Raul Lino no \"Diário de Notícias\"

June 29, 2017 | Autor: Irene Ribeiro | Categoria: Cultura Portuguesa
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"ARTE E SENTIDO DA VIDA" – O ÚLTIMO LIVRO DE RAUL LINO ?
OS ARTIGOS NO DIÁRIO DE NOTÍCIAS



"Arte e Sentido da Vida" teria sido o título de um livro não editado que compilaria grande parte dos artigos publicados por Raul Lino na imprensa diária. A justificação da sua escrita e do propósito da sua futura publicação encontra-se nas próprias palavras do arquitecto:
"A mais funda razão destes artigos, depois de os expurgar do que é acessório, casual, episódico ou de exclusiva actualidade, - a sua mais funda razão de ser julgo eu que é a necessidade, para minha íntima satisfação, considerando o que vai pelo mundo fora, de apontar claramente algumas das coisas que mais importam no sentido de atingirmos um certo equilíbrio na nossa maneira de ser, sem o qual me parece estúpido viver-se. (…) O que dá a chama que alimenta este meu intento é o elemento ético que porventura poderá a vir dar o seu fruto. / É natural portanto que os meus desígnios alguma vez possam interessar uma ou outra pessoa de entre os que me lêem. Se isto acontece, então dar-me-ia o gosto particular de ter ajudado alguém que ande buscando um sentido um pouco melhor para a vida, ou pelo menos procurando encontrar qualquer coisa que a torne mais digna ou merecedora de ser vivida." ("A Vida Corre – O Tempo Continua", (pg. 13), inédito da comunicação de Raul Lino para a inauguração da polémica exposição retrospectiva da sua obra, realizada na Fundação Calouste Gulbenkian em 1970; in Manoel Bernardo d'Orey, "Fundamentos da Arquitectura em Raul Lino", Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2012.)



Raul Lino escreveu muito. Talvez se possa ler em toda a sua obra a tentativa de escrever sempre o mesmo livro, como parece ser, de resto, o que acontece com todos os autores. Neste seu auto-exercício da razão e dos sentimentos inscreveu-se por inteiro, com a intensidade generosa de quem intende corrigir o mundo, em nome da autenticidade de uma ética universalista e de uma estética assumidamente pessoal que pretendeu, através de uma recorrente pedagogia, tornar nacional.
Não escreveu como vingança contra o destino, com cuja linha parece ter estado existencialmente em paz, antes se insurgiu sempre contra o decadente devir do ser e do lugar português. Com sensível auto-consciência pessoal, Raul Lino cultivou deliberadamente, durante toda a sua vida, o self-respect individual e o decoro e boas maneiras sociais em todas as actividades culturais que desenvolveu. Não partilhou a típica atitude ciclotímica bipolar, oscilante entre um exaltado amor à pátria e uma depressiva crítica à realidade nacional, característica de quase toda a história da cultura portuguesa. Raul Lino perseverou esforçadamente, em casas e em textos, numa recorrente campanha educativa, através de um criticismo, mais ou menos brando mas polémico, ao que considerou serem maus costumes, mau gosto, modernices espúrias, que pensava serem responsáveis pela decadência cultural e civilizacional do país e até por uma certa desagregação identitária de Portugal.
Os artigos de que aqui se trata, apenas os que foram publicados no Diário de Notícias, aparecem como estilhaços tardios de todos os seus outros escritos que em grande quantidade sucederam, mais até do que acompanharam, as suas obras de arquitectura, decoração, cenografia, desenho, etc.
A intenção deste trabalho mais não é do que tentar fazer uma apresentação desses artigos, tanto quanto possível numa sequência cronológica, incidindo sobretudo nas duas décadas de publicação mais intensa – os anos cinquenta e sessenta, já que antes, desde os anos vinte, a sua produção para este jornal fora muito escassa; quanto à década de setenta, está reduzida a três anos, ainda assim muito produtivos - Raul Lino escreveu no Diário de Notícias até Abril de 73, ano anterior à sua morte, em 16 de Julho de 1974. A continuada reprodução temática dos artigos e a sua enorme quantidade foram, de resto, uma das maiores dificuldades encontradas. Daí uma inevitável repetição na referência aos assuntos mais presentes ao longo dos anos e, lamentavelmente, algumas omissões conscientes, talvez feridas de subjectividade, relativas a temas que Raul Lino, na sua surpreendente capacidade de associação e memória, foi introduzindo nos seus textos. E a memória, eterno guarda do esquecimento, nunca terá faltado ao arquitecto que, quer na identidade do seu eu autobiográfico, quer na consequente coerência do seu trabalho artístico e teórico, sempre soube quem era e como desejava projectar-se no futuro. A história, ou a ficção sentimental da sua longa vida, emerge destes fragmentos de um contínuo discurso emocionado sobre si próprio enquanto homem e sobre a sua terra enquanto lugar português do espaço cósmico. Grande é assim a complexidade deste tecido teórico cujos fios aparecem emaranhados na multiplicidade dos escritos em análise.
Não se trata aqui, portanto, de um estudo exaustivo, nem sistemático, mas apenas do resultado de uma leitura que não pretendendo ser nem crítica, nem hagiográfica, possa contribuir para despertar o desejo de aceder, de forma integral, a todos os artigos publicados no Diário de Notícias, parte significativa de um futuro último livro do arquitecto. Por imperativos de espaço não serão aqui feitas referências a quaisquer obras artísticas de Raul Lino, à sua arquitectura e às outras artes em que foi criador, nem à sua biografia, em geral. Apenas serão mencionados outros textos anteriores cujos conteúdos já diziam respeito aos temas aqui tratados. E, para efeito de alguma contextualização histórica, serão apontados alguns factos da "curta duração" portuguesa relativos aos anos em que o arquitecto escreveu estes artigos.
Sujeito de narrativa como qualquer homem, ainda mais imbuído de propósitos moralizadores e pedagógicos, Raul Lino propõe assuntos muitíssimo variados que sente serem matéria de grande utilidade formativa para os leitores do jornal, quiçá para todos os portugueses. Fala do que vê, revê, descreve, avalia, através de uma linguagem muito pessoal, que é afinal a própria linguagem com que, enquanto sujeito do discurso, percebe e reinventa o mundo. Para além de todas as suas realizações artísticas e em especial arquitectónicas, Raul Lino viveu, viajou, desenhou, escreveu, numa constante luta contra a barbárie e o vazio espiritual que, segundo ele, feriam a ética e a estética da arquitectura, da paisagem e da vida no seu país. Raul Lino escreveu sempre, escreveu muito. Provavelmente, como diria Walter Benjamin, escrevia porque não encontrava um livro que o satisfizesse plenamente. Provavelmente, esta insatisfação seria também uma das razões que o terão levado a tentar encontrar modelos harmoniosos e decentes, funcional e simbolicamente adequados às diferentes realidades físicas e ao espírito dos lugares em Portugal.



Os artigos publicados no Diário de Notícias aparecem sempre na primeira página do jornal, normalmente com continuação em páginas seguintes. (Este jornal tinha nessa altura um formato maior do que o actual – hoje a primeira página de qualquer jornal é apenas uma espécie de montra do seu conteúdo, havendo naquela apenas lugar a chamadas ao seu interior onde aparecem os textos considerados mais relevantes; era normal que aparecessem na página um, por vezes em alternância, folhetins, crónicas, ensaios literários, artigos de opinião, etc. O Diário de Notícias pretendia ser um exemplo de jornalismo popular - não alinhando partidariamente, não tratando directamente de questões políticas, valorizando o entretenimento. Traduziria assim uma pacífica coexistência entre a sociedade portuguesa e o Estado.)
Ora o Diário de Notícias não era, não é, um jornal qualquer. Fundado em 1864, ainda no período da Regeneração, veio a ser o jornal que apresentava "a maior tiragem e expansão de todos os jornais portugueses", de acordo com o que destacaria na sua primeira página. (Hoje tem apenas uma tiragem de 20.000 exemplares, mas publicava 70.000 em 1906 e, durante o tempo em que Raul Lino foi colaborador chegava aos 100.000.) Acompanhou a queda da monarquia e a implantação da República, a Grande Guerra, o golpe militar do 28 de Maio de 1926, a Segunda Guerra Mundial, o 25 de Abril, a União Europeia. Pretendeu ser um jornal independente, moderno e informativo, mas, provavelmente até aos nossos dias, terá sido, sem qualquer equívoco, um jornal que, ora pelos conteúdos, ora pela opinião, se situou sempre muito próximo do poder. (Mas talvez isto tenha sido, afinal, comum a toda a imprensa portuguesa.) Quer a informação nacional, quer a internacional foram aparecendo mais ou menos liminarmente conotadas com o que foi sendo a ideologia dominante em Portugal. Isto verificava-se de forma ainda mais impressiva nos artigos de opinião, sobretudo nos períodos salazarista e marcelista, onde nenhum opositor ao regime terá tido alguma vez qualquer convite para colaboração, já que a escolha dos colunistas e comentadores teria sempre uma intenção ideológica, senão mesmo propagandística. O jornal tinha pois, de facto, um claro compromisso com a ditadura e os seus colaboradores pertenceram sempre ao que se pode chamar uma elite do "regime". Desde os anos vinte foi sempre dirigido dentro de uma linha ideológica conservadora e uma atitude política de direita, manifestamente subservientes em relação ao Estado Novo. Na conjuntura de maior afirmação do "regime", os anos quarenta, a sintonia com a "situação" era total – por exemplo, o seu director nesse contexto, o advogado, diplomata e escritor Augusto de Castro, foi escolhido por Salazar para comissário da Exposição do Mundo Português.
No Diário de Notícias, onde tinham colaborado Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz, Pinheiro Chagas, surgiam, a partir da década de trinta, António Ferro - numa das suas frentes de concretização da chamada "política do espírito" - o historiador João Ameal, Júlio Dantas, Agustina Bessa Luís. Depois de 1974, Abel Saramago, director adjunto do jornal, publicou os seus "Apontamentos", também na primeira página, tal como Raul Lino.



Estes textos publicados por Raul Lino no Diário de Notícias podem considerar-se uma espécie de corolário disperso de toda a sua reflexão anterior, percorrendo assim, de forma não sistemática, os diferentes temas, interrogações e preocupações que foram transversais a toda a sua prática teórica bem como a toda a sua acção enquanto arquitecto e enquanto homem. O tom em que estes artigos de opinião são apresentados é, de uma maneira geral, didáctico, moralizador, razoável, por vezes humorístico, sem agressividade, nem alarmismos ou desafios demasiado polémicos. Neles predomina sempre o ponto de vista pessoal do seu autor que, numa linguagem acessível, sem a utilização de jargão técnico, interpreta, comenta, denuncia objectos, factos, acontecimentos ou situações. Os seus títulos são divertidos, irónicos, por vezes hiperbólicos ou misteriosos: "Da cidade d'Alma Primeiro", "A Arquitectura morreu?", "Árvores e passarinhos", "Os deuses são ávidos", "Dona Soledade", "Subir - Subir!", "Os castelos da marmelada", "Sintra – um teleférico e outras ratices", "Poderes ocultos", "A vida aos quadradinhos", "Atracção da Lua", "Meditação", "A Lógica e a Batata", "Arte Técnica e Barulho", "Divagação Super-Realista", "Futurismo válido", "Elogio da Suficiência", "A propósito de «Os Lusíadas»".
A leitura destes textos é sempre saborosa, sendo cada um deles uma espécie de fractal, em que se repete, infinitamente desmultiplicado, o seu pensamento global, o resultado de tudo o que viu ou leu, do que se foi permitindo recordar e talvez do que aprendeu com o que efectivamente realizou na prática. Acima de tudo, nota-se neles a intenção pedagógica de divulgar exemplarmente os princípios de uma estética, que pretende eticamente fundamentada, do construir, do habitar e do viver.



Para além de uns poucos artigos publicados também na imprensa diária desde a década de vinte - no Diário de Lisboa e no Diário Popular - e em outros jornais e revistas dispersos, Raul Lino escrevera, a partir dos anos trinta, longos e aprofundados ensaios sobre arte em geral, arquitectura doméstica portuguesa, urbanização, música, romantismo, paisagem e, evidentemente, Sintra – quase todos publicados pela editora Valentim de Carvalho, entre os anos quarenta e cinquenta. Também desta época, e prolongando-se até à década de setenta, são de referir mais de uma dezena de artigos publicados no Boletim da Academia Nacional de Belas-Artes, instituição de que é membro fundador desde 1932. Tudo isto depois dos seus mais significativos livros "A Nossa Casa" (1918), "A Casa Portuguesa" (1929) e "Casas Portuguesas" (1933) que acompanham as fases iniciais da sua carreira de arquitecto, onde se concretizam talvez os seus projectos mais criativos e de mais original modernidade. "Auriverde Jornada – Recordações de uma viagem ao Brasil" (1937) e "Os Paços Reais da Vila de Sintra" (1948), outras duas obras de maior fôlego, representam já a estabilização e até o recuo formal que o seu trabalho como arquitecto já evidenciava. Acentua-se a sua continuada diatribe contra o modernismo, bem como uma preocupação maior com os monumentos – Raul Lino era director da Direcção Geral de Edifícios e Monumentos Nacionais quando se aposentou por limite de idade em 1949. A sua colaboração com esta instituição onde trabalhava desde 1934 – na Secção de Casas Económicas primeiro e depois na Repartição de Estudos e Obras em Monumentos, prolongou-se até à sua morte. Assim, a vasta obra escrita de Raul Lino integra também um grande número de pareceres técnicos que, juntamente com memórias descritivas, cartas, notas pessoais, conferências, documentos não publicados, enriquecem a visão que agora se vai podendo ter do seu pensamento.
Raul Lino tem já setenta e um anos quando inicia, em 1950, a sua colaboração mais regular com o Diário de Notícias. Anteriormente, desde os anos vinte, apenas tinha aqui publicado quatro artigos (em 1923, 36, 42 e 43). Nesta década de cinquenta já tinha construído quase tudo, escrito muito, viajado bastante. Desde a Inglaterra e a Alemanha do tempo da sua formação inicial, passeara por Marrocos, visitara Paris e, evidentemente, percorrera Portugal – dava sempre grandes passeios a pé, por Lisboa.
Durante a fase da vida em que escreve estes textos, desloca-se a Bayreuth e Oslo em 54, Moçambique, Cairo e Atenas em 55, Istambul e Ancara em 58, Florença em 79, de novo Berlim em 62. Viajar não parece ter sido para o arquitecto uma errância em busca do exótico, mas tê-lo-á decerto protegido do provincianismo. Por vezes, Raul Lino descreve o que viu por essas terras, o que o encantou nesses lugares, projectando-se a si próprio, sobretudo nas comparações que estabelecia com a realidade portuguesa, que era o que acima de tudo lhe parecia interessar. Não foi um escritor itinerante - escreveu em casa. Mas provavelmente foi como estrangeirado sem culpa que dirigiu o seu olhar inicial sobre o país onde tão patrioticamente trabalhou. Mais adiante se regressará, pela sua voz, ao tema das viagens que tanto parecem ter contribuído para o seu cosmopolitismo.
Apropriando-se de modo mais ou menos sincrético de algumas formas culturais da alteridade estrangeira, assimiladas aos desígnios nacionalistas das sucessivas conjunturas que atravessou ao longo da vida e à sua enorme criatividade inicial, Raul Lino empenhou-se assim numa "campanha" reaportuguesadora que já decorria em Portugal desde o século XIX, agora realizada com um especial encantamento afectivo que haveria de materializar em objectos e em textos manifestamente pedagógicos e moralizadores. Escrever num jornal diário terá sido mais uma maneira de continuar a exercer essa sua recorrente missão ética, estética e patriótica.



Ainda antes dos anos cinquenta já Raul Lino brevemente escrevera no Diário de Notícias sobre Lisboa, a pedagogia da natureza e o culto da árvore, em escassos textos iniciais. Depois começa a publicar regularmente: na década de cinquenta mais de duas dezenas de artigos, mais de uma centena nos anos sessenta, mais de duas dezenas ainda nos anos setenta – o último dos quais, a crónica "Parsifal", em 15 de Abril de 1973.
A sua colaboração com este jornal foi portanto intensa, mas irregular, ao longo dos meses e dos anos. Em 1950, produz artigos quase mensais, mas ao longo dos anos seguintes desta década o seu número diminui para uma média de três publicações anuais. Foram anos em que Raul Lino realizou múltiplas viagens e proferiu várias conferências, das quais se destaca "Arte, Problema Humano – A propósito da Sede da O.N.U. em Nova Iorque", no Museu Nacional de Arte Antiga, em 1951. (Edição Valentim de Carvalho).



A história e o mundo português percorriam os anos: o Estado Novo, depois do seu período de apogeu nos anos quarenta e depois de uma primeira crise na sequência da vitória dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, retomava agora um total domínio da situação política interna, mas as contradições políticas, ideológicas e até estéticas interiores ao "regime" começavam a sair da sua forma larvar manifestando-se já visivelmente na sociedade portuguesa. Os ecos do progresso e do desenvolvimento no plano internacional iam chegando ao País. Em Almada começava a construir-se o Cristo Rei (1952-69); Álvaro Siza projectava as Quatro Casas de Matosinhos (1954-57), Fernando Távora, a Casa de Ofir (1957); iniciava-se a construção de Brasília (1955-60); morriam Teixeira de Pascoaes (1952), António Ferro (1956), Frank Lloyd Wright (1959); aparecia em Portugal a Televisão, criava-se a Fundação Calouste Gulbenkian e inaugurava-se a primeira linha do metro de Lisboa (1956); realizava-se em Aveiro o Primeiro Congresso da Oposição Democrática (1957); dissolviam-se os Congressos Internacionais de Arquitectura Moderna (talvez início do pós-modernismo) (1959); acontecia a candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República (1958); iniciava-se o "Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal" (1955-60), sobre que Raul Lino iria falar num artigo de 1955, com o título de "Reformas", em que, depois de fazer uma alongada crítica ao que considerava ser a deficiente formação da consciência artística dos estudantes de Belas-Artes, e de propor os dois vectores que aquela deveria privilegiar – "compreensão admirativa da natureza" e "curiosidade pela tradição", refere a relevância que atribui ao referido inquérito:
"O empreendimento teve forte apoio moral e material do actual ministro das Obras Públicas, sr. engenheiro Eduardo Arantes e Oliveira, que reconhece a importância da iniciativa e o valor educativo que representa. Não se trata de compilar um inventário fotográfico nem de estudar apenas o folclore, mas de facultar a estudantes de arquitectura o modo de se integrarem no jeito caracterizadamente nosso de sentir a proporção e de resolver os problemas formais segundo uma estética instintiva, consentânea com a nossa índole. Em suma, será de certo modo uma possibilidade de na linguagem plástica nos exprimirmos em português…" ("Reformas"- DN, 20/9/1955).
A continuidade com a tradição seria a essência da melhor arte e da melhor vida, como afirma no mesmo artigo:
"Tenho a ideia de que já algures escrevi que a tradição está para os povos como a memória para qualquer indivíduo. A tradição é a memória da grei. (…) é na tradição que nasce o nacionalismo – o nacionalismo puro, isento de qualquer significado político."



Nos anos seguintes, Raul Lino vai dedicar vários artigos a questões de natureza estética, como a criação artística, a importância do desenho, o pitoresco, a proporção, o trabalho artesanal, o romantismo, etc. Também em vários textos retoma a sua reiterada polémica contra o modernismo numa constante atitude de dura intervenção crítica. Como se a antiga "campanha" - depois "movimento" - da "casa portuguesa" tivesse agora dado lugar, na sua escrita, a uma verdadeira campanha anti-modernismo:
"Arquitectura de «passe-partout» que desconhece fronteiras, latitudes, que despreza até a diferenciação dos destinos e que só contribui para a educação da gente no sentido material. É preciso desconfiar-se dos internacionalismos niveladores, dos «esperantos» da Arquitectura." ("Novas Expressões na Arte de Construir" – DN, 11/12/1952).
Considera que a arquitectura modernista, manifestando algum cansaço em relação ao ecletismo do final do século XIX, configuraria o "(…) desejo de acabar com aquele carnaval de estilos", o gosto pela sobriedade e a rejeição de qualquer sentimentalismo, atitudes cuja origem atribui ao puritanismo, materialismo e mecanicismo provocados pela depressão posterior à Primeira Guerra Mundial. As construções modernistas, privadas de alma, seriam insignificantes na sua monotonia, destituídas de nobreza, onde até o monumental seria apenas obtido pelo aumento das proporções. No artigo "Igrejas Modernas" (DN, 21/5/1951), defende que, em especial a arquitectura religiosa, teria sempre de obedecer a formas tradicionais:
"Manter uma continuidade formal, corresponde à imutabilidade da doutrina. (…) Tradição quer dizer procurar a expressão mais própria, mais evidente, para comunicar catolicamente o que há de fundamental e eterno na religião que se professa."



Ainda nesta década, Raul Lino escreve vários artigos sobre o que parece ser o seu tema mais sentimentalmente preferido – a natureza e a paisagem cuja crescente desumanização pretendia combater também com árvores e jardins:
"Desapareceu o estímulo da contemplação; o exercício meditativo fica adstrito aos processos da mística. Nas relações do homem com a Natureza, o centro do interesse desloca-se do visual, do romanesco, do admirativo, para o científico e o técnico, em todo o caso para o dispersivo, para o dinâmico. A paisagem já não é um estado de alma, como há cem anos, porque hoje a alma fica em casa a dormir." ("A Paisagem e a Vida" – DN, 28/11/1956).
"O arvoredo deve emoldurar os monumentos, aconchegar as construções, encher de manchas, adequadas na forma, no porte e na cor as feias peladas que ainda restam por entre o casario das colinas." ("Da Terapêutica que Falece à Cidade de Lisboa" – DN, 5/1/1950).
"O interesse pelas árvores ou pelos passarinhos é apenas um aspecto, uma faceta desse sentimento indispensável ao homem completo, que é o amor pela natureza. (…) Ora, a falta de amor, de interesse, de curiosidade pela natureza é uma desvantagem que inferioriza qualquer pessoa e a persegue até ao fim da vida." ("Árvores e Passarinhos"- DN, 24/10/1958).
Neste contexto paisagista, em que sempre articula metafisicamente a natureza, e a vida espiritual, fala dos "Cemitérios de Lisboa", (DN, 27/8/1951). Compara os cemitérios portugueses com os que viu no norte da Europa:
"Os nossos cemitérios, à parte os das colónias inglesa e alemã, dão-nos a conhecer, desoladoramente, a forma regulamentar com que a piedade pelos mortos é obrigada a assumir entre nós. São a mais enfadonha aglomeração de cantarias banais que se possa imaginar, sem o refrigério de uma sombra, quase sem uma planta florida. Parecem depósitos de pedra serrada e de outros materiais de construção, e não – como seria de estimar – jardins floridos onde os mortos pudessem dormir à sombra de salgueiros e olaias. (…) / A transfiguração de um cemitério em parque ajardinado parece querer contemporizar a vida com a morte; como que a aproximação de duas fases – uma activa e outra passiva – de uma e mesma existência. A «naturalidade» da transubstanciação a que nós chamamos morte, evidencia-se aqui de maneira mais compreensiva e menos cruel."
São vários os projectos de jazigos da autoria de Raul Lino em cemitérios de Lisboa onde, aparentemente, se limitou a seguir o costume das construções correntes, apenas maquilhadas de «casinhas portuguesas». Dentro da área funerária, a sua intervenção no Panteão dos Braganças no mosteiro de S. Vicente de Fora, em 1933, com a autoria dos túmulos de D. Carlos e D. Luís, parece escapar romântica e dramaticamente ao portuguesismo rural e lírico daqueles enternecedores exemplos; neste monumento tem a colaboração escultórica de Francisco Franco e de Afonso Lopes Vieira que escreve o epitáfio.



A década de sessenta – Raul Lino tem agora mais de 80 anos - corresponde ao período mais prolífico da sua escrita no Diário de Notícias, chegando a produzir mais do que um artigo por mês. Vivem-se anos politicamente conturbados, apesar do disfarce surdo do regime. De todo o modo, inicia-se já um processo de liberalização tardia, prenúncio do declínio inevitável da ditadura: começa a guerra colonial em Angola (1961), depois na Guiné (1963) e em Moçambique (1964); Américo Tomás é reeleito – por um colégio eleitoral (1965); morrem Le Corbusier (1961), João XXIII e John Kennedy (1963); Júlio Pomar vai para Paris (1963); inaugura-se a Ponte sobre o Tejo (1966); Paulo VI visita Fátima (1967); acontece em França o Maio de 68 e nesse mesmo ano Marcelo Caetano toma posse como Presidente do Conselho de Ministros; em Portugal multiplicam-se as greves de trabalhadores e respectiva repressão; realizam-se actos de sabotagem a meios de comunicação e instalações militares; inicia-se em Coimbra o Movimento Estudantil (1962) que tem o seu auge em 69; a Apollo 11 pousa na Lua (1969).
Perante esta complexa conjuntura, Raul Lino continua a combater o modernismo e, de uma maneira geral, toda a arte contemporânea em mais de uma dezena de artigos; continua a falar da natureza, da paisagem, dos jardins, das árvores e das flores; de estética, arte e respectiva formação escolar em mais de trinta textos; de viagens – actuais e antigas. Mas fala também de turismo, de Lisboa, de Sintra, da Lua, de música.
Sobre a arquitectura e o urbanismo modernos, o registo do seu discurso mantem-se inalterado nestes anos sessenta. Em 1957 tinha escrito "Urbanização Inimiga do Urbanismo" (DN, 27/7/1960), retomando a reflexão realizada no ensaio de 1945 "Quatro Palavras sobre Urbanização" (Lisboa, Ed. Valentim de Carvalho, 1945) onde tinha afirmado que o "(…)Urbanismo, no fundo, é sempre ou devia ser a organização racional da vida humana nos seus aspectos aparentes em termos de eficiência e de agradável decôro". (pg. 16); e também que: "(…) os planos de urbanização, sobretudo a reforma urbanística das cidades ou vilas existentes, não podem depender em primeiro lugar da régua e do esquadro." (pg. 32). No contexto já do Diário de Notícias, Raul Lino considera os perigos urbanístico-estéticos do: tirar – "uma criação às avessas", rasgar – "bem mais fácil do que coser", desafogar – "suposto benefício de um edifício monumental ou de qualquer sítio peregrino", ("Urbanização – Tirar, Rasgar e Desafogar" - DN, 25/4/1957). (Referir-se-ia aqui, sem a identificar em concreto, à recorrente prática do Estado Novo em relação ao património monumental?)
Dentro desta temática do planeamento, do urbanismo e da cidade, chegou também a tratar do problema do trânsito e do estacionamento em Lisboa – "o problema número um da urbanização." ("Urbanização em Atraso" - DN, 12/12/1958).



A sua paixão pela natureza e pela paisagem habitada mantem-se, de forma transversal, em todos estes artigos da década de sessenta, afinal em toda a sua obra: "(…) há uma ordem natural que é a parte construtiva e progressiva da própria expressão da vida." ("Ordem" – DN, 23/8/1963). É esta ordem que deveria ser interiorizada por todos os autores de arquitectura. E quanto à importância pedagógica do respeito pela natureza, num divertido texto sobre a construção de um teleférico em Sintra interroga-se:
"Não seria de considerar (também) o nosso subdesenvolvimento mental e cultural? Se houvesse essa preocupação, já há muito tempo que se teria ensinado o povo a amar as árvores, a adorar as flores, a acarinhar os animais e a respeitar, com inteligência e o coração, a paisagem que não é só pertença da actual geração, mas que se deve conservar, como parte do património da Nação, para ser usufruída na sua integridade, mais tarde e sempre, por eventuais gerações esclarecidas que saibam apreciar esta dádiva da natureza, mormente quando enriquecida pelas obras de Arte que o espírito dos homens soube criar." ("Sintra – Um teleférico e outras ratices" – DN, 5/9/1962).
Quanto às árvores, que seriam "um exemplo vivo de perfeição" e transmitiriam uma "lição perene de elegância, de ordem impecável, de discrição e de boa economia" ("Árvores e Passarinhos" -DN, 14/10/1958), desde sempre Raul Lino lhes dedicara uma veneração especial. Retoma aqui, expressivamente, referências à tamareira e sobretudo, ao cipreste do seu lema pessoal de "homem livre" que, finalmente, considera ser o paradigma da sua própria personalidade:
"A tamareira é expansiva e majestosa, oferecendo os seus saborosos frutos a toda a gente: o cipreste é o seu oposto, fechado, hierático e meditativo, só parecendo querer alhear-se da terra e demandar o infinito.(…) Cada árvore tem o seu produto e estação determinada, no decorrer da qual permanece vicejante e florescente, e no tempo que resta fica seca e murchada: a nenhum destes estados o cipreste se assujeita, conservando-se perenemente viçoso; e desta mesma natureza são os «azades», ou religiosos independentes.(…) se tens na tua mão muito que distribuir sê generoso como a tamareira; mas se nada tens para dar, então sê um «azad», ou homem livre, como o cipreste." ("Palmeiras de Lisboa" – DN, 29/3/1962).
Fala também da palmeira, numa descrição e comentário que evidenciam, como sempre, a grande coerência do seu pensamento sobre a estética simbólica inerente à ordem natural:
"Por seu porte esbelto e regularíssimo, pela suma elegância da sua cepa, em que as folhas encurvadas se cruzam na mais harmoniosa combinação, a palmeira foi apreciada desde a alta antiguidade (…). Além de tudo, para mim, a garbosa palmeira revela a evidência flagrante de leis naturais, o que representa sempre uma atracção. É que vejo na sua cepa, inscrita numa circunferência, regular como um mostrador, o símbolo da vida humana que aí se desenha claramente quase à maneira de diagrama." ("Palmeiras de Lisboa" – DN, 29/3/1962).
As oliveiras, de que já falara longamente no livro "Auriverde Jornada", em trinta e sete, considera-as "um modelo de modéstia, de humildade e de generosidade". Dedica-lhes integralmente um artigo:
"A oliveira é não só a árvore mais portuguesa como também a mais cristã que existe no mundo. (…) Uma das suas características é ser das raras árvores das quais não se pode dizer com propriedade, que se recortam do céu. A sua folha é tão pequena de formato e a sua ramaria tão solta e arejada que mais depressa achamos que a sua copa se dilui no azul ou no cinzento do céu do que se esteja a recortar de qualquer fundo. A sua expressão mais marcante é a da serenidade. (…) Ela dá o fruto que alimenta o nosso corpo e alumia-nos a alma alimentando as candeias." ("Oliveiras" – DN, 20/3/1966).
Atribui a cada espécie uma identidade metafísica que por vezes fundamenta na ficção poética da própria história. Raul Lino, a propósito da importância que atribui à oliveira, diz ter-se inspirado já em Fernão Lopes quando este refere, pelo seu carácter, certos homens como «vergônteas da boa e mansa oliveira portuguesa". (Aparentemente, estes argumentos sobre as virtudes e o portuguesismo desta árvore colheram a actual adesão mais ou menos generalizada em contexto urbano do seu uso decorativo.)
Mas não só as árvores interessaram o arquitecto, todo o universo vegetal lhe foi existencial e artisticamente inspirador:
"Imitemos a trepadeira e vamos, entretanto, ascendendo, se não pudermos em linha recta, pelo menos em espiral, evitando dúvidas, hesitações ou demais demónios. Copiemos as plantas. Elas tendem para a claridade." ("Cogitações Místicas sobre o Mistério" – DN, 5/2/1968).
Raul Lino remete o sentimento da paisagem natural para os alvores do romantismo e espanta-se que desde aí tanto se tenha culturalmente recuado no apreço pela natureza que nos rodeia. Não fora o risco de um certo anacronismo invertido e bem se poderia atribuir ao arquitecto uma apurada consciência ecológica. De todo o modo, não é tanto numa perspectiva científica objectiva que defende o respeito pela natureza, mas é sobretudo num registo poético e simbólico que se refere à paisagem – natural e histórica – integradora dos edifícios e dos homens. Daí também a sua valorização do jardim, "elemento civilizador que nos põe em contacto com o que há de mais delicado e misterioso na natureza". ("Jardins" – DN,3/3/1950).



No campo artístico em geral, Raul Lino reitera nestes artigos a sua concepção de arte e de beleza, citando-se por vezes a si próprio, tal é a convicção com que mantem os mesmos pontos de vista, enriquecidos estes por exemplos provenientes do seu contacto directo com os objectos de arte nas suas experiências de viagem e, é claro, provenientes da sua própria experiência criativa. A verdadeira arte e a vida, na sua essência mais natural e arcaica, aparecem sempre indissociadas, na sua perspectiva Tolstoiana do fenómeno artístico:
"Insistimos em julgar que o que torna imorredouras algumas produções artísticas é como que uma simpatia ou concordância entre as criações do artista, filhas da sua sensibilidade (quando a tem), e os fenómenos naturais do mundo que o rodeia, achando-se tudo o que o criador produz como que enredado nas leis que regem a Natureza e que encontram expressão nos seus diferentes reinos, mas que são apenas pressentidos intuitivamente pelos artistas criadores." ("Nas Infra-Estruturas da Criação Artística" – DN, 1/6/1969).
"A Arte serviu sempre aos homens para que possam fixar sensações agradáveis ou interessantes ao seu espírito, ou sejam revelações dos mais subtis momentos do subconsciente que exaltam em nós o sentimento da vida, não podendo ser descritos por palavras, mas facultando-nos ao mesmo tempo a maneira de espiritualizarmos vicissitudes e contingências que se nos deparam. A Arte é, portanto, uma necessidade para os espíritos acordados e vigilantes." ("A Arte e a Vida" – DN, 12/3/1962).
"A sensação que a arte nos confere tem qualquer coisa como de uma electricidade especial com dois polos que são a nossa inspiração e a obra consumada. Quando entre as duas se dá a descarga feliz, a sensação que nós sentimos é a de uma satisfação peculiar que parece corresponder ao nascimento de qualquer vida nova pela qual o artista que a criou nutre uma afinidade consanguínea." ("Meditação" – DN, 28/5/1967).
Raul Lino, que não se considera encartado para falar de pintura, descreve com humor um suposto trabalho de Picasso, cujo valor artístico não reconhece, explicando-o à velha amiga Dona Soledade – personagem metafórica do bom senso com quem dialoga, por vezes, em diferentes artigos:
"Estas composições de retalhos de papéis velhos colados são uma das maneiras mais ingénuas que artistas, verdadeiros ou amadores, têm de se desopilar ou de esconjurar os seus complexos ou obsessões. Não têm outro meio de manifestar o que lhes inspira ou oferece a vida na época actual. Isto é – estas obras grotescas são o retracto que fazem da sua vida interior." ("O Caso de Picasso" – DN, 22/12/1966).
No mesmo texto, em mais uma das suas associações e coloridas lembranças, compara Picasso com Henry Miller, por possuírem idênticas características: fúria demolidora, monstruosidades aberrantes, crueza de linguagem, erotismo desbragado, espírito escatológico, etc.
Estas manifestações artísticas decadentes não seriam mais do que epifenómenos da própria decadência civilizacional do Ocidente, da qual pretendia defender o seu país. A propósito do que leu sobre a trigésima terceira Bienal de Veneza, Raul Lino afirma, mais uma vez num comentário autobiográfico:
"A morte da pintura não faz grande impressão a quem há mais de dez anos teve oportunidade de proclamar, deste mesmo lugar honroso, que idêntico fim atingiria igualmente a arquitectura. Eu havia posto ao artigo necrológico o título de «A arquitectura morreu!». O chefe de redacção desse tempo, porém, achou mais prudente substituir a exclamação por um ponto de interrogação naquele título. Era escusado, como se provou pela respectiva certidão de óbito, lavrada com o tempo." ("Cabeçadas" – DN, 30/7/1966).



Sobre o problema estético do estilo na arquitectura, foi sempre num mesmo registo preocupado e crítico que, ao longo destes anos sessenta também se manteve no seu combate contra tudo o que considera arte moderna, valorizando, em contraponto, o património tradicional e histórico português. Aponta novamente como exemplo estética e ideologicamente nefasto da pobreza de estilo a sede da ONU construída, dentro do paradigma do modernismo internacional de Óscar Niemeyer e Le Corbusier já tratado no ensaio "Arte, Problema Humano", de 1941.
"A modernidade também quis criar o seu padrão simbólico e erigiu o bruto caixotão envidraçado de Nova Iorque, que só consegue impor-se pelo seu tamanho descomunal, já que outra expressão não souberam encontrar para as boas intenções que diziam haver motivado aquela instituição. Mas as boas intenções não estão ali representadas. Quem não estivesse a dormir logo via que aquela coisa era exemplo do materialismo e por isso viria assim a tornar-se a Meca dos «libertados»." ("Os «Libertados»" – DN, 16/6/1964).
Raul Lino estará aqui a referir-se à contemporânea crise no Congo ex-belga que a ONU não conseguiu ajudar a solucionar, já que se refere também neste texto ao actual risco de congolização das artes em Portugal. Por outro lado, como exemplo positivo da história da arte retomando o seu mestre alemão Albrecht Haupt, aponta o exemplo da arquitectura do Renascimento em Portugal como o mais virtuoso e subtil estilo alguma vez conseguido no País:
"O que o caracteriza, a este estilo, é uma disciplina rigorosa na sua ordenação arquitectural e o emprego de uma linguagem plástica sóbria, mas muito nobre, que foi curiosamente abandonada e se deixou perder entre nós. O porte distinto destas obras era severo, e o pormenor, sempre de grande finura, quase não existindo motivos ornamentais, isto é, motivos decorativos que não fossem elementos da própria arquitectónica, resultando aqui de tudo isto uma combinação rara de austeridade com o mais refinado apuro de acabamento." ("Subtilidade" – DN, 14/8/1966).



Raul Lino não se dedicou especialmente à escrita de viagem, e quando fala sobre esse tema é sempre para articular o que viu com as suas mais prementes inquietações teóricas ou existenciais. Refere-se ao Algarve, em 1966, para retomar o seu leit-motif da saudade, o sentimento português com que mais se identifica.
"As saudades são um ornato na casa onde a nossa alma reside. São como a colecção de quadros de valor em que se vão conservando apenas os melhores, os mais significativos a muitos títulos, que só ocupam lugar nas paredes, mas não estorvam a nossa vida acordada. Quem tem as paredes nuas na sua casa não conhece a saudade, é mais pobre." ("Saudades do Algarve" – DN, 22/5/66).
Fala nostalgicamente da sua viagem de juventude a Marrocos, em dois artigos onde se apoia nas antigas notas que então escrevera, também publicadas na Vida Mundial, na sua autobiografia de 1969 – "Raul Lino visto por ele próprio". Volta a referir a importância do livro "Walden or Life in the Woods" do americano Thoreau, que lera nesse contexto e de cuja influência existencial se reivindica. Marrocos, no encantamento oriental a que o transporta, remete-o para os sonhos e para o mistério. Mas Raul Lino não deixa de afirmar a intenção teórica de aprendizagem com que sempre olhava para o mundo, que neste caso marroquino muito o influenciou.
"Os sonhos que durante a nossa adolescência engrinaldavam de optimismo a perspectiva do futuro que nos esperava foram-se desgastando, ou diluindo, em tanto tempo também se desfiando. Os sonhos mais persistentes acabavam, contudo, por serem arquivados." ("Em Busca do Equilíbrio" – DN, 2/2/1967).
"Pela minha parte interessava-me sobretudo verificar possíveis influências daquele país no nosso modo de ser e na maneira de nos expressarmos na arquitectura. (…) O que eu julgo ter adquirido nessas semanas de isolamento, de insegurança e de longos ensejos para a meditação terá sido uma noção justa das minhas fracas possibilidades pessoais, a confiança mística num destino suave e como que um equilíbrio que me permitiu ir ao encontro de uma almejada libertação espiritual." ("Marrocos à Distância de 60 Anos" – DN, 13/9/1963).
Das viagens a Londres, Veneza, Paris – na primeira década do século XX, não resultaram, especificamente, textos publicados, ao contrário da ida ao Brasil, que dá origem ao livro "Auriverde Jornada", de 1937, já referido atrás; por diversas vezes vai a Roma, entre 41 e 43, em plena Guerra e em pleno Fascismo italiano, apenas daí tendo retirado alguns exemplos comparativos; a sua deslocação a Moçambique, para inspeccionar obras destinadas à visita do Presidente da República em 1955, com passagem pelo Cairo e por Atenas, não deu origem a qualquer artigo especial no Diário de Notícias onde já escrevia, aparecendo apenas referências dispersas à arquitectura grega e, romanticamente, ao poeta John Byron; também Istambul e Florença, que visita respectivamente em 58 e 59, não foram objecto de escrita expressiva neste jornal, mas são frequentes as referências a Goethe, viajante em Itália, uma das afinidades electivas do arquitecto.
É à Alemanha que Raul Lino dedica mais textos - a Alemanha onde se formou como arquitecto português, talvez até como homem, e de onde regressa sempre admirativo e encantado. Terá sido talvez o país a que, para estudo ou para trabalho, mais vezes retornou. Viveu seis meses em Berlim no Inverno de 1911/1912. Aí veio a realizar mais tarde, em 1941, a decoração da Embaixada de Portugal - de imediato destruída pela guerra, sobre que fala em diferentes contextos, nomeadamente na autobiografia. Nos artigos "Quinze Dias na Alemanha", (DN, 4/11/1962) e "Na Floresta Negra", (DN, 25/11/1962), escritos na sequência de mais uma visita àquele país a convite do governo alemão, no ano de 1962, o arquitecto refere-se às nove cidades que conheceu valorizando a "arrumação ordenada, nítida e metódica" com que os alemães, cheios de bom senso, as reconstruiram - utilizando os antigos traçados dos principais arruamentos, transformando verdadeiras colinas de entulho em zonas verdes, sem cederem à tentação de "aproveitar tão boa ocasião para criarem de raíz qualquer invenção semelhante a uma brasiliazinha em ponto mais pequeno." Considera que nelas foi promovida uma intervenção sensata e adequada na forma de lidar com o património:
"Nos restauros reina um discernimento exemplar (…) Em Frankfurt, que foi das cidades mais duramente atingidas pelos bombardeamentos, só se restaurou na medida em que isso era aconselhável para manter o carácter geral de um ou de outro sítio, respeitando linhas gerais, mas nunca com a pretensão de enganar – nem os mais ingénuos ou incultos – sobre a actualidade das novas construções." ("Quinze Dias na Alemanha" – DN, 4/11/ 1962).
Aponta como única excepção a casa de Goethe, "refeita «ipsis verbis» como se fora por obediência a um sufrágio universal". (idem)
A admiração do arquitecto pela vitalidade, pelo sentimento do decoro e pela cultura do povo alemão não tem limites. Chega a reconhecer-lhe uma verdadeira superioridade racial, que explica, convictamente, com o seguinte fundamento:
"Não é só a cor do cabelo e dos olhos que varia de uma raça para a outra: a diferenciação está também no grau da sua evolução anímica comparada, que em cada grupo étnico progride ou desenvolve-se na escala que lhe for particular. O que na evolução individual se conta por anos, aqui mede-se aos séculos – que digo eu? – aos milénios. / Nas pessoas é uma particularidade psicofisiológica independente da idade e sem ter que ver com as virtudes intelectuais que geram o progresso científico ou materialista; nas raças há estádios no desenvolvimento da sua consciência colectiva, da sua maturação, que explicam por vezes o carácter de certas maneiras de proceder." ("Tempos de Retractação" – DN, 23/4/1963).
O índice do que considera ser a superioridade espiritual alemã, vê-o também no quotidiano cultural desse povo, como exemplifica num daqueles artigos de 62 atrás citados, em que comenta e enumera o próprio programa de eventos da pequena cidade de Freudenstadt que visitara:
"Não faltam os passatempos predilectos, de uma população mais desejosa de encontrar a distracção e o sossego do que espectáculos ruidosos e excitantes de que não precisam. No balanço do ano corrente acham-se 17 representações de declamação, 4 óperas, 3 noites de bailado, um concerto sinfónico e outro de música de câmara, além de exposições, congressos, ajuntamentos de agremiações de todo o género, etc…e que tudo se passa em meio de flores e jardins, num ambiente risonho a que as artes plásticas dão o seu contributo; para os alemães, ainda que medianamente cultivados, a Arte é uma necessidade." ("Na Floresta Negra"- DN, 25/11/1962).



É sobretudo através da música – sobretudo com Beethoven e Wagner - que Raul Lino se reivindica reiteradamente da formação alemã:
"Eu vinha da Alemanha, quando ainda por lá me demorei a estudar, e trazia já na minha bagagem sentimental um entusiasmo louco pela música de Richard Wagner, que naquele tempo se começava a balbuciar entre nós e que aqui era hostilizada, denegrida e posta a ridículo, como é fácil de imaginar." ("Tempos de retractação" – DN, 23/4/1963).
Raul Lino considerava o seu meio familiar de origem pouco atento às artes, com excepção da música que, "obedecendo a um gosto geral naquela época" (idem), lhe teria feito ouvir ópera italiana, mas não os lieder de Schubert ou de Schumann, e nada de Wagner, este de resto motivo de íntima, mas intensa polémica com seu pai. No entanto, tinha sido um amigo deste, o musicólogo Alfredo Bensaúde que aconselhara a sua ida para Hanover. Bensaúde era já um wagneriano, bem como o foram os seus futuros companheiros intelectuais, como o pianista Alexandre Rey Colaço, e outros espíritos românticos que amavam a música e partilhavam o conceito wagneriano de Gesamtkunstwerk - "obra de arte total"- o qual Raul Lino espiritualmente bem assimilou.
O seu entusiasmo com Wagner e o seu espírito pedagógico levam-no a, depois de ouvir a transmissão pela Emissora Nacional das quatro partes do "Anel do Nibelungo" gravadas em Bayreuth, resumir todo o libreto num artigo – já que considera a importância universal da sua temática. Aí explica também a origem dessa romântica adesão pessoal:
"Já que entrámos na música e que vivo hoje enfeitiçado nas grandes obras de Ricardo Wagner, posso dizer que na idade imatura em que comecei a ouvir as suas óperas românticas servi-me do degrau que o interesse da figura do rei Luís II da Baviera e o seu temperamento me despertavam para chegar a compreender aquela mesma música, mas só muito mais tarde na vida, me foi dado alcançar os grandes dramas musicais daquele género, sentindo pena que haja ainda pessoas para quem elas representam inapetecível estopada em que preferem não se meter." ("O Drama Wagneriano para toda a gente" – DN, 16/1/1963).
Raul Lino tinha dedicado um longo ensaio às relações entre a música e a arquitectura – "Quatro Palavras sobre Arquitectura e Música", em 1947, ( Edição Valentim de Carvalho, Lisboa) onde considerava existir uma analogia estrutural entre as duas artes, já que partiriam ambas de bases intrínsecas, interiores ao próprio espírito humano, dispensando na sua produção quaisquer elementos extrínsecos, leia-se imitativos, do mundo exterior. A arquitectura no espaço e a música no tempo, teriam ligação directa à alma. No entanto, depois de fazer o percurso histórico comparado das duas, conclui que não há uma correspondência sincrónica - como se fossem irmãs de diferentes idades que convivem no mesmo tempo - já que uma, a arquitectura, seria uma arte da colectividade, interpretada por um temperamento individual; e a outra, a música, seria a obra do espírito de um artista, influenciado pela ambiência.
Nas diversas referências à música que são feitas nestes artigos, por vezes associadas ao teatro e ao bailado, Raul Lino, talvez tendo em conta o agora mais amplo destinatário, não retoma a temática do seu texto anterior de 1947, limitando-se a referências, mais ou menos saudosas ou críticas aos diferentes tipos do fenómeno musical. Chega a falar dos Beatles, numa perspectiva nada musical – "terrorismo branco turvo que grassa nos bandos negativistas, demolidores, perniciosos, chamem-se Beatles, Provos ou Hippies, que infecionam o presente mundo em que vivemos". ("O que se Avista da Minha Janela" – DN, 3/9/1967); ou de Françoise Hardy cujo canto sumido, sem cor nem relevo, o impressionou muito e lhe evocou uma canção popular alemã ouvida em Berlim durante os terríveis tempos da guerra – "As toadas decadentes que brotaram da angústia gerada num clima de destruição continuam a existir. Infelizmente a destruição não acabou, e em muitas partes continua a existir." ("Coisas que passam, coisas que ficam" – DN, 26/1/1964).
Faz também várias referências à música erudita contemporânea, que não ouve, mas sobre que lê, sempre interessado por toda a crítica musical, nomeadamente a Schönberg, Britten, ou aos "pianos preparados" de John Cage, sempre para a considerar decadente e inaudível:
"Os artistas devoraram um após outro todos os frutos da árvore da sua vida: desesperados, contentam-se agora em saborear as cascas." ("A Gaveta dos Trapos de Cor" –DN, 3/12/1963).
Considerando que a sua não adesão à música contemporânea depende, não da sua idade e capacidades, mas da falta de inspiração e falta de jogo de proporção matemática rigorosa que aquela demonstra, Raul Lino afirma o seu limite de fruição:
"Desde Purcell até Stravinsky, para só mencionar ao acaso duas balizas sólidas dos tempos modernos, estou em boas disposições para continuar a gozar sem náusea, quando não com verdadeira paixão, inúmeras obras musicais de imensa variedade." ("Um Caso do Dia" – DN, 17/11/1964).
Relata com uma emoção apaixonada uma experiência musical de infância, quando num hotel em Londres se cruzou com um famoso pianista russo – Vladimir de Pachmann, especialista em Chopin. É irresistível a leitura desta narrativa singela, ao mesmo tempo encantada e encantadora:
"Já no fim da noite fui surpreendido ao ver que o celebérrimo pianista acedia ao pedido de um hóspede mais musicófilo e se ia sentar ao piano, móvel vertical de aspecto suspeito e idade imprecisa, posto ali à disposição dos frequentadores daquele hotel familiar.
Na sala fez-se silêncio de respeito, que depois veio a ser de sedução. A seguir a um breve preludiar, em que o artista se virava por momentos para o auditório atento, fazendo esgares que era preferível não se verem, começou a evolar-se do instrumento suspeito o motivo toldado de melancolia de um sombrio «Nocturno» e, a seguir, os empenachamentos heróicos e a rajada tumultuosa de uma «Polonesa», executados com prodígios de arte que despertavam inesperadas ressonâncias na sensibilidade dormente dos ouvintes menos amúsicos. Foi como se uma aragem de espiritualidade tivesse varrido tudo o que havia de banal naquela sala com os seus móveis antiquados, naquelas conversações vulgares e naquelas pessoas comuns." ("Não Somos Todos Iguais" – DN, 3/8/1967).



Poucos são os textos em que Raul Lino se dedica apenas a um assunto. No mesmo artigo passa, por exemplo, de Chopin para Columbano, e este livre processo associativo ocorre quase sempre. Fala de literatura – Byron, Goethe, Shakespeare, Afonso Lopes Vieira, Gil Vicente. Fala de teatro – o eterno jogo – do grego clássico nos espectáculos do Piraikon Theatron a que assistiu em Lisboa, ao "West Side Story" que viu em filme; preocupa-se com a impreparação dos públicos:
"Voltando ao nosso teatro é possível que esta especialidade esteja sofrendo de uma crise; mas sempre tive a impressão de que se ela existe, é principalmente da banda de fora do pano de boca. O maravilhoso instrumento cultural que é o teatro não dispensa uma grande caixa de ressonância, proporcional e de bom material vibrante. Essa caixa de ressonância só pode ser fornecida por um público afinado, vibrátil, acordado, lesto nas reacções e abundante." ("A Propósito de Teatro" – DN, 3/8/1963).

Fala de ópera – Wagner, sobretudo – e de bailado, a arte performativa por que se apaixonou, sobretudo depois do seu antigo contacto, em Paris, com os Ballets Russes de Sergei Diaghilev.
Raul Lino escreve também sobre futebol, sobre Marilyn Monroe, sobre a língua portuguesa, sobre o turismo e a sua história, sobre a inutilidade da ida à Lua e a enriquecedora persistência do mistério:
"Astronómicas (…) são também as somas despendidas nas proezas astronáuticas, e julgo haver muita gente que acha que as fabulosas quantias que se gastam neste desporto político-científico não correspondem de maneira geralmente interessante àquilo que se poderia produzir a bem de uma grande parte da humanidade carecida.(…) / Devemos dar graças que o mistério exista perdurando. É talvez a única coisa à qual é universalmente prestado um respeito absoluto, talvez em parte por estar ao abrigo dos exegetas quando sejam mais vaidosos que sinceros. É qualquer coisa que permanece respeitável, não só sentimental como taxativamente respeitada, porque nem a lógica nem a sofística são capazes de a refutar." ("Cogitações Místicas sobre o Mistério" – DN, 5/2/1968).


São raras as incursões do arquitecto na área da filosofia pura e, no entanto, como terá sido sempre tradição no pensamento português em que, de uma maneira geral, não parece ter havido uma continuidade filosófica autónoma em relação à literatura e ao ensino, Raul Lino vai abordando nos seus textos as questões essenciais da existência humana. Pode sempre notar-se, ora de forma mais ou menos subliminar, ora de forma claramente explícita, o seu posicionamento humanista, anti-positivista e anti-mecanicista, muito à maneira do transcendentalismo de Ralph Waldo Emerson (1803-1882) e do seu epígono Henry David Thoreau (1817-1862). O seu apreço existencial pela individualidade e pela liberdade, colheu-o de certeza, senão directamente na leitura de "Nature" (1836), pelo menos em "Walden" (1854), seu livro de cabeceira desde a jovem experiência marroquina. Também Raul Lino acreditou na supremacia do espírito sobre a matéria, num conhecimento espiritual mais avançado do que o sensorial ou até científico, num universo quase panteísta composto de natureza e alma, na constante analogia da verdadeira arte com as formas naturais, numa estética quase identificada com a ética. Raul Lino não fala em Deus. E, no entanto, uma emocionada religiosidade poética atravessa toda a sua obra, em que o pressuposto metafísico de um absoluto fundamenta em última instância a moralidade estruturante da sua arte e da sua vida. Citando as palavras do arquitecto:
"Não tenhamos, portanto, a preocupação de definir o objecto da nossa fé, que o importante é que a sintamos bem no fundo da nossa alma, e eu julgo que esta será a sua forma mais pura e porventura mais arreigada." ("A Propósito de Virtudes" – DN, 15/7/1965).
"Ciência não é connosco. Admiremos as espantosas aquisições científicas e técnicas do engenho humano, mas reservemos um pouco de lugar para o devaneio das nossas veleidades espirituais ou sentimentais." ("Atracção da Lua" – DN, 16/2/1966).
"Dizem os filósofos, falando genericamente, que a verdade é a concordância do conhecimento com o respectivo objecto: o que não nos adianta muito. Mas, tratando de Arte, podemos talvez aventar que a verdade em cada caso está na concordância da «sensação» do artista com aquela que para os outros (os concivilizados) resulta da própria obra de Arte – proposição que nos parece servir menos mal a toda a espécie de produções artísticas, quer abstractas quer imitativas, englobando a arquitectura, a música e a literatura." ("Caminhos da Verdade" – DN, 27/5/1962).
"Com o rodar dos anos, convenci-me de que, para mim, uma das mais importantes diferenciações que existem entre os homens pode expressar-se por esta fórmula dualista: há os que sabem e há os que sentem; faculdades estas que se extremam em certos indivíduos ao ponto de parecer que são exclusivas por incompatibilidade. O que há é variedade de dosagens e combinações; não existe exclusivismo nem incompatibilidade." ("Não Somos Todos Iguais" – DN, 3/8/1967).
"Entre o passado que é o esquecer e o futuro que é o desconhecer, dispomos apenas de um escasso momento que temos de aproveitar o melhor que pudermos." ("Tempo de Páscoa" – DN, 8/4/1968).
"Tudo o que acontece está sempre certo, senão não teria acontecido. A morte, que é a negação absoluta da vida, só acontece aos que estão vivos e, embora à custa da própria vida, nunca deixa de estar certa desde que se verificou." ("Digressão Urbana Filosófica" – DN, 24/4/1958).
Raul Lino articula toda a sua filosofia de vida em função de valores que considera inalteráveis e a cuja enunciação sempre recorre: vida, beleza, lealdade, fé, amor, verdade, patriotismo, ternura, qualidade, ordem, harmonia, proporção, decoro, tradição, nobreza, estilo, autenticidade, etc. Não parece particularmente sensível a questões específicas de justiça social. Sobre o seu posicionamento político, afirma, com evidente ingenuidade:
"Por natureza julgo ser apolítico; não é que não ache bastante interessante a política internacional, em teoria; mas na prática o que se está passando neste capítulo não o assimilo, porque começa por me causar tonturas e em seguida – não sei porquê – grandes náuseas também. Acontece por isso que não percebo patavina destas coisas. Os acontecimentos políticos que se estão dando pelo mundo fora, para mim, nesta época de inundações diluvianas, fazem-me o efeito de uma enxurrada devastadora que vai passando pela nossa aldeia, e só tenho o desejo instintivo de que ela não chegue a atingir a rua onde nós moramos." ("Na Enxurrada", DN – 5/3/1966).



Quando chegam os anos setenta, assiste-se em Portugal à crise do Marcelismo e à desagregação final do Estado Novo: há sabotagens nas comunicações feitas pela ARA - braço armado do Partido Comunista, funda-se clandestinamente a Intersindical, morre Salazar (1970); Portugal abandona a UNESCO (1971); o estudante Ribeiro dos Santos é assassinado e Américo Tomás é reeleito (1972); morre Picasso, funda-se o Partido Socialista e a Guiné tem a sua independência reconhecida pela ONU (1973).
Nesta década conturbada, já com mais de noventa anos de idade, Raul Lino persiste na pedagogia. Dedica vários textos ao problema da deficiente educação dos jovens em Portugal, preocupado com os seus actuais maus costumes. "A Ausência de Cultura Artística", "A Educação Começa na Infância", "Do Catecismo de um Ignorante", "Juventude Contemporânea", "Futurismo Válido", são alguns desses artigos, onde, por entre as sempre repetidas críticas ao modernismo e à tecnologia, o elogio do trabalho artesanal e da educação para o respeito pela natureza, o reconhecimento da importância do gosto pela profissão, etc., Raul Lino se projecta num futuro que já não será o seu, cheio de nuvens negras, quiçá com premonitório realismo:
"Atravessamos uma época em que não se tem segurança nem nas coisas nem nas criaturas humanas, em que a dúvida de tudo está mais solidamente fundamentada que jamais aconteceu, em que todos os valores morais se acham baralhados e sem nexo. Fora dos campos da ciência, da economia, da tecnologia, nada há de fixo a que nos agarrarmos. A própria noção de uma cultura ocidental está a entrar em causa e já se fala de pré-fabricarem um novo conceito da nossa cultura, quem sabe se com a colaboração da cibernética." ("Onde Está o Modernismo?" – DN, 25/4/1971).
Fala ainda de "Os Lusíadas", analisando estrofes da sua significativa preferência: "Não mais, Musa, não mais que a Lira tenho / Destemperada e a voz enrouquecida, / E não do canto, mas de ver que venho / Cantar a gente surda e endurecida." ("A Propósito de «Os Lusíadas» - DN, 24/9/1972).
Fala também, romanticamente, dos encantos da antiga iluminação a petróleo e dos malefícios da luz em excesso, quer no interior das casas, quer no exterior dos monumentos onde "… se perdem efeitos de relevo e de contraste que seriam interessantes para o resultado artístico, e assim há casos em que os monumentos ou edifícios parecem ter sido achatados, castelos que chegam a dar a impressão de terem sido feitos de vidro, para não falarmos nas belas ruínas que o luar tanto valoriza sem que saibamos aproveitar a boa lição que ele nos dá. Assim se perde o melhor, o mais importante que as ruínas muitas vezes nos ofertam – que é a sua magia poética." ("Luzes e Luminárias" – DN, 25/2/1973).
E fala do cinema, "A Grande Arte" (DN, 5/3/1972) contemporânea, num dos poucos momentos onde faz, em concreto, um rasgado elogio a um objecto artístico próprio da modernidade. Raul Lino terá até sido responsável, durante os primeiros tempos do seu funcionamento, pela programação do Cinema Tivoli, edifício que projectara em 1924. Destaca-se a sua escolha de autores clássicos como Fritz Lang, Griffith, Dreyer, Pabst, Lubitch ou Chaplin; as super-produções de Cecil B. de Mille – "O Rei dos Reis" e "Os Dez Mandamentos"; a filmografia de actores famosos como Douglas Fairbanks ou Rudolf Valentino; do escasso cinema português refira-se a inevitável presença de Leitão de Barros, realizador caro ao "regime", que fora secretário geral da Exposição do Mundo Português e também director da Sociedade Nacional de Belas-Artes, responsável por diversos documentários encomendados pelo governo desde os finais dos anos trinta - nomeadamente sobre a Mocidade Portuguesa, a Legião Portuguesa, etc. – também ele autor de crónicas no Diário de Notícias entre 1953 e 1967.
"Mas a arte cinematográfica sobreleva-se (ao bailado) e a todas as outras artes, porque envolve nas suas técnicas, nos seus processos, nos seus temas, tudo o que se encontra nas artes visuais; encerra teatro e poesia da mais plena e pura e sobretudo esquadrinha o que há de mais íntimo e recôndito na alma humana, e, para cúmulo, quando é preciso serve-se da música – e com que talento alguns cineastas o fazem! – para sublinhar momentos da mais profunda comoção. Como não havemos nós de ficar cativos de uma arte que nos descreve e analisa os mil e um problemas da nossa vida apresentados nestas condições e com tais predicados oferecidos nesta comunidade de todas as artes que já Ricardo Wagner na sua obra ansiava obter." ("A Grande Arte" – DN, 5/3/1972).
"Parsifal" foi a sua última crónica no Diário de Notícias. Sendo a última das grandes obras de Wagner, Raul Lino compara-a com o "Fausto" de Goethe. Quer a obra musical quer a obra literária partilhariam neste caso um mesmo tema – o amor, no sentido mais lato do conceito – e um mesmo legado artístico e ético, com intensa componente metafísica, com a qual Raul Lino se identificou sempre:
"Curioso é que tanto no «Parsifal» como no final da tragédia de «Fausto», é criado um ambiente sacral, como sendo o meio mais propício ao desenvolvimento das ideias generosas que nos devem conduzir a conclusões puramente altruístas. (…)
Ouçamo-la, pois, a música do «Parsifal»!
Quem puder, que o faça com recolhimento!" (DN, 15/4/1973).


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Está assim, por agora, concluída esta precária e breve viagem sobre os artigos de Raul Lino no Diário de Notícias. Fica a consciência dos seus limites e da subjectividade que necessariamente esteve presente na tentativa de combater a entropia que a quantidade e variedade dos textos e dos temas encontrados introduziu nos propósitos deste trabalho.
Considerando que tudo o que se escreve, com mais ou menos engagement consciente, é ideológico e político e a influência de qualquer escrito é directamente proporcional à sua circulação, estes textos revestem-se de uma considerável importância histórica e cultural. Raul Lino, figura incontornável do século XX português, escreveu estes artigos com uma manifesta e generosa intenção pedagógica, projectando neles a sua personalidade inteira, num discurso em que revela, a partir de um logos naturalista simbólico, e de um pathos romântico sentimental, um ethos de sinceridade autêntica.
Apesar do seu conservadorismo nostálgico e de algum imobilismo ideológico, Raul Lino terá sido culturalista sem arqueologismos, anti-modernista mas não anti-moderno, nacionalista e patriota, senhor do sentido da tradição e da memória.
Talvez o melhor seja, mais uma vez, dar a palavra ao arquitecto que, no fim da sua autobiografia de 1969 esclarecia já os seus objectivos em relação aos textos que continuaria ainda longamente a escrever:
"Para acabar julgo que devo também dar nota da série de artigos de jornal ou de revistas que tenho publicado nestes últimos 20 anos. São, pode dizer-se, variadíssimos quanto aos temas tratados, mas obedecem sempre a um mesmo rumo que se pode expressar por um intento de comunicar a quem os quiser ler qualquer coisa de género animador ou tranquilizador que interesse às criaturas que vivem acordadas na época que estamos atravessando, para assim o continuarem a fazer mas porventura com mais compreensão e menos perturbação e arrelia. Nestes artigos não se faz crítica só por criticar, mas somente para levar a propalação a seguir o rumo estabelecido. A crítica artística contudo serve igualmente para corrigir, corrigir no sentido nietzscheano - «toda a religião e toda a arte tende para o corregimento do mundo»". ("Raul Lino visto por ele próprio" – Vida Mundial, 21/11/1969).


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Finalmente, já que se optou por não detalhar aqui o estudo dos seus artigos sobre Sintra – de resto já devidamente divulgados - há que iluminar o sítio mais amado, o lugar cujo espírito mais assombrou, feliz, a alma poética de Raul Lino, roubando agora as palavras sábias e belas de Eduardo Lourenço:
"Por acasos da história e da natureza aqui temos a Baviera que não somos. Num só ponto se cruzam o deserto de onde também vimos e o oriente onde ainda estamos. Ilha de amor, cercada de terra com vista sobre o mar, aqui nos convertemos em saudades de nós mesmos. Dizendo-lhe adeus, os que partiram já estavam de regresso. E nós com eles."
































































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