Raúl Brandão

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Jorge Palinhos

Raul Brandão

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E

ra dia 28 de maio de 1900 e Raul Brandão e a sua mulher, Maria Angelina Brandão, estavam num pequeno caramanchão revestido de hera na sua casa da Cantareira, na Foz do Douro, não muito longe do mar. Se do sítio onde estavam baixassem os olhos

veriam o mar, que ambos tanto amavam, e os barcos de pescadores, com quem Brandão andara tantas vezes na juventude.

Mas, neste dia, os olhares de ambos estavam erguidos para o céu. Ten-

tando proteger os olhos tanto quanto podiam, esforçavam-se por distinguir o movimento dos astros que em breve causariam um eclipse total do sol. A sós, talvez de mãos dadas ou talvez não, mas ligados pelo invisível conforto físico que a ternura e a confiança podem criar entre dois seres humanos, viram, com esforço, a olho nu, o sol ser escondido aos poucos pelo abraço da lua, que em breve o tapou totalmente, durante breves segundos, permitindo apenas um fio de ouro em seu redor como última lembrança do astro-rei, antes de este iniciar o seu invencível renascimento. Enquanto os corpos celestes faziam o seu caminho, empurrados pelas misteriosas razões matemáticas e astronómicas, com total indiferença para com o impacto das suas movimentações, no resto da existência, cá em baixo, muito cá em baixo, perto de nós no espaço, mas já noutro tempo a que não nos é possível aceder, Brandão e a sua esposa deslumbravam-se com o mistério da luz e das trevas. E, em voz baixa, tomado pela comoção que tantas vezes o agitava intimamente, Raul Brandão murmurou: – Sente-se um abalo profundo, não é verdade? É o homem em frente de Deus… Há gestos, palavras, que revelam mais de nós que todas as obras de arte ou acontecimentos sociais. A nudez existencial que Brandão reconhecia no eclipse solar era a manifestação profunda da natureza do escritor nascido no Porto, que viveu toda a vida tomado por um sentimento de tragédia inevitável e incompreensível.

Essa tragédia ter-lhe-á surgido de forma clara muito cedo na vida, talvez

já mesmo na vila piscatória da Foz do Douro, hoje parte da cidade do Porto, na zona da Cantareira, onde nasceu a 12 de março de 1867. De seu nome completo Raul Germano Brandão, filho de José Germano Brandão e Laurentina Fer-

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reira de Almeida. O pai era pescador, o avô também o fora, tendo morrido tragado pelo mar. A sua família vivia da pesca, mas tinha algumas posses, sendo dona de barcos, empregadora de mão de obra, possuidora de alguma cultura, que a levava a reconhecer na escola uma forma de ascensão social e a ter para o jovem Raul esperanças de um futuro melhor.

O mar dota as comunidades que dele vivem com um peso tremendo de

fatalidade e resignação ao destino, tal é a ameaça caprichosa que lança sobre todos aqueles que procuram viver de lavrar aquilo que o mar esconde dentro de si. A Foz do Douro não escapava a essa fatalidade e, nessa vila Raul Brandão nasceu, criança loira de olhos azuis. Eram feições talvez suevas, recorrentes nas terras de entre o Douro e Minho.

Passou os primeiros dias de vida numa casa austera no cimo de um mor-

ro, no ponto onde se encontram a violência do Douro, o rio mais cruel de Portugal, e a fúria gelada do Atlântico. Contudo, os seus primeiros dias parecem ter sido felizes, ou pelo menos assim os retrata de forma persistente nos seus escritos. Alvo dos cuidados da mãe e da criada, Maria Emília, com a qual Brandão afirmou ter aprendido “coisas extraordinárias – a religião, no que ela tem de mais vivo – o veio que passa escondido de alma para alma do povo e a piedade pelos humildes. Vi Jesus. Vi Jesus menino...”.

Nas suas Memórias, lembraria também os seus companheiros de brinca-

deiras: o Nel, de camisola azul e olhos em perpétuo fogo de entusiasmo, que o escritor tantas vezes tornaria personagem nos seus livros, Manuel Barbeiro, perito nos mais engenhosos dispositivos para aprisionar aves, e mais alguns rapazes ferozes, “com marcas de pedradas no coiro cabeludo”. Em alegre bando, os rapazes procuravam o sentido do mundo, apoderando-se dele com as suas brincadeiras, com as suas armadilhas de pardais, com os seus jogos, corridas, histórias mirabolantes que fundiam verdade e sonho. Aí, na Cantareira, Brandão deu o primeiro passeio no mar, na lancha da família, conduzido pelos tripulantes de que mais tarde lembraria o nome: Bilé, Mandum, Manel Arrais. Talvez esta memória já revelasse o fascínio que a pobreza, o desespero, a tristeza, o sentido do absurdo da existência, sempre parecem ter produzido nele.

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Também aí contactou pela primeira vez com a vida desgraçada dos pescadores, seres nascidos da serenidade do mar, moldados pela vastidão e movimento perpétuo deste. Terá visto o desespero das suas mulheres, as viúvas do mar, que ficavam a rezar pelo regresso seguro e frutuoso dos maridos, e muitas vezes assistiam impotentes à luta inglória daqueles contra a fúria dos elementos ou as traiçoeiras correntes da embocadura do Douro, que durante décadas foi matadouro de homens e navios.

Estas seriam as imagens de infância de Brandão, às quais este voltaria

muitas vezes, nos seus livros, nas suas viagens, nas suas pesquisas sobre as vilas piscatórias portuguesas ou nas visitas às ilhas dos Açores e da Madeira.

Nesses primeiros anos, Brandão aprendeu a ler, a escrever e a contar

com a sua mestra, na casa das irmãs Militoas, numa rua acima da sua. Este ensino parece ter sido agradável ou, pelo menos, feliz, e permitiu a Brandão descobrir o que mais gostaria de fazer o resto da sua vida: ler. Hábito, afinal, já muito praticado pela família, onde a única felicidade do pai, conta Brandão, era a de recolher-se no quarto aos domingos para verter lágrimas comovidas sobre os folhetins de Camilo Castelo Branco, também o escritor português que Brandão mais amaria ao longo da vida.

O sucesso escolar de Brandão e as ambições sociais da família levaram-

-no, aos 10 anos, a prosseguir os estudos no Colégio de S. Carlos, na Rua Fernandes Tomás, no Porto, que distava cerca de 15 km da Foz do Douro, uma distância que se percorria em quase três horas, e que levou toda a família a mudar-se para lá.

O Colégio era um edifício severo, uma instituição bruta, onde, teste-

munha Brandão, este terá descoberto pela primeira vez um dos grandes temas da sua obra: a Dor. Esta escola dedicava-se a tornar seres humildes e infantis em homens duros e ambiciosos e para isso recorria a tudo: a chibata, o grito, a humilhação, até os seus alunos aprenderem. Muitas décadas depois ainda se sente o estremecer de Brandão ao recordar esses dias: “Inverno. Luz turva. Um casarão enorme no alto da Rua Fernandes Tomás dentro duma cerca de terra calcinada... Entro: sala enorme, cheia de petizes

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dominados pelo mesmo sentimento de terror(...) Eu tinha todos os dias cólicas horríveis antes de entrar no Colégio de S. Carlos e foi ali que principiei a estragar os meus nervos e a amargar a vida. O mestre, o Aragão, não era mau – era estúpido. Tinha nascido para cavar as vinhas do Alto Douro e acabou diretor do colégio...”

Neste lugar, Brandão certamente ter-se-á cruzado outro futuro escritor,

um pouco mais velho, Trindade Coelho. Mas aquilo que mais o impressionou foi a maldade do mundo, de que a família e a idade o tinham protegido até então: “dei de repente com um mundo atroz e brutal. O colégio endurece. Havia lá de tudo: homens de barba até ao umbigo, que estudavam as primeiras letras, garotos e brasileiros desterrados e friorentos. Desciam da serra sacripantas brutais cheirando a caldo e a boroa e saíam da Rua da Sovela figuras mal amanhadas, ainda em bloco, para os professores desbastarem.”

Fez também outras descobertas o Brandão do início da adolescência.

Pela primeira vez apaixonado, por uma jovem padeirinha que todas as manhãs passava diante do colégio carregando a cesta do pão para vender, Brandão começou a faltar a algumas aulas para a ver passar. Depois, com mais audácia, corria atrás dela e, sob o olhar entusiasmado dos colegas, fazia um movimento para a beijar, que invariavelmente encontrava o caminho barrado pela indignada cesta de vime. A mesma cena parece ter-se repetido, um dia após o outro, uma semana após a outra, numa rotina confortável e segura.

Só que um dia, aos lábios de Brandão escapou a firmeza do vime. Os olhos

do jovem Raul viram, pasmados, os lábios vermelhos e indefesos da jovem padeira, que aguardavam pelos seus. O jogo não era um jogo, o rapaz já não era um menino. Era tempo de crescer, de ser adulto. Aterrado, Brandão recusa a oportunidade e desata a fugir, para nunca mais voltar a ver a fresca padeirinha.

O tempo passa, e o jovem Brandão vai-se envolvendo cada vez mais nos

meios literários. Aos 18 anos arrisca publicar um texto juvenil, no periódico “O Andaluz”, em busca de sinais que lhe confirmem o caminho das letras que sonha já seguir. Esta vocação das letras ganha laços vivos nas cumplicidades literárias, e envolve-se com o grupo composto por Justino de Montalvão, António

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de Oliveira e António Nobre, este uma figura fascinante, que logo na primeira conversa lhe pede uma Bíblia: “– Para que quer você a Bíblia? – Para deitar a cabeça quando for no caixão,” é a resposta, que Brandão registará anos depois da morte de Nobre.

Juntamente com outros, como Hamilton de Araújo e Joaquim de Araújo,

o grupo reunia-se no café Camanho, junto à Praça Nova, na zona a que hoje se chama Praça da Liberdade, no Porto. O mesmo café era frequentado por Sampaio Bruno e Basílio Teles, que aí discutiam política. E Brandão regista ver por aí passar Eça de Queirós, o seu ídolo literário da juventude. O autor de Os Maias abanca aí sozinho para comer frango cozido com apetite e gabar-se de vir de dar “o beijo sagrado na fonte das gerações”.

O mesmo apelo da literatura leva-o a inscreve-se, em 1888, no Curso

Superior de Letras, do Porto, mas a sua passagem aí é efémera. A 18 de dezembro do mesmo ano Brandão assenta praça no Regimento n.º 5 de Caçadores de El-Rei, com um contrato de 12 anos. Como o fez? Provavelmente de rosto fechado e baixo, a contragosto, seguindo a vontade do pai e da mãe, que desejavam para ele um emprego respeitável e fardado. Brandão amava profundamente os pais, e particularmente a mãe, mas com que dor não lhes terá obedecido, enquanto no íntimo continuava a sonhar seguir as passadas de Eça ou Camilo.

A vida militar é para ele triste, absurda e ridícula, e suscitar-lhe-á comen-

tários ácidos e caricaturais sobre a relevância do exército para a segurança da nação e sobre muitos dos usos, costumes e personagens que aí conheceu: “Na Escola do Exército ensinavam no meu tempo coisas inúteis que me deram mais trabalho a esquecer que a aprender.”

Por isso o seu sonho literário persiste e acabará por começar a desabro-

char em 1890, quando se encontra estacionado no Regimento de Infantaria n.º 18, no Porto, e aí publica o primeiro livro: Impressões e Paisagens. Os escritores fazem-se em peregrinação, de lugar em lugar, tentando encontrar o seu espaço. Impressões e Paisagens era a etapa necessária para Bran-

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dão. Livro de ficções breves de feição naturalista, evidencia claramente os ensinamentos de Eça e de Garrett no que diz respeito ao estilo e revela um autor que procura ainda um tema ao qual dedicar a sua obra.

Não deixam, no entanto, de ser desconcertantes as influências que Bran-

dão manifestava no início da sua carreira literária, pois ele, juntamente com o grupo de Montalvão e Nobre, criara Os Nefelibatas, um grupo literário sedeado no Porto, muito influenciado pelo simbolismo francês, que procurava renovar a escrita, e principalmente a poesia portuguesa, contra a estagnação que esta vinha sentindo desde Antero e Cesário Verde. Os nefelibatas, contra o realismo social e socialismo político da geração de 70, afirmavam-se decadentes na arte e anarquistas na política. Eram os primeiros em Portugal nesta linha, juntamente com Eugénio de Castro, que poucos anos antes introduzira esta corrente francesa na poesia lusa. O grupo do Porto, em 1892, publicou o panfleto que lhe deu o nome, provavelmente escrito a várias mãos, repleto de imagens e cenas bizarras, grotescas, feéricas, com o propósito de escandalizar a burguesia portuense. Nesse panfleto são ainda descritas várias figuras do movimento, incluindo uma que talvez seja a de Brandão: “silhueta de pirata nostálgico dançada sobre as esguias pernas que arqueiam como as de Plintz, tesourando o chão a largas passadas sonâmbulas”.

Por ser membro de pleno direito deste movimento nefelibata, não deixa

de ser curioso como Brandão parece imune à sua influência, tanto no início da carreira como mais tarde. Se a sua obra posterior evidencia algumas marcas do simbolismo, especialmente no fascínio pelo Sonho e pela Dor e por figuras que encarnam estes conceitos, é também manifestamente singular, longe do formalismo em que caíram outros membros da mesma escola. Mais intrigante é também não se enquadrar neste cânone logo no princípio da carreira. Mas talvez cada um escreva o que pode e não o que deseja, e Brandão se encontrasse ainda preso ao realismo das suas primeiras leituras, que imita de forma talentosa, mas com a falta de verdade interior que faz de alguém que escreve um escritor. As 15 narrativas de Impressões e Paisagens são maioritariamente situadas no Minho rural e estão contaminadas com a ironia e caricatura típi-

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cas de Eça – a mesma ironia que Brandão mais tarde desdenharia, preferindo Camilo a Eça. Mas talvez a dicotomia entre Camilo e Eça sejam, tal como a dicotomia russa entre Tolstói e Dostoievski, a dos dois lados da alma portuguesa, entre o distanciamento irónico e a emotividade extrema.

No ano seguinte, Brandão ruma a Lisboa com vista a tornar-se oficial.

Aí vai frequentar o primeiro ano da Escola do Exército, a antepassada da Academia Militar, já então sedeada no Palácio da Bemposta. No Livro de Assentamentos e Registos, relativo a 1891-93, encontramos o escritor assim descrito: “Altura, 1,85 m. Olhos azuis, nariz grande, cabelo castanho, barba loura. Sinais particulares: um sinal na extremidade de cada orelha.”

Se a vida militar não era para Brandão, menos era certamente a posição

de oficial para este homem delicado e tímido. Um colega de jornais lembrou o dia em que, mais tarde, a presença de Brandão fardado, nos gabinetes do jornal, tinha causado grande hilariedade nos colegas, tão bizarra lhes parecia a aparência. De Brandão oficial se contava também uma anedota, certamente falsa, de que Brandão pediria “por favor aos soldados que apresentassem armas e por obséquio que executassem o direita-volver”. O próprio Brandão só tinha palavras carregadas de ironia e humor ácido para lembrar a vida militar: “Durante o tempo que fui tropa vivi sempre enrascado, como se diz em calão militar. Tudo me metia medo, os homens aos berros que ecoavam no quartel (...); castigo para um lado, castigo para outro; e as coisas negras, feias, agressivas, a parada, a caserna, as retretes. Levo para a cova a imagem daquelas retretes como uma das coisas mais infames que conheci na vida. O inferno deve ser uma retrete de soldado em ponto maior...”. Mas, é claro, a ternura de Brandão pelos pobres e pequenos não deixa de surgir quando lembra os humildes do exército: “Meu pobre soldado português, às vezes batido, às vezes tratado de alto por bonifrates que nem sempre mereciam comandar-te – e tu pronto a obedecer (...) e é de ti, meu amigo, que por fim de contas me restam ainda saudades.”

O seu percurso na escola de oficiais é absolutamente regular, “medíocre”,

como dizem algumas das avaliações dos oficiais superiores. Aí irá cruzar-se com

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dois futuros oficiais que terão uma marca importante na vida política do país: Sidónio Pais, um dos melhores alunos do seu curso, e Óscar Carmona, que conseguiu obter uma classificação ainda pior do que Brandão. No entanto, nem a política nem a vida militar interessam a Brandão. Organiza no seu quarto tertúlias de discussão quase todas as noites e nos dias livres dá longos passeios a pé por Lisboa acompanhado por alguns amigos mais próximos. Estes reconhecem-lhe a sensibilidade e o apreço pelos mais desfavorecidos. Acham-no “um belo moço, muito alto, louro, de olhos azuis, falas mansas, bastante nervoso, um tanto tímido e pouco comunicativo”. Um deles lembra que Brandão insistia em levar sempre alguma comida que ficasse dos repastos conviviais para uma pobre idosa que vivia na Rua da Palma. Nesta época começa também a escrever para os jornais. Uma das suas primeiras colaborações é com o periódico “O Imparcial”, onde irá redigir artigos anónimos contra a reforma do ensino militar. Esses artigos acabam por ter resposta de outro autor anónimo no jornal “Correio da Noite”. Desencadeia-se a polémica e a troca de sucessivos artigos de estocada e contra-estocada, sempre anónimos, até ao momento em que o outro polemista resolve assumir-se, identificando-se como Dias Costa, um dos mais severos e temidos professores de Brandão na escola de oficiais, e seu avaliador numa prova próxima. Dias Costa exigia que o seu adversário da polémica se identificasse também. Brandão ficou sem pinga de sangue. Depois de muito hesitar, resolveu ir falar pessoalmente com o oficial docente. Após um episódio de cólicas nervosas, que lhe ocorriam sempre antes dos exames e de outros momentos decisivos, apresenta-se a Dias Costa e identifica-se. Este aceita a situação e nenhum mal advém da polémica. Brandão solta um suspiro de alívio.

A sua colaboração com os jornais continua, e começa a escrever cróni-

cas para o Correio da Manhã, então dirigido pelo escritor Manuel Pinheiro Chagas. Nessas crónicas começa a revelar-se o seu pessimismo existencial e a observação impressionista, um pouco à imagem dos artigos do colérico e escandaloso Fialho de Almeida, que nas suas próprias crónicas traduzia a cidade como um antro de depravação e miséria humana. Nas crónicas do futuro autor

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de Húmus entreviam-se já as figuras de miséria e filosofia enlouquecida que iriam habitar a maioria das obras mais importantes do escritor. Vai ser em Mafra que Brandão concluirá a sua formação militar, na Escola Prática de Infantaria, e, ainda aí, vai escrever a sua primeira peça de teatro: uma revista das peripécias do curso, chamada “O Arraial”, que será interpretada pelos camaradas. A peça parece ter gerado grande gáudio na tropa, ao ponto de ter sido repetida, mas infelizmente perdeu-se e não podemos conhecer como era o jovem Raul Brandão dramaturgo.

Toda esta atividade – o jornalismo, a formação e deveres militares, as

tentativas literárias, começam a tornar-se demasiado violentas para o escritor. A conselho de amigos, pede uma transferência para o Regimento de Infantaria 20, em Guimarães, onde lhe disseram que “a camaradagem era boa e o serviço pouco”. O pedido corresponderia certamente ao desejo de maior sossego nas tarefas militares e maior disponibilidade de tempo e de espírito para se dedicar à escrita que cada vez mais chamava Brandão. E foi a Guimarães que chegou em 1896, previamente anunciado por uma carta de um colega, Duarte do Amaral Pinto de Freitas, avô de Diogo Freitas do Amaral, carta essa que terá chegado aos ouvidos de uma jovem vimaranense, Maria Angelina Brandão, de que voltarei a falar.

Na cidade minhota, Brandão instalou-se numa pequena casa rural, na

companhia de um casal de caseiros. Como era típico no escritor, contratara-os não só para lhe tomarem conta da casa, como também para os poupar à vida de miséria em que o casal vivia.

Guimarães não o impressiona favoravelmente. Cidade “de pedra e de

sonho”, é retratada em tonalidades dantescas no início do romance A Farsa. Habituado à camaradagem dos pescadores que vivem e morrem juntos no mar, ou ao igualitarismo burguês de Lisboa e do Porto, Brandão perturba-se com o fosso entre a aristocracia vimaranense terratenente e os trabalhadores rurais condenados à miséria e à fome. Assusta-o uma mulher que lhe oferece o filho pequeno como criado por já não ter como o alimentar. E o misticismo panteísta do autor de O Gebo e a Sombra, de natureza solidária

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e generosa, escandaliza-se com o catolicismo minhoto, que lhe parece retrógrado, hipócrita e intolerante. A fusão destes dois traços da sociedade minhota, e as imagens que viu nesta zona, alimentariam parte da sua ficção futura, marcada pela incompreensão perante a miséria, o sofrimento, a intolerância e a dor humanas. Mas ao mesmo tempo deslumbra-o a paisagem da região, então tida como a mais bela paisagem portuguesa, devido às suas colinas verdes e águas cristalinas abundantes, virgens ainda do assalto de betão que depois viria.

Como o trabalho militar é efetivamente escasso – “a parada da guarda

era às onze – entrada – e tocava a ordem à uma – saída” – Brandão tem tempo livre para passear pelos arredores verdes da cidade e publicar o seu primeiro livro importante: História dum Palhaço.

Alguns fragmentos deste livro já tinham aparecido sob a forma de cróni-

cas no Correio da Manhã. A sua redação é atribuída a K. Maurício, personagem apresentada por Brandão como verdadeiro autor do texto, alegadamente “autobiográfico”, num complexo jogo de imagens em que as personagens, como o Coveiro, o Palhaço, a Ardida, D. Felicidade, etc., se apresentam umas às outras e aos episódios em que se envolvem, quase sempre marcados pelo fantástico e pelo simbólico. São silhuetas entre o sonho e o pesadelo, desencantadas pela vida, que parece ser tão pouca, tão vazia, tão desprovida de sentido e propósito. Não se trata tanto de personagens marcadas pelas dificuldades materiais da vida, mas tão-só personagens que já desistiram ainda antes de habitar a vida, que desconfiam dela, e preferem não a viver.

É inconfundível a marca do romantismo da época neste livro, mas de um

romantismo já de fim da linha, do simbolismo com que o romantismo desistiu de mudar o mundo. Transparece também a dúvida, existencial, antes do tempo existencialista, em torno do destino do homem, e da sua real capacidade de o mudar. Verifica-se já neste livro uma expressão simbólica da autobiografia do autor, e através de K. Maurício também Brandão mostrava já a sua desistência da realidade, e refugiava-se na melancolia do sonho, vendo nele o único lugar do mundo onde a vida poderia fazer sentido.

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Tal como Brandão não ficou indiferente à cidade de Guimarães, a sociedade vimaranense também não o ignorou. A comunidade onde “se conservavam as janelas das casas todo o dia fechadas” e as “mulheres de bem” não entravam em repartições públicas para tratar de assuntos do seu interesse ou os comerciantes iam às casas das famílias ricas vender os seus produtos, sabia da sua fama de literato e escritor em ascensão, e a sua figura de “príncipe escandinavo”, no dizer da futura esposa, parecem ter suscitado viva impressão em muitos corações da terra. Mas Brandão amava demasiado a sua solidão e desprezava o fanatismo e a intriga da pequena sociedade vimaranense, mantendo-se em sua casa, a escrever, a sonhar e a dar longos passeios a pé.

Mas a 11 de junho de 1896 dá-se a tradicional romaria da Festa da La-

pinha, em Guimarães. Celebração de grande adesão popular, é do alto da sua varanda, acompanhada pela família, que Maria Angelina, rapariga de família burguesa, então com 18 anos, se entusiasmava a observar, com a minúcia que caracterizarão os seus futuros escritos, os festivos cortejos e o povo que enchia as ruas da cidade de pedra escura. Talvez devido a essa alegria, talvez por alguma insegurança, talvez por um acaso, um pensamento ou até mesmo um sentimento de que não tinha consciência, Maria Angelina dirigiu um sorriso a um rosto levantado que reconhece no meio da multidão, antes de o seu olhar se desviar para outros motivos de maior interesse.

Maria Angelina não sabe ainda que acabou de dar o primeiro passo para

o grande amor da sua vida, para o único homem com quem se unirá até ao fim dos seus dias. Cá em baixo, no meio da multidão, talvez Brandão ainda não o saiba, ou talvez já o reconheça com a limpidez de quem se sabe perante uma revelação, mas está já tomado por uma violenta comoção que o faz ir para casa tomado por sentimentos intensos e a memória clara de um rosto e de um sorriso.

Dias depois, no S. João, Brandão procura encontrar de novo Maria An-

gelina. De longe, observa-a, procurando outro sinal, um gesto que incentive a abordagem. Pela primeira vez, Maria Angelina ganha consciência do que se passa, do que fez, e sobressalta-se. Tal como Brandão muitos anos antes, com

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a humilde padeirita, reconhece que isto não é um jogo, não é uma brincadeira de juventude, mas o gesto que a transportará da juventude para a idade adulta, de casa dos pais para a casa de um desconhecido; um desconhecido estranho, escritor, dez anos mais velho do que ela. Teme, amedronta-se, evita Brandão.

Este insiste, escreve-lhe cartas de paixão ingénua e adolescente na sua

caligrafia fina e precisa, em forte contraste com o pessimismo das suas crónicas de imprensa. Mas Maria Angelina resiste e evita responder-lhe, até que chega o dia 20 de junho e o jornal Correio da Manhã publica um conto de Brandão intitulado “Maria”, sobre um apaixonado que, perante a recusa dos seus avanços amorosos por parte de uma jovem, pensa suicidar-se. Sobressaltada, Maria Angelina decide-se a tomar a iniciativa. Uma prima serviu de intermediária e acolheu um primeiro encontro entre Maria Angelina e Brandão no salão da sua casa em Covas. Na presença da prima, que permanece na mesma sala, lendo, para manter a respeitabilidade, Maria Angelina e Brandão conversam, face a face, pela primeira vez na vida. Combina-se o namoro e, dias depois, o noivado. E Brandão numa carta promete e exige: “Dou-te a minha alma – hás-de-me dar a tua em troca. Não terás como eu não terei para ti pensamentos reservados: teremos um só coração e uma vontade. E seremos tão felizes que, quando passarmos na rua juntinhos, hão-de apontar-nos como exemplo de dois noivos até velhinhos noivando”.

Esta foi apenas uma das cartas que Maria Angelina recordaria nas me-

mórias que escreveria trinta anos depois da morte de Brandão. As cartas escritas durante o noivado, cartas repletas da impaciência, inquietação, ternura e arrufos que só conhecem as almas apaixonadas, não deixam de manifestar a natureza pessimista do escritor: “Sou uma criatura desiludida, que só conhece da vida o lado amargo. (…) Habituado a ir procurar a verdade no fundo de cada sentimento, a analisar as minhas emoções e as dos outros, tornara-me assim uma criatura sem ilusões e incapaz de amar.” (Carta de 24 de julho de 1896). “Incapaz de amar”, diz Brandão, quando as suas obras estão húmidas do afeto que dedica aos pobres, aos sofredores, às crianças, aos idosos, aos animais e à natureza. Brandão era um dos adoradores do absoluto, a quem frusta a vida

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em comparação com o sonho, que culpam o mundo pelos seus defeitos e se negam a amá-lo pelas suas imperfeições, quando na verdade é tal o amor que têm ao mundo que são incapazes de deixar de pensar intensamente e obsessivamente nele, ao mesmo tempo que se sentem ausentados dele, sentindo não estarem, na verdade, vivos, mas de serem fantasmas que pisam a terra com espanto por a terra ser concreta e material, ter odor, textura e insetos.

Raul Brandão e Maria Angelina acabam por casar e pouco depois do casa-

mento o primeiro pede transferência para o Porto. Aí vão habitar na casa onde o primeiro nascera, na Cantareira, na rua que hoje exibe o seu nome. É uma casa com um pequeno pomar, uma bica que jorra água abundante para um tanque e um jardim com uma pérgula de rosas perfumadas. Para os seus tempos livres compram um barco chamado “Deus te guie”, onde se divertem a passear no Douro e aí assistem ao eclipse solar de 1900. Esse eclipse em que Brandão sentia a nudez da existência, apesar de estar a viver um dos momentos mais felizes da sua vida.

Mas este idílio pouco dura, pois passados alguns meses declara-se a peste

bubónica no Porto e a cidade é interditada pelas autoridades. O casal sai da cidade e vai instalar-se numa quinta em São Martinho do Campo, perto de Póvoa de Lanhoso, onde permanece algum tempo.

É nessa temporada que Brandão vai conhecer um frade agostinho tido

como santo, chamado D. Joaquim da Boa Morte Alves de Moura. Esta figura ascética, venerada pelas gentes humildes da região, teve um forte ascendente espiritual sobre Brandão: “Quem escreve estas linhas deve-lhe uma das maiores, mais elevadas e puras impressões que tem recebido na vida”, a quem ajudará a incutir o amor pelos mais pobres e a importância da ternura na relação com a vida.

Também nesta altura, Brandão e Maria Angelina resolvem comprar a

Casa do Alto, em Nespereira, que os encanta, para aí fazerem a sua residência fixa. A este trabalho dedicarão amorosamente muitos anos da sua vida: “A nossa casa fica a meia encosta da colina. Por trás o mar verde dos pinheiros, em frente os montes solitários. Este cantinho rústico criei-o eu palmo a palmo. Tudo isto foi pedra e uma árvore contemporânea da fundação da monarquia. (...) Vamos viver juntos, vou envelhecer ao pé de ti.”

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Mas eis que surge uma nova mudança. Dirigem o convite a Raul Brandão para se tornar secretário de redação de um novo jornal diário a ser criado em breve. Entusiasmado pelo desafio, aquele que não se tinha como um homem de ação aceita o convite e pede transferência para o Quartel-General de Lisboa. Com a esposa vai instalar-se junto da Escola Politécnica, não muito longe do ateliê do pintor Columbano Bordalo Pinheiro, antigo amigo íntimo desde o tempo do Curso Superior de Letras, e que o retrataria algumas vezes.

No entanto, à chegada as más notícias deixam-no desorientado: no pou-

co tempo que passara o convite ficara sem efeito e o mesmo cargo fora entregue a outro escritor de Lisboa, talvez mais necessitado de dinheiro. Mas a desilusão vai durar pouco, pois outro convite vai surgir, da parte de José Maria de Alpoim, para se tornar secretário de redação de “O Dia”, e que Brandão aceita sem hesitar. José Maria de Alpoim é, aliás, uma das figuras que mais tarde Brandão vai lembrar com mais intensidade, num misto de fascínio e repugnância: “homem de alto valor”, ambicioso, que “sabia tudo” e “conspirou até ao último fôlego” em busca de mandar, mas a quem faltou algo para ser um grande homem. Alpoim reconheceu a inteligência de Brandão e convidou-o várias vezes para entrar para a política, convite que Brandão sempre recusou.

Todavia, o trabalho de jornalismo, realizado em complemento com o

magro salário que o trabalho militar lhe dá, é mal-visto e desencadeia até pressões institucionais para que termine. Brandão não se deixa intimidar, e contra-ataca, anunciando uma série de artigos sobre as condições de vida dos militares: “Era ao tempo (...) em que muitos [oficiais] passavam fome e iam comer escondidos com as famílias às Cozinhas Económicas de Lisboa”. Os artigos causam grande agitação ainda antes da sua publicação. O Governo aumenta a remuneração da tropa antes que haja escândalo e Brandão é deixado em paz com o seu novo emprego.

Note-se, todavia, que Raul Brandão desde jovem havia escrito em perió-

dicos, e continuaria toda a vida a colaborar com títulos tão diversos como o surrealista O Universal, o Correio da Manhã, já mencionado, a Revista de Portugal, de Eça de Queirós, o República, de António José de Almeida, e ainda O

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Imparcial, O Liberal, O Século, a Revista Ilustrada, a Revista de Hoje, a Teatro e Letras, A Águia, a Seara Nova, e muitos outros. Foi nos periódicos que esboçou ou divulgou boa parte das suas principais obras: publicou “O Mistério da Árvore” em A Águia, estreou textos de “Os Pobres”, “Os Pescadores”, “A Morte do Palhaço”, e as peças “Eu Sou um Homem de Bem” e “O Avejão” na Seara Nova. E traçou ainda vários perfis e escreveu artigos sobre figuras que tão bem conheceu, como Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, Fialho de Almeida, Columbano, etc.

Foi também num desses periódicos que sucedeu um episódio narrado mais

tarde por Brandão, em que um grupo de anarquistas teria entrado à força na redação onde trabalhava para protestar contra uma notícia publicada. Terão sido deles a falar a Brandão da miséria do país – das crianças que se ofereciam a desconhecidos a troco de dinheiro – e lhe deixaram o conselho que Brandão afirmou nunca mais ter esquecido: “Se quer ser um escritor, fale dos pobres.”

E justamente Os Pobres foram a próxima etapa literária de Brandão, tal-

vez a mais decisiva na sua construção como escritor, em que abandona os jogos formais literários e investe numa busca obsessiva pela verdadeira natureza do eu. Baseado na sua experiência jornalística entre a marginalidade lisboeta, aqui já não vamos encontrar a miséria existencial de K. Maurício, mas a miséria material e palpável que se escondia nos recantos sórdidos da capital do império lusófono: cadeias, hospitais e prostíbulos. “Foram os pobres que me obrigaram a pensar” diz, e horroriza-se com factos como o de que quase todas as crianças pobres com mais de dez anos que entram nos hospitais da cidade vêm já desfloradas. Os pesadelos da obra anterior ganham agora contornos firmes e substância; ganham um verdadeiro horror – a Dor – que no resto da carreira de Brandão se irá opor ao Sonho, encarnado num dos alter-egos mais conhecidos do escritor, o “filósofo” Gabiru, “príncipe do Sonho” que se assombra perante a vida e os seres. Pois Brandão não é marxista ou socialista. Escandaliza-o a miséria e a desgraça, mas nada lhe pode opor a não ser uma interioridade fantástica.

Foi também nos periódicos que Brandão conheceu algumas das figuras

políticas e artísticas mais marcantes da transição da monarquia para a repú-

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blica. Registou as suas impressões e lembranças em pequenos cadernos e mais tarde transpôs essas impressões para as Memórias que publicou, lembrando casos anedóticos como o do general que escrevia artigos sobre “Da prerequação na promoção” ou do camponês que chegou a Lisboa para salvar o país pregando ao governo o conhecimento de Deus. Parece também ter tido faro para as chamadas cachas. Tendo um dos seus colegas recebido uma carta pessoal do escritor Carlos Malheiro Dias a lamentar-se da falta de proventos que a escrita lhe dava e a pedir que lhe divulgasse o negócio de restauração em que se estava a lançar, Brandão não hesitou em ignorar o negócio de restauração e em publicar a carta, convicto da necessidade de divulgar as dificuldades por que passavam os artistas.

Só que o trabalho nos jornais era intenso e esgotante. Maria Angelina

relata que Brandão “era o primeiro a chegar à redação a fim de ler os jornais da manhã, notícias do estrangeiro, inquirir de alguma novidade ou acontecimento sensacional que merecesse ser relatado no jornal em que punha todo o interesse. Depois, corria a assistir às sessões das Câmaras – Pares e Deputados – porque era ele quem redigia as secções parlamentares.” Depois disto, por algum tempo, Brandão ainda colaborou com o dramaturgo D. João da Câmara e Maximiliano de Azevedo na elaboração de livros de leitura escolares – trabalho que se arrastava das dez da noite até às duas da manhã, sustentado apenas por café. Maria Angelina afirma que Brandão “punha alma em tudo o que empreendesse, dava ao trabalho todos os seus nervos, a sua sensibilidade”, e isso é o que pressente o leitor perante as páginas de Brandão, em cuja escrita encontra uma visão omnívora do mundo, em que os mais ínfimos pormenores são alçados à condição de ícones do sofrimento e do absurdo da vida humana.

Esta intensidade atingiria a carne do autor por alturas de 1906. A sua

saúde naturalmente frágil, ampliada por uma certa paranoia em relação a doenças, obrigam o autor a descansar, recolhendo-se com Maria Angelina em Nespereira. Aí, acompanhados pelos caseiros e por uma “vaquinha loira e de traços perfeitos”, uma “jumentinha”, um gato branco, ovelhas brancas, um “cabritinho que gostava de doces e outros mimos como qualquer bebé guloso”,

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um pastor alemão oferecido pelo bispo da Guarda, além dos pombos, que Brandão tratava com tanto afeto que mandou abrir passagens na parede para que estes se pudessem abrigar do frio no seu escritório, e que por vezes lhe vinham pousar nos ombros e nos braços, tal era a confiança que inspirava nos animais, o casal vive tranquilamente a sua vida, no meio da paisagem que ambos adoram.

Em 1910, Brandão perde o pai e pouco depois a mãe que tanto amava.

Descreveu assim os seus progenitores e a importância de Maria Angelina na sua vida: “Aos 23 do mês passado morreu meu pai amachucado, exausto e pobre. Encontrão dum, repelão de outro, assim foi até à cova. Tinha 67 anos incompletos. Não podia mais. Encontraram-lhe alguns cobres no bolso. Há muitos anos que se arrastava, e só tinha de seu uma alegria e um repouso: os domingos. Aos domingos metia-se no quarto, calçava uns chinelos, e toda a tarde chorava lágrimas sem fim sobre um velho romance de Camilo. Minha mãe pouco mais durou, com um olhar de pasmo. (...) Só me resta a tua mão querida, que a meu lado segura a minha mão. Os mortos chamam por nós cada vez mais alto... Olho para ti e os teus primeiros cabelos brancos fazem-me chorar.”

Também por estas alturas Brandão escreve A Farsa, talvez a obra em prosa

de Brandão que mais se aproxima de um género literário, ideia essa que o escritor sempre abominou. Um quase romance situado numa vila sem nome, “burgo de pedra e sonho”, que facilmente se identifica com Guimarães, é um mundo noturno de miséria, fanatismo religioso e desespero silencioso. Com uma abertura magnífica, plena de tragédia e grotesco, é uma história de sonho e de ódio numa sociedade sufocada pelas suas rotinas e regras implacáveis, em contraste com a personagem vulcânica de Candidinha, que enfrenta um coro de velhas, sentadas lugubremente em torno de uma mesa, a jogar a bisca lambida, metáfora da inutilidade da vida sufocada sob leis e tradições, aguardando apenas pelo momento da morte.

Em paralelo, Brandão começa a investir no teatro. Este parece ter sido

uma paixão desde a experiência na escola de infantaria, e, como todas as paixões, gerava críticas violentas. Crítico de teatro no Correio da Manhã, mostrava-se implacável em relação ao panorama teatral do seu tempo: “Teatros maus, piores actores. Ninguém representa. No Avenida o velho Brasão e a Palmira

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Torres numa peça idiota (...); no Nacional, com raríssimas excepções, ninguém sabe o que é representar aquelas traduções de francês. Estou quase a dar razão ao público, que prefere as revistas do ano. São sátiras políticas, com mulheres ordinárias que mostram tudo o que podem, e, além disso, a obscenidade acorda nos portugueses levas de mortos...”. Fez uma primeira tentativa de escrita com o poeta Júlio Brandão da peça Noite de Natal, representada no Teatro D. Maria II em 1899, e denegrida por Fialho de Almeida como “uma obra de rapazes, desconexa”. Em parceria, escreveram ainda O Maior Castigo, representado no Teatro D. Amélia, em 1902, e terão ainda escrito uma terceira peça, O Triunfo, desaparecida e nunca representada.

Mas é na obra individual de teatro que encontramos as suas preocupa-

ções maiores e marcas mais significantivas: dilemas simples e angustiados, diálogos tensos e intensos, a mesma dúvida angustiada sobre o sentido da existência, sobre o modo de viver a vida. Neles se encenam os temas da frustração e remorso e o sofrimento humilhado. A consciência da inutilidade da ética num mundo que não a tem ou a tem violentada pelo dinheiro e pela vaidade. Isto traduz a busca do autor por um “espectáculo simples e que emocione, como o de uma árvore que se enche de flor”.

Mas esta obra teatral individual só encontraria expressão bastante mais

tarde, em 1923, quando Brandão publicou um volume, intitulado Teatro, primeiro volume de um projeto mais amplo mas nunca concretizado, onde tentava implementar na prática a sua ideia de um teatro popular mas humano. O livro incluía as peças “O Gebo e a Sombra” e “O Doido e a Morte”, obras maiores do teatro português do século XX, e o monólogo “O Rei Imaginário”. A estas juntam-se outras peças publicadas de forma dispersa, como “Eu sou um homem de bem” e “O Avejão”, publicados na Seara Nova, e “Jesus Cristo em Lisboa”, escrito em parceria com Teixeira de Pascoaes e publicado em 1927.

Na obra teatral de Brandão encontramos muitas das mesmas pertur-

bações que alicerçam a prosa do autor: a perplexidade perante a miséria, os constrangimentos sociais, o sentido de uma existência de sofrimento e dor. O Gebo é uma das típicas figuras trágicas do autor, aceitando tristemente a

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fatalidade da vida e do dever e a sua impotência para mudar as coisas. O Teles de O Rei Imaginário aceita um mundo de sonho como alternativa melhor a uma existência social feita de hipocrisia e perda, ao passo que o protagonista de “Eu sou um homem de bem” confronta-se com o vazio de significado da sua vida aparentemente bem sucedida. O conflito entre ambos é sumamente sintetizado em O Doido e a Morte, em que o protagonista tem de escolher entre dedicar-se à escrita da sua obra-prima teatral ou receber o homem mais rico de Portugal. “Isto não é um país, é uma selva onde os homens de génio têm de ser ao mesmo tempo governadores civis” comenta tristemente o protagonista, e talvez Brandão pensasse em si, que tinha de conciliar as suas ambições literárias com a carreira militar, ou no seu grande amigo Guerra Junqueiro, cujos compromissos políticos e diplomáticos talvez nunca lhe tenham permitido concretizar o génio que todos lhe reconheciam. O protagonista decide receber o homem rico, que lhe vem revelar que o escolheu para morrerem juntos. Haverá metáfora cénica mais clara para a inutilidade que Brandão atribuía à vida material?

O casal continua a passar temporadas em Lisboa durante o inverno, para

escapar ao frio e à humidade que tanto afetavam Brandão, ele que nascera e se fizera homem entre o rio e o mar. Nesta altura o escritor abalança-se a uma nova área, a história, e ensaia uma trilogia sobre as invasões francesas, de que apenas completou dois volumes, El-Rei Junot e A Conspiração de 1817, que o autor rebatizaria depois como Vida e morte de Gomes Freire, visto este segundo livro ser antes de tudo uma biografia do célebre mártir do liberalismo. É claro que um escritor tão idiossincrático como Brandão não é capaz de escrever história factual ou académica, e vai encenar a história como drama, o drama existencial entre o sonho e a dor que tanto obcecavam o autor: “A história é a dor, a verdadeira história é a dos gritos...” (El-Rei Junot). São páginas de grandes quadros históricos e olhares demorados sobre as paixões dos seus protagonistas, de meditação e emoção, porventura um pouco mais contidos do que nas suas obras de ficção, mas em que os factos continuam a ser vistos segundo a mundivisão muito pessoal do autor: “A verdadeira história é imaterial: é, repetimo-lo, a história da consciência humana que pouco a pouco se aproxima de Deus.”

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Entretanto, a vida de Brandão vai sofrer uma mudança. Em Lisboa, uma cadela serra da estrela chamada Serrana, que fora oferecida ao casal, é tomada por uma doença que se julga ser raiva. Brandão, sempre temeroso em relação à sua saúde frágil, receia que a baba do animal o tenha infetado através de uma ferida num dos dedos. Suspeita essa que se comprova infundada, mas a marca dos grandes homens é terem imaginações que mudam a realidade, e esse episódio vai efetivamente debilitar a condição física do escritor.

A conselho médico e sob pressão de Maria Angelina, o casal parte em

viagem, por mar, através de vários países da Europa. No vapor alemão Markgraf visitam a costa sul de Espanha, o norte de África, a Itália, a Suíça, França, Paris, Londres. O início da viagem é turbulento, com uma tempestade a fazer colapsar Brandão, que enjoado, temendo naufragar e com o ímpeto mesquinho das almas generosas, culpa a mulher de tão má decisão, acusação que Maria Angelina deixou passar com a serenidade dos que entendem melhor os que amam do que a si próprios. Mas o escritor depressa recupera a boa disposição e o resto da viagem passa-se na alegria da descoberta, no espanto do reconhecimento e no esquecimento doce de viajar com alguém que se ama.

Em Paris, ambos se escandalizam com o “pequeno teatro” de Paris, as

vanguardas inspiradas do teatro naturalista, que Maria Angelina descreve como sendo “de uma vulgaridade acentuada”, “uma infâmia”, e que Brandão terá dito serem de uma “obscuridade ignóbil”. Se em Paris é o arrojo das artes de palco que os chocam, em Londres é o violento contraste entre a opulência e miséria daquela que era então a capital indisputada do mundo.

De Londres voltam a Le Havre e daí seguem para Leixões, onde o escritor

chega mais animado, mas intocado espiritualmente pela viagem: “Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça às feras no canavial indiano foi mais fértil em emoção e aventura que a armadilha aos pássaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro.” Pensamento estranho para a mentalidade atual, ensinada a procurar sempre para além daquilo que é, mas coerente para o autor de

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Portugal Pequenino, para quem não havia maior deslumbramento do que o fascínio de uma criança perante a frescura do mundo. Em 1911, Brandão pede a reforma do exército, provavelmente esgotado pelo excesso de trabalho, desejoso da tranquilidade que lhe permita desfrutar o sonho, a escrita e a casa de Nespereira. É aqui que passa a viver quase a tempo inteiro: “Considero os meses mais felizes da minha vida aqueles em que eu e minha mulher fomos viver para uma aldeia remota. Ainda hoje me penetra a solidão perfumada dos montes. A casa não tinha vidros e à noite o silêncio doirado das estrelas entrava pelas janelas e desabava sobre nós... Há horas em que as coisas nos contemplam, e estão por um fio a comunicar connosco. (...) O homem sozinho está mais perto de Deus e das coisas eternas. Sabe-lhe melhor a vida, compreende melhor a morte.”

Mas a reforma trouxe-lhe também a paz de espírito e concentração para

se dedicar à leitura, a sua grande paixão e prazer. Há quem considere que Brandão seria o menos literato dos escritores portugueses, de leituras limitadas, mas a sua esposa defende que conhecia toda a literatura francesa, inglesa, italiana e russa, embora tivesse particular preferência por ler memórias e c, como as de Saint-Simon ou do Cardeal de Retz, e favoritismo por autores franceses, como Romain Rolland, embora Dostoievski seja uma clara figura tutelar de toda a obra madura do escritor.

E a leitura não deixaria de ser acompanhada pela sua imagem-espelho, a

escrita, e seria nesta época que publicaria os seus livros mais marcantes: Húmus, Os Pescadores e o inacabado O Pobre de Pedir. Húmus era uma experiência ficcional radical para a época: misto torrencial de narrativa, memória, diário, especulação filosófica, inquirição à condição humana. Voltamos a encontrar uma vila fantasmagórica de “ruas desertas” e personagens grotescas: a D. Procópia, a D. Biblioteca, a D. Restituta, novamente Gabiru, sombras de personagens e uma dúvida intensa sobre a realidade da existência. A obra abre com a frase: “Ouço sempre o mesmo ruído de morte que devagar rói e persiste” e termina com a passagem: “Não só os sentimentos criam palavras, também as palavras criam sentimentos. As palavras formam uma arquitetura

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de ferro. (...) É com palavras, que são apenas sons, que tudo edificamos na vida. Mas agora que os valores mudaram, de que nos servem estas palavras? É preciso criar outras, empregar outras, obscuras, terríveis, em carne viva, que traduzam a cólera, o instinto, o espanto” que resume exemplarmente o projeto de Húmus, todo o projeto e carreira literária de Brandão, condenado a procurar as palavras que traduzissem as angústias do seu tempo, da sua personalidade. Os Pescadores estava integrados num plano mais amplo de contar a história de Portugal pelo olhar dos pobres e humildes, do qual publicou Os Pobres e ainda rascunhou Os Lavradores. Foi o livro que deu maior visibilidade pública a Brandão, em parte graças à sua maior acessibilidade e por traduzir realidades palpáveis nas quais o público leitor se poderia reconhecer. Fruto de uma viagem do autor por várias vilas piscatórias portuguesas, desde Caminha até Sagres, com particular destaque pela sua amada Foz do Douro, nele se reconhece o talento notável de Brandão para retratar com palavras paisagens impressionistas fortíssimas.

O Pobre de Pedir, o último livro de Brandão, é mais uma tentativa de

romance, mas onde surge algo novo: figuras concretas em movimento, muitas delas reais, pobres que conhecera, que trata com uma piedade comovida e com um esboço de revolta, que se traduz no sacrifício da filha, Stela, que traz um remate de tragédia grega a um drama eminentemente burguês.

A sua obra está entre o naturalismo de Eça e de Fialho e o simbolismo

decadentista, imbuída da angústia existencialista de Dostoievski. É uma obra contaminada pelas angústias do virar do século, do virar do regime, de toda a turbulência social e política que atravessou Portugal entre 1890 e 1924. Uma contaminação emocional e psicológica, mas não factual, pois embora se identifique com os pobres, Brandão é demasiado desesperançado para acreditar que a política os poderia salvar. Tal redenção ficaria para o sonho, uma espécie de reminiscência platónica de um mundo mais luminoso

Não deixa de haver chamadas de atenção para os problemas sociais – e

afinal Brandão ligou-se à Seara Nova, um projeto literário de mudança social em Portugal – mas Brandão é demasiado omnívoro, demasiado tumultuoso

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para acreditar em soluções simples e materiais para o dilema existencial da vida. Nele convivem evolucionismo e panteísmo, socialismo e anarquismo, misticismo e pragmatismo, que se traduzem numa prosa límpida e torrencial, cheia de repetições, reiterações, súbitas claridades e uma lenta e tortuosa descida aos infernos da consciência e do patético. Em Brandão as águas tumultuosas do Douro lutam contra a imensidão do oceano, a corrente infindável da ternura debate-se com o vazio interminável de viver.

O casal passava os invernos em Lisboa, ao abrigo da chuva e humida-

de do Minho. Em Lisboa, nos primeiros tempos, fica alojado na York-House, perto das Janelas Verdes, acolhendo aí uma tertúlia regular de amigos e íntimos, onde se incluem Teixeira de Pascoaes, Jaime Batalha Reis, Justino de Montalvão, entre muitos outros. No entanto, parece que o estômago fraco de Brandão, destruído pelos nervos e pelo café dos anos do jornalismo, não lidava bem com a alimentação desta pensão familiar e muda-se para um prédio junto ao Parque Eduardo VII, um prédio moderno que Columbano detestava, afirmando que seria impossível um escritor morar ali. Mas é nesse prédio que Brandão vai desfrutar da típica vida de literato de Lisboa, entre a Bertrand onde pulsa as últimas novidades literárias, a Brasileira onde se encontra com os amigos, a Biblioteca Nacional onde faz as suas pesquisas, o ateliê de Columbano, onde se demora na conversa com o amigo de longa data, e os escritórios da revista Seara Nova, com a qual colabora. Apesar de a sua literatura não ser muito divulgada, granjeara um conjunto de admiradores que se inspiravam nos seus livros em busca de uma voz própria. Era o caso de Aquilino Ribeiro, José Rodrigues Miguéis, Vitorino Nemésio ou José Gomes Ferreira, que no dia 18 de novembro de 1923 escreveria no seu diário: “Vi hoje pela primeira vez Raul Brandão. Existe”.

Aquilino Ribeiro, seu amigo, lembrou-o desses tempos “Estou a vê-lo su-

bir o Chiado a passos lentos, dobrado e ficando ainda homem alto, os olhos a azulejar o ar em torno, um bom sorriso nos lábios, pronto a dar-se.” Curiosamente, Júlio Dantas tem uma visão muito diferente, registando-o “curvado, desmanchado, anguloso, sombrio, uma capa preta espanhola (...), um feltro

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negro e redondo na cabeça, descia o Chiado na luz doirada das cinco horas, com o ar isolado e indiferente de quem passeia numa cidade desconhecida.” Na casa do Alto deixava-se inundar pela imensidão da natureza, e muitas vezes conta Maria Angelina que o encontrou alheado do mundo, olhando o céu ou um qualquer pormenor de uma árvore, estonteado com a sua existência. Ao mesmo tempo, como uma criança, brincava às escondidas com uma cabritinha que lhe tinham dado, como se não houvesse nada de mais importante no mundo do que o dom de brincar. Ia redigindo as suas Memórias com o auxílio de Maria Angelina, e ao mesmo tempo produzia um “vinho agulha” que era afamado pela sua qualidade e o qual vendia, ajudando a compor as finanças familiares. As Memórias, aliás, iriam causar algum escândalo nos meios literários da época, na sua honestidade, visto que muitas das pessoas nelas mencionadas eram ainda vivas e muitas das situações expostas ainda quentes. Contra os que lhe rosnaram ameaças, ofendidos, respondia apenas: “Mas se é mentira o que narrei, que se defendam, que vão para os jornais, pois têm a imprensa às ordens.” Nunca ninguém o fez.

A sua rotina era acordar por volta das nove horas, fumar um cigarro e

dar um passeio pela quinta. Ao voltar, fechava-se no escritório a trabalhar até à hora de almoço. Descansava um pouco no sofá depois de comer e passava a tarde a passear, a ler ou a tirar notas para o trabalho. Quando o trabalho o saturava, pegava no cavalete e nos pincéis e ia pintar alguma parte da paisagem, fazendo quadros da região que depois pendurava um pouco por toda a casa.

O seu processo de escrita parece ter sido o de meditar longamente sobre

o que queria escrever, tirando notas em pequenos cadernos a lápis. Quando a fase de planeamento e rascunho estava completa, Brandão ditava para a mulher a versão final e só então o livro ficava pronto para impressão, sendo que depois de publicado, nunca mais Brandão olhava para ele, chegando ao ponto de oferecer todos os exemplares que o editor lhe enviava, não ficando com nenhum.

Por esta altura, em Lisboa, conhece também uma figura chave do seu

final de vida. O doutor Francisco Pulido Valente, um dos mais notáveis médicos da altura, cujo consultório servia também de ponto de encontro dos membros

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da Seara Nova. Foram apresentados por Jaime Batalha Reis, e este registou entre ambos a seguinte conversa inicial, depois de Brandão ter debitado a sua longa lista de maleitas reais ou imaginárias: “– E, sr. Doutor, não mijo! – Mija, mija! – Não mijo, sr. Doutor. – Mija, mija! Que lho digo eu! – Quer V. Ex.ª saber melhor do que eu se eu mijo? – Pois eu afianço-lhe que mija!” Como seria de prever entre dois homens capazes de teimar deste modo em tal conversa, tornaram-se imediatamente amigos e estabeleceram uma relação médico-paciente de uma confiança ilimitada.

Em 1923, Brandão é eleito, juntamente com Pascoaes, para a Academia de

Lisboa, prolongando a cumplicidade que unia os dois homens. Pascoaes dizia-lhe nas cartas que Brandão era “o único espírito contemporâneo que eu admiro absolutamente”. Mas no mesmo ano, começa a manifestar-se a doença que o tomaria, que o levaria do “carinho” de Maria Angelina. Dores profundas apertavam-lhe o peito e impediam-no de falar, deixando-lhe o rosto húmido de suor. Recorreu ao seu leal Pulido Valente, que lhe deu diversos conselhos e tratamentos. Temeroso da morte, insistia que Maria Angelina não se afastasse da beira dele, para que não morressem apartados. A doença, que Pulido Valente mais tarde descreveria como um “aneurisma dissecante na aorta”, terá sido agravada por causa da viagem aos Açores, na sua procura da humildade do país, dessas pessoas, gestos e saberes que se perdem à porta dos institutos, dos salões e das lombadas literárias. Ou como Maria Angelina afirmou, o mar aprofundou-lhe a depressão que usualmente toma todos aqueles que nascem perante as vagas infindáveis do mar.

Mas que homem era Brandão, venerado pelos literatos, desconhecido do

grande público de então, e ainda do de hoje, devido às suas obras exigentes, intensas, de uma prosa límpida e plástica, que transmite as suas histórias e os seus tipos humanos com o imediatismo e intensidade emocional de um quadro

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impressionista. Já em vida Teixeira de Pascoaes, que o admirava, se espantava: “Como hei-de eu receber uma homenagem, enquanto a não prestarem à sua pessoa, que é o maior das nossas Letras?” Era alguém que se descrevia a si próprio como não sendo um “homem de acção”, mas que ao mesmo tempo esteve no centro do turbilhão da vida política do país, naquela que foi uma das suas alturas mais conturbadas, entre o Ultimato e a implantação da República, que registou essa vivência e a divulgou nas suas Memórias, para escândalo de muitos.

Foi alguém respeitado pelas grandes figuras literárias do seu tempo,

mas que parecia duvidar das suas próprias capacidades literárias, tendo afirmado numa carta de 27 de julho de 1922, a José Osório de Oliveira, “Para ser verdadeiro, e sem falsa modéstia, devo confessar-lhe que nem sequer me considero um escritor. O que eu tenho procurado é exprimir o meu universo. É desvendar o mistério que me rodeia. (...) E para o fazer tenho vivido curvado sobre a minha própria alma... para chegar ao fim com meia dúzia de livros informes.”

Foi alguém que esboçou vários projetos literários de monta, como uma

História humilde do povo português, vários romances, várias peças de teatro, vários ensaios históricos, mas que quase sempre os deixou incompletos, ou esboçados, que nunca se ajustou aos géneros literários canónicos, que dificilmente respeitou as convenções literárias, como as de personagem ou narração, e teatrais do seu tempo, acabando por, no meio dessa indisciplina, encontrar uma voz única e inconfundível.

Alguém que escreve, de forma anárquica, livros de ficção fortemente

real, misturando narrativa, poesia em prosa, memórias, aforismos, reflexões. Para quem as personagens interessavam menos como construções ficcionais do que como fragmentos da sua própria alma em diálogo consigo, e, por tanto, da sombra que surge entre a humanidade que existe e se procura encontrar a si própria nessa existência.

Alguém que na sua obra escreveu abrasivamente sobre si próprio. Não

sobre a sua biografia, embora figuras, paisagens, cenas da sua vida se tenham

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infiltrado nas suas páginas, mas sobre os seus estados de alma, dissecados de forma minuciosa e obsessiva, num esforço de entendimento de si próprio perante a imensidão do mundo. Alguém que verteu tristeza e compaixão nos seus textos, mas que no convívio era pessoa de trato afável e bem-humorado, com o raro dom para ouvir os outros, e um ligeiro defeito na fala, em que lhe ecoavam na boca os últimos sons das palavras que dizia, como se até temesse a morte da linguagem. E com um sentido de humor desconcertante, que o levou a desenhar caricaturas de várias personalidades da sua época, ou a comentar, quando Rodrigues Miguéis lhe mostrou um desenho que fizera para a Seara Nova: “Já vejo que o pequeno gosta delas mamalhudas.”

Alguém que, a propósito de Mouzinho de Albuquerque escreveu: “Há mo-

mentos trágicos na vida em que falamos numa banalidade e só pensamos na morte: os homens à nossa roda movem-se num plano diferente, e até as coisas se nos afiguram fantasmáticas”, mas que certamente transmitia sobre o herói colonial português a sua própria perceção do mundo, dominada por uma impressão da realidade como sendo menos real do que os fantasmas que sempre o perseguiram e inquietaram, especialmente os fantasmas da sua infância e família: “Tu, primeiro, (...) de quem sinto as mãos pousadas sobre a cabeça, trespassando-me de ternura; e tu, tão velhinha, que me quiseste como a um filho, e vós todas de quem confundo as cabeças brancas. Sinto na mão um dedo nodoso que já não existe e a que a minha mão ainda se apega. Sinto as mãos que toquei durante a vida. Muitas já desapareceram, mas estão aqui entre as minhas – as mãos de meu pai, as mãos de minha mãe, as mãos pequeninas das crianças. Não a mão material – mas as mãos espirituais.”

Alguém que se deixou deslumbrar por um sorriso fugaz de Maria Angeli-

na e a amou até ao fim da vida, dedicando-lhe nas Memórias palavras belíssimas como: “Um dia destes temos de nos separar, e é natural que seja eu, que sou mais velho, o primeiro a partir… Antes, porém, quero dizer-te que te devo o melhor da vida. Foste tu que me desvendaste o amor, que eu desconhecia. A bondade e a ternura, que eu desconhecia. Não exerci talvez nenhuma influência na tua alma – tu apaziguaste-me. O amor era em mim um simples impulso:

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criaste-o, e a pouco e pouco essa força nas tuas mãos se transformou em sentimento religioso.” A própria Maria Angelina confirma que Brandão a amou “como um pai”, ambos unidos por “um coração e uma vontade”. A morte ia esvoaçando em redor de Brandão. A orfandade de pai e mãe parece ter despertado em Brandão um sentido mórbido que o fez multiplicar as maleitas imaginárias e estar constantemente preocupado em relação à sua saúde, hipocondria que apenas o Pulido Valente parecia capaz de combater.

Mas é ainda capaz de publicar o “O Avejão”, nas páginas da Seara Nova, e

Portugal Pequenino, uma obra para a infância, escrita em parceria com a mulher. Nesta obra reconhece-se a perfeita cumplicidade da escrita de Brandão, telúrica, cromática, perplexa, e de Maria Angelina, minuciosa, comovida e risonha. Nesta viagem iniciática dos protagonistas, plena de fantasia, transmitem-se dois conhecimentos, o conhecimento das regiões e paisagens de Portugal, e também o reconhecimento de que as almas crescem e fazem-se na dor, ideia tão cara a Brandão. Mas também nesse livro se reconhece a lacuna na vida do casal, não sabemos se deliberada ou natural: a ausência de filhos. Ausência talvez não desejada num casal tão repleto de afeto paternal e maternal, e que gravou na epígrafe deste livro palavras de tanta dor: “Para os filhos dos outros”.

A doença de Brandão agudizava-se e Maria Angelina escreveu a Pascoaes

pedindo que a força espiritual deste viesse trazer algum alento ao moribundo. O escritor de Amarante acorre a Nespereira, para deparar com o espanto e emoção de Brandão que lhe abre os braços e diz:

“– Você vem ver-me antes de eu morrer, Pascoaes?”



Pascoaes permanece alguns dias em Nespereira, e depois convida Bran-

dão e a esposa a visitarem-no em Amarante. Estes acedem, e na casa do poeta da saudade portuguesa, aí convivem com o médico Pedro de Macedo, de passagem, acidental ou talvez não, pela casa de Pascoaes, e Miquelina, a irmã do poeta de Amarante, que convence Brandão a tentar a pintura, ele que já era reconhecido como um pintor de palavras. Em setembro de 1930, depois das vindimas, Brandão e Maria Angelina rumam mais uma vez a Lisboa, um pouco mais cedo, com o corpo do escritor tomado

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de arrepios quase constantes. Procuram um milagre nas mãos de Pulido Valente, que lhe dirige palavras encorajadoras mas é incapaz de deter a progressão das dores, da fadiga, da incapacidade de comer, dos arrepios. Brandão murmura para a esposa: “Quem me dera morrer! Como me causa nojo a vida! Só tenho pena de te deixar, querida!”

A ameaça cada vez maior da morte levam o casal de novo ao consultório

de Pulido Valente, que talvez crente numa recuperação, ou mais provavelmente reconhecendo o momento de desespero em que os médicos admitem a sua impotência perante o triunfo implacável da morte, o mandou para casa, prometendo visitá-lo na manhã seguinte, mas avisando que a noite seria infernal.

E é. A noite passa-se em vigília, escuridão e dor. Brandão, que toda a vida

escrevera sobre a dor, sofre-a agora na carne, nos ossos. Todo o seu corpo é dor e sofrimento. Ao seu lado, Maria Angelina angustia-se, fala-lhe, tenta fazer o que pode para lhe conter os gritos. Mas o tormento dura até de madrugada, quando os primeiros raios de luz rasgam a treva e o galo canta. Maria Angelina abre a janela, para deixar entrar luz e frescura no quarto. O ruído de asas a restolhar sobressaltam-na. Olha o mundo com incompreensão e com medo.

Lá dentro, na cama, Brandão tenta desajeitadamente tomar o próprio

pulso. Sem nada sentir, estende o braço a tremer à mulher, pedindo-lhe que ela lhe procure a pulsação.

“– Sentes, Maria Angelina?”, terá dito. “– Sentes?”



E a mulher, contendo o rosto, contendo o coração, mente que sim. Cha-

mando uma criada, manda que tragam depressa Pulido Valente e um sacerdote jesuíta da ordem que existe nas redondezas. Esperam. Raul Brandão começa a rezar em voz alta, vagarosamente, sentindo na boca cada palavra. Primeiro do Pai-Nosso, depois da Ave-Maria. Maria Angelina une-lhe a voz.

Ao terminar do último verso da oração, como se só as palavras a susten-

tassem, a cabeça de Brandão descai-lhe ligeiramente. Fica imóvel. Maria Angelina chamou-o. Voltou a chamá-lo. Toma-a a ideia de que isto é apenas uma brincadeira, daquelas brincadeiras que só fazem pessoas que amam e confiam absolutamente um no outro. Uma brincadeira que afugente aquilo

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que parece a mais absurda e mais irremediável das traições. Uma última brincadeira antes que o médico chegue com um qualquer remédio milagroso que afaste a possibilidade que se torne a repetir aquela brincadeira. Volta a chamar. Mas nem uma palavra, nem um gesto lhe responde, e Maria Angelina, devagar, mergulha na solidão.

Dias depois, era enterrado no cemitério de Guimarães, onde ainda jaz,

aquele que escreveu: “A que se reduz afinal a vida? A um momento de ternura e mais nada... De tudo o que se passou comigo só conservo a memória, intacta de dois ou três rápidos minutos. Esses sim! Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria embacia o copo. Só de pequeno retenho impressões tão nítidas como na primeira hora: ouço hoje como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa...” escreveu o senhor da Casa do Alto, em Nespereira, que nas folhas da sua obra nos deixou páginas invencíveis de ternura pelo sofrimento do mundo, pelos desgraçados da terra e por todos aqueles que se espantam e estremecem perante a existência do mundo, a fugacidade da vida, o domínio da dor, e os laços fortes, inesquecíveis, da solidariedade e do afeto.

Maria Angelina continuaria a viver até 15 de outubro de 1973, quando

faleceu, com 95 anos de idade, sempre na Casa de Nespereira, sempre acompanhada pelas memórias intensas e afetuosas de Raul Brandão.

Jorge Palinhos

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