Realinhamentos da Gestão Pública a partir da Preservação: a experiência da cidade de Santa Maria Madalena - RJ

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REALINHAMENTOS DA GESTÃO PÚBLICA A PARTIR DA PRESERVAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DA CIDADE DE SANTA MARIA MADALENA - RJ REALINEAMIENTOS DE GESTIÓN PÚBLICA DESDE LA CONSERVACIÓN: LA EXPERIENCIA DE LA CIUDAD DE SANTA MARIA MADALENA PUBLIC MANAGEMENT REALIGNMENTS FORWARDS PRESERVATION: THE CASE OF SANTA MARIA MADALENA CITY Eixo temático 1. Planejamento, urbanismo e apropriação social na preservação do patrimônio

Andréa da Rosa Sampaio Doutora, Professora do Departamento de Arquitetura da Universidade Federal Fluminense – UFF

Sergio Rodrigues Bahia Doutor, Professor do Departamento de Urbanismo da Universidade Federal Fluminense - UFF

Resumo: As ações do Projeto de Extensão “Patrimônio Cultural, Paisagem e Sociedade: Desafios da Conservação em Santa Maria Madalena” da Universidade Federal Fluminense (UFF), possibilitaram aos moradores da Cidade de Santa Maria Madalena – Região Serrana do Estado do Rio de Janeiro – construir um debate sobre a preservação do patrimônio e suas implicações no desenvolvimento local. As informações técnicas divulgadas pelo Projeto alimentaram o entendimento de grupos favoráveis e contra à proposta de tombamento paisagístico do Centro Histórico da cidade, ainda em curso pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). O que se percebe, na prática, a partir do Projeto da UFF é o quanto a construção de um olhar sobre a paisagem local e a tentativa de construção de uma política de preservação dessa paisagem em nível municipal pode se tornar o elemento chave para se discutir não só a cidade, mas o desenvolvimento municipal. Em outras palavras, é a interessante percepção de que a condição de fragilidade das administrações públicas locais pode ser trabalhada segundo um tema ainda controverso – sobretudo na visão dos proprietários de imóveis – mas que agrega em sua discussão valores por demais caros e necessários ao realinhamento do desenvolvimento local frente ao contexto contemporâneo. Este é o foco da reflexão que o presente artigo se propõe a conduzir, a partir da experiência empírica do Projeto de Extensão, que caminha paralelamente ao processo de tombamento do centro histórico da cidade pelo IPHAN. Palavras-chave: Preservação; Gestão Urbana; Participação social. Educação Patrimonial;

Resumen: Las acciones del Proyecto de Extensión Universitaria “Patrimonio Cultural, Paisaje y Sociedad: Desafios de la Conservación en Santa María Madalena” de la Universidad Federal Fluminense (UFF), permitió a los residentes de la Ciudad de Santa Maria Madalena - Región montañosa del Estado de Rio de Janeiro construir un debate sobre la preservación del patrimonio y de sus implicaciones en el desarrollo local. Las informaciones técnicas divulgadas por el Proyecto dio la base a la comprensión de los grupos favorables y que se opuso a la propuesta del tombamiento paisajístico del Centro histórico de la ciudad, aún en curso por el Instituto del Patrimonio Histórico y Artístico Nacional (IPHAN). A través del Proyecto de la UFF, se da cuenta de como la creación de una nueva mirada en el paisaje local y el intento de construir una política de conservación de este paisaje en el ámbito municipal, puede

convertirse en un elemento clave para discutir no sólo la ciudad, sino el desarollo del município. Interesante es la percepción de que la frágil condición de que el gobierno local puede ser elaborado de acuerdo a un tema aún discutible - especialmente en vista de los propietarios de los inmuebles - pero añade que en su discusión valora demasiado caro y requiere el reajuste de desarrollo local frente al contexto contemporáneo. Este es el tema de la reflexión que el artículo se propone a conducir, llevar la experiencia empírica del proyecto de extensión, que se desarolla paralelamente al proceso de tombamiente del centro histórico de la ciudad por el IPHAN. Palabras-clave: Preservación gestión urbana, Participación Social. Educación patrimonial.

Abstract: The actions from Fluminense Federal University (UFF) Extension Project "Cultural Heritage, Landscape and Society: the challenges of conservation in Santa Maria Madalena" have enabled city’s residents to build a debate on heritage preservation and its implications on local development. Some technical information brought by the Project work nourished the understanding of groups in favor and against the proposal of recognizing the historic centre as landscape Landmark, currently in course by the National Historical and Artistic Heritage Institute (IPHAN). In practice, it is noticeable from the Project how far the construction of a viewpoint at local landscape and the attempt to building a preservation local policy at the municipal level, can become a key element to discuss not only the city, but municipal development. In other words, it is an interesting insight that the local government fragile condition can be worked out according to a yet controversial theme – especially in property owners view – which adds in its discussion important values required to the realignment of local development in face of contemporary context. This is the reflection focus that this paper aims to tackle from the empirical experience of the Extension Project, which is being developed in parallel to the historic city center listing proceedings as Landmark by IPHAN. Keywords: Preservation, Urban Management; Social Participation. Heritage Education.

REALINHAMENTOS DA GESTÃO PÚBLICA A PARTIR DA PRESERVAÇÃO: A EXPERIÊNCIA DA CIDADE DE SANTA MARIA MADALENA - RJ INTRODUÇÃO Localizada na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro, a cidade de Santa Maria Madalena tem sua história associada ao apogeu do ciclo cafeeiro que conduziu a economia de vários municípios do estado no final do século XIX. Implantada em um vale, a original mancha urbana de Madalena – hoje centro histórico da cidade – conserva, em grande parte, o padrão característico de urbanização, com áreas públicas generosas que abrigam exemplares da arquitetura urbana de traços coloniais e chalés da passagem do século XIX para o XX. Mas a permanência dessa paisagem até os dias atuais não se deve a uma ação de planejamento voltada à preservação de tal ambiência. Contribuíram para essa condição a própria condição geográfica de isolamento da cidade em relação à rede urbana do estado, assim como o fraco desempenho da economia municipal da segunda metade do século passado. Na primeira década deste século, a preservação da paisagem do centro histórico da cidade é introduzida na pauta da gestão pública local. E no decorrer desse processo – ainda em curso – emergem diferentes visões sobre as relações entre preservação e progresso, sinalizando que os conceitos norteadores da discussão precisam ser não só bem delineados, mas, sobretudo, incorporados a uma prática de gestão. É um momento fértil no tocante às manifestações da população, onde grupos se estruturam para defender seus pontos de vista. Mas principalmente é uma situação que evidencia a fragilidade da gestão pública municipal no enfrentamento de novas questões, até então desconhecidas ou distantes do seu cotidiano. O que se percebe, na prática, a partir do Projeto de Extensão Patrimônio Cultural, Paisagem e Sociedade: desafios da conservação em Santa Maria Madalena 1, é o quanto a construção de um olhar sobre a paisagem local e a tentativa de construção de uma política de preservação dessa paisagem em nível municipal pode se tornar o elemento chave para se discutir não só a cidade, mas o desenvolvimento municipal. Em outras palavras, é a interessante percepção de que a condição de fragilidade das administrações públicas locais pode ser trabalhada segundo um tema ainda controverso – sobretudo na visão dos proprietários de imóveis – mas que agrega em sua discussão valores por demais caros e necessários ao realinhamento do desenvolvimento local frente ao contexto contemporâneo. Este é o foco da reflexão que o presente artigo se propõe a conduzir, a partir da experiência empírica do projeto de extensão, que caminha paralelamente ao processo de tombamento do centro histórico da cidade pelo IPHAN. A atual conjuntura de ausência de instrumentos de preservação e de falta de quadro técnico municipal especializado tem incorrido em sérias ameaças à conservação do patrimônio ambiental urbano de Madalena. O trabalho que realizamos no âmbito do Projeto de Extensão foi bem recebido pelas Secretarias Municipais e por segmentos da sociedade, criando expectativas para sua continuidade e desdobramentos. Por outro lado, o surgimento de uma mobilização contrária ao tombamento por parte de alguns proprietários de imóveis no centro histórico demonstra a prevalência da lógica individualista do direito à propriedade que não aceita a sua função social 1

Coordenado pelos autores desse artigo, o Projeto foi executado no ano de 2012 no âmbito do Edital Nº 4 PROEXT/MEC 2011, contando com 4 bolsistas discentes da EAU-UFF - Adriana Luz Teixeira, Helena Vianna de C. Rodrigues, Nicole de S. S. Macedo e Roger Leonardo S. da Silva. Mais informações sobre o projeto encontram-se em .

constitucional e não compreende a dimensão coletiva da paisagem 2. Tal quadro indica a necessidade de se trabalhar a conscientização do valor patrimonial do centro histórico, sobretudo pelo seu potencial de alavancar o desenvolvimento urbano do município. Assumimos a premissa de que as ações de preservação não terminam com o tombamento, e sim começam, conforme reconhecido pelo IPHAN como orientação para Áreas Urbanas Tombadas (IPHAN, 2010). Nesse sentido, trabalhamos o mapeamento do centro histórico, a capacitação da Administração Pública municipal e a conscientização da sociedade civil local em relação ao valor patrimonial de seu centro histórico, buscando construir uma consciência patrimonial e contribuir para a gestão do sítio histórico. Nossa cooperação no processo de preservação do centro histórico de Madalena iniciou-se a partir da realização de duas Viagens de Estudo com turmas da EAU/UFF em 2010. A partir de então, inaugurou-se uma cooperação informal com o IPHAN através do encaminhamento dos trabalhos de alunos para instrução do processo de tombamento3, bem como com a Prefeitura Municipal, através de orientação técnica direcionada a frear a descaracterização do centro histórico e a perda do seu principal patrimônio – a paisagem. A mais efetiva contribuição, em 2010, foi a orientação de um Projeto de Lei do Executivo, aprovado na Câmara Municipal, sustando, durante 90 dias, quaisquer demolições e novas construções na área do centro histórico, uma vez que o processo de tombamento paisagístico ainda não havia sido concluído pelo IPHAN. Já expirado esse prazo, desde então, perdura a conjuntura de vulnerabilidade do centro histórico, uma vez que o tombamento, embora iminente, ainda não foi efetivado e, sobretudo, devido à insuficiente consciência patrimonial por parte da comunidade, incluindo alguns arquitetos atuantes no local, que fazem intervenções desastrosas do ponto de vista da preservação do conjunto arquitetônico do centro histórico da cidade de Santa Maria Madalena. A iminência do tombamento mobiliza a população contra e a favor da preservação, tema que passou a ser pauta de debates cotidianos na pequena cidade. Verificamos a veiculação de muitas informações truncadas, inclusive no jornal local. Há, portanto, necessidade de uma maior conscientização sobre o tema, através do reconhecimento do valor patrimonial do centro histórico. Acreditamos que o tombamento do sítio histórico e paisagístico de Santa Maria Madalena será uma medida fundamental para a conciliação do desenvolvimento sustentável de seu centro urbano à preservação do patrimônio cultural e do sítio paisagístico, contribuindo, sobretudo, para a revitalização econômica do município, cujo turismo cultural e ambiental pode impulsionar o desenvolvimento local. No entanto, para que esse processo seja apropriado pela sociedade local, há necessidade de uma mediação técnica visando à conscientização da sociedade, de que a 2A

polêmica sobre o tombamento foi divulgada no Jornal local, na TV regional, e ainda na coluna do Ancelmo Góis no Globo, dia 06/08/2012, sob o título 'Calma gente', disponível em ; Jornal O Madalenense, 30/04/2012, 'UFF implanta projeto de preservação do patrimônio cultural.' Jornal O Madalenense, 24/08/2012 'Tombamento: como devemos nos posicionar? A preservação do patrimônio histórico de Santa Maria Madalena em discussão.' Jornal O Madalenense, edição de setembro. Publicação de texto nosso, como coordenadores do projeto: Esclarecendo questões sobre a preservação do centro histórico de Madalena. Jornal O Madalenense. 30/09/2013. p. 9. (Matéria sobre a reunião ocorrida em 26/04/2012). 3 Merece destaque que os trabalhos realizados na atividade de Viagem de Estudo 1 ao município em 2010 alcançaram repercussão externa, sendo apresentados no IPHAN no ciclo de Oficinas de Preservação, sob o título de “A Construção de um Olhar sobre o Patrimônio na cidade de Santa Maria Madalena”, assim como a geração de publicações de matérias no Globo online, disponíveis nos seguintes links: http://oglobo.globo.com/economia/morarbem/mat/2010/11/25/trabalho-de-alunos-da-uff-mostra-olhar-dos-moradoressobre-possibilidade-de-tombamento-de-santa-maria-madalena-923113687.asp http://oglobo.globo.com/economia/morarbem/mat/2011/03/22/imoveis-historicos-de-santa-maria-madalena-correm-riscode-serem-demolidos-ou-terem-suas-caracteristicas-alteradas-924065562.asp.

preservação é o salvamento daquela cidade. Foi o que realizamos em 2012 e que entendemos ser necessária a continuidade. Encontramos ressonância da nossa experiência no argumento de Choay (2011), em tom de manifesto, na introdução de sua antologia sobre patrimônio cultural, enfatizando a necessidade de uma tomada de consciência das ameaças que pesam sobre a identidade humana, convidando a se travar um combate em prol do patrimônio, a partir de três frentes de luta: a) educação e formação; b) utilização ética de nossas heranças edificadas; c) participação coletiva na produção de um patrimônio vivo. Essas temáticas convergem na problematização do caso de Santa Maria Madalena na presente reflexão, que primeiramente discorre sobre o patrimônio cultural local e as questões que envolvem seu processo de tombamento, para em seguida tratar das visões antagônicas da sociedade local e finalmente, dos contornos da gestão urbana frente à preservação do patrimônio, encerrando o artigo, mas não a discussão, com a reflexão sobre possíveis perspectivas.

O CENTRO HISTÓRICO DE MADALENA COMO BEM CULTURAL Implantado em vale circundado por altas montanhas, o patrimônio ambiental urbano madalenense combina valor paisagístico e significação cultural. O centro histórico da cidade é característico de meados do século XIX e início do século XX, quando a cidade viveu seu período áureo, dinamizado pelo ciclo do café. O conjunto urbano mescla a arquitetura tradicional residencial do século XIX, de casarões térreos, com chalés ricamente ornamentados, representativos da herança cultural da cidade, outrora palco de vida cultural pujante. Os registros iconográficos históricos e atuais revelam a paisagem como um todo harmônico conformado pela implantação urbanística e a arquitetura (Figura 1). A arquitetura tradicional residencial, associada às especificidades do sítio, imprimiu características próprias à cidade, definindo sua identidade, que a distingue no contexto regional de urbanização desordenada, como a “joia da serra” e outros adjetivos (Figuras 2 e 3).

Figura 01: Panorama do centro histórico com destaque para a Igreja de Santa Maria Madalena. Observa-se a envoltória verde e ao fundo, Pedra Dubois. Foto realizada pela autora, out. 2010.

Madalena insere-se no contexto de cidades preservadas em função da estagnação econômica, em que se conservou a homogeneidade do conjunto urbano, por falta de pressão de renovação, enquanto sua população perdia capacidade econômica ou se deslocava para outros centros urbanos. Houve, inclusive, um decréscimo considerável de sua população entre os séculos XIX e XX. Essa conjuntura torna compreensível a resistência de alguns moradores em relação à preservação do centro histórico. Para este grupo, desenvolvimento e progresso estão diretamente associados, em linhas gerais, às possibilidades de renovação e adensamento do conjunto edificado. Os estudos desenvolvidos nas atividades acadêmicas apontaram o risco iminente da perda desse patrimônio, diante da desproteção legal e da tendência crescente de mudanças de usos, que implicam em adaptações, demolições e construções de novas tipologias. Tais descaracterizações, consoantes com a legislação edilícia vigente, vêm provocando prejuízos à unidade visual do patrimônio ambiental urbano (Figura 2). Cabe ressalvar que a recente proteção das encostas do centro histórico através de Área de Proteção Ambiental (APA) municipal, que preserva a envoltória verde que tanto caracteriza o sítio (Figura 1), não protege suficientemente a relação do conjunto urbano com a paisagem (BAHIA e SAMPAIO, 2012).

Figura 02: Bota-abaixo na Rua Barão de Madalena (rua principal) em dois momentos recentes, 2010 e 2012. Fotos realizadas pelo autor, maio de 2010 e março de 2012.

A proposta de inscrição desse singelo, mas expressivo, centro histórico como Bem Tombado Nacional corrobora a ampliação e diversificação da noção de patrimônio cultural para além dos monumentos excepcionais, tombados na denominada “fase heroica” do IPHAN, a partir do reconhecimento de uma série de bens, não monumentais, mas fundamentais para a compreensão da formação do país: cidades como Goiás (GO), Pirenópolis (GO), Alcântara (MA), Corumbá (GO), Laranjeiras (SE), Parnaíba (PI), entre outras. Apesar de não apresentarem aspectos como a monumentalidade ou a homogeneidade, seus sítios históricos foram tombados em função de seus atributos, sobretudo, as arquiteturas tradicionais associadas ao território onde estavam inseridas, que lhes conferiam características singulares (IPHAN, 2010). Tais tombamentos, juntamente com a preservação, a partir da década de 80, de um patrimônio ambiental urbano, sem grande relevância artística ou estética, refletem a ampliação do objeto patrimonial. Esse deslocamento conceitual, conforme apontado por diversos autores 4,

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Choay (2001) discute a ampliação do objeto patrimonial num panorama internacional. O panorama brasileiro é discutido por Castriota (2009), Bonduki (2010), Santanna (2000), sendo a política federal estudada por FONSECA, Maria Cecília Londres. Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: IPHAN/ UFRJ, 1997.

corresponde à passagem da noção de patrimônio, que seletivamente elegeu ícones artísticos e históricos a preservar sob a ótica de cidade-monumento, para uma noção ampliada de bens culturais inscritos na ótica de cidade-documento, em que se enfatiza a construção da história urbana do país. O patrimônio ambiental urbano de Madalena se enquadra nesse caso, sobretudo, ao se estudar o contexto regional de herança do ciclo do café (Figura 3).

Figura 03: Vista do casario do centro histórico emoldurado pela mata e Pedra Dubois, ao fundo. Foto realizada pela autora, abril. 2012.

Considerado como discurso e representação da sociedade, o patrimônio cultural é um tema de caráter cultural e histórico, sujeito às mutações com o transcorrer do tempo, tanto em termos de processo urbano quanto de mudanças de paradigmas. Nesse sentido, ao longo de sua trajetória histórica, foi sendo revisado conceitualmente o tipo de legado a que se atribui valor como patrimônio, geralmente protegido a partir de um discurso construído como “retórica da perda”5. (GONÇALVES, 1997). O caso de Madalena confirma esse argumento, uma vez que o processo de tombamento federal do centro histórico tem como finalidade estancar as demolições que vem ameaçando sua integridade. A partir da década de 1970 emerge internacionalmente uma visão crítica ao desenvolvimentismo e ao negativo impacto das demandas contemporâneas sobre o meio ambiente e áreas históricas 6. Madalena não presenciou essa dinâmica, isolada pela extinção da ferrovia em 1965 e pela falta de atividade que impulsionasse sua economia. Chegamos à contemporaneidade com uma abordagem do patrimônio cultural cada vez mais interdisciplinar. Assumindo-se a cidade como um artefato cultural, a preservação do patrimônio cultural deve ser problematizada como fato social, conforme argumenta Meneses (2006). Assim sendo, vem estabelecendo, sobretudo a partir da 5

Conforme argumento desenvolvido por Gonçalves (1996) sobre o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Essa temática foi incorporada nas Cartas Patrimoniais, sobretudo na Recomendação de Nairobi (UNESCO, 1976), relativa à proteção dos conjuntos históricos tradicionais e ao seu papel na vida contemporânea. Para Choay (2001), essa continua sendo a “exposição de motivos e a argumentação mais complexa em favor de um tratamento não museal das malhas urbanas contemporâneas”. 6

década de 1970, interfaces com vários campos que tratam da cidade e da sociedade, além da Arquitetura e Urbanismo: Economia, Direito, Sociologia, Antropologia, História, Meio Ambiente. O direito ao patrimônio cultural é protegido legalmente, sendo reconhecido juridicamente como um Direito Difuso, dado o seu caráter coletivo. O que vem a ser o “centro histórico”? Por que preservá-lo? O que significa valor paisagístico? Essas questões entraram na ordem do dia dos madalenenses a partir do momento em que foi divulgado o processo de tombamento, sobretudo, através da nossa atuação no Projeto de Extensão. Entretanto, embora de ordem técnica, são subjetivas, pois suas respostas são relativas a juízos de valor. Buscando construir argumentos para subsidiar a apropriação dos valores patrimoniais pela sociedade e pela Administração Pública à gestão da conservação do patrimônio e da paisagem madalenenses, o projeto apoiou-se em referenciais do campo do Urbanismo e do Patrimônio Cultural, buscando a convergência de seus conceitos aplicada ao caso, em particular no embate do desenvolvimento x preservação. Em sua abordagem de cidade como bem cultural, Meneses (2006) a concebe como um artefato socialmente apropriado em três dimensões intimamente imbricadas que agem solidariamente: a dimensão do artefato, já que a urbanização é um produto próprio da sociedade; a dimensão do campo de forças, em cujo espaço se desenvolvem tensões e conflitos na economia, na política, na vida social, nos processos culturais, etc. e, finalmente, a dimensão das significações, que dotam de sentido e inteligibilidade o espaço. Para compreender a cidade como bem cultural, é preciso enfrentá-la simultaneamente nas três dimensões. Nesse sentido, compreende-se o centro histórico a partir do conceito contemporâneo de patrimônio ambiental urbano, que ultrapassa o foco do monumento isolado para tratar da qualidade ambiental advinda das relações que os bens naturais e culturais apresentam entre si, como paisagem socialmente e culturalmente construída (CASTRIOTA, 2009). Considera-se ainda uma visão de potencial de intervenção sobre o patrimônio, que aponta para uma noção mais dinâmica, transpondo a ideia da preservação para a da conservação daquelas características ”que apresentem uma significação cultural”. Desta forma, trabalha-se tanto com a preservação – a restrição das alterações – como com a ideia de conservação, quando se refere à inevitabilidade da mudança e à sua gestão (CASTRIOTA, 2009). Na ideia de conservação urbana integrada se articulam as políticas de patrimônio e de planejamento urbano. No caso de Santa Maria Madalena, diante da expressiva paisagem, a conservação ambiental também deve fazer parte da política urbana, devendo-se aliar, portanto, a proteção do patrimônio à defesa da sustentabilidade ambiental. Assumimos como premissa o entendimento de Meneses (1992) de que “Preservar seria uma forma de encaminhar a reapropriação do espaço urbano pelo cidadão”. O mesmo autor propõe a compreensão da cidade como um bem cultural, na qual sublinha a importância das áreas envoltórias, entre outros instrumentos, para a preservação do patrimônio ambiental urbano (MENESES, 2006). Reflete, ainda, sobre os conflitos da preservação e ordenação urbana, situando o habitante local como fruidor principal da cidade qualificada. Sendo esse habitante o principal sujeito da cultura, defende a diretriz de se considerar o cultural uma dimensão do social – e não o inverso (Meneses, 2006). Nesse sentido, acredita-se na indissociabilidade da estrutura física da social como componente do patrimônio cultural. Esta noção deve permear tanto as políticas públicas quanto às intervenções projetuais. Para tanto, faz-se necessário que o cidadão reconheça os atributos que qualificam o lugar e conferem significância como patrimônio cultural. Buscando contribuir nesse sentido, realizamos o mapeamento do centro histórico, registros fotográficos montados como perfis de faces de ruas e

modelamos uma maquete eletrônica digital representando a paisagem do sítio patrimonial. Pretende-se que esse instrumental venha a ser empregado no monitoramento do sítio e nas análises de intervenções no centro histórico no âmbito do Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Histórico, Cultural e Artístico (CMPPHCA) e será repassado ao IPHAN para ser aplicado na gestão do sítio tombado. Embora já seja amplamente aceito que o papel do patrimônio cultural como um dos atributos que qualifica espaços urbanos, confere valor, distingue e identifica cidades e lugares, nutrindo laços sócio-ambientais (IPHAN, 2010), esta noção ainda não foi assimilada como senso comum, como observado nas visões antagônicas sobre o tema, tanto em grandes centros urbanos quanto em pequenas cidades, como Santa Maria Madalena. Não obstante a ordenação urbana e o tombamento serem necessários como proteção legal, concorda-se com o argumento de Choay (2001) de que conservação urbana não é apenas uma questão a ser formalizada somente em leis, mas primeiramente deve ser uma atitude de formação de mentalidade. Assim, mais do que política cultural, é necessário incluir o patrimônio na formação de uma cultura política. No entanto, na prática, essa é uma das missões mais difíceis, dada a conjuntura social local, como discutiremos a seguir.

O PATRIMÔNIO PARA A SOCIEDADE MADALENENSE Não é exagero afirmar que o Projeto de Extensão da UFF despertou na cidade uma nova forma de olhar para a questão do patrimônio. Poder-se-ia até afirmar que foi ele o responsável pela introdução de um tema por suposto novo aos madalenenses. Muito embora o município já tivesse vivenciado num recente passado a experiência esporádica de tombamento de um exemplar de sua arquitetura oitocentista – o prédio da delegacia de polícia 7 –, tal experiência seguiu os passos de uma preservação ainda fundada no entendimento do valor do prédio como obra isolada de excepcional qualidade. Não querendo minimizar tal fato e os ganhos da luta travada pelos madalenenses na virada do século XX ao XXI – tombamento em nível municipal8 do prédio da delegacia – essa experiência resultou na preservação de um edifício institucional, ao qual caberia à Administração Pública a tarefa de garantir administrativa e financeiramente a perpetuação de sua essência cultural às futuras gerações. Ainda estava por chegar à Santa Maria Madalena a “estranha” ideia de que à preservação paisagística de um sítio histórico atribui-se o entendimento do Direito Difuso, convergindo para a situação na qual vários exemplares apresentam-se integrados a um contexto maior e único, onde o elemento isolado em si não necessariamente traz consigo a justificativa de preservação pelo seu excepcional valor enquanto exemplar arquitetônico. E junto a essa nova forma de lançar o olhar sobre a paisagem a ser preservada, emergia ainda a polêmica questão da necessidade de investimento privado com vista à manutenção de uma “ordem” coletiva, cujo entendimento pleno da nova situação demandaria de todos os envolvidos a aguçada e difícil percepção – segundo os cânones locais predominantes – da efetiva inserção do munícipe num cenário de direitos e deveres constituídos como base de uma ordem ao bem comum. E na qualidade de arauto das novidades advindas desse particular cenário, encontrávamos nós, da equipe do Projeto de Extensão da UFF tentando construir um campo de informação, discussão e envolvimento da população da cidade na defesa da preservação de valores por demais intangíveis segundo a forma consolidada de leitura sobre o tema. 7

O sobrado eclético da Delegacia destaca-se no conjunto de uma das duas Praças da cidade e seria demolido para a instalação de projeto padrão do Governo do Estado. 8 Ainda que sem legislação municipal que regulamente o tombamento.

Porém, mesmo antes da polêmica sobre o tombamento enveredar na abordagem do Direito Difuso, o ato do tombamento em si passou a ser interpretado por parte da sociedade como ação autoritária. E no desenrolar das argumentações, “autoritarismo” e “democracia” foram palavras por demais usadas, mas nem sempre com a sua devida propriedade. Reflexo dessa maneira de pensar pode estar associado a formas de gestão características de Administrações Públicas que dificilmente exercem, na íntegra, seu real papel de mediação da prática dos direitos e deveres que recaem não só sobre os munícipes, mas sobre todas as instituições envolvidas no cotidiano local. Retrato típico dessa forma de agir são Administrações Municipais que, para não onerar seus contribuintes, abriam mão de arrecadar os impostos que lhes eram devidos. Óbvio que, em muitos casos, essa “bondade” administrativa estava muito mais atrelada a formas tradicionais de se “fazer política”; nesses casos, a política da demagogia. Mas este exemplo é só um aspecto de modos distintos de conduzir a coisa pública que, como consequência, acaba por alimentar a imagem de um Poder Público por demais permissivo, que não cobra deveres que deveriam ser cobrados e, por isso, acaba por cristalizar a figura da impunidade: nenhuma penalidade será imposta às obrigações não cumpridas. Especificamente no caso de Santa Maria Madalena, essa situação pode ser entendida mediante a forma de aplicação dos dispositivos legais de sua legislação urbanística: várias práticas edilícias divergem dos dispositivos legalmente estabelecidos desde a década de 1970 sem, contudo, ter havido punição por isso. Assim, se à percepção popular já é notório o descaso no cumprimento de uma norma local, como aceitar que uma instância federal – no caso o IPHAN – venha a “ditar” regras sobre o que pode e o que não pode ser feito na cidade? A esta “afronta” busca-se a defesa no cristalizado entendimento de que “quem manda na minha casa sou eu”, entendimento este então razoavelmente reforçado pelas próprias práticas do Executivo e Legislativo municipal. Para aceitar o tombamento há que se entender que o bem sujeito a esse ato só o é, assim, subordinado por se apresentar em “situação de risco”: tomba-se para preservar um bem cultural cuja integridade esteja ameaçada. Provavelmente em sociedades onde a essência do respeito e da defesa ao seu patrimônio já se encontram consolidadas – por se sentirem parte, de fato, integrante de uma ambiência, de sua história, de sua vida social, cultural e econômica –, esse ato pode até soar como um reforço legal desnecessário. Mas esse não é o caso da cidade de Santa Maria Madalena, que possui uma paisagem de significativo valor a ser preservada – reconhecida pela competência técnica a qual se atribui ao IPHAN – mas que parte da população assim não a reconhece. E nesse momento de embate, foram postos em dúvida a aplicação de princípios democráticos, uma vez que o órgão de competência técnica federal – competência esta atribuída por instrumento legal – não ouviu com antecedência os munícipes madalenenses contrários à ideia do tombamento. Mas, como incluir essa suposta “pauta democrática” diante da ameaça premente de descaracterização da paisagem defendida por esses respectivos interlocutores locais? Eles representam, de fato, a ameaça à preservação que tanto se deseja combater com o ato do tombamento. Assim, e de forma democrática – por seguir os princípios das normas legais estabelecidas – o IPHAN implementou ações que se constituíram no processo de tombamento paisagístico do centro histórico da cidade, ainda em fase de conclusão. O que se percebe com esse cenário real vivenciado na Região Serrana do estado do Rio de Janeiro é a necessidade de anteceder ações no campo da educação patrimonial em processos de tombamento. Sabemos que esta ação planejada raramente é adotada em casos brasileiros. Há de se investir mais fortemente na dimensão da educação patrimonial em processos que visam à preservação de paisagens e/ou patrimônios edificados, uma vez reconhecendo que sociedades que têm construído de forma mais sólida o seu senso de pertencimento ao local e à sua ambiência, mais valor social, cultural e histórico irão conferir ao seu patrimônio, sem com isso, no entanto, desconsiderar as questões econômicas afetas à preservação. Mas quando o processo de tombamento desponta como medida de extrema urgência e necessidade, só nos cabe seguir uma

outra lógica – que não supostamente a ideal – e tentar conduzir ações, baseadas nas possibilidades de programas de educação ambiental, para que estas possam contribuir na aplicação das diretrizes delineadas pelo ato do tombamento. O caso do tombamento paisagístico do centro histórico de Santa Maria Madalena encontra-se numa fase intermediária, onde as ações práticas do Projeto de Extensão da UFF tiveram de ser executadas durante a fase de condução do processo de tombamento, mas ainda não concluído. Enfrentamos, por isso, todas as dificuldades relacionadas ao desconhecimento das diretrizes a serem estabelecidas pelo IPHAN, tendo como certeza as abordagens teóricas que abraçam a questão, além das leituras do sítio realizadas pela própria equipe. Ao longo do desenvolvimento do Projeto de Extensão, buscou-se estabelecer uma mediação técnica, visando à conscientização da sociedade e do governo local, sublinhando que o patrimônio madalenense extrapola os limites de seu território e de seu povo: a ambiência urbana é registro concreto de importante fase econômica da história do país. Através do contato com a sociedade civil, identificou-se a falta de conhecimento e a apreensão em relação ao processo de tombamento. O Projeto informou a sociedade a respeito das implicações do tombamento, buscando conscientizá-la em relação às oportunidades de desenvolvimento sustentável a partir da preservação, bem como sobre os deveres a serem assumidos pela Administração municipal e população. Para tanto foram adotados meios distintos de sensibilização da população, tais como impressos ilustrando cenários comparativos entre fragmentos da paisagem existente e hipotéticas consequências desastrosas como resultado da falta de medidas de preservação (figura 4); maquetes para montar de exemplares significativos da arquitetura urbana (figura 5); jogo educativo abordando o tema patrimônio, voltado para um público infantojuvenil; assim como marcadores de livros com detalhes arquitetônicos representativos.

Figura 04: Extrato de Simulação hipotética de renovação da Rua Barão de Madalena. Fonte: Prancha A4 – Simulação, utilizada em reunião do Projeto de Extensão com a sociedade, em abril, 2012.

Três reuniões com a sociedade civil foram realizadas ao longo do ano, além de reuniões setoriais com distintos segmentos, possibilitando evidenciar as posturas contra e a favor da proposta de tombamento da paisagem do centro histórico. Além das reuniões, fizemos oficinas de educação patrimonial (figura 5) e criamos uma página em rede social como forma de interlocução com a

sociedade, onde postamos informações sobre o projeto e respondemos dúvidas 9. Nesse processo, explicitou-se a existência de dois discursos distintos: um representativo das possibilidades de desenvolvimento advindas da implementação de políticas e ações atreladas ao tombamento paisagístico, e outro cuja leitura associa tombamento à estagnação, ao engessamento e à impossibilidade de desenvolvimento econômico. Percebeu-se, com isso, o grande desafio de ter de ajustar a noção de desenvolvimento reinante por parte de um grupo da sociedade civil – majoritariamente os proprietários de imóveis no centro histórico – para quem o ato de tombamento os cercearia da “liberdade” de definir o que bem fazer de suas propriedades e, com isso, não mais poder ampliar a área construída através da renovação de seus imóveis.

Figura 05: Maquetes para montar – 3 modelos de casas exemplares – casarão, chalé e casa colonial-tipo. Fonte: Oficina do Projeto de Extensão realizada durante a 3ª FLIM, em agosto, 2012.

As reações contrárias à proposta de preservação de uma escala coletiva – a paisagem – refletem, inicialmente, valores de uma sociedade mais fundados no individualismo que nas possibilidades do trato do coletivo em prol de uma ambiência urbana mais qualificada que, de fato, venha a pertencer a todos. Comparando essas reações a práticas comumente adotadas pela sociedade brasileira, percebe-se a existência de uma grande resistência da “ordem familiar”, mais individualizada, sobre a esfera pública instituída pelo Estado. Com isso, os princípios de fato democráticos e tão necessários à defesa de um ato – o tombamento paisagístico – voltado a uma escala coletiva, tornam-se práticas inoportunas. O que há, na realidade, é a prevalência do doméstico sobre o público e das relações familiares sobre as institucionais. Contribuindo, ainda, à manutenção desse cenário propício a práticas dissociadas da primazia da coletividade, Holanda (1963) nos lembra que a forma de convívio social do brasileiro caracteriza-se pela espontaneidade, uma humanização deliberada e, por consequência, por certo afrouxamento no rigor dos ritos e das regras. Segundo esse contexto, algumas reações madalenenses à proposta de tombamento tornam-se mais facilmente entendidas. É preciso, pois, conhecer a essência do pensamento dos interlocutores envolvidos para que ações de um trabalho de educação patrimonial possam ser devidamente orientadas e, com isso, identificadas dúvidas e apreensões de modo mais preciso. Destaca-se, dessa forma, dois enfrentamentos básicos no campo da construção do ideário prótombamento: o primeiro concernente à visão de coletividade propriamente dito, onde o empenho 9

Vide link .

de cada um será necessário à construção de bem comum a todos, bem este que poderá se reverter inclusive em ganhos financeiros ao indivíduo desde que a gestão do conjunto tombado seja conduzida com competência pela Administração Pública local. O segundo enfretamento diz respeito a entendimentos por demais ultrapassados sobre o direito de propriedade, quando a leitura de que as ingerências na propriedade privada advindas do tombamento afetariam, de forma quase que expropriante, o domínio – e a total liberdade – do proprietário sobre seu bem. Questões arduamente defendidas por representantes do grupo contra o tombamento que, em sua concepção de cidade, ao proprietário do imóvel compete a definição de seu destino. A Administração Pública municipal, responsável pelo ordenamento territorial urbano, parece não ter vez na construção da cidade desejada. Por outro lado, há de se fazer um esforço na tentativa de identificar as razões da forma de pensar contrária ao tombamento para, assim, tornar possível o delineamento de uma estratégia que consiga prevalecer sobre as manifestações contrárias. A economia do município, por décadas estagnada, contribuiu para a construção de um imaginário dominante de cidade que a colocava numa posição de inferioridade frente a economias vizinhas mais dinamizadas. Preservada em decorrência da ausência de motivação econômica para a renovação do estoque construído, a paisagem preservada acabou por simbolizar a essência do atraso econômico. Segundo essa forma de leitura do ambiente madalenense, desenvolvimento e progresso estariam diretamente associados ao poder de “modernizar” a paisagem com a construção de novos edifícios (até três andares, de acordo com as disposições do Código de Obras de 1976, ainda em vigor), de gerar empregos através das atividades comerciais e de serviços que os novos prédios poderiam abrigar, enfim, de aumentar a densidade populacional na área central e, com isso, incrementar a circulação de dinheiro. Cabe salientar que essa lógica fundamenta-se na ideia de que o direito à propriedade é inviolável, cabendo prioritariamente ao seu proprietário definir o seu destino. Somando-se a esse panorama, a forma dominante e de se pensar o individual sobre o coletivo, como ainda a frágil condução pelo Poder Público municipal das ações administrativas de sua competência. Para vencer essas formas cristalizadas de situar a preservação da paisagem como algo extremamente danoso ao progresso local, ter-se-ia primeiramente de se construir e se apropriar de um pensamento alicerçado sobre uma dimensão coletiva e com potencial de usufruto financeiro da situação de excepcionalidade do lugar. Enfim, um outro modelo de desenvolvimento local, onde a paisagem preservada em suas qualidades poderá ser o elemento atrativo de várias outras atividades. Na lógica de uma economia capitalista, substituir-se-ia, assim, o aspecto quantitativo – metros quadrados que o proprietário dispõe para comercializar – por aspectos de natureza qualitativa, onde, neste caso, o proprietário seria ressarcido pelos atributos de sua propriedade. Embora se reconheça alguns avanços obtidos no desenvolvimento de uma consciência cidadã no Brasil, sobretudo a partir do momento de abertura política vivenciado nas duas últimas décadas do século XX, a nossa “pirâmide dos direitos” estruturada de cabeça para baixo (CARVALHO, 2010) e o cenário de renascimento liberal vivenciado no mesmo período podem desenhar situações inusitadas, como a do indivíduo para quem chega a ser mais importante o seu direito de consumir em relação aos seus próprios direitos políticos, “o que, em contrapartida, acarreta certo menosprezo aos direitos coletivos. A determinação das regras de mercado tem uma influência considerável sobre o modo de pensar liberal” (BESSA, 2006). Caberá, portanto, a essa população de perfil tão peculiar posicionar-se diante de um novo fato em seu cotidiano – a preservação através do tombamento –, construir um olhar coletivo e ousar em participar – como agente efetivo – da redefinição de novos rumos a serem tomados pelo Poder Local, entendendo-se este ser constituído pelos Poderes Executivo e Legislativo, junto com a sociedade civil.

O período preparatório das eleições municipais acirrou as discussões em torno do tema, gerando uma tensão pela politização do assunto, ampliando sua repercussão social. Em que pese a mobilização contrária ao tombamento, foi gratificante ver a população discutindo os rumos de sua cidade e ver nascer uma mobilização a favor da preservação por parte de jovens, que apoiam a proposta de tombamento e buscam informações para que eles próprios possam construir seu movimento. Nesse sentido, difícil foi perceber as vozes favoráveis ao tombamento no início do processo, pois esta, por entender e concordar com o novo cenário apresentado, apenas compartilhava, em silêncio, os argumentos então expostos. Foi necessário a mobilização contrária ao tombamento ganhar as ruas da cidade para que o outro grupo – os “pró” – percebessem a necessidade e urgência da mobilização a fim de melhor estudar e defender, segundo a prática democrática, as novas possibilidades. Seja ao grupo que se apresenta contrário ou favorável às propostas de tombamento paisagístico do centro histórico da cidade, o que há de fato a se destacar, no campo das práticas sociais, como grande mérito do Projeto até agora conquistado é o estímulo ao poder de mobilização frente a questões diretamente ligadas ao cotidiano da população envolvida na nova temática. Enfim, enquanto o processo de tombamento não é finalizado pelo IPHAN e, com isso, o propósito original do Projeto de Extensão da UFF de desenvolver ações de educação patrimonial a partir das orientações delineadas pelo próprio IPHAN teve de ser reorientado ao longo do ano de 2012, houve, nesse período marcado por incertezas, o mérito da criação de uma arena democrática para a manifestação das diferentes visões de cidade almejada por seus habitantes. E dos avanços pontuais conquistados a cada contato travado durante as visitas e reuniões técnicas, talvez o mais significativo tenha sido a assistência técnica dada ao Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Histórico, Cultural e Artístico (CMPPHCA), que possibilitou a retomada de seu funcionamento e, com isso, a sinalização da repercussão positiva do Projeto de Extensão na Administração Pública local.

SOBRE O PATRIMÔNIO E A GESTÃO URBANA A partir do avanço do Projeto de Extensão e da possibilidade concreta de tombamento do centro histórico pelo IPHAN, a suposta “ameaça” da conservação – para alguns – evidencia a falta de conhecimento sobre a questão, a precariedade dos instrumentos urbanísticos municipais e a opacidade, ou até mesmo a falta, de um “projeto de cidade”. Essas questões são relacionadas à gestão urbana e convergem na dimensão campo de forças, conforme categorizada por Meneses (2006), onde se podem identificar as tensões e conflitos no campo da economia, da política, da vida social, nos dos processos culturais, dentre outros. Na esfera da Administração Pública, o Município de Santa Maria Madalena apresenta características semelhantes à de tantos outros municípios brasileiros de pequeno porte: a estrutura administrativa não responde plenamente – tanto em número quanto em grau de capacitação – às demandas do cotidiano local. Há de se ressaltar, ainda, que as competências municipais foram significativamente ampliadas com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Contudo, a proporção de chegada das novas atribuições ao nível local da Administração Pública não foi a mesma percebida no campo dos investimentos em ampliação e qualificação dos servidores públicos municipais. Como resultado, os municípios brasileiros de pequeno porte vivenciam a constante situação de incapacidade de resposta a todas as demandas que batem à sua porta. E Santa Maria Madalena não é exceção a essa situação. O povo madalenense comemorou, no ano de 2012, o sesquicentenário de sua emancipação. Nesses 150 anos, o município acompanhou a trajetória de distribuição da população no país: de

eminentemente rural para um cenário fortemente urbano, ainda que suas urbis (em sua divisão político-administrativa, Santa Maria Madalena possui seis distritos) estejam longe de reproduzir a imagem de cidades pólos de centros metropolitanos, como incorporação do estereótipo de cidades. Não obstante, mazelas presentes nesses grandes centros já fazem parte do cenário urbano do primeiro distrito – Cidade de Santa Maria Madalena –, tais como ocupações em áreas de risco, traçado urbano que reflete a falta de planejamento na expansão de seu tecido, assim como outras tantas situações que se proliferam diante da parca fiscalização. Seguindo a tendência dos municípios de pequeno porte, sua legislação urbanística – elaborada na década de 1970 – reproduz um modelo comumente encontrado em tantos outros municípios de mesma escala do interior do Estado do Rio de Janeiro. Esses textos legais, além de trabalharem questões genéricas, as tratam de modo superficial. Assim, os dispositivos de ocupação do solo consideram o lote a única referência a partir da qual o potencial construtivo se define. A legislação em vigor demonstra, com isso, despreocupação em relação a condicionantes outros de controle da ocupação do solo urbano, ironicamente num sítio de tanta expressividade. Por outro lado, a mesma legislação faz uma referência tímida – porém essencial ao desenvolvimento de parte dos trabalhos do Projeto de Extensão – sobre a área histórica da cidade. Com base nesse dispositivo, a equipe da UFF em período de realização de Atividades Acadêmicas na cidade (ano de 2010) assessorou o Executivo Municipal na elaboração de um projeto de lei criando e delimitando o centro histórico apenas referenciado na legislação urbanística local da década de 1970. Esse projeto tornou-se a lei municipal Nº 1.610 após aprovação pela Câmara Municipal em dezembro de 2010. Um ano antes, o tema da preservação do patrimônio já evidenciava a cidade de Santa Maria Madalena e apontava caminhos a percorrer na jornada da Administração Pública local. Em 2009, autoridades das três esferas de governo assinaram no Palácio Guanabara – sede do governo estadual do Rio de Janeiro – o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC-CH) das Cidades Históricas. Interessante momento para os gestores públicos locais, pois mesmo sem ter ainda criado a área histórica da cidade, já a reconheciam e, por isso, pleiteavam recursos específicos voltados à execução de obras em cidades reconhecidamente detentoras de patrimônios de significativo valor. Completando esse pretenso cenário que tenta abraçar as questões relacionadas ao patrimônio e os avanços e pressões dele oriundo ao campo da gestão municipal, convém ressaltar a obrigatoriedade, segundo lei federal, de elaboração de Planos Diretores às cidades que abrigam áreas ou centros históricos. O município de Santa Maria Madalena não possui um Plano Diretor. O seu porte de 10 mil habitantes – ou cinco mil habitantes da cidade – o isenta dessa obrigatoriedade. Contudo, a julgar o panorama de reconhecimento de sua área histórica, inclusive já contando com a possibilidade de conclusão imediata do processo de tombamento de seu centro histórico pelo IPHAN, a obrigatoriedade de elaboração do Plano Diretor tornar-se-á fato. Mais um sinal das necessidades de adaptação de procedimentos e formas de gestão às novas demandas trazidas pelas mãos da preservação da paisagem madalenense. No atual contexto, a administração pública local vive seus dias garantindo as necessidades essenciais da realidade do município de 10 mil habitantes. Carente de um quadro técnico tanto em número quanto em termos de qualificação, o planejamento que envolva maior comprometimento de seus quadros para destrinchar novos assuntos parece ficar sempre relegado a um segundo plano. O caso do Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio Histórico, Cultural e Artístico (CMPPHCA) que embora nomeado, é leigo no tema, ratifica a necessidade de capacitação dos conselheiros – majoritariamente formado por técnicos da Prefeitura – para que possam atuar minimamente na orientação e aprovação de reformas e novas construções.

Nesse sentido, o Projeto de Extensão desenvolvido ao longo do ano de 2012 acabou assumindo o papel de estimulador de uma reflexão sobre a própria estrutura gestora do município, suas políticas e instrumentos, assim como pôs em destaque a competência das três instâncias do Poder Público local: os Poderes Executivo e Legislativo, e a sociedade civil. Com o desenvolvimento de algumas ações foi possível contar com um Conselho Municipal de Proteção ao Patrimônio mais bem estruturado. Contudo, muito ainda há de fazer para que ele se consolide como a instância local de referência no tema.

E AFINAL, QUAIS AS PERSPECTIVAS? Encontramo-nos, ao final, diante de uma curiosa conclusão apresentada pelo específico cenário madalenense, qual seja: não será a gestão municipal que acolherá as novas ações, projetos, programas e políticas de preservação, mas, ao que parece, se está diante de uma possibilidade de mútua construção, na qual as novidades da preservação impulsionarão uma nova leitura – quiçá seguida por inúmeras ações – das possibilidades de desenvolvimento local e sua gestão. Certamente não será esta uma experiência original, afinal de contas, num universo de 5.570 10 municípios brasileiros, algumas tantas Administrações Públicas locais provavelmente já tenham tido a oportunidade de definir os rumos de suas gestões em função da introdução de temas emergentes em sua pauta administrativa. No caso de Santa Maria Madalena o desafio agrega questões não somente relacionadas à preservação em si e às necessidades de mudanças na estrutura administrativa municipal para a sua incorporação; demanda uma ampla releitura dos caminhos a serem seguidos rumos ao desenvolvimento local e, como consequência, uma vasta revisão dos seus instrumentos legais e a reestruturação administrativa necessária para tanto. Aos que priorizam as questões econômicas sobre todas as demais temáticas que envolvem o cotidiano da gestão municipal, cabe a resposta ao grande desafio sobre como compatibilizar a demanda de modernização e investimentos no centro histórico, sem comprometer sua identidade – seu valor paisagístico. Em panorama sobre a atuação do Programa Monumenta em nível nacional, Bonduki (2010) traça uma análise que pode ser transposta à conjuntura atual dos demais sítios históricos brasileiros, e a Madalena, inclusive, segundo a qual os núcleos históricos “...não são ruínas arqueológicas, mas lugares vivos, onde habita uma população com necessidades contemporâneas, que podem e devem ser atendidas no território urbano como um todo, inclusive nas áreas protegidas”. Reconstruída a lógica de desenvolvimento local, o projeto de cidade apresenta grandes possibilidades de ser alicerçado nas premissas da preservação, as quais deverão defender a dimensão qualitativa do espaço construído sobre a consolidada visão quantitativa, e provocar, com isso, a reestruturação de instrumentos que viabilizem a prática dessa nova dimensão. No campo das práticas sociais, o pontapé inicial foi percebido através das respostas às ações do Projeto de Extensão ao longo de 2012. A sociedade local mostrou disposição em mobilizar-se na defesa de posições afetas ao seu cotidiano. Resta, agora, ampliar essa energia para que mobilizações futuras venham coroar o entendimento do papel da preservação no desenvolvimento municipal de Santa Maria Madalena.

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Fonte: http://oglobo.globo.com/pais/com-5-novos-municipios-brasil-agora-tem-5570-cidades-7235803, publicado em 9 de janeiro de 2013.

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