“Razão, razões: Weber no “turbilhão” da Modernidade”

May 31, 2017 | Autor: A. dos Santos de ... | Categoria: Max Weber, Modernidade
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XI Congresso Brasileiro de Sociologia 1 a 5 de setembro de 2003, UNICAMP, Campinas, SP Tipo da Atividade: apresentação de proposta individual em GT Título do Artigo: “Razão, razões: Weber no “turbilhão” da Modernidade” Autor: Armindo dos Santos de Sousa Teodósio

Resumo O artigo analisa um dos conceitos centrais nos estudos sociais, a idéia de racionalidade, discutindo a concepção original e as interpretações advindas a partir da obra de Weber. Referência fundamental na teoria social contemporânea, o pensamento weberiano foi e ainda é objeto de interpretações parciais, distantes, distorcidas ou mesmo incoerentes quanto às suas idéias iniciais. Sobretudo no que diz respeito às noções de racionalidade e racionalização a incompreensão do alcance conceitual das concepções weberianas torna-se mais evidente, com desdobramentos significativos no campo dos estudos sociais. Sendo assim, o presente ensaio pretende contribuir para o entendimento das possibilidades, limites e desafios conceituais quanto ao estudo da construção da racionalidade no espaço social contemporâneo, a partir da discussão das concepções de um dos autores fundantes desse objeto de investigação.

I – Em busca de um objeto de análise

Não resta dúvida que Max Weber ocupa lugar central nas preocupações metodológicas e temáticas dos estudos sociais contemporâneos, a ponto de se encontrar entre os chamados “clássicos” da teoria social (ALEXANDER, 1999). A despeito de seu papel fundamental para a formação da Sociologia como disciplina científica e das linhas de pesquisa construídas a partir de preocupações centrais na sua obra, se percebe muitas vezes que passagens fundamentais de sua obra ainda geram polêmica e interpretações divergentes entre diferentes autores que o sucederam, sobretudo no campo dos estudos organizacionais. Nesse sentido, não se torna despropositado afirmar que o pensamento weberiano contemporâneo por vezes distancia-se das próprias concepções de Weber, num movimento análogo ao ocorrido entre a abordagem “marxiana” e a “marxista”. Caso as divergências se situassem apenas nessa esfera, as diferentes interpretações representariam muito mais riqueza de debate intelectual e avanço do conhecimento

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sociológico/organizacional do que interpretações equivocadas. No entanto, quando diferentes campos do saber se apropriam de conceitos weberianos, deturpando-os, essa conotação cai por terra. Exemplos trágicos desses equívocos podem ser observados em erros imperdoáveis como o de DAYRELL (1994, p. 5), que chega a afirmar que “Weber estava equivocado ao criar a burocracia”, até interpretações mais sofisticadas como a da chamada “crítica administrativa da burocracia”, que segundo MOTTA & BRESSER (1996) desconsidera o aparato burocrático como forma de dominação e/ou poder e, principalmente, como tipo ideal. Para os dois autores, a chamada “crítica administrativa da burocracia” é constituída, dentre outras abordagens, pelas análises de Merton, Gouldner e Selzinick com relação ao fenômeno da organização burocrática. Os problemas em torno do entendimento da obra de Weber não dizem respeito tão somente à apropriação indevida de suas concepções metodológicas e teóricas por outros autores, mas também aos problemas de tradução de sua obra e ao seu estilo “contorcido de escrever”. Segundo KALBERG(1980, p. 2):

“O próprio Weber é largamente responsável pela falta de clareza que cerca suas análises da “racionalidade” e das atuações recíprocas dos vários aspectos dos processos históricos de racionalização. Suas discussões esparsas e fragmentadas sobre este tema são provavelmente mais para mistificar do que para iluminar e, apesar de sua centralidade, Weber em parte alguma oferece uma explicação sucinta deste tema.”

Soma-se a isso o fato de grande parte dos escritos weberianos terem chegado tardiamente às mãos dos estudiosos dos grandes centros de pesquisa social, sobretudo nos Estados Unidos, e muitas vezes tendo suas preocupações originais vinculadas a projetos de determinadas correntes de pensamento. Para ALEXANDER (1999), por exemplo, Parsons ignorava a tensão entre teorização normativa e teorização instrumental, que permeia até a sociologia da religião de Weber. Isso teoria levado a teorização parsoniana do pensamento weberiano a se inspirar mais em interesses funcionalistas do que na raiz de pensamento do autor. Segundo RAMOS (1989, p. 32):

“O funcionalismo qualificado de Max Weber tem sido mal compreendido por alguns de seus intérpretes, e mesmo pelos que se auto-proclamam seus seguidores. Um caso a assinalar ‘Talcott Parson, cuja obra, ao que parece,

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sofreu a influência de Max Weber. Parsons mostra pouca ou nenhuma ambigüidade moral em relação à racionalidade imanente ao sistema de mercado.”

Mas é justamente de uma série de ambivalências e tensões presentes no pensamento weberiano que se constrói sua complexidade e relevância para a análise social. Nesse sentido, a tensão entre teorização normativa e instrumental coloca-se de extrema relevância para o entendimento de um dos conceitos centrais da obra de Weber e uma de suas principais contribuições para a análise organizacional, o de racionalidade, como será discutido mais adiante. Soma-se a isso o fato de que a idéia de racionalidade talvez seja um dos conceitos mais complexos do pensamento weberiano e que tenha sido alvo de interpretações das mais simplificatórias possíveis, atribuindo uma dicotomia superficial entre racionalidade instrumental e substantiva. Segundo RAMOS (1989), um dos exemplos de interpretação limitada de racionalidade pode ser encontrado no pensamento de Karl Mannheim, na medida em que, apoiando-se em Weber, estabelece uma distinção entre racionalidade substancial e funcional. Sendo assim, o presente artigo se dedica a discutir o pensamento weberiano, buscando compreender o alcance um de seus conceitos fundamentais e sua contribuição para o pensamento organizacional moderno. Inicialmente será feita uma contextualização histórica, destacando as preocupações políticas e sociais do autor face aos dilemas de sua época, como pano de fundo para o entendimento do nascedouro de sua concepção acerca da racionalidade. Ao longo da exposição serão feitos contrapontos entre o pensamento de Weber e o de Simmel, seu contemporâneo, sempre que se fizer útil para a compreensão da concepção weberiana de racionalidade. Antes de se avançar, cabe destacar que as reflexões que seguem obedecem ao formato de ensaio. Parte-se do pressuposto de que alguns termos e conceitos weberianos são familiares ao leitor, não cabendo seu aprofundamento, sob pena de desvio da reflexão principal em torno da racionalidade. Assim, privilegia-se a fluidez de idéias e as possibilidades de construção de argumentação teórica, em detrimento da pretensão de esgotamento da questão, através da apresentação sistemática e exaustiva das abordagens e autores mencionados. Nesse ponto vem de Simmel a essência da idéia de ensaio:

“Simmel afirmara que o importante não é ter encontrado algum tesouro, mas ter escavado. (...) Isto explica também o inusitado, muitas vezes, do ensaio, que

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toma rumos que não se deixam entrever no início, como se no meio do caminho se resolvesse tomar uma outra direção. Isto significa que não interessam tanto as conclusões a que um ensaio poderia levar ou que ele poderia trazer, mas sim o processo, o desenrolar do pensamento, o espírito que trabalha, em movimento, aventureiro.” (WAIZBORT, 2000, p. 35)

II - Um Mandarim Alemão no turbilhão da Modernidade

RINGER (2000) cunha a expressão “Mandarins Alemães” em seu estudo sobre a posição dos intelectuais na sociedade alemã do período compreendido entre 1890 e 1933. Para autor, Max Weber ocupa lugar de destaque entre essa elite social e cultural, detentora de status mais em função de qualificação educacional do que de riqueza e/ou direitos hereditários. Tratam-se de pensadores e professores universitários que, diante da repentina industrialização e declínio da tradição clássica de ensino nas universidades alemãs, expressam tanto sua apreensão com relação aos valores tradicionais, tanto quanto ao advento da tecnologia e o surgimento das massas, característicos da sociedade moderna. Apesar de sua contribuição fundamental e fundante da teoria sociológica, Weber desenvolveu uma trajetória marcada pela tardia inserção definitiva na carreira universitária, alterando períodos de trabalho docente em diferentes academias alemãs com fases de intenso debate sobre os problemas do mundo político e econômico de sua época. Conforme afirma GIDDENS (1998, p. 28): “Ao longo de sua vida, Weber foi alvo de dois impulsos conflitantes: para uma vida passiva e disciplinada de estudioso e para uma vocação prática e ativa de político.” Da tensão entre mundo da vida e mundo intelectual Weber conseguiu estabelecer uma clara distinção entre aspirações conflitantes, através da dicotomia entre validação do conhecimento científico de um lado e juízos de valor ou normativos por outro lado. Nesse sentido, apesar da atividade política poder ser guiada pelo conhecimento científico, esse conhecimento não poderia validar os objetivos da luta política. O resultado desse posicionamento foi o distanciamento de Weber tanto em relação

os nacionalistas

conservadores da direita e os social-democratas da esquerda, dois dos maiores movimentos políticos de sua época. (GIDDENS, 1998) RINGER (2000), afirma que a moderna sociologia alemã, incluindo-se aí, pensadores como Tonnies, Simmel e Weber, nasce distinguindo-se das críticas mais sentimentais e

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reacionárias da modernidade, ao mesmo tempo em que rejeita o apego incondicional à modernidade. Segundo RINGER (2000), a sociologia alemã do período refletiu as ansiedades e preocupações das teorias políticas e sociais do conservadorismo romântico, mas diferiu delas por não satisfazer quaisquer sonhos da terra, visto que não mantinha orientação nem agrária nem feudal, nem tampouco ligação com a aristocracia rural. Prova disso é a centralidade que a temática urbana ocupa nos escritos de Weber e, sobretudo, Simmel (TEIXEIRA, 1996). Por outro lado, os “mandarins alemães” não mantinham raízes na classe média capitalista. Assim, apesar de RINGER (2000) afirmar que Weber e Simmel tinham “alguma dívida intelecutal” com Marx, não reconheciam inteiramente essa dívida e estavam longe de manter um compromisso com o socialismo proletário. Dessa ambivalência de perspectivas, os “mandarins” rejeitaram tanto a resignação acomodacionista quanto a fuga da modernidade, proposta pelo pensamento ortodoxo alemão. Cabia entender que algumas facetas da eram inevitáveis ou mesmo desejáveis, ao mesmo tempo em que se fazia urgente abrandar seus aspectos mais acidentais e menos toleráveis. Segundo RINGER (2000, p. 159), face à fatalidade do novo ambiente cabia controlar a reação emocional, mantendo um ideal heróico de clareza racional perante a tragédia. “(Tannies, Simmel e Weber) Preferiram a análise à hipocrisia e ao desespero destrutivo: tornaram-se científicos”. Para BERMAN (1986), a obra de Weber representa o típico pensamento do século XX, em oposição aos pensadores do século XIX. Se em Tocqueville, Carlyle, Mill, Kierkgaard e, principalmente, Marx e Nietzsche, são apresentadas diferentes concepções e compreensões acerca dos condicionamentos da tecnologia e da organização social sobre o homem moderno, também estava presente a crença na superação desse estado. Para o autor, “...todos eles acreditavam que os homens modernos tinham a capacidade não só de compreender esse destino, mas também de, tendo-o compreendido, combate-lo.” (p. 26) Já em Weber, como na maioria dos críticos da modernidade do século XX, BERMAN (1986) afirma que desaparece a fé e empatia no homem moderno. A sociedade moderna tornase um “cárcere de ferro” , que cerca “seres sem espírito, sem coração, sem identidade sexual ou pessoal” (p.27) O principal problema advindo dessa postura teórico-conceitual, segundo BERMAN (1986), seria o fato dos críticos do cárcere de ferro adotarem a perspectiva do carcereiro. No entanto, essa crítica de BERMAN (1986) às concepções e postura intelectual de Weber encontra questionamentos. Segundo TEIXEIRA (1996), o caráter excessivamente

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pessimista atribuído ao pensamento weberiano não traduz a complexidade de sua obra. GIDDENS (1998), por sua vez, demonstra que para fazer frente a rotinização do mundo moderno, sobretudo do aparato político, Weber contrapunha como saída o carisma do líder político, que deveria “tomar posição” e ser “apaixonado”. MOTTA & BRESSER (1986, p. 226), valendo-se de MOUZELIS (1972), expressam sinteticamente o contraponto que se pode fazer à tese de BERMAN (1986):

“toda a teorização weberiana (...) implica numa tensão entre o carisma, representando as forças criativas e espontâneas da sociedade, e a rotina. (...) o carisma, uma força destruidora, derruba a ordem estabelecida e abre novos caminhos de vida. Mas a vitória do carisma sobre a rotina nunca é definitiva. Ao contrário, o carisma termina sendo rotinizado, estabelecendo novamente a ordem das coisas.”

Nesse sentido, talvez seja mais pertinente atribuir ao pensamento weberiano não um fatalismo histórico, mas sim uma visão ambivalente dos processos de modernização social, colocando o homem moderno diante de profundos, mas não intransponíveis, obstáculos, que se renovam continuamente. Para RINGER (2000), os principais sociólogos alemães do período compreendido entre 1890 e 1933, ou seja Tonnies, Simmel e Weber, “adotaram um visão tanto céptica das condições sociais e culturais modernas, ao mesmo tempo em que evitavam cuidadosamente tirar conclusões reacionárias”. (p. 165) Mesmo BERMAN (1986) chega a admitir que Weber construiu uma perspectiva mais dialética da modernidade, ainda que localizável apenas em seus últimos escritos, mais especificamente “Política como Vocação” e “Ciência como Vocação”. Para o autor, é Simmel quem transita com maior propriedade em direção a uma “teoria dialética da modernidade”, ainda que tenha apenas “insinuado” essa perspectiva, “não chegando a desenvolve-la.” (p. 27) A discussão da construção do pensamento weberiano tendo como entorno o “turbilhão” das transformações sócio-econômicas no cenário alemão à sua época pode levar, o que ocorreu não raras as vezes com a weberiologia, a associar modernidade com racionalização ou desencatamento do mundo. Essa concepção perde de vista a real complexidade que o termo adquire para Weber, além tomar como sinônimos inequívocos racionalização e racionalidade (KRAMER, 2000).

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III - Razão, Razões: Racionalidade e Racionalização em Weber

Segundo KRAMER (2000), dois pontos fundamentais devem ser considerados ao se estudar a concepção de racionalidade em Weber. O primeiro deles diz respeito à polissemia de conceitos como “racionalização”, “racionalismo” e “racionalidade” na obra de Weber, que serão discutidos em detalhe mais adiante. O segundo relaciona-se à importância crucial que a sabedoria convencional predominante na weberiologia contemporânea atribui à ascensão do moderno racionalismo ocidental no conjunto da obra de Weber. Para KRAMER (2000), o questionamento fundamental contra essa concepção vem de Wilhelm Hennis. Sustentando que a variabilidade inerente aos processos de racionalização, analisados por Weber, não fornece base segura para essa hierarquização conceitual, Hennis propõe uma releitura da intenção original do autor, enfatizando seus escritos metodológicos. Dessa forma, a verdadeira questão central na obra de Weber seria a modelagem de um tipo de humanidade correspondente ao estilo de vida metódico, racional e vocacionado que o ascetismo puritano e calvinista infundiu na cultura moderna. Por outro lado, KALBERG (1979) APUD KRAMER (2000) rejeita a idéia de “desencatamento” do mundo, preferindo “desmagificação”, a priori um vocábulo mais livre de “sobretons românticos” e de um “senso de anelo” pelo mundo simples do passado. Para KALBERG (1979), a tradução de Entzauberung, realizada por Parsons, distancia-se muito do emprego efetivo do termo realizado por Weber. Em sua de obra de 1980, Kalberg chama a atenção para o fato dos conceitos de racionalidade e racionalização não serem empregados por Weber de maneira global, quando se referia a um “esclarecimento” geral das civilizações. Pelo contrário, a concepção weberiana pressupõe vários processos de racionalização qualitativamente diferentes, operando à sua maneira em diferentes níveis sócio-culturais. Para KALBERG (1980, p. 5), esses processos poderiam ser encontrados em:

“diferentes esferas da vida, naquelas relações da organização externa do mundo, tais como os domínios da lei, política, economia, dominação e conhecimento e nas esferas internas da religião e ética (...) podem ser encontrados também nas arenas estéticas e eróticas”.

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Esse pressuposto levou Weber a analisar e refutar a ênfase marxista na esfera econômica como a subestrutura para todas as outras. No pensamento weberiano a racionalização ocorre em diversas esferas, exigindo que seja analisado o grau em que um, dentre vários outros domínios da vida social, poderia ser “portador” de uma racionalização à qual todos os demais aderissem. A despeito disso, conforme argumenta RAMOS (1989), a crítica weberiana ao capitalismo e à moderna sociedade de massas foi essencialmente crítica, sendo “um erro atribuir-lhe qualquer compromisso dogmático com a racionalidade gerada pelo sistema capitalista” (p. 5), conforme argumentam seus críticos de orientação marxista. Por sua vez, KRAMER (2000) afirma que a argumentação marxista de que “A ética protestante e o espírito do capitalismo” não passa de uma tentativa idealista de subverter o vetor causal infra-superestrutura não se sustenta, assumindo o status de “clichê” contra uma obra que é mais citada do que lida por seus críticos. De acordo com KALBERG (1980), Weber conclui que o moderno capitalismo por si só não poderia ter dado origem a uma “ética econômica”. Dessa forma, o pensamento weberiano passa a rejeitar todas as teorias que associam o avanço da racionalidade a um processo de “evolução unilinear”, ocorrido com igual intensidade em todas as esferas sociais. A partir daí Weber passa a investigar as formas através das quais a ação foi racionalizada em arenas particulares da vida social. Para KRAMER (2000), TENBRUCK (1980) constrói uma das tentativas mais influentes de elucidação da gênese da racionalização, que se organizariam em torno de dois vetores: o primado das idéias religiosas e a ênfase nas circunstâncias materiais. Ainda segundo KRAMER (2000), KALBERG (1979) elabora o contraponto mais consistente em relação a TENBRUCK (1980), demonstrando que o “desencantamento” religioso é apenas uma das facetas do processo de racionalização religiosa em Weber. Nesse sentido, a crítica ao pensamento weberiano mostra-se mais uma vez debilitada justamente por querer atribuir o primado da racionalização a uma esfera específica da vida social, como fazem os marxistas com as relações econômicas. Para RINGER (2000), os métodos da sociologia nascente com Weber, Simmel e Tonnies procuraram isolar conceitualmente o vínculo social como objeto de cognição, de modo que os problemas sociais modernos pudessem ser estudados em sua essência, refutandose tanto Marx quanto a crítica romântica à condição moderna. Para o autor, Weber tendia a enxergar nos dilemas do capitalismo aspectos de um conjunto maior de problemas. “Sua preocupação fundamental era com o aparente conflito entre todas as formas da moderna

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racionalização social e os ideiais descritos na vontade natural”. (p.165) Conclui RINGER (2000, p. 165) que a contribuição central desses sociólogos, destacando-se Weber, “reside no fato de não terem abandonado toda a racionalidade, nem mesmo todo “cálculo” em nome da comunidade e da “cultura””. Por outro lado, até mesmo a irracionalidade não seria fixa e intrinsecamente “irracional” para Weber. Como destaca KALBERG (1980), na concepção weberiana de racionalidade não existe um arranjo absoluto de valores racionais, como também não existem modelos perenes para o arranjo racional e/ou os processos de racionalização. Conforme atesta o comentador de Weber:

“Uma coisa não é, por ela mesma, irracional, mas torna-se isso quando examinada de um ponto de vista racional específico. Toda pessoa religiosa é “irracional” para toda pessoa descrente (...) todo hedonista considera “irracional” todo modo de vida ascético.” (p. 10)

Na concepção weberiana apareceriam uma multiplicidade de processos de racionalização, que de forma variada se uniriam ou colidiriam uns com os outros em todos os tipos de civilização e níveis de sociedade. Os tipos distintivos de racionalidade constituiriam o fundamento para os processos de racionalização. (KALBERG, 1980). Nesse ponto, antes de se avançar, cabe atentar para o conceito de tipo ideal, que longe de ser uma generalização de tendências:

“é uma construção conceitual realizada a partir de certos elementos empíricos, que se agrupam logicamente em uma forma precisa e consistente, mas em uma forma, que em sua pureza ideal, não se encontra nunca na realidade”. (MOUSELIS, 1972 APUD MOTTA & PEREIRA, 1986, p. 226)

Segundo KALBERG (1980), Weber desenvolve uma tipologia quádrupla de ação social – afetiva, tradicional, valor-racional e racional em relação a meios e fins -, que pretende ser universal, no sentido de se manter “fora da história, como características antropológicas do homem”. (p. 3) Isso é o que leva RINGER (2000) a afirmar que a sociologia nascente na Alemanha com Weber, a fim de preservar seu caráter analítico e crítico, tinha de se separar da filosofia da história.

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KALBERG (1980) afirma que a concepção iluminista de que o homem adquire razão com a “era das luzes” não encontra ressonância em Weber. RAMOS (1989) observa que, apesar de na época de Weber a velha noção de razão já ter perdido seu caráter normativo, a história (de Turgot a Marx) passou a substituir o homem como portadora da razão. A concepção weberiana de racionalidade vai romper com diferentes tradições teóricas, rejeitando tanto “o rude empirismo britânico e o naturalismo dos cientistas sociais, quanto o determinismo histórico, principal característica de influentes pensadores alemães” (RAMOS, 1989, p. 4). Em síntese, segundo Weber, os indivíduos seriam capazes de ação racional em diferentes épocas históricas, inclusive anteriores ao Iluminismo. Essa afirmativa se deve ao fato da idéia de racionalidade para Weber se aplicar inclusive aos fenômenos religiosos. Na medida em que o autor diferencia tipos de ação de racionalidade, rompe-se a dicotomia simplista entre racionalidade e irracionalidde ou “luz e trevas”. De acordo com KALBERG (1980), na obra de Weber racionalidade assume diferentes perspectivas, de acordo com a seguinte tipologia: prática, teórica, substantiva e formal. A racionalidade prática associa-se a todo modo de vida no qual as atividades do indivíduo se pautam por interesses puramente pragmáticos e egoístas. Na esfera da vida racional prática as realidades são acatadas sem questionamentos, surgindo no lugar da indagação quanto aos modelos de ação a calculabilidade quanto às formas mais ou menos convenientes de lidar com os desafios apresentados. Sendo assim, prevalece nessa esfera a chamada “ação racional com respeito a fins. Já na esfera da chamada racionalidade teórica, o indivíduo se pauta por um domínio consciente da realidade, valendo-se para isso mais da construção de modelos abstratos do que da ação. Nesse campo, o confronto cognitivo com a realidade se pauta na atribuição de relações de causalidade e na formação de significados. Segundo KALBERG (2000), Weber detectou uma grande variedade de pensadores que praticaram esse tipo de racionalidade, incluindo desde feiticeiros e sacerdotes que racionalizaram os valores implícitos em doutrinas até os teóricos revolucionários marxistas, que apareceram para aprimorar seus fundamentos doutrinários. Enquanto na racionalidade prática a ação racional com respeito a fins caracteriza-se pela adaptabilidade e focalização na vida cotidiana, na arena da racionalidade teórica prevalece a tentativa de superação da rotina diária, em direção à busca de um significado coerente para os eventos e o próprio cosmo.

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A racionalidade substantiva se aproxima da prática na medida em que a ação organizase dentro de modelos, no entanto, enquanto na esfera prática o cálculo se resume a meios e fins, na arena substantiva ele se dá em relação a “um passado, um presente ou um “postulado de valor” potencial” (KALBERG, 1980, p. 9). A ação resultante, denominada “racional com respeito a valores”, se pauta em agrupamentos de valores, organizados e sistematizados de maneiras diversas, e não em relação a um único e simples valor. Por fim, a racionalidade formal associa-se geralmente às esferas econômica, legal e científica, bem como a forma burocrática de dominação, típicas da sociedade a partir dos processos de industrialização. Diferentemente dos tipos de racionalidade anteriores, de caráter “intercivilizacional” ou transcendente às épocas, a racionalidade formal associa-se ao advento da dominação burocrática. Nessa forma de poder, a legitimidade do cálculo de meios e fins não se processa mediante auto-interesses pragmáticos, como na racionalidade prática, mas em referência a regras, leis e procedimentos universalmente aplicados. Apesar de também se pautar na ação racional com respeito a fins, de forma similar à racionalidade prática, a racionalidade formal encontra na organização burocrática a dominação mais “racional”, visto que na burocracia não busca-se não apenas calcular os meios mais precisos e eficientes para a resolução de problemas, mas procura-se organiza-los sob o manto de regulamentos universais abstratos. Sendo assim, percebe-se que na obra weberiana a expansão da racionalidade não se opera unidimensionalmente, nem tampouco apenas através de movimentos gerais. Pelo contrário, conforme atesta TEIXEIRA (1996), não se trata de um processo “unilinear e unívoco de racionalização”. Dentre os diferentes processos através dos quais a racionalização se empreendeu, destacam-se o “desencantamento” do mundo; a despersonalização das relações sociais; o predomínio do cálculo e da busca racional de lucro; e o controle técnicoracional dos processos sociais e naturais via ciência e tecnologia (TEIXEIRA, 1996).

IV – Considerações Finais

Para SOARES (2000), o prognóstico de Weber e sua análise da sociedade industrial estavam corretos, visto que a história contemporânea tem sido marcada exatamente pelas tendências assinaladas pelo autor alemão, a saber: racionalização, diferenciação entre esferas da vida social, individualização e atomização.

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Por outro lado, SOARES (2000, p. 332) chama a atenção para o fato de que, curiosa e paradoxalmente, as “profecias” weberianas mais “macabras”, relacionadas a “um mundo mecanizado, desencantado, dominado por burocratas sem espírito, condenado à jaula de ferro das dinâmicas racionalizantes, emancipadas do controle individual e da intervenção participativa dos cidadãos” não terem se realizado. Segundo o autor, é justamente pelo fato de Weber estar certo que não se concretizaram suas “profecias”, construídas mais por seus intérpretes do que por sua obra. As tendências acima descritas não produziram o resultado linear previsto, que derivaria diretamente da simples realização cumulativa das dinâmicas observadas. A racionalização não sufocou inteiramente a criatividade e a intervenção e/ou o controle democrático popular. TEIXEIRA (1996), por sua vez, destaca que não há indicações de que Weber lamentasse profundamente a transição da sociedade tradicional para a moderna. Além disso, a autora destaca que no pensamento weberiano liberdade não se “equaciona” com imprevisibilidade e irracionalidade. “Ao contrário, a ação livre depende de uma relativa autonomia do indivíduo, construída sobre e contra as barreiras do afeto irresistível e das pressões externas”. (p. 5) Sendo assim, a ação racional referente a valores, e não as ações tradicionais e/ou afetivas, seria a que mais se remeteria à esfera da liberdade. Como argumentado anteriormente, o presente artigo foi construído tendo-se como referência a idéia de ensaio. Nele não cabem respostas definitivas, não cabem conclusões, mas considerações finais. Por outro, trata-se de um “devaneio” acerca de um “clássico” do pensamento social. Nesse sentido, cabe resgatar ALEXANDER (1999, p. 24) para “interromper” (e não fechar) a discussão:

“(...) como clássica, a obra estabelece critérios básicos em seu campo de especialidade. Graças a essa posição privilegiada é que a exegese e a reinterpretação dos clássicos – dentro ou fora de um contexto histórico – se tornaram correntes importantes em várias disciplinas, pois o que se tem pela “significação verdadeira” de uma obra clássica repercute amplamente.”

V – Referências Bibliográficas ALEXANDER, J. C. A importância dos clássicos. In: GIDDENS, A. & TURNER, J. (orgs.) Teoria social hoje. São Paulo: Editora UNESP, 1999.

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BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. DAYRELL, M. Apertem os cintos! O supersônico da Qualidade está caindo ... In: Empresas e Tendências. Brasília: ano 1, no. 08, 31/12/1994. GIDDENS, A. Política, sociologia e teoria social: encontros com o pensamento social clássico e contemporâneo. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. KALBERG, S. Max Weber’s types of rationality: cornerstones for the analyses of rationalization processes in the history. American Journal of Sociology, LXXXV, (5), march 1980, pp. 1145-79 (tradução para o português de Renan Springer de Freitas). KALBERG, S. The search for thematic orientation in a fragmented oeuvre: the discussion of Max Weber in recent German sociological literature. In: Sociology, XIII, (1), jan. 1979, pp. 127-139. KRAMER, P. Alexis de Tocqueville e Max Weber: respostas políticas ao individualismo e ao desencatamento na sociedade moderna. In: SOUZA, J. (org.) A atualidade de Max Weber. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, pp. 163-196. MOTTA, F.C.P. & PEREIRA, L.C.B. Introdução à organização burocrática. São Paulo: Brasiliense, 1986. MOUZELLIS, N. P. Organization and Bureaucracy. New York – Chicago: AldineAtherton, 1972. RAMOS, A. G. A nova ciência das organizações. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1989. RINGER, F. O declínio dos mandarins alemães: a comunidade acadêmica alemã. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. SOARES, L. E. A racionalidade do “politicamente correto” ou: Weber errou porque estava certo. In: In: SOUZA, J. (org.) A atualidade de Max Weber. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, pp. 325-354. TEIXEIRA, L. A. Representações ambivalentes da cidade moderna: a Belo Horizonte dos modernistas. Rio de Janeiro: IUPERJ, 1996 (tese de doutoramento em Ciências Humanas: Sociologia), snt. WAIZBORT, L. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: USP, Curso de Pós-Graduação em Sociologia: Ed. 34, 2000.

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