Razão, Alienação e Ideologia. Marcuse, Marx e Hegel.

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Razão, Alienação e Ideologia Marcuse, Marx e Hegel1

Rui Esteves Doutoramento em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Introdução O presente ensaio, tem como finalidade essencial colocar em diálogo três importantes pensadores, filósofos que influenciaram e continuam a influenciar não só a filosofia, mas também a literatura, as artes, a sociologia, a psicologia e a política do mundo contemporâneo. Escolhi, por isso, três temas que penso poderem servir como bons elementos para pensar não apenas as afinidades entre os três filósofos mas também as divergências, ou mesmo as subtis diferenças, tantas vezes determinantes. O primeiro tema a abordar será o tema da razão. O tema, o conceito, a ideia de razão, é transversal às filosofias de Marcuse, Marx e Hegel. Pode, ainda que salvaguardadas as diferenças, dizer-se que os três autores valorizam e defendem a ideia de razão. Tentarei por isso, de forma resumida, dar indicações, apontar caminhos, mostrar como isso acontece. O segundo tema a tratar será o tema da alienação. O termo alienação é, normalmente e de pronto associado a Marx, mas será por ventura interessante, e penso que proveitoso, vermos este assunto já presente em Hegel e de que forma influenciou e determinou as filosofias de Marx e Marcuse. O terceiro tema é o da ideologia. Já com uma breve noção do conceito de razão e de alienação em Marcuse, Marx e Hegel, estaremos em condições de compreender melhor de que forma os três filósofos mostram, explicam, espelham e criticam o conceito, a existência e os modos de entendimento, expressão e domínio ideológico.                                                                                                                 1

Este ensaio foi escrito no âmbito do seminário Tópicos Avançados de Filosofia: Hegel e Marx,

leccionado pelo Professor Doutor José Barata-Moura, no Departamento de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, no decurso do 2º Semestre do ano lectivo de 2015/2016.

 

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1. A Razão «Conceber aquilo que é, é a tarefa da filosofia, pois aquilo que é, é a razão2». Hegel

Esta bela e precisa citação de Hegel dá-nos conta, de forma elucidativa e directa, da intenção que subjaz a toda filosofia hegeliana. É uma frase clara que condensa o essencial. De uma citação tão curta podemos subtrair tanto de fundamental. A tarefa (die Aufgabe) da filosofia é, para Hegel, conceber aquilo que é, e aquilo que é, é a razão. É neste sentido que Hegel refere que «a coragem da verdade (...) é a primeira condição da filosofia3». A filosofia, para Hegel, exige a coragem na procura do seu objecto: a verdade. A filosofia é o esforço de pensar, dizer e expressar o verdadeiro, aquilo que efectivamente é. Esse esforço do pensamento e da compreensão é guiado pela razão. Hegel considera e valoriza o sentimento, o entendimento, a intuição, a reflexão e a representação, mas o seu objectivo, a sua conclusão, é sempre a de um pensar que engloba em compreensão todas as etapas anteriores, etapas que possibilitam um saber como processo, um conhecimento em movimento, um enriquecimento acompanhando a realidade, como expressão do absoluto, através da razão. É que para Hegel a realidade (o ser, aquilo que é) é, sobretudo, o pensamento4. E é precisamente esse um dos pontos mais incisivos da crítica de Marx a Hegel. É que, para Hegel, a filosofia tem de ser idealista. E para Marx, é esse o problema: a filosofia não pode ficar pelo pensamento. Para Marx esse foi sempre um dos principais problemas da filosofia e de todos os filósofos: «Os filósofos têm apenas                                                                                                                 2

«Das was ist zu begreifen, ist die Aufgabe der Philosophie, denn das was ist, ist die Vernunft.»,

Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts, oder Naturrecht und Staatswissenschaft im Grundrisse, Vorrede; Theorie Werkausgabe, red. Eva Moldenhauer e Karl Markus Michel (daqui em diante: TW), Frakfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1970, vol. 7, p. 26. 3

«Der Mut der Wahrheit (...) ist die erste Bedingung der Philosophie.», Georg. W. F. Hegel,

Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, Heidelberger Niederschrift; TW, vol. 18, p.13. 4

«”Ser” significa para Hegel, ya en este lugar, ser-para-pensamiento, “objetivo” significa objetivo-

para-subjetivo, y a la inversa». Por impossibilidade de recurso à versão original alemã da tese de doutoramento de Herbert Marcuse, cito aqui da tradução espanhola, da responsabilidade de Manuel Sacristán, Ediciones Martínez Roca, Barcelona, 1970, p. 36.

 

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interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo5». A razão, para Marx, exige mais do que interpretar, idealizar, pensar. A razão exige a transformação da realidade. Exige o descer do mundo das ideias para o mundo real. Para Marx trata-se da necessidade de transformar o real, fazer dele racional, humano. Marx foi um crítico de Hegel e seu devedor, deve-lhe a dialéctica e o sentido histórico de compreensão, mas não pôde aceitar o seu idealismo. O método dialéctico desenvolvido e aprofundado por Marx a partir de Hegel exigiu-lhe a crítica do próprio Hegel. A compreensão da realidade e da história da filosofia, no seguimento do filósofo idealista, conduziu-o a uma crítica fundada em pressupostos materialistas e a uma teoria direcionada a uma práxis transformadora. Para Marx trata-se de desmistificar o mundo, retirar-lhe as ilusões, os véus, desmascarar as mentiras, trata-se de não perpetuar a subjugação, o domínio, a exploração. Para Marx o problema é histórico. Marx diz: «Em todas as épocas os pensamentos da classe dominante são os pensamentos dominantes, quer dizer: a classe que é o poder material dominante da sociedade é, simultaneamente, o seu poder espiritual

dominante 6 ». A razão exige a elucidação, exige a crítica, o

pensamento esclarecido, a prática, a transformação, em última instância: a revolução. A razão, para Marx, exige a revolução. A revolução não como revolução abrupta, violenta, mas como processo, processo de compreensão e progressiva transformação, mudança, conquista, realização. A revolução como realização do humano. A razão humana, para Marx, exige a realização do humano, basta recordarmos a poderosa sentença de Die heilige Familie de que «se o homem é formado pelas circunstâncias, então há que formar as circunstâncias humanamente». Marcuse deve muito a Marx e a Hegel. A sua tese de doutoramento, dedicada à ontologia de Hegel7 e orientada por Martin Heidegger, espelha já grande parte das suas motivações. Embora aí a influência de Heidegger seja evidente, e mesmo tendo Marcuse conservado sempre de Heidegger certos traços de pensamento, como a                                                                                                                 5

A famosa 11ª tese das Teses sobre Feuerbach (Thesen über Feuerbach), de Karl Marx.

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«Die Gedanken der herrschenden Klasse sind in jeder Epoche die herrschenden Gedanken, d. h. die

Klasse, welche die herrschende materielle Macht der Gesellschaft ist, ist zugleich ihre herrschende geistige Macht», Marx-Engels, Die Deutsche Ideologie, I, A, 2; MEW, vol. 3, p. 46. Tradução de José Barata-Moura. 7

Marcuse estudou, na Universidade de Freiburg, com Martin Heidegger, em 1928. Daí resultou a sua

tese de doutoramento: Hegels Ontologie und die Theorie der Geschichtlichkeit, publicada em 1932.

 

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dimensão de possibilidade projectada como transcendência8, é em Marx e Hegel, sobretudo em Marx, que estarão as suas grandes referências (a par de Freud). Para Marcuse o pensamento crítico exige a crítica da racionalidade9. Pode soar contraditório, mas para o filósofo e sociólogo de Frankfurt, a exigência de estabelecer a razão comporta a crítica da racionalidade instrumental existente como lógica de domínio, lógica que perpetua o poder estabelecido, a dominação, a subjugação. A crítica da racionalidade existente (que é no fundo irracional) pressupõe um restabelecer do entendimento de razão, uma clarificação desse entendimento e um combate à apropriação de uma ideia de racionalidade (manipuladora) subjacente ao crescimento e domínio do sistema capitalista. É como se o próprio sistema se apropriasse da “razão”, se tornasse “racional”, impondo lógicas de domínio e submetendo todos os intervenientes à sua estrutura de poder. O filósofo de Frankfurt afirma que: «o domínio tende a tornar-se neutro e intermutável, sem que contudo e por essa transformação o todo se mude a si próprio; o domínio só depende do interesse e da capacidade de conservar o aparelho como um todo e de o ampliar ainda mais», nesse sistema de perpetuação e ampliação o aparelho absorve as suas contradições, estendendo-se e aumentando a dominação. O sistema capitalista absorve as suas próprias contradições, regenerando-se e crescendo ainda mais em poder e controlo. Para Marcuse a racionalidade técnica e instrumental sobrepõe-se, nas sociedades contemporâneas, à razão humana, ao pensamento esclarecido. Os oprimidos, os subjugados, os trabalhadores, os cidadãos afectados pelos aparelhos ideológicos, pelos media, pelas campanhas agressivas de marketing e pelo domínio tecnológico são instrumentalizados no seu pensar, nos seus comportamentos e até nos seus sentimentos, instintos e desejos por um sistema dominado pela lógica do lucro.                                                                                                                 8

«Acima da realidade, está a possibilidade», «Höher als die Wirklichkeit steht die Möglichkeit.».

Martin Heidegger, Sein und Zeit (1927), § 7, C; Tübingen, Max Niemeyer Verlag, 1972, p. 38. Esta dimensão é importante, não só no pensamento de Heidegger e Marcuse, mas também na filosofia de outro pensador alemão e marxista de nome Ernst Bloch. 9

«O pensamento crítico esforça-se por definir o carácter irracional da racionalidade estabelecida (que

se torna crescentemente óbvia) e por definir as tendências que causam essa racionalidade a gerar a sua própria transformação», «Critical thought strives to define the irrational character of the established rationality (which becomes increasingly obvious) and to define the tendencies which cause this rationality to generate its own transformation.», Herbert Marcuse, One-Dimensional Man. Studies in the Ideology of Advanced Industrial Society (1964), III, 9; Boston, Beacon Press, 1969, p. 227.

 

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Marcuse considera a “razão” de domínio como a racionalidade de uma sociedade industrial de consumo, uma sociedade capitalista que perpetua e, mais, alimenta-se das desigualdades e do enfraquecimento dos mais desfavorecidos. Se de alguma forma a crítica da técnica por parte do filósofo de Frankfurt provém de Heidegger (incessante crítico da técnica), o seu posicionamento é diverso. Marcuse pretende restabelecer (ou estabelecer) a razão, enquanto que, por sua vez, Heidegger mostrou-se sempre crítico, não apenas da técnica, mas da própria ideia de razão provinda das luzes e, mais ainda, afirmou-se como um permanente crítico de toda a era Moderna. Marcuse critica a racionalidade existente como tirania, poder e controlo ideológico por parte do sistema. Critica a racionalidade técnica como lógica de dominação própria do capitalismo. Para Marcuse, de certa forma, o logos tradicional destaca-se como lógica de dominação10, daí a importância que atribui à psicanálise freudiana, à compreensão dos impulsos (de vida e de morte), desejos e pulsões da libido11, bem como das motivações da consciência e do inconsciente (id, ego e superego). Isso não representa uma desvalorização da razão, pelo contrário. Marcuse salienta a todo o tempo a importância da razão, inclusivamente na teoria de Freud, na sua investida em trazer o inconsciente ao conhecimento, ao saber; ele refere: «Não existe talvez, nos últimos decénios, ninguém mais racionalista e com um pensamento mais racional do que Freud, cuja totalidade da obra parece pretender mostrar que as forças irracionais ainda aparentes e existentes no homem terão que ser submetidas e subjugadas pela razão, se se pretender melhorar as condições do homem. A sua frase: “onde

estava o id deverá nascer o ego” é talvez a mais racional de todas as suas

afirmações e das muitas que podemos encontrar na psicologia»12.

                                                                                                                10

Herbert Marcuse, Eros and Civilization, A Philosophical Inquiry into Freud (1955), New York,

Vintage books, 1966, p. 112. 11

Para um desenvolvimento deste tema ver, essencialmente, o livro de Herbert Marcuse: Eros and

Civilization, num diálogo com o pensamento de Freud, debatendo-se com as teorias psicanalíticas e políticas de Erich Fromm, Wilhelm Reich e também do psicólogo Gustav Jung. 12

Aqui na edição portuguesa, O Fim da Utopia, A Ideia de Progresso à Luz da Psicanálise, Herbert

Marcuse, trad. Bernardo Frederico Froehling de Figueiredo, Moraes Editores, Lisboa, 1969, p. 64.

 

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É curiosa a interpretação de Marcuse a respeito de Freud. E é igualmente curiosa a crítica da racionalidade instrumental que, juntamente com outros filósofos da Escola de Frankfurt, faz a respeito da razão13. Se lembrarmos que para Kant, o filósofo do idealismo transcendental, só existe uma razão, podendo haver dela um uso teórico ou prático, podemos ficar confusos. Mas trata-se apenas de colocar bem o problema. Afinal de contas, ainda que sob entendimentos diversos, é disso que se trata quer para Hegel, quer para Marx. E também para Marcuse. O filósofo de Frankfurt, à luz da razão, critica uma racionalidade existente desenvolvida “cegamente” por via do progresso técnico, ideológico, da ganância, do lucro e do desejo de poder. É por isso que fala de uma razão produtora de ilusões, estímulos, desejos, que, aliena, cega, perpetua e abre ainda mais o fosso de desigualdades. Em suma: uma racionalidade que, afinal de contas, é irracional. Para Marcuse a razão que importa defender é, sobretudo, recusa, recusa do existente. É razão crítica contra a ordem estabelecida, protesto contra a injustiça que vigora 14 em que o papel da negação (dialéctico 15 ) tem função determinante de libertação e oposição face ao existente. 2. Alienação Como vimos, para Marcuse, a razão da sociedade industrial (capitalista), perpetua o domínio, a subjugação, o controlo, desenvolve-se e estende-se alienando e oprimido os mais desfavorecidos. É importante, também por isso e em íntima consonância com o tema da alienação, convocar um tema fundamental na filosofia de Hegel: o tema da autoconsciência. A autoconsciência é, na filosofia hegeliana, pressuposto de liberdade. A filosofia de Hegel é, talvez acima de tudo, uma filosofia que procura a

                                                                                                                13

Como exemplo, entre tantos outros possíveis, ver: Eclipse of Reason, Max Horkheimer, Oxford

University Press, Inc, New York, 1947.     14

«the Great Refusal – the protest against that which is», «a Grande Recusa – o protesto contra aquilo

que está», Herbert Marcuse, One-Dimensional Man, I, 3; edição cit., p. 63. Tradução de José BarataMoura. 15

Para este tema é importante ter em consideração: Herbert Marcuse, «A Note on Dialectic», Reason

and Revolution and the Rise of Social Theory, Boston, Beacon Press, 1969.  

 

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liberdade. A liberdade é o contrário da alienação. A filosofia de Hegel procura um saber consciente do seu saber. Um saber consciente do seu saber é um saber-se. Mas a alienação, para desaparecer, não depende apenas da autoconsciência, Marx sabia-o. As condições materiais, o modo de funcionamento da sociedade, a administração, entre outros factores, podem forçar, obrigar e subjugar a condições alienantes o ser mais auto-consciente. Talvez o sonho do todo, de uma compreensão do todo histórico e em devir, tenha forçado Hegel ao idealismo. Marx não poupou nas críticas a Hegel e, sobretudo, ao hegelianismo idealista. Para Marx a autoconsciência é determinante mas, por si só, não liberta; é necessária a prática, a acção, a transformação. A alienação é um tema hegeliano. É um tema fundamental na filosofia da história em Hegel; com forte ênfase teológica e política é também um tema relacionado com a razão universal (Kant). Hegel fala de uma alienação do espírito nos povos e na história com vista ao auto-conhecimento. O espírito (Deus) precisa dos povos, da história e do mundo para que possa conhecer-se como espírito. É nos homens que o espírito pode conhecer-se, através da consciência. O tema da autoconsciência e da alienação aparecem simultaneamente e relacionam-se com a questão do trabalho, como o trabalho do espírito na tomada de consciência de si através da razão humana. Marx reconhece o alcance da filosofia de Hegel mas critica-lhe o misticismo. «A filosofia tem de fazer da crítica do céu a crítica da terra16», diz. Para Marx a filosofia de Hegel é uma filosofia de “cabeça para baixo”. Hegel pensa a realidade como ideia, Marx não pode aceitar isso. Reduzir a realidade à ideia é, para Marx, descurar a realidade efectiva (Wirklichkeit). Para Hegel, a realidade efectiva é o espírito objectivo. Para Marx, a realidade efectiva é o ser na sua materialidade desenvolvida e em desenvolvimento.                                                                                                                 16

«É, antes de mais, tarefa da filosofia, que está ao serviço da história, depois da figura da auto-

alienação humana ter sido desmascarada, desmascarar a auto-alienação nas suas figuras profanas. A crítica do céu transforma-se deste modo em crítica da terra, a crítica da religião em crítica do direito, a crítica da teologia em crítica da política», «Es ist zunächst die Aufgabe der Philosophie, die im Dienste der Geschichte steht, nachdem Selbstentfremdung in ihrer unheiligen Gestalten zu entlanven. Die Kritik des Himmels verwandelt sich damit in die Kritik der Ende, die Kritik der Religion in die Kritik des Rechts, die Kritik der Theologie in die Kritik der Politik». Karl Marx, MEGA 2/2, p. 171

 

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Por isso, para Marx, a alienação tem que ver com condições materiais de vida. Não é a autoconsciência, por si só, que liberta os seres “iluminados” e autoconscientes da sua condição alienante, mas a mudança na realidade concreta, a melhoria das condições reais de existência, a luta, a práxis transformadora, que realizam a liberdade humana. É a transformação humana das circunstâncias que muda a vida dos homens. Marcuse valoriza (tal como Marx) a autoconsciência e articula-a com a lógica de domínio das sociedades capitalistas: «a questão sobre quais necessidades devem ser falsas ou verdadeiras só pode ser respondida pelos próprios indivíduos, mas apenas em última análise; isto é, se e quando eles estiverem livres para dar a sua própria resposta. Enquanto eles forem mantidos incapazes de ser autónomos, enquanto forem doutrinados e manipulados (até os seus próprios instintos) a resposta que derem por essa questão não pode ser tomada por sua17». Este trecho releva uma reivindicação pela autonomia de um pensar livre (Kant) e, simultaneamente, aponta para uma base material de condicionamento de liberdades, de opressão e controlo. Este ponto parece aproximar Marcuse de Marx. O filósofo de Das Kapital tomou como árdua tarefa o estudo da economia por considerar ser precisamente aí (nas relações económicas e sociais) que residem os fundamentos históricos do domínio de determinadas classes em relação a outras, para ele a história dos homens é a história dessa luta entre as classes dominadas e as classes dominantes. A alienação, para Marx, é sobretudo (embora não exclusivamente) alienação pelo trabalho, pela exploração, repressão e esgotamento dos trabalhadores assalariados com vista ao lucro, crescimento e supremacia das classes detentoras do poder económico. É a perpetuação da condição de miséria inerente à lógica do capitalismo. 3. Ideologia O tema da ideologia talvez seja o mais delicado. Se bastante há que diferencie as posições de Marcuse, Marx e Hegel, algo há também que as aproxima.                                                                                                                 17

«The question of what are true and false needs must be answered by the individuals themselves, but

only in the last analysis; that is, if and when they are free to give their own answer. As long as they are kept incapable of being autonomous, as long as they are indoctrinated and manipulated (down to their very instincts), their answer to this question cannot be taken as their own», Herbert Marcuse, Eros and Civilization, p. 112.

 

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Todos os três são, como filósofos, críticos do existente. São críticos do positivo, do dado, do estabelecido. Críticos de um real que não cumpre as exigências da razão. A compreensão histórica é comum a todos eles e, de certa forma, também a ideia de progresso. Hegel foi um crítico frontal do positivismo jurídico alicerçado em tradições históricas obsoletas. Marx um crítico da economia. Marcuse da racionalidade dominante. Dos três filósofos que aqui tratamos, a posição política de Hegel talvez seja a mais

ambígua.

É

conhecida

a

influência

do

pensamento

hegeliano

no

desenvolvimento da filosofia social e política dos séculos XIX e XX. A filosofia de Hegel foi influência directa nas mais diversas correntes e posições políticas, da direita alemã (os velhos hegelianos), à esquerda alemã (os jovens hegelianos), do fascismo italiano (Giovanni Gentile) e do liberalismo italiano (Benedetto Croce) à esquerda revolucionária russa (Lenine), só para dar alguns exemplos. Hegel, filósofo cristão e conservador, apelidado de filósofo de Estado parecia oscilar entre a posição liberal e conservadora. Contudo, no cerne do seu pensamento e da sua visão processual da história e da realidade, algo de crítico, inconformado e progressista parece ressoar sempre latente. A liberdade como necessidade, o sentido teleológico do mundo e a razão como exigência da verdade (ou a verdade como exigência da razão) fazem da filosofia de Hegel uma filosofia com um interior de cariz revolucionário. É certo que se há filósofo, entre os três que aqui estudamos, que representa a lógica da ideia (ideologia) ele é, sem sombra de dúvida, o filósofo da Wissenschaftslehre. Para Hegel o Estado da Razão, o Estado Ético, é Ideia, basta lembrar o desenvolvimento da sua obra Grundlinien der Philosophie des Rechts em direcção à eticidade do Estado. O Estado, para Hegel, devia tornar-se racional, ético, fundado e solidamente edificado segundo leis e instituições justas, reflexo da Ideia da Razão, ou mesmo, a personificação da Ideia de Razão vertida em leis racionais e simbolicamente representado pela figura do monarca (monarquia constitucional). Hegel acreditava num sentido teleológico da história, num progresso inscrito na própria realidade, na realização da liberdade como necessidade. Sem ser um

 

9  

filósofo assumidamente progressista, tinha uma visão progressista da história e do ser18, já que considerava a realidade como processo, movimento e devir necessários. Talvez a crítica assumida da Ideologia seja algo que distinga Marcuse e Marx de Hegel. Não quer isto dizer que Hegel estivesse apenas acomodado, não exercesse contestação ou pensamento contra o existente. Pelo contrário. Mas para Hegel, a realidade, na sua expressão absoluta, é Ideia. Marx interessou-se pela crítica, pela filosofia, pela crítica do idealismo, da filosofia e da ideologia, em grande parte, por força das suas dedicadas leituras de Hegel. Marx, redigiu diversos textos de crítica à Filosofia do Direito de Hegel19, textos que motivaram e impulsionaram o seu aprofundamento da dialéctica hegeliana, direcionando-a, ou talvez melhor, inscrevendo-a, progressivamente, numa base materialista de compreensão. Esses textos, no seguimento de outros já desenvolvidos por Marx, como os seus estudos da filosofia grega20, levaram-no, progressivamente, não só a uma crítica do direito, mas da política e da economia. A questão da história e o método dialéctico acompanharam Marx em toda a sua investigação. Mas a crítica do idealismo, do misticismo e da própria realidade (onde tudo assenta para Marx) fizeram dele um persistente combatente contra as ideologias historicamente instituídas, contra as filosofias e ideologias, contra a exploração do ser humano. A crítica de Marx à filosofia política de Hegel é sem reservas. Marx ataca, persistentemente, as ilusões idealistas de Hegel, bem como de todos aqueles que, a seu tempo, perfilharam das ideias hegelianas não fazendo o esforço por ultrapassar o idealismo e que, desse modo, representariam, também eles, a ideologia burguesa dominante. Para Marcuse a crítica da Ideologia é, essencialmente, a crítica da racionalidade dominante que condiciona e instrumentaliza os homens: «A gestão                                                                                                                 18

Como refere Marcuse, a propósito da filosofia de Hegel: «Hegel pensou que as feridas do espírito

curam-se sem deixar cicatrizes. Acreditava que, no nível atingido de civilização, com o triunfo da razão, a liberdade ter-se-ia tornado realidade.», «Hegel thought that “the wounds of the spirit heal without leaving scars”. He believed that, on the attained level of civilization, with the triumph of reason, freedom had become a reality», Eros and Civilization, p. 117. 19

Marx redigiu diversos textos críticos da filosofia de Hegel. Relativamente à Filosofia do Direito de

Hegel, o mais célebre: Karl Marx, Zur Hegelschen Rechtsphilosophie; MEGA2, vol. I/2. 20

 

Karl Marx, Differenz der demokritischen un epikureischen Naturphilosophie, IV; MEGA2, vol. I/1.

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científica e a divisão científica do trabalho incrementaram largamente a produtividade do empreendimento económico, político e cultural. Resultado: o padrão de vida mais elevado. Ao mesmo tempo, e com o mesmo fundamento, este empreendimento racional produziu um padrão de espírito (mind) e de comportamento que justificava e absolvia mesmo os traços mais destrutivos e opressivos do empreendimento. A racionalidade científico-técnica e a manipulação estão caldeadas em novas formas de controlo social21». É clara a crítica de Marcuse à sociedade industrial capitalista. Esta, além de restringir, controlar e manipular os desejos e os quereres dos cidadãos, adormece-os, torna-os apáticos, iludidos por uma liberdade que é, a contrário, uma não-liberdade que impede a independência de pensamento, a crítica, a oposição. É um dos aspectos recorrentemente destacados na obra One-Dimensional Man de Marcuse: a hegemonia ideológica da sociedade industrial, que funciona como esfera unidimensional, controla e manipula o funcionamento da sociedade, ao ponto de, por absurdo que possa parecer, as reivindicações de esclarecimento, os movimentos de crítica e de oposição sejam recebidos como “anomalias” ou actos irracionais. Marcuse assumiu-se como continuador de Marx na crítica das ideologias. Já vimos que de certa forma, Hegel, Marx e Marcuse têm pontos de ligação. A influência de Hegel é determinante no pensamento dos dois autores, quer do ponto de vista positivo (da influência histórica, dialéctica e processual), quer do negativo (trazendo à necessidade uma crítica do idealismo e um aprofundamento materialista e dialéctico). E apesar de Marcuse não ter empreendido uma crítica profunda da lógica do capitalismo, como efectuou Marx no seu monumental estudo, o filósofo de Frankfurt considerou, a partir de dada altura, que era Marx, juntamente com Freud, que melhor explicavam e serviam a compreensão, a análise e a crítica dos problemas históricos e humanos da cultura, da política e da vida humana.

                                                                                                                21

«Scientific management and scientific division of labor vastly increased the productivity the

productivity of the economic, political, and cultural enterprise. Result: the higher standard of living. At the same time and on the same ground, this rational enterprise produced a pattern of mind and behavior which justified and absolved even the most destructive and oppresive features of the enterprise. Scientific.technical rationality and manipulation are welded together into new forms of social control», Herbert Marcuse, One-Dimensional Man, II, 6; edição cit,, p. 146. Tradução de José Barata-Moura.  

 

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Conclusão Talvez possamos concluir, ainda que qualquer conclusão seja sempre provisória, que são mais as afinidades do que as diferenças entre os três filósofos aqui estudados. Os temas escolhidos parecem confirmá-lo. Entre as suas filosofias, parece o sentido de causa, o comprometimento e a procura do verdadeiro nortear os seus escritos, as suas investidas e as suas convicções. Entre todos eles, a questão da razão é determinante. Vimos que para Hegel a razão e realidade são a mesma e uma só. Para Marx a razão é exigência da sua realização através da transformação das condições de vida humanas. Para Marcuse a razão é motor de crítica de uma racionalidade meramente técnica e instrumental que, além de omitir a razão, não deixa espaço à imaginação, à liberdade e à reivindicação de direitos. Quanto ao tema da alienação, vimos que está já presente na obra de Hegel, comportando um significado teológico relacionado com o trabalho e a liberdade humana. Esse tema tornar-se-ia então fundamental para Marx, quer pela crítica do misticismo quer pela exigência da transformação e libertação das condições de alienação. E que Marcuse assume uma oposição crítica de reivindicação, investindo numa acção por oposição ao sistema de domínio político, ideológico e tecnológico criador de apatia e submissão através da manipulação generalizada. Quanto ao tema da ideologia, vimos que todos os três autores se posicionam como críticos do existente e, de alguma forma, como defensores do progresso. Vimos que, para Hegel, a realidade é, sobretudo, Ideia. Para Marx a crítica à Ideologia é também, mas não só, a crítica de Hegel e do hegelianismo subsequente, por colocar sempre a sua visão no mundo das ideias e do pensamento evitando o confronto directo com a realidade material (dialéctica) do existente. Quanto a Marcuse vimos que a crítica da Ideologia é direcionada à hegemonia repressiva, controladora e dominadora nas sociedades instrumentalizadas e tecnológicas próprias do capitalismo do século XX.

 

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Bibliografia

 



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