RAZÕES DA ESCRITA LITERÁRIA

May 31, 2017 | Autor: F. Filho | Categoria: Literary Theory
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RAZÕES DA ESCRITA LITERÁRIA
 


 

Cunha e Silva Filho
 
 
Você alguma vez já pensou, leitor, por que escrevemos? Antes de
tudo, devo empregar o termo escrita no sentido mais amplo do domínio
literário. E aí se incluem crônicas, diários, memórias, notas de
viagens, apontamentos, ensaio, crítica literária (já se está falando por
aí que esta está desaparecendo, com o que não concordo. 
Ainda incluirei os gêneros mais tradicionais embora tenham passado
modernamente por grandes mudanças mas sem perder a sua estrutura
intrínseca, aquele dado determinante que o torna um gênero e não outro:
o conto, a novela, o romance e, no campo teatral, todo o texto escrito
com destino certo de ser teatralizado: o drama, a tragédia e a comédia.
Até aqui me restringi à escrita literária em prosa. Por fim, coloco em 
plano sobranceiro, a poesia, tendo já sido considerada a mais pura das
artes.
O poeta Mallarmé a define como a "suprema forma de beleza." Não é
este o lugar de convocarmos as mais belas definições dapoíesis. O que nos
prende a atenção é o tema dos motivos da escrita literária, quer dizer, 
o que impele alguém dotado do pendor para escrever em linguagem literária
sobre algum assunto.
Este é o busílis da questão. Não vou discutir tampouco as razões pelas
 quais alguns escritores são levados aos braços da ficção ou das
musas, ou de ambas. Sabe-se que escritores há que são polígrafos e outros
que só escolhem um gênero de escrita e permanece nele por toda a vida.
Uma vez, numa conferência na Academia Brasileira de Letras, o ensaísta,
teórico e crítico Eduardo Portella, confessava, em tom francamente 
melancólico, como se estivesse a sós com um amigo, que nunca escrevera um
só poema e a sua fisionomia um tanto triste no momento acompanhava a
declaração. Passara a vida analisando poemas de tantos autores e jamais 
teve o talento para escrever versos é o que se poderia dizer 
implicitamente de suas palavras.
O certo é que isso é um dado que serviria para ampla discussão entre 
especialistas ou não, ou seja, o leitor inteligente e amante da
literatura, como existem tantos por aí de outras profissões que nada têm
a ver com a escrita literária. O mesmo poderia afirmar de profissionais 
de outras atividades que não viveram apenas do que lhe dava o real
sustento da família mas que mostraram ter a vocação literária, o que
os fizeram bons e até ótimos escritores. São muitos os exemplos na
literatura brasileira e estrangeira. Pouquíssimos são aqueles que só vivem 
de escrever. No Piauí, temos um exemplo, o de Assis Brasil, até hoje viveu
de literatura. Tem uma produção imensa que extrapola a casa dos cem
livros. 
Alguém poderia arguir: "Mas, escrevendo tantas obras, será que são
tantas de boa qualidade?" Não importa que a resposta seja negativa ou
positiva. O fato é que quem escreve com tanta porfia merece elogios,
quando menos porque mostrou ter uma grande capacidade de produzir, o
que é uma vantagem sobre os que escrevem muito pouco. Por outro lado, há
que acrescentar: a quantidade de livros de um autor se explica também 
pelas condições de vida dele, por exemplo, maior tempo para se dedicar 
a escrever, uma vida menos agitada, uma certa solidão necessária, uma
maior liberdade individual para tocar seus projetos de escrita, uma
saúde boa, continuidade de projetos, responsabilidade intelectual etc
Entretanto, um problema de natureza epistemológica ainda mexe com os
meus pensamentos sobre o ato da escrita e sobre as razões de sermos
impelidos para este lado artístico. Uma explicação me vem à tona: a do
ambiente familiar. Por exemplo, um pai escritor tende a influenciar um
filho que tenha inelutavelmente o potencial para se dedicar à atividade
literária, assim como vale para outras vocações que não a literatura. O
que, porém dizer de escritores cujos pais nada têm a ver com a
literatura?
Em muitos casos, há exemplos de ascendência familiar que se
dedicavam, às vezes, às escondidas, à literatura, a escrever versos,
ficção etc., ainda que de forma amadorística. O certo é que o ambiente 
familiar é um fator determinante para filhos sigam o que fazem os 
pais. Outro fato que oferece um bom kick off às vocações é ter tido o
futuro escritor palavras de estímulo de um líder intelectual, de uma
pessoa relacionada à vida literária e cultural. Os desestímulos por
vezes prejudicam a condição de um futuro escrito, mas não são
decisivos às determinações de um vontade férrea que resiste aos 
obstáculos. Às vezes, até fortalecem os determinados, segundo tenho tido 
notícias sobre o assunto.
Após considerar tudo isso de forma sumária, me vejo forçado a 
dar testemunho do meu exemplo particular. Me pai foi professor, 
jornalista, escritor. Vivia entre os livros, jornais, revistas. Eu via
tudo aquilo. Tudo observava. Aos poucos, por necessidade imperiosa 
de temperamento artístico, me voltei também para os livros, e sobretudo 
para a escrita. Todavia, não segui ao pé da letra as preferências do
gênero de meu pai, que eram o jornalismo e os estudos históricos,
sociológicos, filosóficos. Um dia, estando eu deitado ainda na rede
escutei sem que eles soubessem uma conversa entre meu pai e minha mãe a
respeito do que ele pensava de mim. O que ouvi seria mais ou menos 
isso: "Meu filho Francisco não é o que poderia chamar de jornalista. Ele
tem propensão para ser escritor." Mamãe pareceu concordar com ele.
Examinando bem o que meu pai falara de mim entendi melhor que, ao me
definir como escritor, ele queria dizer alguém que escreve sobre
literatura ou mesmo raramente alguém que imagina escrever ficção.
A concepção de meu pai fazia uma grande diferença entre o
jornalista, um comunicador de fatos ocorridos, de notícias e de opiniões
sobre a realidade de forma objetiva. Nunca, desde aquela noite, deitado
na rede, deixei de refletir sobre aquele pequeno diálogo entre meus pais.
Há algo que gostaria de adicionar a essas ponderações.
Muitos anos depois daquela fase de adolescente em Teresina, já com um bom
traquejo de ter escrito muita coisa, me vejo ainda na obrigação 
intelectual de afirmar ser a razão de minha escrita algo bem
superior às contingências materiais do meu quotidiano.
Em outros termos, julgo que as razões da minha escrita literária
penetram em outro universo existencial, passam ao campo da
transcendência, da vontade da carência, da falta, do desejo de me
comunicar com outros, da necessidade de me afirmar ante os problemas 
da vida, dos homens, da sociedade, dos governos, das ideologias, das
religiões, de permeio com as reflexões sobre o fenômeno literário, 
sobre a questão dos valores artísticos, literários, morais, econômicos,
culturais em larga escala não adstritos apenas ao meu país mas ao mundo,
às injustiças, ao desmoronamento moral da humanidade, às ameaças de um
grande conflito global, às seriíssimas questões climáticas, preocupação
de grandes pensadores e cientistas atuais.

Essas duas dimensões da existência trabalham em meu espírito ora
separadamente (temas, tensões, apelos, indignação)), ora conjuntamente
(temas e linguagem literária) quando postas na forma impressa. Quanto à
questão de gênero, a minha preferência recaiu ao longo de todo esse
tempo para o campo da crítica literária, secundada pelo gosto de traduzir
poesia, de escrever crônicas, artigos e de aperfeiçoamento individual das
línguas que cultivo, que não são muitas.
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