REALIDADE E FICÇÃO EM O DOENTE MOLIERE

June 6, 2017 | Autor: Diego Flores | Categoria: Molière, Wolfgang Iser, Rubem Fonseca, RUBEM FONSECA LITERATURA CUENTOS
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REALIDADE E FICÇÃO EM O DOENTE MOLIERE

Diego do Nascimento Rodrigues Flores1*

Resumo: O presente artigo trata da análise da novela O doente Moliere de Rubem Fonseca. Nele, se buscará tecer relações entre a forma como realidade e ficção se misturam nos personagens de forma que, como propõe Wolfgang Iser, o fictício seja nada mais do que uma encenação constituída de elementos do real reconfigurado que, desta forma, aponta para algo além da encenação em si. Palavras-chave: fictício, encenação, romance policial, Rubem Fonseca.

Abstract: The present article is an analysis of the novella O doente Moliere by Rubem Fonseca. In this article we will aim at establishing connections between the way reality and fiction intertwine in the characters so that, as proposed by Wolfgang Iser, the fictive be nothing more than an enactment made up of elements of a reconfigured reality which, thus, points to something beyond enactment itself. Keywords: fictive, enactment, detective novel, Rubem Fonseca.

INTRODUÇÃO França, 17 de fevereiro de 1673. Em cena, Molière faz sua última apresentação: na encenação de “O doente imaginário”, última peça escrita pelo comediógrafo, o próprio Molière faz o papel principal. Ele é Argan, o hipocondríaco, que passa mal em cena. Ironicamente, o próprio Molière também não está se sentindo bem, e seu péssimo estado serviu para realçar brilhantemente a qualidade da encenação. Desfazem-se as fronteiras entre o real e o fictício. Somente um dos espectadores percebe que algo está errado. Molière vem a falecer naquela mesma noite, sem a presença de nenhum amigo ou parente. Contudo, seria *Mestre em Letras pela Ufes e professor na PMV

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enterrado somente quatro dias depois, e graças à intervenção real, porque os clérigos de então se recusavam a lhe ofertar a extrema unção por ter sido ator e comediógrafo, profissões tão escusas quanto a prostituição ou a feitiçaria. Assim Rubem Fonseca inicia sua narrativa. O Marquês Anônimo, apresetado pelo autor como o único personagem fictício de seu livro, toma a dianteira para narrar uma investigação levada adiante a partir de uma confissão do próprio Molière: “Fui mortalmente envenenado” (FONSECA, 2000, p. 23). Nesse estudo, buscaremos entender como o personagem-narrador criado por Fonseca molda, dentro do universo fictício do livro, a sua narrativa do real de modo que esta sirva para expor as mazelas não só do tempo em que Molière viveu, mas provavelmente de toda história humana, destacando a hipocrisia em que aquela sociedade estava mergulhada. Mas antes de adentrarmos os meandros desta narrativa, vejamos brevemente quem foi o homem Molière e, especialmente, o legado que este nos deixou.

O HOMEM MOLIÈRE Segundo Erich Auerbach, Molière seria aquele comediógrafo que “tipifica muito menos, apanha a realidade muito mais individualmente do que a maioria dos moralistas do século” (AUERBACH, 2002, p. 323). Ainda na esteira do teórico alemão, este afirma que Molière estava preocupado em encontrar “o individualmente real só por causa do seu ridículo, e o ridículo significa para ele o desvio do médio e do habitual” (AUERBACH, 2002, p. 323). Molière tomava seus personagens de todas as classes sociais, mas eram aqueles que pertenciam às classes mais abastadas que mais o interessavam. Nas suas comédias, queria apresentar o ridículo de todos os homens, modelando-os de forma grotesca (AUERBACH, 2002, p. 325), o que nos leva a perceber seus personagens antes como caricaturas de determinadas figuras de importante colocação social à sua época: os médicos, as preciosas, o clero, etc. Por isso, por essa sua audácia em caricaturar elementos importantes de sua sociedade, Molière foi freqüentemente atacado. Tomemos, por exemplo, uma de suas comédias mais polêmicas: Tartuffe (Tartufo). Essa peça foi censurada pelo rei que, mesmo sendo bastante indulgente para com Molière e um apreciador de suas comédias, a manteve longe dos palcos SABERES Letras

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por cinco anos. Por causa desta peça Molière foi acusado de atacar a religião e de ser ateu: o seu Tartufo era, segundo John Gassner, “a encarnação da devoção egoísta e desonesta”, apresentada num “drama que o mostrava insinuando-se em um honrado lar e virando-o de cabeça para baixo” (GASSNER, 2002, p. 341). No entanto, a peça não atacava diretamente a religião, mas a forma como esta poderia ser usada egoisticamente em benefício próprio. Molière, de acordo com Auerbach, empregava livremente elementos farsescos em suas comédias; evitava, contudo, “a concretização realista da situação política ou econômica do meio em que suas personagens atuam, e muito mais, o aprofundamento crítico” (AUERBACH, 2002, p. 330). Essa estratégia adotada pelo comediógrafo lhe garantia teatros sempre cheios, pois não ofendia diretamente sua platéia ou, o que é mais importante, o rei, uma vez que suas peças não denunciavam as contradições daquela sociedade desigual, mas estavam voltadas para o indivíduo e sua irremediável corrupção. Enfim, Molière parecia estar preocupado, em suas comédias, em fazer uma crítica moralista da sociedade em que vivia, com o intuito de denunciar a hipocrisia presente em todos os estratos sociais, desde as camadas mais baixas até as mais altas: a tartufice do clero, a incompetência e o charlatanismo dos médicos, bem como todo tipo de mentira e impostura que pairava sobre todos.

FICÇÃO E REALIDADE: CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS Adiemos ainda um pouco mais a nossa análise da novela de Rubem Fonseca para tecermos, antes, algumas considerações que irão orientar a nossa leitura. Entenderemos, em nossa análise, o texto ficcional da forma como este é proposto por Wolfgang Iser que, em seu livro The fictive and the imaginary: charting literary anthropology afirma ser o texto literário “a mixture of reality and fictions, and as such it brings about an interaction between what is given and the imagined” (ISER, 1993, p. 1). Essa mistura de que Iser fala, que se apresenta no texto fictício como uma re-configuração de elementos do mundo empírico, serve para fazer com que o leitor passe a perceber a realidade de maneira diferente, já que, como escreve o próprio Iser, “whenever realities are transposed into the text, they turn into signs for something else” (ISER, 1993, p. 3). Essa mesma afirmação é corrobora por Luiz Costa Lima, em Vida e Mímesis, SABERES Letras

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segundo o qual a ficção, para Iser, seria o caminho através do qual “o homem explora possibilidades outras que as oferecidas pelo mundo instituído” (LIMA, 1995, p. 236). Para Iser, o texto ficcional é composto por atos de seleção de elementos de diversos sistemas que existem como campos de referência que são exteriores ao texto ficcional e que abrangem tanto as esferas sociais, históricas e culturais quanto sistemas literários. Assim, a realidade ficcionalizada é criada para apontar para algo além de si mesma na medida em que se configura o imaginário no texto ficcional. O mundo empírico, como somos capazes de o perceber, é caótico; nunca somos capazes de apreendê-lo em sua totalidade, e por isso precisamos de ficções. A mesma opinião é compartilhada por Jacques Rancière, para quem “o real precisa ser ficcionado para ser pensado” (RANCIÈRE, 2005, p. 58). Assim, continua Iser, “The reality represented in the text is not meant to represent reality; it is a pointer to something that is not, although its function is to make that something conceivable” (ISER, 1993, p. 13). Desta forma, precisamos notar que a referencialidade característica dos signos que compõem o texto ficcional torna-se esmaecida uma vez que o “como se” do texto ficcional, ou seja, o real ficcionalizado, é empregado com o intuito não de representar o mundo empírico, como Iser já afirmou acima, mas de fazer uso do mundo representado para estimular reações no leitor (ISER, 1993, p. 16). Há, portanto, uma intenção do texto, a qual pode ser descoberta não através do estudo da biografia e crenças do autor, “but in those manifestations of intentionality expressed in the fictional text itself, through its selection of and from extratextual systems” (ISER, 1993, p. 6). Contudo, essa intenção do texto não pressupõe a existência de um critério único de leitura e interpretação de um texto literário já que devemos levar em consideração que é da interação do leitor com o texto que se concretiza, em última instância, o significado de um determinado texto, e que esta interação está de certo modo inserida em um dado contexto histórico-social que de alguma maneira determinará como aquele texto será recebido e, conseqüentemente, interpretado. Logo, os significantes que constituem o texto ficcional interagem de forma que o mundo artificial percebido através do mundo sócio-histórico ou da realidade SABERES Letras

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empírica e, em troca, essa passa a ser percebida através da ótica do mundo ficcionalizado (ISER, 1993, p. 226). Assim, escreve Iser:

Selection opens up one area between the fields of reference and their distortion in the text; combination opens up another between interacting textual segments; and the ‘as-if’ opens up another between an empirical world and its transposition into a metaphor for what remains unsaid (ISER, 1993, p. 229).

Esse não-dito citado por Iser é o que garante a emergência de um significado para a metáfora que a realidade ficcionalizada representa. Isso nos é relevante porque, de acordo com Rancière, “fingir não é propor engodos, porém elaborar estruturas inteligíveis” (RANCIÈRE, 2005, p. 53) e que, ainda por cima, nos permitam conceber o mundo empírico de forma antes impensável.

O MARQUÊS ANÔNIMO: CONSTRUTOR DE REALIDADES Enfim é chegado o momento de nos debruçarmos sobre aquele que é o objeto principal deste nosso estudo: o Marquês Anônimo, apresentado, por Rubem Fonseca, como “amigo e colega de colégio de Molière” (FONSECA, 2000, p. 9) e o único personagem fictício de sua novela em uma lista na qual contatamos haver, de fato, diversos personagens históricos, alguns de grande expressão como o próprio Molière, e outros dramaturgos como Racine e Corneille, além dos também escritores La Fontaine, Boileau e La Rochefoucauld. Não há dúvida de que se trata de uma ironia do autor apresentar o Marquês Anônimo como o único personagem fictício de seu livro. No momento em que essas figuras históricas, dentre as quais aparecem, como já dissemos, personalidades importantes, são transportadas para um mundo ficcional criado por Rubem Fonseca através de seu Marquês Anônimo, que é na verdade quem narra e conseqüentemente cria esse mundo, tornam-se também elas personagens fictícios. O Marquês Anônimo, entretanto, nos é de particular interesse porque, como SABERES Letras

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narrador, é ele, único personagem fictício, quem nos apresenta os fatos narrados em seu livro, e segundo uma ótica bastante particular, como ele próprio o comenta na seguinte passagem: “Posso ser às vezes um pouco prolixo, impreciso, e talvez fale excessivamente da minha vida, mas isso me parece normal, em escritos dessa natura” (FONSECA, 2000, p. 16). Conforme afirma Antônio Cândido, “a personagem é mais lógica, embora não mais simples, que o ser vivo” (CANDIDO, 1998, p. 59). Essa lógica interna do Marquês Anônimo aparecerá mais claramente no momento em que estivermos analisando mais de perto os fatos narrados por ele. Por diversas vezes, o Marquês Anônimo mostrar-se-á mais preocupado consigo mesmo do que com o objeto de sua investigação, que é descobrir o assassino de Molière, o que nos leva a concordar mais uma vez com Antônio Cândido quando este afirma que:

[...] enquanto na existência quotidiana nós quase nunca sabemos as causas, os motivos profundos da ação dos seres, no romance estes nos são desvendados pelo romancista, cuja função básica é, justamente, estabelecer e ilustrar o jogo das causas, descendo a profundidades reveladoras do espírito (CANDIDO, 1998, p. 66)

Da mesma forma, as atitudes dos outros personagens são expostas de forma a trazerem à tona aquilo em que o Marquês Anônimo acredita, ou seja, que o mundo narrado por ele está contaminado por todo tipo de impostura, a começar por ele próprio. Assim, precisamos nos indagar também a respeito do anonimato do Marquês e de sua escolha por narrar sua investigação em forma de novela, pois que isso também nos ajudará a entender a configuração do real efetuada pelo Marquês. Jean Starobinski, quando comenta a pseudonímia de Stendhal, afirma que Lorsqu’un homme se masque ou se revêt d’un pseudonyme, nous nous sentons défiés. Cet homme se refuse à nous. En revanche nous voulons savoir, nous SABERES Letras

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entreprenons de le démasquer. Devant qui cherche-til à se dissimuler ? Devant quel Pouvoir a-t-il peur ? Quel Regard lui fait donc honte ? Nous demandons derechef : comment était fait son visage, pour qu’il ait eu besoin de le dissimuler ? et une nouvelle question s’enchaîne aux précédents : que veut dire ce nouveau visage dont il s’affuble, quelle signification donne-til à ses conduites masquées, quel personnage vientil maintenant simuler, après avoir dissimulé ce qui voulait disparaître ? (STAROBINSKI , 1999, p. 233, grifos do autor)

Ainda que o nosso Marquês Anônimo não seja um personagem histórico como foi Stendhal, veremos que no decorrer de sua narrativa o próprio Marquês nos dará dicas sobre as razões que possivelmente o levaram à adoção do anonimato. As perguntas levantadas por Starobinski, portanto, orientarão a nossa leitura da novela no sentido de encontrarmos possíveis repostas para elas. Quanto à estruturação de sua narrativa em forma de novela, também isso nos pode revelar algo da natureza do que é narrado. Carlos Nelson Coutinho, em Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX, ao comentar as novelas de Kafka, diz o seguinte:

Diferentemente do romance, que figura a universalidade de um período histórico na totalidade explicitada de suas mediações, na rica e polimórfica articulação de suas várias determinações objetivas, a novela ilumina a totalidade a partir da representação de um evento singular sintomático (COUTINHO, 2005, p. 152)

Coutinho cita ainda Georg Lukács, para quem “A novela deveria assim compendiar a vida da sociedade através de um evento singular extraordinário, tomado como ponto focal” (LUKÁCS, apud COUTINHO, 2005, p. 153). Na narrativa do Marquês, podemos relacionar esse “evento singular sintomático” SABERES Letras

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ou “extraordinário” com a busca por um assassino, típico das narrativas policiais, mas que na novela do Marquês o interessante é perceber que a identidade do assassino não é o que importa em última instância, mas sim a configuração de um retrato de uma época que nos revela o cinismo da sociedade.

O REAL E O FICTÍCIO EM O DOENTE MOLIÈRE A novela do Marquês Anônimo estrutura-se em quinze capítulos, além de um capítulo introdutório, intitulado Registros, no qual o Marquês se apresenta como “um marquês de ilustre estirpe, da melhor nobreza, mas não sou escritor, apenas um leitor constante de bons autores” (FONSECA, 2000, p. 15). É assim que o Marquês se nos apresenta: um dramaturgo frustrado, que queria ser como seu amigo Molière, e que chega até mesmo a escrever uma peça, uma tragédia, a qual leva a Racine para que este lhe dê seu parecer sobre ela. Após ler a peça do Marquês, Racine o desengana afirmando: “[...] escreva cartas ou diários, não existem regras nem é preciso talento para isso. Mas escrever para teatro, além de um dom especial, que você não tem, exige o conhecimento de inúmeros preceitos, que você ignora” (FONSECA, 2000, p. 15). Também Molière lê a peça do Marquês e, embora não seja tão incisivo quanto Racine, da mesma forma não lhe alimenta as esperanças. Logo, o Marquês se vê levado a desistir de ser artista e adota, por isso a frase de Montaigne “Minha arte e minha profissão é viver” (FONSECA, 2000, p. 16). Ao comentar a composição de sua novela, o Marquês diz o seguinte: “Selecionei alguns trechos das minhas anotações, para serem publicados anonimamente, como parte das minhas memórias” (FONSECA, 2000, p. 16); para o Marquês, esses trechos que selecionou estariam mais diretamente ligados ao objetivo de sua narrativa, que é mostrar como descobriu o assassino de Molière. Vemos destarte uma certa configuração subjetiva da trama a ser narrada: o Marquês seleciona os trechos aos quais teremos acesso e que, como veremos, revelarão mais da vida do Marquês do que da investigação por ele perpetrada. Vera Lúcia Follain de Figueiredo, em seu livro Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea, propõe que “os personagens-narradores, ao perceberem a impossibilidade de chegar à palavra original, elegem a interpretação, conferindo ao ato de narrar a tarefa de construção de uma versão SABERES Letras

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verossímil que substitui a verdade inatingível” (FIGUEIREDO, 2003, p. 45). É essa construção de uma verdade que encontraremos na narrativa do Marquês. Ele está cônscio de que todos do seu meio são como ele, apenas representam papéis, como Molière em suas peças e que por isso têm um outro lado de si a ser descoberto, o que conseqüentemente o levaria ao assassino. Na narrativa do Marquês, ficção e realidade imbricam-se de tal forma que o Marquês vai buscar nos textos de Molière, assim como na forma como estes foram recebidos pela sociedade da época, pistas que possivelmente irão levá-lo a descobrir o assassino. Deste modo, logo na abertura do primeiro capítulo, Uma profissão infame, temos um trecho de O doente imaginário, última peça escrita e encenada por Molière. Aqui também vemos as fronteiras entre realidade e ficção tornarem-se tênues: Molière faz o papel de Argan, o hipocondríaco que finge passar mal em cena; no entanto o próprio Molière não está se sentindo bem, o que somente o Marquês percebe. Molière morre naquela mesma noite, mas não antes de revelar ao Marquês que tinha sido envenenado. Tanto a esposa de Molière, Armande, quanto o Marquês saem em busca de um padre, mas todos os padres se recusam a acompanhá-lo. Como explica o próprio Marquês: “Meu título de marquês e meu nome ilustre de nada serviram” (FONSECA, 2000, p. 24); Molière era um comediante e, por isso, um excomungado, por exercer profissão tão infame, como já dissemos, quanto a prostituição, a usura ou a feitiçaria. O que nos intriga como leitores, e o próprio Marquês comentará isso mais tarde, são as razões que levaram tanto ele quanto Armande a procurarem um padre, e não um médico, uma vez que Molière não estava bem de saúde, mas não morto. Mais intrigante ainda é o Marquês ter guardado segredo daquilo que lhe fora revelado por Molière. Entretanto, no segundo capítulo, Segredos, segredos, o Marquês afirma que guardou segredo para se proteger, pois era amante de Armande (FONSECA, 2000, p. 31), e continua explicando:

[...] todos sabem que os amantes matam discretamente os maridos a quem enganam, com veneno, ao contrário dos maridos, que, quando se contrariam ao serem enganados, o que é raro, matam com estardalhaço, pois a honra, para esses fanfarrões, tem que ser SABERES Letras

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lavada com sangue diante dos olhos do público, como a expiação do criminoso na praça. (FONSECA, 2000, p. 31)

Evidentemente, o Marquês não estava disposto a fazer o papel de suspeito de assassinato, e como a morte de Molière fora atribuída ao rompimento de uma veia, causado, segundo os médicos, por violentos ataques de tosse (FONSECA, 2000, p. 31), seria melhor que essa continuasse exercendo o estatuto de verdade. Sentimos, no entanto, durante a leitura, que o Marquês sente culpa por algo que fez ou deixou de fazer, já que ele insiste em se nos apresentar como um amigo íntimo de Molière, e que exerceu um papel importante na ascensão deste com dramaturgo: Fui o primeiro leitor das petições que fez ao rei solicitando proteção, depois da proibição do Tartufo. Sempre o defendi dos ataques que sofreu, e intercedi para liberar suas peças. Obtive-lhe a proteção do príncipe de Conti, trabalhei para que depois conseguisse o amparo de Monsieur e finalmente o de Sua Majestade. Minha vida estava ligada à de Molière. Eu era seu amigo. (FONSECA, 2000, p. 35) Mas ao mesmo tempo o Marquês também se revela como uma pessoa pouco íntegra, segundo os valores da época, pois afirma não ter sentido remorso por ter sido amante da mulher de seu amigo, e se defende citando mais uma vez Michel de Montaigne, para quem o arrependimento seria “uma negação do nosso desejo e uma oposição às nossas fantasias” (FONSECA, 2000, p. 35). Além do mais, continua afirmando que todos cometiam adultério, “começando pelo nosso próprio bem-amado rei, que levava as amantes para residir no palácio e não podia ver mulher bonita sem cortejá-la” (FONSECA, 2000, p. 35) o que, para ele, certamente, diminuiria sua culpa. Para se retratar decide, então, encontrar o assassino de seu amigo Molière. Contudo, diz não ser possível fazer uso dos meios usuais de investigação porque não poderia se envolver diretamente no caso já que havia outros motivos para se esconder, os quais prefere não comentar e que, além disso, guardava um segredo atormentador cuja revelação poderia custar-lhe a vida (FONSECA, 2000, p.36). Assim, o Marquês narrador SABERES Letras

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manipula seus leitores: apresenta-se freqüentemente como uma pessoa vaidosa, sem escrúpulos, preocupada, sobretudo, com seus próprios interesses e, evidentemente, com a proteção de sua reputação e posição social. Já o capitulo seguinte, Um assunto do qual eu ainda não queria falar, aparenta não ter nenhuma ligação com o objetivo principal da narrativa do Marquês, que é encontrar o assassino de Molière. O próprio título que o Marquês dá ao capítulo já nos põe em alerta porque, se é de um assunto do qual ele não queria falar, então porque escrever? O capítulo narra a execução de Jean Hamelin, conhecido como La Chaussée, executado por ter envenenado, a mando da marquesa de Brinvilliers, os irmãos de sua senhora. A tal execução é descrita em detalhes pelo marquês: “O carrasco então, com uma barra de ferro, quebrou-lhe os ossos dos braços, dos antebraços, das coxas, das pernas e do peito. A cada golpe a multidão gritava exultante” (FONSECA, 2000, p. 39). Isso era feito por um carrasco experiente, “que tinha ordem de fazer render o suplício, de retardar a morte” (FONSECA, 2000, p. 39). Evidentemente esse capítulo não está aí por acaso: já sabemos que o Marquês narrador é uma pessoa da qual devemos desconfiar já que guarda segredos que colocam em risco sua vida. O risco de vida do qual o Marquês acabara de falar no capítulo anterior poderia se concretizar da forma como ele narra a execução de La Chaussée nesse capítulo. No quarto capítulo, Minha outra amante, misteriosa, capítulo o Marquês fala do seu receio quando à La Forest, cozinheira de Molière, pois tinha a impressão de que esta desconfiava de que ele era amante de Armande. O relacionamento dos dois começa a esfriar, provavelmente porque o Marquês tenha passado a sentir remorso, como ele próprio o admite: “Ir para cama com ela, agora que Molière estava morto, passara a ser uma traição à honra e à memória do meu amigo” (FONSECA, 2000, p. 47). Antes da morte de Molière, diz o Marquês, “sempre fora para a cama com Armande com a consciência tranqüila” (FONSECA, 2000, p. 43); a morte de Molière, contudo, fez com que este se interpusesse entre ele e Armande. Aqui também é introduzido um novo elemento na narrativa: o Marquês tem uma outra amante, por quem se diz “alucinadamente apaixonado” (FONSECA, 2000, p. 44), embora mantenha a identidade desta amante em segredo. Encontramos, SABERES Letras

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ainda, mais dados sobre o nosso narrador: em mais uma de suas digressões, freqüentes na sua narrativa, o Marquês escreve que “à medida que envelhecia, [se] tornava mais libidinoso” (FONSECA, 2000, p. 44), para em seguida narrar em detalhes a relação sexual que mantivera com Armande, ainda que estivesse apaixonado por outra. Mais uma vez o Marquês narrador revela-se uma pessoa hipócrita e dissimulada, preocupado, acima de tudo, consigo mesmo. Quando indagado por Armande a respeito do sigilo quanto à relação deles, ele afirma ter “razões para ser prudente” (FONSECA, 2000, p. 46) embora não as nomeie, e acaba por lhe revelar a confissão de Molière, ocultando-lhe, no entanto, a existência de uma outra amante. Para o Marquês, Molière era um “falso doente, como eram falsos todos os seus personagens doentes”, e conclui: “Argan era ele, Alceste era ele, Arnolphe era ele, Harpagon, Tartufo, Ariste, Mascarille, Monsieur Jordan, George Dandin, todos os seus personagens, por mais paradoxal que possa parecer, de certa forma eram ele” (FONSECA, 2000, p. 47). Assim, Molière traria em a semente de cada uma das mazelas a que seus personagens davam vida e deveria ser punido por isso. Evidentemente essa não é a opinião do Marquês narrador, que vê Molière como um grande homem e excelente dramaturgo. A identificação do autor com seus personagens, dentro do mundo da novela, faz com que a vilania de Molière, apontada por várias das classes criticadas por ele, aumente consideravelmente. Em vez de receberem as peças de Molière como obras que faziam saltar aos olhos os males de uma sociedade hipócrita através de caricaturas de indivíduos e não de uma classe, conforme demonstrou Auerbach, parte do público sentia-se diretamente tocada exatamente por verem a si mesmos retratados naqueles personagens. Neste momento, o Marquês começa a enxergar os possíveis assassinos de Molière, e vemos que ele encontra suas pistas nas próprias peças do comediante bem como nos indivíduos que eram mais diretamente tocados por aquelas peças: Pela minha cabeça passava a imagem sem rosto de uma preciosa ridícula, um burguês gentil-homem, um padre, um fanático religioso, um nobre ofendido, um autor consumido pela inveja e mesmo um ator rancoroso, todos segurando um frasco de veneno. SABERES Letras

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(FONSECA, 2000, p. 51).

Essa é a razão pela qual no capítulo quinto, Os salões das preciosas ridículas – e das não ridículas, e nos três capítulos seguintes, o Marquês narrador utilizará cenas das peças de Molière para introduzir na sua narrativa aquele que parece ser, de fato, o maior achado da novela: o retrato de uma sociedade que vive de aparências. O capítulo quinto é aberto com uma cena de As preciosas ridículas, comédia que, segundo Gassner, “desfechou o golpe de morte no culto mais em voga na corte” e cujas “defensoras ainda eram suficientemente poderosas para fazerem sentir a sua ira” (GASSNER, 2002, p. 338). Molière, então, se defende, segundo a narrativa do Marquês, afirmando atacar não todas as preciosas, mas somente as ridículas, ou seja, as imitadoras burguesas. Todavia, o marquês admite que Molière atacava diretamente as duas famosas: Madame Rambouillet e Madame Scudéry (FONSECA, 2000, p. 57). Neste capítulo o Marquês faz visitas a alguns dos famosos salões para ver se Molière ainda era suficientemente odiado para que suas suspeitas recaíssem com maior vigor sobre uma das preciosas. Mas, como afirma o próprio Marquês,

pouco tempo após a primeira apresentação da pela ninguém mais se escandalizava com a sátira de Molière. Relembrando a pouca indignação das pessoas supostamente ofendidas que entrevistara nos salões, concluí que ninguém daquele mundo envenenaria ou mandaria envenenar o meu amigo. Podia, sem susto, suprimir do meu rol de suspeitos uma preciosa ridícula (FONSECA, 2000, p. 66)

O sexto capítulo traz um dos personagens mais marcantes de Molière: Tartufo. A cena escolhida pelo Marquês é aquela em que Orgon descreve como encontrou Tartufo e como se compadeceu dele, já que este parecia um exemplo de pessoa devota. Entretanto, assevera o Marquês,

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[...] ele é um charlatão, um libidinoso, um hipócrita que com suas tiradas santimônias retrata a beatice, o fanatismo e a intolerância que preponderam no meio religioso. Em minha opinião, beatos e padres da Igreja, em sua maioria, são verdadeiros tartufos”(FONSECA, 2000, p. 70).

Dentre as peças de Molière, esta foi, certamente, a mais atacada e critica, principalmente pelo clero, que via ali uma ridicularização da vida piedosa. Por isso, conclui o Marquês, “Não seria nenhuma surpresa se o assassino de Molière fosse um religioso fanático” (FONSECA, 2000, p. 73), pois “eles se viram no Tartufo, são os maiores hipócritas, posso afirmar por conhecimento próprio, usam como ninguém o nome de Deus para encobrir suas patifarias” (FONSECA, 2000, p. 74) Na busca por um suspeito, vai até a casa de seu pai, que fora um membro do Santíssimo Sacramento. Aqui, em um parêntese aberto pelo Marquês, este comenta sua vida ímpia com amantes e amigos heréticos e principalmente seu agnosticismo, que tanto incomodava a seu pai, mais até do que o fato do Marquês não estar casado, e conclui, “sim, eu também era uma espécie de tartufo” (FONSECA, 2000, p. 74). A ironia deste capítulo parece residir no fato de que o Marquês acaba percebendo que também não fora nenhum clérigo que mandara envenenar Molière, já que o sr. Couthon, seu suspeito, pois era clérigo e vizinho de Molière, além do que viu os últimos momentos daquele, se não estava sendo sincero nas suas palavras, não deixava isso transparecer: “confesso que não consegui julgar se Couthon estava sendo ardiloso de alguma forma” (FONSECA, 2000, p. 76). Logo, ficamos sabendo não só que o próprio Marquês se considera um tartufo, mais até do que o clérigo por ele entrevistado, como passamos a ter indícios mais fortes da incompetência dele como investigador. Também o capítulo seguinte, Dom Juan, o pecador irresistível, está às voltas com o tema da hipocrisia. É notável, aqui, a sinceridade do Marquês para consigo mesmo, ao comentar suas conclusões sobre a hipocrisia após assistir Dom Juan:

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Na verdade somos todos hipócritas, e a falsa devoção é uma das suas formas mais comuns. Levamos uma vida corrupta e egoísta, membros da nobreza, da burguesia, da magistratura, do clero, das profissões, do comércio, até mesmo os camponeses, mas não deixamos de praticar a religião, de confessar, com falsa contrição, as nossas perversidades, as nossas ignomínias, os nossos pecados, para depois poder praticá-los, em segredo, novamente (FONSECA, 2000, p. 84).

Todavia, e diferentemente dos outros, neste capítulo o Marquês não está atrás de nenhum suspeito, parecendo servir, ao contrário, para reforçar a dissimulação presente em todos os momentos da novela. Já no oitavo capítulo, Sangria, clister e vomitório, uma longa cena de O amor médico é descrita com o intuito de demonstrar a inaptidão e a charlatanice dos médicos, tema recorrente na produção de Molière. Nesta peça, afirma o Marquês, “cinco médicos charlatães são chamados. Eles representariam, como todo mundo acabou percebendo, os doutores mais conhecidos da França” (FONSECA, 2000, p. 89). De acordo com Gassner, O amor médico “desferia alguns dardos afiados aos pretensiosos médicos profissionais da época”, além de ser a obra na qual Molière “denunciava seu jargão pseudocientífico e sua incompetência cuidadosamente oculta” (GASSNER, 2002, p. 343). Evidentemente, por causa desta peça, e de muitas outras como O doente imaginário, o Marquês foi capaz de encontrar razões para suspeitar da classe médica: “Por que não um médico? Eles são responsáveis por tantas mortes que mais uma não pesaria em suas consciências” (FONSECA, 2000, p. 90); e continua afirmando que “Molière tinha saúde fraca, mas não sofria de nenhuma doença grave – isso é uma mentira que virou verdade, de tanto ser repetida” (FONSECA, 2000, p. 90). Por isso, o Marquês decide conversar o outrora médico de Molière, dr. Mauvillan. Este, contudo, impacienta-se com as argüições insinuadoras do Marquês e retira-se. Este então conclui que “apesar de sabidamente contrário aos médicos antiquados retratados por Molière e de sempre ter demonstrado cuidados com o meu amigo, o dr. Mauvillan era um dos suspeitos de ter envenenado o SABERES Letras

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comediante” (FONSECA, 2000, p. 91). O nono capítulo, O labirinto, traz mais um dado interessante a respeito da narrativa do Marquês, pois este admite ter que “confessar que nada fizera de realmente útil para a descoberta do assassino” (FONSECA, 2000, p. 95). É bem verdade que tem uma lista de suspeitos, na qual constam dr. Mauvillan, Armande, La Forest, Baron o ator, abade Roullé e o sr. Couthon. No entanto, descarta La Forest porque a cozinheira era a única pessoa da casa a quem Molière tratava quase sempre bem. (FONSECA, 2000, p. 96). Quanto a Armande, esta “era muito interesseira, e as pessoas interesseiras não cometem desatinos que as prejudiquem” (FONSECA, 2000, p. 96), mas nos alerta dizendo que guarda dúvidas quanto à inocência de Armande. Mostra-se também incerto quanto ao que pensar de Baron, o ator, já que este “tratava Molière com o carinho que um filho devota ao próprio pai. Mas, para um ator, fingir afeto e dissimular ódio é fácil. Baron era rancoroso e vivia brigando, ou fingindo que brigava, com Armande” (FONSECA, 2000, p. 97). O sr. Couthon já havia sido descartado pelo Marquês quando este admite sua inépcia em perceber se o clérigo estava fingindo ou não. O único que figura estranhamente na lista é o abade Roullé, pois Marquês não explica o porquê de sua inclusão; contudo, trata-se de um membro do clero, logo, um suspeito. Em seguida, embora dissimuladamente, o Marquês reafirma o seu caráter inescrupuloso e, em vez de dedicar-se com mais afinco no intuito de descobrir o assassino de Molière, diz pra si mesmo “que a vida é mais importante que a morte, que precisava esquecer as [suas] angústias. E que lugar melhor para isso do que a agitação fútil dos salões?” (FONSECA, 2000, p. 98). Esta é a deixa que o Marquês precisava para narrar mais um de seus casos libertinos, agora com a Madame de Sévigné, a qual lhe revela que outra de suas amantes, a Marquesa de Brinvilliers, estava presa, acusada de ter matado o pai e os dois irmãos. Só então ficamos sabendo o porquê do medo do Marquês em se ver envolvido com casos de envenenamento e de ter guardado segredo sobre a morte de Molière. Esse porquê nos é revelado no capítulo seguinte, Algumas palavras sobre um amor desvairado, que é aberto por uma reflexão do Marquês sobre o pensamento de Montaigne, em que aquele reconhece, mais abertamente, a sua já comentada libertinagem: “Meu mestre Michel de Montaigne aconselha a fugir da volúpia, ainda que nos custe a vida, mas eu sempre me entreguei cegamente SABERES Letras

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aos prazeres lascivos” (FONSECA, 2000, p. 105). Segue-se então uma descrição de Marie-Madeleine d’Aubray, marquesa de Brinvilliers, e do relacionamento que o Marquês mantivera com ela. Segundo o Marquês, essa seria a mulher que amara loucamente, e por quem seria capaz de qualquer desatino (FONSECA, 2000, p. 106). Só depois de nos informar sobre quem era Marie-Madeleine e sobre seu relacionamento com ela que o Marquês assegura ser possível comentar o porquê de ter deixado Molière morrer sem socorro médico:

Posso agora revelar que o medo em que vivia, de ser de alguma maneira envolvido no caso Brinvilliers, foi o principal motivo pelo qual deixei o meu amigo Molière morrer sem socorro médico. Eu não podia levantar suspeitas que ligassem o meu nome a mortes por envenenamento. Se eu fosse considerado cúmplice de Marie-Madeleine não teria como escapar da condenação à morte. (FONSECA, 2000, p. 106).

O capítulo seguite, La Reynie, reforça a tese de que o Marquês mantém, durante toda a narrativa, uma preocupação maior consigo mesmo e com sua reputação do que com a identidade do assassino de seu amigo Molière. Aqui vemos uma conversa do Marquês com o magistrado La Reynie a respeito da prisão de Marie-Madeleine, prisão essa que poderia ter resultados funestos para o Marquês, caso ele fosse de alguma forma considerado cúmplice de assassinato. (FONSECA, 2000, p. 109). No entanto, o marquês é inocentado pela marquesa, que o considerava um ingênuo que a tratava como uma deusa. Isso traz uma sensação de alívio para ele, e o que veremos nos capítulos seguintes é a investigação ser relegada a um segundo plano para que o Marquês comente, em Breve nota sobre a execução de Marie-Madeleine, a execução desta, narrada em detalhes, à qual ele fora assistir. Em seguida, percebemos como a execução da marquesa de Brinvilliers serviu pelo menos para fazer com que o Marquês assuma seu remorso quanto a ter abandonado Molière: Vê-la ser purificada de seus pecados por meio do arrependimento e da morte? Que força desumana me emprestava aquela coragem? Até hoje não sei explicar SABERES Letras

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e sofro por isso, como sofro ao pensar quão covarde fui ao abandonar Molière enquanto ele agonizava” (FONSECA, 2000, p. 119).

O abandono temporário da investigação também servirá, veremos, para que nos aprofundemos melhor na figura do Marquês, o que é mais evidente no capítulo seguinte, Anos de melancolia. Surpreende-nos logo o título: foram anos de melancolia, não dias ou meses. Se até o momento não havíamos tido nenhuma informação a respeito da duração da investigação, logo ficaremos sabendo por quanto tempo esta se arrastou. Neste capítulo, o marquês relata ter-se entregado ao sofrimento após a morte de Marie-Madeleine, e percebe que esse tipo de rendição não é uma “particularidade feminina” e que “nenhum homem está livre de um dia ter, não importa o motivo, a sua alma assolada por uma angústia que torna a sua existência insuportável” (FONSECA, 2000, p. 123). E finalmente vemos um Marquês arrependido e culpando-se do que se sucedera às suas amantes, Armande e Marie-Madeleine, assim como da morte de seu amigo, além de outras vilanias:

Era culpado por Armande ter se corrompido, por ter se casado com um ator medíocre; culpado por não ter ajudado Marie-Madeleine a se livrar da maldade que a pervertia; culpado por ter tratado com hipócrita condescendência mulheres que de fato desprezava; culpado por ter deixado Molière morrer abandonado. Pensei em morrer. Lembrei-me de um pensamento de Montaigne que diz ser a morte voluntária a mais bela; a vida depende da vontade de outrem, a morte, da nossa (FONSECA, 2000, p. 124).

O Marquês vai então buscar auxílio naquele que considera seu mestre, Michel de Montaigne, mas só então, depois de ter aprendido com sua experiência, é capaz de perceber que também Montaigne nada mais era do que um homem, não melhor do que qualquer outro:

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Percebi, enquanto relia o seu livro, que o grande pensador era contraditório, tinha dúvidas, não era imune ao sofrimento, e mais: tinha preconceitos, era injusto nos seus julgamentos, tinha suas fraquezas e imperfeições, mas sabia que isso não o tornava menos humano e digno (FONSECA, 2000, p. 124).

Só então o Marquês sente suas forças serem renovadas, quando fora capaz de perceber que mesmo um grande homem como Montaigne também cometia lá suas injustiças e tinha suas fraquezas e imperfeições. Entendemos, com isso, que o Marquês tenha encontrado aí alento para superar suas angústias, pois aquela leitura de Montaigne o fizera perceber que não havia motivos para recriminarse por causa de suas desvirtudes. Por fim, no décimo quarto capítulo, Quem matou Molière, ficamos sabendo não só a identidade daquele que envenenou o dramaturgo, como também vemos o Marquês admitir sua inépcia como investigador, quando este afirma que “jamais poderia desempenhar uma função como a de La Reynie, pois falta-me a capacidade de estabelecer os nexos mais simples entre dados disponíveis para a decifração de um enigma” (FONSECA, 2000, p.129). É exatamente isso que vimos durante a sua narrativa: um investigador incapaz de fazer as perguntas corretas e de relacionar os fatos e evidências que colhe para levá-lo até o assassino. Entretanto, escusado é lembrar que foi justamente essa inépcia do Marquês que nos permitiu, leitores, acesso àquilo que, deveras, acaba se tornado o cerne da narrativa: a descrição da hipocrisia e falsidades da sociedade do século XVIII que não diferem muito daquelas de nossa época. Com o pretexto de tentar resolver sua situação amorosa com Armande, o Marquês faz uma visita à madame Voisin, a quem pergunta se ela havia vendido veneno a alguém interessado na morte de Molière, informação pela qual o Marquês estava disposto a pagar. Como era de se esperar, a resposta foi negativa. Evidentemente, ninguém em sã consciência se incriminaria de tal forma. Quando o Marquês resolve fazer uma nova visita à madame Voisin, fica sabendo que esta fora encarcerada por La Reynie após este ter descoberto o envolvimento dela com diversas mortes por envenenamento. SABERES Letras

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O Marquês vai novamente então à procura de La Reynie, a quem revela o que se passara no dia da morte de Molière com o intuito de obter do magistrado alguma informação que o levasse ao assassino. Todavia, quando do interrogatório de mandame Voisin efetuado por La Reynie, nada referente à morte de Molière é mencionado, e só então ficamos sabendo que já transcorreram quase seis anos desde que Molière fora morto (FONSECA, 2000, p. 132). Após muita insistência, o Marquês consegue uma entrevista com a madame Voisin e esta lhe conta que quem envenenara Molière fora La Forest, a cozinheira, o que desaponta o Marquês: “A assassina ser uma cozinheira tirava a paixão, a grandeza, até mesmo o horror que aquele crime devia conter. Um homem como Molière merecia ter como assassino o próprio rei” (FONSECA, 2000, p. 134) Contudo, nos é revelado no último capítulo, Os verdadeiros culpados, que se La Forest envenenou Molière, isso se deu graças ao mando da classe médica. Ao ser presa, La Forest revela que fora o dr. d’Aquin, o médico do rei, junto com os mais célebres doutores de Paris, que mandara envenenar Molière. Como não poderiam encarcerar os médicos mais ilustres da capital francesa, “uma lettre de cachet recolheu La Forest a uma masmorra e nunca mais se ouviu falar dela” (FONSECA, 2000, p. 139). Ainda, como as investigações de La Reynie estavam indo fundo demais, atingindo pessoas da alta sociedade, os processos foram arquivados e foram emitidas lettres de cachet, documentos que serviam para encarcerar, a mando do rei, e por tempo indeterminado, as pessoas cujas culpas já haviam sido comprovadas. O que se depreende dessa situação é a incapacidade de uma sociedade de lidar com suas imperfeições, e que por isso precisa de subterfúgios para manter as aparências. Enfim, e bastante irônico, o Marquês revela não freqüentar mais os salões, embora não os tenha trocado por igrejas, pois não quer tornar-se “um desses velhos que, com medo da morte, arrependidos com o que fizeram de sua vida, por covardia ou esperteza indigna, passam a freqüentar as igrejas com um terço na mão” (FONSECA, 2000, p. 139). Forçoso é reconhecer, no entanto, que mesmo que o Marquês tenha admitido ser também um tartufo, não o é tanto quanto outros descritos por ele, já que não faz questão de disfarçar sua tartufice para seus leitores.

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ALGUMAS PALAVRAS FINAIS Nesse breve percurso, pudemos perceber que se a narrativa do Marquês tem vernizes de uma novela policial, não se atém lealmente ao gênero. É bem verdade que encontramos ali as duas histórias que tipificam a narrativa policial que, segundo Tzvetan Todorov, são a história do crime e a história do inquérito, que não mantém nenhum ponto em comum (TODOROV, 2003, p. 96). Além do mais, na investigação efetuada pelo Marquês, não pudemos recolher indícios que nos levassem ao culpado. Este, na verdade, é descoberto como que por acaso, e somente graças à confissão de alguém que estava envolvido no crime. Lembremos também que na novela de Rubem Fonseca, a história do inquérito é que nos chama mais atenção, pois é a partir dela que somos levados a tomar consciência da hipocrisia da sociedade preocupada em manter as aparências, o que é contrário à classificação de Todorov, segundo a qual a história do inquérito “não tem nenhuma importância em si mesma, que serve somente de mediadora entre o leitor e a história do crime” (TODOROV, 2003, p. 97). Assim, fica evidente que a narrativa policial de Fonseca desrespeita as regras de S. S. Van Dine, citadas e condensadas por Todorov (2003, p. 101): La Forest não é a única culpada pela morte de Molière, uma vez que matou a mando de outros, e que todos os ridicularizados por ele, de certa forma, desejavam sua morte; La Forest não mata por razões pessoais, embora não seja uma profissional; La Forest não goza de nenhuma importância, é uma empregada doméstica, e não é uma das personagens principais; a investigação do Marquês não nos conduz racionalmente ao culpado, ainda que no final sejamos obrigados a aceitar o desfecho como verossímil; divagações e análises psicológicas são abundantes na novela; por fim, o acaso da solução acaba por banalizá-la. Todavia, entendemos que é justamente essa não-conformação às regras do gênero que fazem da novela de Rubem Fonseca uma obra de grande interesse, pois está perfeitamente de acordo com o que escreve Vera Lúcia Follain de Figueiredo, em seu livro Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea, a respeito da narrativa policial contemporânea: A melhor ficção policial contemporânea recorre, então, à convenção do gênero com uma dupla finalidade. De um lado aproveita o que, já na narrativa de enigma do século 19, apontava para a verdade como uma SABERES Letras

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construção realizada a partir de uma combinatória de dados. De outro, corrói a confiança nas estruturas seqüenciais que, identificadas com a própria linha de raciocínio, com a forma própria da razão, acabavam por ordenar a busca da verdade num discurso fechado, que eliminava as probabilidades e abolia o acaso (FIGUEIREDO, 2003, p. 15).

A novela de Rubem Fonseca aponta justamente para esse estatuto relativizado da verdade histórica, assim como para a impossibilidade de apreensão objetiva do real. Ficamos constantemente inseguros quanto à veracidade, dentro do universo da narrativa, do que está sendo narrado, uma vez que o próprio narrador freqüentemente nos adverte e nos dá prova da subjetividade e da parcialidade daquilo que narra. Pudemos confirmar, ainda, no que foi descrito mais acima, aquilo que Vera Lúcia escreve no trecho a seguir:

O crime cometido pelos personagens é, ao mesmo tempo, o pretexto (no sentido de que mascara, encobre o verdadeiro motivo) e o ‘pré-texto’ sobre o qual se dobra o texto que o interpreta – por isso, quando bem arquitetado, aproxima-se da obra de arte, como já antevira Thomas Quincey (FIGUEIREDO, 2003, p. 15).

Eis a razão pela qual não consideramos que a propósito maior da investigação, no universo da novela, não seja encontrar o culpado, mas utilizar isso como um pretexto para que o leitor tenha acesso a uma visão configurada de uma realidade que se faz perceber mais fortemente. Por fim, quanto ao anonimato do Marquês, acreditamos agora estar em condições de avaliar melhor as razões para que ele se esconda de nós, leitores, ao organizar suas reminiscências. Vera Lúcia explica que “o Marquês também assume várias máscaras e daí explica-se o fato de ele não ter nome próprio” (FIGUEIREDO, 2003, p. 66), ou seja, ele, como Molière, estaria simplesmente representando vários papéis, tornando-se, por isso, nada mais que um hipócrita, SABERES Letras

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termo que pode ser lido tanto na sua acepção grega quanto na moderna. Embora não discorde desta opinião, acredito que ainda outras razões tenham levado o Marquês ao anonimato: lembremos que, a todo o momento, ele se mostra um homem medroso, que teme pela própria reputação mais do que está interessado em descobrir a identidade do assassino; lembremos, ainda, que ele fora amante de uma marquesa condenada à morte e que, por isso, temia ser ligado, ainda que indiretamente, aos crimes cometidos por ela. Além do mais, o Marquês foi amante de Armande, esposa de Molière, a qual, sendo uma atriz, não era bem vista pela sociedade de então. Desta forma, conclui-se que o Marquês certamente tinha uma reputação pela qual prezar e que não queria deixar que sua vida sórdida e hipócrita, a qual ele assume abertamente porque está sob a máscara do anonimato, a manchasse.

REFERÊNCIAS AUERBACH, Erich. Mímesis: a representação da realidade na literatura ocidental. 4 ed. São Paulo: Perspectiva, 2002. CÂNDIDO, Antônio. A personagem do romance. In: CÂNDIDO, Antônio. et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 1998. COUTINHO, Carlos Nelson. Lukács, Proust e Kafka: literatura e sociedade no século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005 FIGUEIREDO, Vera Lúcia Follain de. Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. FONSECA, Rubem. O doente Molière. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. GASSNER, John. Mestres do teatro I. Tradução de Alberto Guzik. São Paulo: Perspectiva, 2002. ISER, Wolfgang. The fictive and the imaginary: charting literary anthropology. Baltimore: John Hopkins University Press, 1993. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. Tradução de Mônica Costa Netto. São Paulo: Ed. 34, 2005. STAROBINSKI, Jean. L’oeil vivant: Corneille, Racine, La Bruyère, Rousseau, SABERES Letras

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Stendhal. Paris : Éditions Gallimard, 1999. TODOROV, Tzvetan. Tipologia do romance policial. In: ______. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2003.

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