sua viagem ao território português, com a publicação de La Jornada del Rey D. Filipe III a Portugal, editada em 1623, tema de “interesse oportuno e susceptível de remuneração material”25 .

Afonso Lopes Vieira, também poeta mas de outro tempo, diz de Francisco Rodrigues Lobo que este foi “em Portugal e no seu século, o artista que manteve idênticas qualidades” quer na prosa, quer na poesia26. Não foi preciso, no entanto, chegarmos ao século XX para que Rodrigues Lobo fosse cantado por outros homens das letras. Lope de Vega, Cervantes e Baltasar Gracián, todos distinguiram Lereno pelas suas qualidades literárias27. Baltasar Gracián, no seu El Criticón, considera mesmo que a obra maior de Rodrigues Lobo, A Corte na Aldeia, será pequeño libro

16

Idem, p. 330. Sobre o tema do judaísmo de Rodrigues Lobo, o artigo aqui citado figura como súmula dos estudos acerca deste assunto. 17 Idem, p. 338. 18 LOPES; SARAIVA, op. cit., p. 407. 19 Inaugura em Portugal esse estilo de popular origem castelhana. Cf. Idem, p. 40. 20 Ibidem. 21 SERRÃO, op. cit., p. 427. 22 Ibidem. 23 Ibidem. 24 LOPES; SARAIVA, op. cit., p. 408. 25 Ibidem. 26 VIEIRA, Afonso Lopes, “Prefácio” in LOBO, Francisco Rodrigues, Corte na Aldea e Noites de Inverno, (Prefácio e notas de Afonso Lopes Vieira), Seara Nova, 3ª edição, Lisboa, 1972, p. VII. 27 POUSÃO-SMITH, op. cit., p. 328. 7

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

eterno28 . Segundo Agostinho da Silva, esta é a obra que nos revela Lobo “no que ele tinha de observador, de ironista, de pedagogo”29 . Entre os “patronos de Lobo”30 contamos com, como as dedicatórias das suas obras deixam perceber, D. Teodósio e D. Duarte, “os dois principais representantes da Casa de Bragança”31 em redor dos quais, no paço de Vila Viçosa - “onde torneavam principescamente os Bragança”32 - se organiza aquela que alguns apontam como a corte portuguesa da época mas também o centro de produção e fruição cultural do tempo. Lereno morre no Tejo, quando o barco em que seguia foi surpreendido por uma tempestade33.

3. Corte na Aldeia e Noites de Inverno Publicada em 1619 por Pedro Craesbeeck, Corte na Aldeia conhecerá múltiplas edições. Esta obra é composta, na edição original, por 165 fs. numerados pela frente, ou seja, 330 páginas34 . Mais pequeno, indica-nos José Adriano de Carvalho, do que alguns dos seus congéneres: o Il libro del Cortegiano (Veneza, 1528) de B. Castiglione ou Galateo ovvero de Costumi (Veneza, 1558), de Giovanni della Casa. Entre estes títulos, influências (melhor chamadas, leituras) que ecoam na obra, podemos nomear várias fontes distintas para cada uma das partes. Na Introdução à sua edição do texto, José Adriano de Carvalho lista cada uma. Para além da primazia das referências da cultura da Antiguidade Clássica (desde logo a escolha do tipo dialógico) nomeia outras referências comuns, trabalhadas também por autores como João de Barros. São as “velhas questões humanistas” que são abordadas, numa obra que deve também ser vista como espaço para o “debate de ideias morais caras ao tempo”. Aí surgem nomes como Petrarca, Bracciolini, Alberti e, incontornavelmente, Erasmo de Roterdão35 ou a notória influência de obras de literatura didáctica como o Leal Conselheiro (c. 1438) de D. Duarte. Inserida assim na 28

LOBO, op. cit. (edição de José Adriano de Carvalho), p. 8, LOBO, Francisco Rodrigues, Corte na Aldeia (prefácio e notas de Agostinho da Silva), Seara Nova, Lisboa, 1966. 30 JORGE, Ricardo, op. cit., p. 90. 31 LOPES; SARAIVA, op. cit., p. 407, 32 JORGE, op. cit., p. 80, 33 Afonso Lopes Vieira chama a nossa atenção para o facto de poder “apontar-se nalgumas poesias de Rodrigues Lobo (…) como que o pressentimento da morte nas águas do Tejo”cf. LOBO, op. cit., (edição de Afonso Lopes Vieira), p. 7 34 LOBO, op. cit. (edição de José Adriano de Carvalho), p. 7, 35 Ibidem. 29

8

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

literatura do seu tempo, lado a lado com nomes como Diogo Bernardes (1530-1600), André de Resende (1527-1619) ou D. Manuel de Portugal (1520-1606), Rodrigues Lobo aproxima-se dos mestres quinhentistas, entre eles Camões, Sá de Miranda ou António Ferreira36. Muito do que afirma acerca das regras de cortesania, se não podemos dizer que seja directamente inspirado pelo Il Cortegiano de Castiglione37 é-o, sem dúvidas, pelo El Galateo Español, publicado em 1592, de Gracián. Podemos também supor que Rodrigues Lobo terá contactado com essa que foi uma obra de larga circulação o De Civiltate Morum Puerilium (1530) de Erasmo, compêndio de regras e maneiras cujo o sucesso que obteve comprova a procura por este tipo de literatura38. Composto por 16 “pequenos ‘tratados’ em forma de diálogo ou, mais precisamente, de colóquio”39, a obra ensaia cobrir um espectro temático que, se à primeira partida nos pode parecer variado, concorre, no entanto, para um sentido comum que pretende ser, em parte, a formação do cortesão, dimensão a que dedicaremos espaço próprio. No que toca à escolha do diálogo como género, esta insere-se numa tradição humanista (dos Coloquia de Erasmo ou dos Dialoga de Bruni)40 , feita para que a narrativa ecoe “a partir da experiência das suas próprias personagens”41 . Logo no primeiro capítulo, ao discutirem uma temática tão cara ao Renascimento como é a imitatio42, as personagens “montam” o cenário propício a todas as discussões, permitido pelo diálogo, permitido pela: “arte de conversar - à mesa…, no passeio…, no encontro - arte que o Humanismo, se não a inventou, transformou num poderoso instrumento da sua pedagogia”43.

Quanto à localização, esta corte insere-se nas que “retirados os títulos pelas vilas e lugares do Reino e os fidalgos e cortesãos por suas quintas e casais, vieram a fazer (…) renovando as saudades da passada com lembranças devidas àquela dourada idade dos Portugueses”44 . Uma corte, que tal como a de D. Duarte de Bragança, a quem a obra é dedicada, se encontra afastada do centro 36

Cf. SERRÃO, op. cit., p. 426, A este respeito, José Adriano de Carvalho refere que, embora com aproximações evidentes à obra, não há nenhuma remissão directa para esta, nem é certo que Rodrigues Lobo com ela tenha contactado. Cf. LOBO, op. cit. (edição de José Adriano de Carvalho). 38 JEANNERET, Michel, A Feast of Words, Banquets and Table Talk in the Renaissance, Polity Press, Cambridge, 1991, p. 42. 39 LOBO, op. cit. (edição de José Adriano de Carvalho), p. 8. 40 Cf. Idem, p. 14. 41 Ibidem. 42 Embora não seja aqui necessário discorrer acerca da imitatio, remetemos para a obra de Michel Jeanneret, cuja conclusão olha para a imitatio como um dos caracteres fundamentais da literatura renascentista, na sua tensão entre imitatio e mimesis. Cf. JEANNERET, Michel, A Feast of Words, Banquets and Table Talk in the Renaissance, Polity Press, Cambridge, 1991. 43 LOBO, op. cit. (edição de José Adriano de Carvalho), p. 10. 44 LOBO, Francisco Rodrigues, Corte na Aldeia e Noites de Inverno, Editorial Verbo, Lisboa, 1972, p. 7. 37

9

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

político45 . O que nesse espaço encontramos é, acima de tudo, “uma conversação de amigos bem acostumados”46 reunidos, por motivos diversos, à volta de uma mesa/espaço/corte comum. O local é uma aldeia “Perto da Cidade principal da Lusitânia (…) sempre o sítio escolhido, para devido da Corte e voluntário desterro dela”47. O espaço da aldeia é identificado com um locus amoenus, abrigo contra esses “gastos excessivos” que Rodrigues Lobo refere. É o espaço para que acorrem, por diferentes razões, os intervenientes e que servirá de “fundo paisagístico do quadro dialógico”48. Alguns autores tentaram identificar esta localidade com Sintra49 pela referência à proximidade da “Cidade principal da Lusitânia” e do mar mas sem mais que o indique. Independentemente da sua localização “real”, será sempre no recolhimento da casa, em que a conversa aquece, agasalhando das noites de inverno, que os diálogos terão lugar. Quanto às personagens, nenhuma é identificada pelo seu nome completo e todas representam categorias/tipos sociais50 . Entre estas encontramos Leonardo, senhor da casa, “Letrado que ali tinha um casal e que já tivera honrados cargos de governo da justiça na Cidade”; Dr. Lívio, “Doutor na sua profissão e lido nas histórias da humanidade”; D. Júlio, “um fidalgo mancebo, inclinado ao exercício da caça e muito afeiçoado às coisas da pátria”; Píndaro, “um estudante de bom engenho que, entre os seus estudos” se empregava algumas vezes nos da poesia” e Solino, “um velho não muito rico, que tinha servido a um dos Grandes da Corte (…) homem de boa criação e, além de bem entendido, notavelmente engraçado no que dizia, e muito natural de uma murmuração que ficasse entre o couro e a carne, sem dar ferida penetrante”51. A estes juntam-se depois Feliciano, o Prior, representante do mundo eclesiástico, e Alberto, voz dos militares. Composto assim, encontramo-nos perante um grupo heterogéneo, comprovando que, “não vos escandalizeis, que tudo há nos homens e nas cartas”52. São estas diferentes vozes que marcam cada um dos diálogos. Entre os temas abordados encontramos a discussão entre histórias inventadas e histórias verdadeiras, as regras, finalidades e formas de escrever cartas, os recados, embaixadas e visitas, os

45

LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 7. Ibidem 47 Idem, p. 9 48 LOBO, op. cit. (edição de José Adriano de Carvalho), p. 54. 49 A este respeito devemos referir, sendo que a dúvida é sempre o tom escolhido, Ricardo Jorge, que pergunta “seria Cintra?” (cf. JORGE, op. cit., p. 325), ou ainda Afonso Lopes Vieira, Diogo Ramada Curto e José Adriano de Carvalho (cf. LOBO, op. cit., [edição de José Adriano de Carvalho], p. 54). 50 SCHNERR, Walter J., “Two Courtiers: Castiglione and Rodrigues Lobo” in Comparative Literature, vol. 13, nº 2, Duke University Press, Durham, 1961 (artigo consultado online, pela última vez a 01 de Junho de 2015, em http:// www.jstor.org/stable/1768575) , p. 143. 51 LOBO, op. cit. (edição de José Adriano de Carvalho), pp. 9-10. 52 LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 24. 46

10

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

encarecimentos ou o debate entre a diferença entre amor e cobiça (que remete para O Banquete, de Platão), ou entre o ouro e o interesse. Discutem ainda a prática e disposição das palavras, os contos e ditos graciosos, as liberalidade e a cortesia, atentando nas “criações” pelas quais um homem pode ascender a cortesão (Corte, Milícia e Universidades). Assuntos independentes mas que “com uma conotação tão estreia entre si que os cortesãos das suas páginas passam de um assunto ou ao outro com a mesma naturalidade e facilidade com que vão da sua aldeia à cidade”53. Ricardo Jorge afirma que nas páginas de Corte na Aldeia “há de ali forragear quem venha de futuro a sondar a história da vida privada e social da nação portuguesa”54. São passos nesse sentido os que tentaremos dar nas linhas que se seguem. Será em duas das referidas dimensões que iremos atentar de seguida: das palavras, por um lado, e da cortesia, por outro. Um terceiro tópico que escolhemos analisar é o da inserção desta obra naquilo a que podemos chamar literatura lobbysta.

Literatura autonomista? Lisboa, Capital do Império? Será a Corte na Aldeia uma obra que, nalgum dos seus aspectos, se insere numa literatura lobbysta do século XVII? Inscrever-se-á numa “expressão da resistência contra a absorção castelhana”55 ou, pelo menos, numa valorização, no âmbito da Monarquia Dual, de aspectos nacionais? No Portugal dos Habsburgos, várias são as obras que apelam a uma mudança da corte régia para território português, escolhendo para capital Lisboa. São estas aquelas que enquadramos nessa ideia, algo livre, de literatura lobbysta. Entre elas destacam-se as obras de Luís Mendes de Vasconcelos, Do Sítio de Lisboa, publicada em 1608, o Livro das Grandezas de Lisboa, de Nicolau de Oliveira, imprenso em 1620, ou os Discursos Vários Políticos de Manuel Severim de Faria, de 1624. Atentemos neste último que, na linha de Luís Mendes de Vasconcelos, insiste abertamente na transferência da capital para Lisboa. Manuel Severim de Faria (c. 1583-1655), nestes Discursos Vários Políticos (colectânea de textos aparentemente díspares que inclui as pioneiras biografias de 53

LOBO, op. cit. (edição de José Adriano de Carvalho), p. 9. JORGE, op. cit., p. 307. 55 ÓSCAR; SARAIVA, op. cit., p. 409. 54

11

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

João de Barros, Camões ou Diogo Couto mas cujo o fio condutor é a preocupação com uma cultura autónoma) espelha uma atitude, comum, de aceitação da “inevitabilidade histórica da monarquia dual mas, por outro lado, um sentimento comum de resistência (…) na afirmação da (…) autonomia cultural”56. Numa espécie de, segundo alguns autores, nacionalismo aplicado57 às especificidade culturais, Manuel Severim de Faria centra-se na defesa do que mais poderia favorecer Portugal: a transferência da corte para Lisboa. Advoga essa mudança pela proximidade do mar que permitiria comunicar com todos os territórios dessa enorme monarquia, “mais perto lhe fica qualquer porto do Oceano que não Madrid, metido no coração da Espanha, onde os requerentes vão com grandes incómodos”58, pelo sítio ter “todas estas qualidades que se acham em Lisboa”59 e só “falta[r] assistir sua Majestade nela”60 , deixando para trás o “sertão”61. Este exemplo de Manuel Severim de Faria, secundado pelos já referidos Luís Mendes de Vasconcelos e Nicolau de Oliveira, serve para referir um tipo de literatura autonomista, voz pela capital em Lisboa (sendo que noutra fase se pensara também em Évora), de que a Corte na Aldeia se aproxima, não partilhando, porém, todas as características. Devemos citar uma passagem da obra em que, surgindo como exemplo de carta dado pelo Doutor Lívio, Rodrigues Lobo aborda a condição em que se encontra Lisboa - crítica velada a um abandono da cidade? - deixando antever uma decadência que, nas palavras de Severim de Faria se evitaria com a presença do rei: “Uma carta (acudiu o Doutor) me escreveu os dias atrás um amigo, de novas de Lisboa (…) e dizia: ‘Esta cidade está abastada mas descontente; o mar, cheio de corsários; os portos, de receios; o Paço, de requerentes, e eles, de queixumes; para os validos tudo é pouco; aos desamparados não cabe nada; do remédio de tantos males não há boas novas; e as minhas são que entre todos eles me falta a vossa companhia.”62

Se alguns autores chegam a defender uma “funda intenção nacionalista” que faz com que possamos incluir a obra de Rodrigues Lobo na “bibliografia da Restauração”63, outros apontam a 56

FARIA, Manuel Severim de, Discursos Vários Políticos, (introd., actualização e notas de VIEIRA, Maria Leonor Soares Albergaria), Imprensa Nacional Casa da Moeda, s/l., 1999, p. XLII. 57 Cf. Ibidem. 58 Idem, p. 13. 59 Idem, p. 18. 60 Idem, p. 25. 61 Idem, p. 10. 62 LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), pp. 46-47. 63 LOBO, op. cit., (edição de Afonso Lopes Vieira), p. XIII. 12

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

obra como um “texto de sentido autonomista, pela ‘saudade’ com que invoca o velho Portugal”64. É, pensamos, esta a dimensão em que mais se aproxima dos textos acima referidos. Ou seja, não há na Corte na Aldeia uma referência clara ou defesa explícita do lugar de Lisboa como local para a cabeça da monarquia, divergindo de obras que o fazem tão abertamente como o Discurso Primeiro de Manuel Severim de Faria. Porém, no glorificar um passado áulico português, remetendo para os “riscos e sombras que ficaram dos cortesãos antigos”65, podemos ler a saudade de um Portugal passado. De alguma forma, este “acentuar a imagem dourada do passado constituía um estímulo à confiança no presente e futuro de Portugal” e é desta forma que podemos integrar a obra na “literatura autonomista ou de resistência”, uma resistência velada e de autonomia através da distinção pela valorização de caracteres culturais próprios. De que forma defende Lereno esse Portugal passado, projectado num futuro circulando em torno dessa “fugaz corte”66 ressuscitada em Évora por D. Duarte antes de 1619? Estamos em crer que se não o faz através de um discurso declaradamente autonomista, fá-lo com recurso a duas dimensões essenciais: a língua e o cortesão portugueses.

Rodrigues Lobo, “jardineiro da língua portuguesa”67 Seguindo um “gosto aristocrático de reflexão sobre a língua”68 , inscrito num processo mais amplo de dignificação e valorização das línguas nacionais, numa tradição que conta com nomes como João de Barros ou Fernão de Oliveira, Francisco Rodrigues Lobo dedica uma longa e detalhada atenção à questão da Língua Portuguesa. Neste gesto afirma uma diferenciação perante o castelhano, perante o outro, atitude que pode ser lida como de resistência à sua realidade contextual. Simultaneamente, realçando as suas singularidades, no Diálogo IX (Da prática e disposição das palavras), Rodrigues Lobo, pela voz de Solino, apela para a descoberta de uma retórica nova para a Língua Portuguesa: uma adaptação das práticas cortesãs aos princípios basilares da Retórica,

64

SERRÃO, op. cit., p. 427. LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 7. 66 LOBO, op. cit. (edição de José Adriano de Carvalho), p. 41. 67 MELO, Francisco Manuel de, Hospital das Letras apud LOBO, Francisco Rodrigues, Corte na Aldea e Noites de Inverno, (Prefácio e notas de Afonso Lopes Vieira), Seara Nova, 3ª edição, Lisboa, 1972, p. XXIII. 68 CURTO, Diogo Ramada, “Língua e Memória” in MATTOSO, José (dir.), História de Portugal, vol. 3: No Alvorecer da Modernidade (coord. MAGALHÃES, Joaquim Romero), Editorial Estampa, Lisboa, 1993, p. 358. 65

13

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

agora iluminada por laivos de Barroco, “idêntica tentativa à que fora ciceroniamente levada a cabo por Castiglione”69. Não cabe aqui analisarmos detalhadamente esta questão, embora o projecto de construção de uma nova retórica constitua um prenúncio de um novo tempo, deixando para trás algumas regras, sublinhando, também neste aspecto central, o quanto esta obra se situa numa fronteira entre tempos. Lereno, limando a “mofina deusa das escolas (…) sacode a tirania das suas leis despóticas que sufocam a verdadeira arte de escrever”70 . De forma menos dramática, diríamos que Lobo, na procura de criar essa retórica nova - aplicada à vida de cada um dos personagens e, logo, à escrita da obra - se afasta de alguns de alguns aspectos da escrita tradicional do século XVII, inovando e sendo por isso tão árdua a sua classificação em termos de corrente literária71. A língua é assumida como “pedra angular das práticas sociais”72 e é também a sua centralidade na sociabilização, no próprio gesto de limá-la para a cortesia, que importa destacar. Concretizando: desde a abertura da obra que Lereno remete para a importância da Língua. Na Dedicatória a D. Duarte apelida-o de “protector da língua e nação Portuguesa”73. No Diálogo I Argumento de toda a obra, D. Júlio diz que: “os Portugueses são homens de ruim língua, e que também o mostra em dizerem mal da sua que, assim na suavidade da pronunciação como na gravidade e composição das palavras, é língua excelente” 74.

Entre as características que fazem da Língua única, o Doutor Lívio afirma que: “para falar é engraçada com um todo senhoril; para cantar é suave com um certo sentimento que favorece a música (…) tem de todas as línguas o melhor: a pronunciação da Latina, a origem da Grega, a familiaridade da Castelhana, a brandura da Francesa, a elegância da Italiana”75 .

Segundo o mesmo Doutor, retomando uma afirmação recorrente, há apenas um aspecto negativo a mencionar: “é que pelo pouco que lhe querem os seus naturais, a trazem mais remendada que capa de 69

LOBO, op. cit. (edição de José Adriano de Carvalho), p. 182. JORGE, op. cit., p. 335. 71 Sobre este assunto cf. “Introdução” in REIS, Carlos (dir.), História Crítica da Literatura Portuguesa, CARVALHO, José Adriano de, PIRES, Maria Lucília Gonçalves, Volume III - Maneirismo e Barroco, Editorial Verbo, Lisboa-São Paulo, 2001, pp. 13-23. 72 FONSECA, Joaquim, O discurso de Corte na Aldeia de Rodrigues Lobo : o Diálogo I, in Revista da Faculdade de Letras do Porto, Línguas e Literaturas, XIII, Porto, 1996, pp. 87-145 - (artigo consultado online, pela última vez a 20 de Maio de 2015, http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/2728.pdf), p. 136. 73 LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 7. 74 Idem, p. 20. 75 LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 20. 70

14

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

pedinte”76.

Nos Diálogos II (Da política e estilo das cartas missivas) e III (Da maneira de escrever e a diferença das cartas missivas) o português tem, também, um papel fundamental. Na centralidade dada às cartas, logo, à ausência, à distância, não poderemos também pensar que tal importância se relacione com a ideia da ausência da corte e a necessidade de dominar a comunicação escrita e os seus trâmites específicos? Mesmo sendo certo que a comunicação escrita e epistolar é uma ferramenta fundamental dessa grande República das Letras do Humanismo, tendo em conta, o contexto específico em que esta obra é produzia, não estará ligada à realidade concreta da ausência? Quer nos parecer que sim. A importância dada à escolha das palavras não se prende apenas com o fazê-lo da forma certa para ser cortês mas também na importância dada à moderação, para evitar que, como afirma D. Júlio, as: “muitas muito mal escritas, cujos erros, a meu ver, nascem de os homens se cansarem muito em quererem parecer singulares”77.

Porque, numa lógica que é sempre de simplificação para uma utilização correcta da língua, diz-nos Leonardo que: “o falar próprio é com palavras naturais e menos figuras da retórica para ornamento delas, e não usar dos tropos de alegorias, metáforas, translações, antonomásias, antífrases, ironias, enigmas e outras muitas”

No Diálogo IX (Da prática e disposição das palavras), centra-se a atenção nessa retórica nova, começando com o enunciar dos “vícios da língua Portuguesa”: “Falar vulgarmente com propriedade/Fugir da prolixidade/Não confundir razões com brevidade./Não enfeitar com brevidade as palavras/Não descuidar com a confiança”78

Preceitos de uma “retórica abreviada”79 que denotam um cuidado na formação do cortesão e com a Língua Portuguesa. Nessa simplificação, Lereno sublinha: “Falar vulgarmente (respondeu Leonardo) é qual os melhores falem e todos entendam: sem vocábulos estrangeiros, nem esquisitos, nem inovados, nem antigos e desusados, senão comuns e correntes sem respeitar origens, derivações, nem etimologias; que a linguagem mais pende do uso que da razão e por isso se chama língua materna, porque nas mulheres,

76

Idem, p. 21. LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 42. 78 Idem, p. 117. 79 Ibidem. 77

15

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

que menos saem da pátria, se corrompe menos o uso do falar comum.”80

Continuando este apontamento sobre a protecção da língua, Rodrigues Lobo pela voz de Solino, afirma: “sendo a nossa língua de muito bom metal, lhe misturam tanta liga que perde muito de seus quilates”81

E o mesmo Solino termina, rematando: “É certo que tenho raiva, sabendo que a língua Portuguesa não é manca, nem aleijada, ver que a façam andar em muletas latinas os que a haviam de tratar melhor.”82

Será verdade que o “tom patriótico [de Rodrigues Lobo] vibra principalmente na apologia insistente, quase religiosa, da língua portuguesa, para a qual o livro contém numerosos preceitos estilísticos”83? É a própria obra e a sua cuidada redacção que se constituem como “paradigma de prosa académica”, erigindo a Língua como baluarte de uma distinção cultural. E essa mesma Língua Portuguesa aparece como pilar fundamental da formação do cortesão, aspecto que de seguida destacamos.

Corte na Aldeia - um manual para o cortesão do século XVII? Desde as páginas iniciais que, de imediato, a questão é introduzida. Logo no Diálogo I (Argumento de toda a obra), Solino repreende Píncaro por “serdes vós tão miúdo nas cortesias”, chamando a atenção para que “emendai-vos nas cerimónias da mesa e adverti o vosso moço que não acompanhe com os olhos os bocados do hóspede até ao estômago”84. Não é nosso propósito analisar detalhadamente cada um dos preceitos que Rodrigues Lobo defende, mas a centralidade conferida à mesa alerta para uma das características do livro: o subtil introduzir de maneiras, formas de estar, pequenos conselhos práticos para a formação de um tipo específico de cortesão. O encontro à mesa desempenha um papel fundamental, educador, lugar que permite a conversa e a comida, arquétipo comum à literatura e ao modo de viver, cultivado de uma forma distinta desde o Renascimento, servindo como metáfora da sociedade e lugar em que algumas das 80

LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 117. Idem, p. 119. 82 Ibidem. 83 LOPES; SARAIVA, op. cit., p. 408. 84 LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 19. 81

16

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

suas principais características podem ser antevistas, como sublinhou Norbert Elias85 . No caso aqui em análise, o banquete em que a “conversação dobra o gosto das iguarias”86 é também local para a introdução do tema das cortesias. No primeiro debate da obra, acerca dos tipos de livros, Solino foca os livros de cavalarias, importantes para, entre outras coisas: “saber estilo de Corte para as mesuras, agasalhados e cortesias, conforme as pessoas introduzidas”87.

Num momento seguinte, ao abordar o tema do Diálogo II (Da política e estilo das cartas missivas) fá-lo no sentido de explicar o que tem de ter uma carta “para ser cortesã e bem escrita”88 , como nos diz D. Júlio, para que possa “ter: cortesia comum, regras direitas, letras juntas, razões apartadas, papel limpo, dobras iguais, chancela subtil e selo claro; e com estas condições será carta de homem de Corte”89 .

Nesse mesmo diálogo, Rodrigues Lobo de alguma forma diverge - ou converge, se aceitarmos que o propósito da obra é, afinal, esse - acerca de, como nas cartas, por vezes o exagero, vaidade ou exibicionismo, leva a que dos usos da roupa e da moda se passe de coisas que “sendo inventadas pela necessidade, se passaram à galantaria”90. Tanto num universo como noutro, aquilo para que Rodrigues Lobo pretende chamar a atenção é, na voz de Leonardo: “tanto mais de estimar é a moderação e bom termo de não sair daquele limite da cortesia comum”91. Moderação: palavra chave, virtude desejada, em tudo o que Rodrigues Lobo expõe sobre as cortesias. Neste sentido, diz -nos também Leonardo que “a carta e a mulher muito enfeitadas, em certo modo eram desonestas”92. Mas é no Diálogo XII (Das Cortesias), aquele em que Rodrigues Lobo dedica mais atenção a esta questão porque, dizem os amigos,“em tal Aldeia se podiam ensaiar os que quisessem aparecer na Corte apercebidos”93 . Como D. Júlio afirma “diz o rifão antigo que cortesia e falar bem, custa pouco e vale 85

Cf. ELIAS, Norbert, A Sociedade de Corte, Imprensa Universitária, Editorial Estampa, Lisboa, 1987; ELIAS, Norbert, O Processo Civilizacional, (tradução de Lídia Campos Rodrigues), Dom Quixote, 2a edição, Lisboa, 2006. 86 LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 10. 87 Idem, p. 12. 88 Idem, p. 24. 89 Idem, p. 26. 90 Idem, p. 29. 91 Idem, p. 30. 92 Idem, p. 39. 93 Idem, p. 152. 17

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

muito”94 . Solino relembra que “posto que a cortesia tem muito grande lugar entre os Portugueses, porque no comedimento fazem vantagem a muitas outras nações, no falar bem, segundo o sentido desse rifão, acham eles a dificuldade”, regressando assim ao tema da língua. Desta maneira, o propósito central do capítulo é “falar em cortesias, assim estrangeiras como naturais”95. A presença, nesta fase da obra, do Prior servirá esse propósito, visto ser “quem está melhor que a todos o cargo de nos fazer cortesãos por doutrina”96 . Começando por uma etimologia do termo cortesia, o Prior afirma que tem “significação mui larga”97, ligada ao conceito primeiro de urbanidade. É “o comedimento e bom modo” dos que vivem na referida urbe, “em diferença dos aldeãos” e, mais que isso, “cortesia é dos que seguem a Corte, em diferença de uns e outros”. O Prior divide três espécies de cortesias: cerimónias, cortesias e bom ensino. É neste último “que é a inclinação, reverência e comedimento que se costuma entre os iguais”98 que o Prior e os restantes atentam, embora as três dimensões sejam dificilmente dissociáveis mas em virtude das especificidades do grupo ali reunido (e da ausência de uma imagem de Corte a que remeter os ensinamentos) centram-se nesse aspecto mais informal. Bom ensino é, também, “tratamento de homens bem doutrinados, ou por experiência da Corte e da Cidade, ou por ensino de outros que nela viveram” - resumindo o Prior muito do que nos interessa apontar na obra - desde o carácter civilizador que é imputado à Corte e à Cidade, até à nostalgia desta última. Continuando o seu nomear e explicitar a cortesia, o Prior identifica quatro momentos em que se exercita: o encontro, a visita, a mesa e a conversação99. Ao referir a questão das precedências, problemática presente nos diversos estágios da formação de uma sociedade de corte em Portugal, fazem-no com exemplos de um tempo passado, o da “boa idade” em que o rei de Castela com deferência tratava o seu homólogo português100 . Não será a cortesia entendida aqui, também, como uma forma, desejada por já ter sido, de diferenciação entre reinos? Logo depois desta referência, Rodrigues Lobo aborda a ideia de “vencer pela cortesia”, referindo uma serie de histórias em que a cortesia vence - seria possível a criação de um melhor cortesão português? Talvez este seja um dos propósitos do projecto de Lereno. 94

LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 153. Ibidem. 96 Idem, p. 154. 97 Ibidem. 98 Ibidem. 99 Qualquer um dos quais mereceria uma análise mais detalha que, infelizmente, não podemos aqui realizar. 100 Cf. Idem, p. 156. 95

18

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

Todas as regras da mesa, terceira escola da cortesia, inserem-se numa tradição literária mais vasta e cuja importância e difusão já referimos. Estas regras, são dirigidas, parece-nos, tanto a contextos mais formais, como a encontros familiares. Este aspecto leva-nos a questionar: para quem se dirigia esta obra? Quem devia retirar os ensinamentos? Observaremos um cuidado para que vários leitores possam aprender com a obra? Depois de apresentar as regras da mesa, Lereno apresenta o reverso desse formulário. Solino discorre acerca da “regra mui diferente por que me rejo”101, distinta porque “a conversação obriga aos costumes e eu estou há tantos anos pelos desta Aldeia”102 . Diz-nos ainda que na Aldeia a regra que se aplica é “melhorar o hóspede no assento, e a mim no mantimento; dar-lhe nas cortesias o que a mim nas iguarias; ele o primeiro no prato e a mim o melhor bocado”103. Se assim é no que toca à mesa, “quanto em todas as mais entradas e saídas, como são o lavar as mãos, mesuras e prolfaças, liberal como nas eiras”104 Este paralelismo antagónico com o lugar da Aldeia e os preceitos que nela se cumprem coloca várias questões: não é apenas um movimento de diferenciar maneiras; é, estamos em crer, o reafirmar uma distinção clara entre aldeia e cidade, que vai desde os espaços aos usos; e, arriscamos mesmo, é voltar a sublinhar o facto desta corte ser na Aldeia, estando assim dispensada (aos olhos de Solino, pelo menos) dos, já criticados, exageros da cortesia. No final da intervenção do Prior, o Dr. Lívio acorre dizendo “tendes tratado a matéria com muita curiosidade; e posto que fica assaz autorizada com razões tão verdadeiras, costumes tão aprovados, e, o que mais é, com experiência vossa, quero eu acrescentar o que li”105. Não podermos aqui ler a hipótese, mecanismo literário encontrado por Rodrigues Lobo para poder acrescentar aspectos da cortesia que, para além dos anteriormente enumerados (provavelmente mais interiorizados) tenha ido beber a outras fontes? Estamos em crer que sim. No Diálogo XII (Do fruto da liberalidade e da cortesia) continua o debate acerca do que vence: se a liberalidade se a cortesia. No Diálogo XIV (Da criação da Corte) e nas seguintes partes da obra, os amigos abordarão “a diferença de criação da Corte, da Milícia e das Universidades, que são os três exercícios nobres em que os homens se ocupam, apuram e engrandecem”106. Solino sublinha, desde logo, que,

101

LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 158. Ibidem. 103 Ibidem. 104 Ibidem p. 158. 105 Idem, p. 160. 106 LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 177. 102

19

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

“se o ensino da Corte se houver de pintar pela têmpera velha, e tratar sòmente do cantochão dos seus estilos e gentilezas, ninguém dará melhor conta disto que o senhor Leonardo, porque se achou no Paço ainda em tempo que éramos Troianos e viu luzir o que agora está cheio de ferrugem”107.

E afirma Leonardo, “O mesmo receio tenho eu (tornou Leonardo), porém não são os males e bens da Corte tão pouco antigos com vos parece, que já no meu tempo havia os mesmos queixumes de agora; porém, há tantos que dizer dela que de necessidade hão-de passar muitos pela malha a quem vive há muitos anos neste desvio, e que no remanso do descuido da vida afogou todas as lembranças dessa”108 . Desta forma, é sempre a imagem dessa Corte passada para a qual o autor remete, considerando este um “desvio”.

Após este interlúdio, Rodrigues Lobo atenta nos quatro exercícios da Corte “que para todas as coisas civis, fazem um homem político, cortês e agradável”109 - detalhando o trato dos príncipes, o serviço das damas, a comunicação dos estrangeiros e o “sofrimento e diligência dos pretendentes”110. Refere ainda os embaixadores estrangeiros - de quem “se colhe grande doutrina para conversação civil e perfeição do homem bem nascido”111 e esse rifão antigo que diz que “cada um dança segundo os amigos que tem na sala”112. Na definição de lugares e de relações, no ilustrar de regras e preceitos, Rodrigues Lobo desenha de vários tons uma corte e, no final desse discorrer: “todos se despediram com os olhos naquela Corte pintada, que ainda com as sombras da verdadeira enganava os sentidos”113 .

Esta série de diálogos, que compõe a Corte na Aldeia encerra, exactamente, com uma menção às cortesias: “Dizendo isto se levantou, e os mais o vieram acompanhando, feita primeiro cortesia ao senhor da casa e aos hóspedes que ficaram nela”114.

Com todas estas referências, o que aqui pretendemos foi ilustrar como a Corte na Aldeia se aproxima de um manual de cortesania. É esta obra um manual para a formação de um outro 107

Idem, p. 178. Ibidem. 109 Ibidem. 110 Idem, p. 179. 111 Idem, p. 188. 112 LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo, p. 189. 113 Idem, p. 191. 114 Idem, p. 215. 108

20

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

cortesão português? Repetindo perguntas que já fizemos, para quem é esta obra? Quem quer esta obra formar? Sendo que nos encontramos sempre perante uma ideia de moderação, “propostas e nunca regras inalteráveis”115. Rodrigues Lobo, num acto que nos fala de alguma da sua modernidade, “(…) tanto rejeita os exageros - muitas vezes, puras cerimónias vãs que os amigos condenam sem apelo - como o emprego de usos linguísticos ou de costumes arcaicos que já não são compreensíveis ou que o são com dificuldade”116. Da leitura e análise da obra parece-nos legítimo afirmar que se trata, se não de um manual stricto sensu, pelo menos de uma aproximação a essa tradição literária, de uma colectânea de regras, conselhos, informações importantes para preparar todo o homem para o bom ensino, para a sua formação enquanto cortesão, objectivos educativos que encontram semelhanças, num movimento natural, com o Galateo117. Parece-nos certo que, tal como afirmam José Adriano de Carvalho e Maria Lucília Pires, a obra teve “um relevo notório na teorização, em Portugal, da arte do comportamento social (…) com o desenvolvimento e a proposta reflectida de uma série de normas de convivência”118 alicerçadas nessa tradição que vem de Cícero, Plutarco, caminhando pela Idade Média, reelaborada com Erasmo e conhecendo caracteres novos com Castiglione. O modelo de cortesão situa-se numa linha de fronteira entre um “formalismo convencional das atitudes artificiais e ensaiadas sobre a formação integral e intrínseca do indivíduo autónomo e socialmente activo que era o ideal da pedagogia humanista”119, evitando conflitos com a Inquisição, mas procurando inovar na procura de uma retórica nova, na criação de um outro cortesão. Mas, a pergunta impõe-se, se da aldeia se trata, e se a “idade de ouro” da corte portuguesa já foi, para que corte se dirige este cortesão? Para a corte em Madrid? Para a corte dos Bragança em Vila Viçosa? Na verdade, a ausência da corte régia, pode ter contribuído para, na sua imitação, Rodrigues Lobo ter jogado com uma “distância extremamente facilitadora e não anacrónica de, a seu modo, retomar os nobres ideais castiglionescos sem ter de apontar as imperfeições do cortesão”. José Adriano de Carvalho desafia: “(…) será ilegítimo propor que o ‘ensaio’ não se faria em função da corte de Madrid, onde,

115

REIS, op. cit, p. 124. Ibidem. 117 Idem, p. 123. 118 Idem, p. 122. 119 MENDES, António Rosa, “A vida cultural” in MATTOSO, José (dir.), História de Portugal, vol. 3: No Alvorecer da Modernidade (coord. MAGALHÃES, Joaquim Romero), Editorial Estampa, Lisboa, 1993, p. 418. 116

21

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

apesar de um certo apreço, a cortesia portuguesa era tantas vezes ridicularizada, mas em função de uma corte futura portuguesa?”120

É esta uma das ideias que retemos da obra. Alicerçado num passado glorioso, Rodrigues Lobo procurar formar um cortesão para uma outra corte portuguesa, para uma corte que não seja já a de Madrid, mas que acabe com as noites de Inverno então sentidas. Ideia corroborada pela leitura da obra e, desde logo, por fazer de D. Duarte de Bragança representante dessa futura corte, ao afirmar que, também nesta corte de Aldeia: “como não pode haver Corte sem Príncipe, que esta o não podia parecer sem que tivesse por si a V. Excelência”121.

Esta realidade da ausência da corte, altera, simultaneamente a quem se dirige e o que se dirige, daí a maior importância concedida ao bom ensino: “(…) a conversação (maneiras, palavras, gestos, etc.) ou, se preferir, a cortesia (…) não se põe em Corte na Aldeia em termos de superior/inferior, senhor/obediente, mas de ‘amizade’ (…) quer dizer, de uma certa igualdade que se baseia no ‘bom ensino’. Nas ‘boas maneiras’ não há, portanto, sinais de obediência, mas de deferência - e a obra está deles repleta”122

Indiciará isto a “nova originalidade das relações entre os portugueses”123 ? Cremos ser excessivo ou precoce assinalar assim o contributo da obra, mas há certamente um objectivo pedagógico que pretende, alicerçando-se num passado glorioso, a criação de um outro futuro, em que outro será também o cortesão que aí desempenhará o seu papel.

Notas finais Corte na Aldeia e Noites de Inverno apresenta-se como uma obra cuja modernidade, para além de tantos outros aspectos, consiste em ser “ponto de referência para o estudo da formação do estilo barroco na literatura portuguesa”124 . É uma obra que atenta numa das figuras centrais do Barroco, a retórica, ainda que “sob a autoridade inquestionada de Aristóteles”125 . Corte na Aldeia é, também, lugar de fronteiras entre tempos, entre influências quinhentistas e um lugar singular no século XVII. Lereno “renuncia à imitação do gongorismo, voltando às fontes

120

LOBO, op. cit. (edição de José Adriano de Carvalho), p. 41. LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 8. 122 REIS, op. cit, p. 124. 123 Ibidem. 124 LOPES; SARAIVA, op. cit., p. 408. 125 REIS, op. cit, p. 20. 121

22

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

de inspiração camonianas (…) abandona os cânones renascentistas e cede à tentação barroco”126 , situando-se assim num limbo entre mundos distintos mas, afinal, contínuos. Obra redigida num período em que se acentua a “consciência da literatura como valor nacional”127, para isso concorrem, como vimos, grande parte das suas características. E se é sempre difícil definir periodizações para tendências estéticas, rupturas e evoluções, é também difícil categorizar obras que se encontram em cruzamentos, como é o caso da obra de Rodrigues Lobo. Entre a inovação e a tradição encontramos a idiossincrasia de um texto. Independentemente da corte portuguesa de Quinhentos não ter constituído um “arquétipo para os demais espaços de sociabilidade”128 após a sua dissolução, a construção da memória desse tempo, nas palavras de Rodrigues Lobo, assume uma função de esperança num futuro que recupere uma corte autónoma, composta de novos cortesãos. Marcada pela ausência, da corte e do rei, indica também a importância crescente da corte quer como “espaço de sociabilidade, quer de uma concomitante vontade de privatização”129. Produção que “não teve seguidores”130, manual de cortesania, como alguns lhe chamam131, a cortesia é, como tão bem apelida José Adriano de Carvalho, a “matéria nuclear da obra”. Texto que, certamente, incluímos num “corpus - não muito vasto e um tanto heterogéneo - de escritos portugueses sobre a corte”132 , Rodrigues Lobo desenha um Portugal da época em que “quando nomeamos o Poeta, se entenderá Luís de Camões; o Historiador, João de Barros; o Duque, o de Bragança; o Marquês, o de Vila Real; a Cidade, a de Lisboa; a Coutada, a de Almeirim”, sendo que nesta passagem se condensam quase todas as características do que temos vindo a nomear: uma obra da poesia e da Língua Portuguesa, da cidade e de Lisboa e, certamente, da Corte, quer esta seja a de Vila Viçosa ou essa outra, futura. Não esqueçamos nunca que, como afirma Leonardo, “ficava o mundo às escuras sem a luz da lição escrita”133.
 126

BELCHIOR, Maria de Lourdes, “A trajectória poética de Rodrigues Lobo” in REIS, Carlos (dir.), História Crítica da Literatura Portuguesa, CARVALHO, José Adriano de, PIRES, Maria Lucília Gonçalves, Volume III - Maneirismo e Barroco, Editorial Verbo, Lisboa-São Paulo, 2001, p. 96. 127 REIS, op. cit., p. 20. 128 CARDIM, Pedro, ''A corte régia e o alargamento da esfera privada'', in Nuno Gonçalo Monteiro (Coord.), História da Vida Privada em Portugal – A Idade Moderna, Vol. II, Círculo de Leitores, Lisboa, 2011, p. 162. 129 CARDIM, Pedro, “As ‘cortesias’ no mundo palaciano português'', in Nuno Gonçalo Monteiro (Coord.), História da Vida Privada em Portugal – A Idade Moderna, Vol. II, Círculo de Leitores, Lisboa, 2011, p. 164. 130 REIS, op. cit., p. 122. 131 MENDES, António Rosa, “A vida cultural” in MATTOSO, José (dir.), História de Portugal, vol. 3: No Alvorecer da Modernidade (coord. MAGALHÃES, Joaquim Romero), Editorial Estampa, Lisboa, 1993, p. 416. 132 CARDIM, Pedro, “As ‘cortesias’ no mundo palaciano português’’, p. 165. 133 LOBO, op. cit. (edição da Editorial Verbo), p. 20. 23

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

Fontes e Bibliografia (Para além da fonte original, impressa em 1619, incluímos a edição de José Adriano de Carvalho, fundamental para o estudo da obra, curtas referências da edição de Afonso Lopes Vieira, Agostinho da Silva e a da Editorial Verbo, usada para a nossa leitura anotada da obra) Fontes: LOBO, Francisco Rodrigues, Corte na Aldea e Noites de Inverno, Impressor Pedro Craesbeeck, Lisboa, 1619 ______________________, Corte na Aldeia e Noites de Inverno, Editorial Verbo, Lisboa, 1972 ______________________, Corte na Aldea e Noites de Inverno, (prefácio e notas de Afonso Lopes Vieira), Seara Nova, 3ª edição, Lisboa, 1972 ______________________, Corte na Aldeia (prefácio e notas de Agostinho da Silva), Seara Nova, Lisboa, 1966 ______________________, Corte na Aldeia (introdução, notas e fixação do texto de José Adriano de Carvalho), Editorial Presença, Lisboa, 1992 Bibliografia: BELCHIOR, Maria de Lourdes, “A trajectória poética de Rodrigues Lobo” in REIS, Carlos (dir.), História Crítica da Literatura Portuguesa, CARVALHO, José Adriano de, PIRES, Maria Lucília Gonçalves, Volume III - Maneirismo e Barroco, Editorial Verbo, Lisboa-São Paulo, 2001, pp. 96-98 BURKE, Peter, La Fortuna del Cortegiano, Baldassare Castiglione e i percorsi del Rinascimento europeu, Roma, Donzelli Editore, 1998 CARDIM, Pedro, ''A corte régia e o alargamento da esfera privada'', in Nuno Gonçalo Monteiro (Coord.), História da Vida Privada em Portugal – A Idade Moderna, Vol. II, Círculo de Leitores, Lisboa, 2011, pp. 160-202 ______________, ‘'As ‘cortesias’ no mundo palaciano português'', in Nuno Gonçalo Monteiro (Coord.), História da Vida Privada em Portugal – A Idade Moderna, Vol. II, Círculo de Leitores, Lisboa, 2011, pp. 164-168 CARVALHO, José Adriano de Freitas, “A retórica da cortesia : Corte na Aldeia (1619) de Francisco Rodrigues Lobo, fonte da Epítome de la eloquencia española (1692) de Francisco José Artiga” in 24

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

Península - Revista de Estudos Ibéricos, nº 0, 2003, pp. 423-441 – (artigo consultado online, pela última vez a 20 de Maio de 2015, em http://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/8689) _______________________________, Francisco Rodrigues Lobo e Tomaso Garzoni, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1976 CURTO, Diogo Ramada, “Língua e Memória” in MATTOSO, José (dir.), História de Portugal, vol. 3: No Alvorecer da Modernidade (coord. MAGALHÃES, Joaquim Romero), Editorial Estampa, Lisboa, 1993, pp. 357-373 ELIAS, Norbert, O Processo Civilizacional, (tradução de Lídia Campos Rodrigues), Dom Quixote, 2ª edição, Lisboa, 2006 FARIA, Manuel Severim de, Discursos Vários Políticos, (introd., actualização e notas de VIEIRA, Maria Leonor Soares Albergaria), Imprensa Nacional Casa da Moeda, s/l., 1999 FERREIRA, Carlos Alberto, Francisco Rodrigues Lobo: Fontes inéditas para o estudo da sua vida e obra: Subsídios para a História da Literatura Portuguesa, Faculdade de Letras de Coimbra, 1943 FIADEIRO,

Paula,

Conversações fragmentárias de Corte na Aldeia e Noites de inverno, de

Francisco Rodrigues Lobo, s/e, s/l, s/d - (artigo consultado online, pela última vez a 20 de Maio de 2015, http://revistas.ua.pt/index.php/formabreve/article/view/275/243) FONSECA, Joaquim, O discurso de Corte na Aldeia de Rodrigues Lobo : o Diálogo I, in Revista da Faculdade de Letras do Porto, Línguas e Literaturas, XIII, Porto, 1996, pp. 87-145 - (artigo consultado online, pela última vez a 20 de Maio de 2015, http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/ 2728.pdf) JEANNERET, Michel, A Feast of Words, Banquets and Table Talk in the Renaissance, Polity Press, Cambridge, 1991 JORGE,

Ricardo,

Francisco Rodrigues Lobo: estudo biográfico e crítico,

Imprensa

da

Universidade de Coimbra, 1920 LOBO, Francisco Rodrigues, Poesias (selecção, prefácio e notas de Afonso Lopes Vieira), Livraria Sá da Costa - Editora, Lisboa, 1940 LOPES, Óscar, SARAIVA, A. J., História da Literatura Portuguesa, Porto Editora, 16ª edição, Porto, s/d MATTOSO, José (dir.), História de Portugal, vol. 3: No Alvorecer da Modernidade (coord. MAGALHÃES, Joaquim Romero), Editorial Estampa, Lisboa, 1993 25

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

MENDES, António Rosa, “A vida cultural” in MATTOSO, José (dir.), História de Portugal, vol. 3: No Alvorecer da Modernidade (coord. MAGALHÃES, Joaquim Romero), Editorial Estampa, Lisboa, 1993, pp. 375-422 MELO, Luís Abreu de, Avisos para o Paço, Officina Craesbeckiana, Lisboa, 1659 MATOS, Maria Vitalina Leal de, «A Corte na Aldeia entre o maneirismo e o barroco», in Românica – História da Literatura. Revista de Literatura do Departamento de Literaturas Românicas da Faculdade de Letras de Lisboa, Edições Cosmos, 1997, pp. 53-69 MONTEIRO, Nuno Gonçalo, Elites e Poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo, 2.a Ed., Imprensa de Ciências Sociais, Lisboa, 2007 MONTEIRO, Nuno Gonçalo, “Idade Moderna (Séculos XV-XVIII)” in RAMOS, Rui (Coord.), História de Portugal, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, pp. 197-435 POUSÃO-SMITH, Selma, “The Judaism of Francisco Rodrigues Lobo” in The Modern Language Review, vol. 78, nº 2, Modern Humanities Research Association, s/l, 1983 PRETO-RODAS,

Richard

A.,

Francisco Rodrigues Lobo : Dialogue and Courtly lore in

Renaissance Portugal, University of North Carolina Press, Chapel Hill, 1971 REIS, Carlos (dir.), História Crítica da Literatura Portuguesa, CARVALHO, José Adriano de, PIRES, Maria Lucília Gonçalves, Volume III - Maneirismo e Barroco, Editorial Verbo, Lisboa-São Paulo, 2001 SANTOS, Carla Machado dos, Imitação e Retórica em Corte na Aldeia de Francisco Rodrigues Lobo, Dissertação de Mestrado em Estudos Portugueses – Variante Estudos Literários FCSH-UNL, Lisboa, 2014 (consultada online em http://hdl.handle.net/10362/14458) SANTOS, Zulmira Coelho dos, “Racionalidade de corte e sensibilidade barroca: os Avisos para o paço de Luis Abreu de Melo” em Actas do I Congresso Internacional do Barroco, Porto, 1991, vol. II, pp. 381-401 (artigo consultado online, pela última vez a 30 de Maio de 2015, http:// hdl.handle.net/10216/21102) SCHNERR, Walter J., “Two Courtiers: Castiglione and Rodrigues Lobo” in Comparative Literature, vol. 13, nº 2, Duke University Press, Durham, 1961, pp. 138-153 (artigo consultado online, pela última vez a 01 de Junho de 2015, em http://www.jstor.org/stable/1768575) SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal, Vol. IV, O Governo dos Reis Espanhóis (1580-1640), Editorial Verbo, 2ª edição, s/l, 1990 26

Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa Mestrado em História – 1º Ano – André Filipe Neto Seminário Sistemas dos Saberes na Época Moderna

SOARES, Nair Nazaré Castro, “Retórica de corte no Primeiro Humanismo em Portugal” in Máthesis, Nº 20, p. 231-251, Viseu, 2011 (artigo consultado online, pela última vez a 23 de Maio de 2015, http://repositorio.ucp.pt/handle/10400.14/9168)

Fotografia de capa: Estátua de Francisco Rodrigues Lobo, da autoria de Joaquim Correia, e Paço ao fundo,

Praça

Rodrigues

Lobo,

Leiria;

Ricardo

Graça,

disponível

online

em

http://

preguicamagazine.com/2014/05/21/quem-e-francisco-rodrigues-lobo/

27

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.