Realismo e relativismo: agência e linguagem na história 2015

June 30, 2017 | Autor: Carlos Maia | Categoria: History, History of Science, Semiotics And Language, Social Studies Of Science
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Relativismo e realismo: agência e linguagem na história Carlos Alvarez Maia

Excertos do livro “História, ciência e linguagem. O dilema realismo-relativismo”. Mauad. 2015. As páginas de referência ao livro estão entre parênteses [entre colchetes encontram-se textos que articulam um fragmento do livro a outro]

[primeiro fragmento] (p.16 a p.20) A história

“Um dos maiores desafios, ainda hoje, tanto para a pesquisa em história tout court quanto para a pesquisa que se dedica aos estudos de ciência é apreender o caráter histórico de seus objetos. As atividades humanas ocorrem em um cenário que é historicamente constituído, isto é, as percepções que se tem em determinado tempo e lugar são sempre produzidas a partir de outras que as antecederam e que serão por elas substituídas. Qualquer entendimento novo sobre algo sempre parte do entendimento anterior – eis aí a noção de devir histórico. Assim, quando um sujeito se contrapõe a um objeto há sempre um terceiro elemento interposto entre eles: aquilo que já se encontra estabelecido e internalizado pelo sujeito, o saber anterior. Isso constitui o fracasso da teoria do conhecimento clássica, que apresentou o esquema cognitivo alicerçado na divisão sujeito– objeto. Além do fracasso dessa dicotomia ante a explicação ternária referida, há também uma derrota por tal dicotomia apresentar um caráter estático. Deve-se considerar que o sujeito que conhece já contém em si o resultado das experiências anteriores, as quais o modificam: o sujeito é dinâmico, é um sujeito histórico.1 Esse procedimento compreensivo assenta o fundamento da história, a sua qualidade básica: a historicidade que engendra o devir. O conceito de historicidade é o que impede que se considere um sujeito em si, isolado, um pensador livre, axiologicamente neutro – uma “folha em branco”. Ele possui valores e está recheado de inscrições dadas pelas vivências que o constituem como um ser histórico. 1

A relação binária sujeito–objeto dominou, e ainda domina em alguns setores, a historiografia dos estudos de ciência até recentemente. Uma rara oposição explícita é a obra de Ludwik Fleck, difundida tardiamente. Esse autor fundamenta o argumento aqui utilizado em favor de um terceiro elemento, o saber já constituído, que se encontra internalizado no estilo de pensamento (Fleck, 2010, p. 51, 81, 83 e 136).

O realismo e o relativismo

Na década de 1970, houve ampla difusão desse modo compreensivo em todo o corpo das ciências sociais. Na disciplina história, as análises foram revigoradas por Pomian (1975), que, ao consolidar a ideia de história da história, apontou para a historicidade das próprias obras de história.2 Assinalava-se como as narrativas produzidas por historiadores estavam imersas na historicidade desses mesmos historiadores. E as análises histórico-sociológicas sobre a atividade científica também foram contaminadas por esse olhar crítico, ao mostrarem como o próprio conteúdo das práticas científicas estava eivado de historicidade e como as “teorias” e os “fatos” científicos eram dependentes das condições histórico-sociais de sua produção. A sociologia em especial produziu uma alternativa aos antigos estudos da ciência, ainda dominados por um viés filosófico ou institucional.3 Foi essa a orientação do “programa forte” da sociologia do conhecimento, que considerou as negociações e os acordos entre os atores sociais como o fundamento das “verdades” científicas.4 Essa vertente sociológica colocava-se na contramão da tradição epistemológica de explicação da ciência, pois no “programa forte” a ideia de verdade advinda de fatos naturais foi substituída pela ideia de crença social. Abriam-se, assim, as portas do relativismo. Sob tal condição, tanto na disciplina história quanto nos estudos sobre a ciência, o jogo societário entre seus agentes concretos – historiadores ou cientistas – é considerado o promotor privilegiado das certezas profissionais. Nos dois casos, esse realce inovador acarretou revitalização interpretativa ao incorporar olhares inesperados a seus discursos, o da história e aquele aplicado à ciência. Esse olhar construtivista dá ênfase aos acordos dos agentes sociais – os sujeitos –, em detrimento de qualquer realismo objetal. Entretanto, é justamente nesse cenário de renovação crítica que surgem problemas. No caso das teorias sobre a ciência, a questão diz respeito à não consideração do papel determinante dos fatos naturais capturados pela racionalidade no estabelecimento da verdade das leis e teorias científicas. No caso da história, o obstáculo deve-se à valorização da narrativa histórica apenas enquanto narrativa – levando, assim, à sua equiparação à narrativa literária. E, nessa proximidade entre as duas narrativas, perde-se a clareza da separação entre o verdadeiro e o ficcional.

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Nessa mesma época, nos Estados Unidos, foram marcantes as investidas de Alvin Gouldner (1971) em favor de uma sociologia da sociologia. Devido a esses movimentos reflexivos que ocorreram nas ciências humanas, costumo definir a década de 1970 como a “década da reflexividade”. 3

Na vertente tradicional, a ciência se encontrava à margem da história; era entendida como produto da razão que capturava o seu sentido dos “fatos da natureza”. Havia exceções em que a história arranhava a superfície desse objeto – a ciência –, ou ainda, ao mostrar a ação da sociedade restrita a seu aspecto institucional, como ocorria na sociologia da ciência de Robert Merton. 4

Ver a obra de David Bloor, 1991.

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Nos dois casos, há um desafio ao realismo pretendido não só pelo discurso histórico, mas também pelo científico. Instalaram-se aí dois relativismos: um sociológico, nos estudos de ciência, e outro narrativo, no plano da linguagem, nos textos históricos. A ofensa promovida por esses relativismos incomodava tanto os praticantes da atividade científica, os cientistas, quanto os historiadores. O incômodo causado nesses dois grupos profissionais produziu os eventos reconhecidos respectivamente como “guerra das ciências” e “crise da história”. Em ambos os casos, houve uma polêmica em torno da oposição realismo versus relativismo. É aqui que se situam os artigos deste livro. Como vencer o desafio posto pelo relativismo

diante

de empresas

com

pretensões

realistas

em

seus

respectivos

conhecimentos? É possível conciliar alguma forma de realismo com os avanços compreensivos relativistas trazidos pelos estudos sociológicos da ciência e pelos estudos que se aplicam à narrativa, ao discurso? Como escapar do transtorno cognitivo desses relativismos? A solução para esse imbróglio, ainda que rigorosa, é bastante simples, por observar mais criteriosamente os conceitos fundamentais que abastecem as práticas humanas que produzem conhecimento na história e na ciência. São práticas simbólicas, discursivas. A orientação aqui defendida parte de uma perspectiva pragmática na qual o jogo societário é considerado como uma interação múltipla: dos agentes sociais entre si e deles com o mundo que os cerca. Há confronto entre pessoas e delas (como sujeitos históricos) com a materialidade do mundo (como objeto, percebido historicamente). Certamente o esquema sujeito–objeto é incompleto e ineficiente para retratar esse embate interativo, pois nele se perde o essencial, ou seja, a reciprocidade da interação. O sujeito interage com algo, o seu objeto, ao reconhecê-lo como tal. Em cada interação, o sujeito adiciona e extrai significações do objeto. Ocorrendo interação, o objeto torna-se um significante para o sujeito e, dessa forma, reage e atua sobre ele. Há reciprocidade nesse agenciamento entre sujeito e objeto. Essa interação parte das significações já instituídas e que, em seguida, serão reconstituídas. Um objeto comparece ante um sujeito sempre vestido de significações. Não há nem sujeito nem objeto isolados, despidos. Há ação recíproca em um processo contínuo de significação no devir histórico.5 As interações são traduzidas nas e pelas significações. Toda interação humana possui um aspecto material, dado pelo confronto físico, e outro simbólico, dado pela

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Já Marx caminhava nessa direção quando se fundamentava nos conceitos de “trabalho” e de “modo de produção”, conceitos que se apoiam no intercâmbio – obviamente recíproco – entre sociedade e natureza.

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acareação das significações. E esses aspectos estão imbricados, são dois registros inseparáveis. Os agenciamentos interativos ocorrem como sobreposições do simbólico e do material. As percepções humanas estão condicionadas pelo regime de significações aposto à materialidade. Assim, trago para o nosso campo de batalha aqui, neste livro, a cena mais completa. Apresento a perspectiva de que os embates cognitivos explicitados no conflito realismo versus relativismo, tanto em ciência quanto em história, ocorrem em um cenário mais amplo do que a simplificação da dicotomia sujeito–objeto propõe. Essa dicotomia estimula visões parceladas e problemáticas: a ênfase dada ao sujeito (que conhece) promove o relativismo; já a ênfase dada ao objeto (a ser conhecido) incentiva o realismo. Tal correlação dicotômica prossegue na polarização dada pela cadeia de termos “sujeito”, “subjetivo”, “subjetividade”, em oposição a “objeto”, “objetivo”, “objetividade”. Nosso desafio é romper com esse simplismo maniqueísta e indicar uma direção mais fidedigna para a descrição da cena de produção dos saberes em sua complexidade efetiva. O fiel da balança entre os polos realismo–relativismo indicará uma alternativa mais equilibrada para o embate. Trata-se de um fiel orientado pelo agenciamento simbólico-material recíproco. É esse agenciamento que abrirá uma senda para um novo e mais preciso entendimento sobre a forma de produção dos saberes. Dessa maneira, todo intercâmbio material é acompanhado por uma significação historicamente constituída. Se algo interage com o sujeito, mesmo sendo um objeto inanimado, ele já apresenta para o sujeito sua face simbólica, seu pertencimento ao mundo histórico. Ocorrem, assim, dois impactos no enfrentamento do realismo absolutista: no caso da atividade científica, essa compreensão acarreta a consideração de que os objetos naturais já chegam ao cientista vestidos de significações históricas. Social e natural não se separam – da mesma forma como os registros simbólico e material se encontram amalgamados –, e deixa de ter sentido pensar em Sociedade e Natureza como duas entidades ontológicas. Com isso, a ontologia dos objetos fica comprometida e deixa de confundir uma entidade qualquer, social ou material, com o Ser metafísico; toda narrativa é uma articulação de significações historicamente produzidas, extraídas por sujeitos situados em circunstâncias determinadas, e isso retira das narrativas quaisquer pretensões a expressarem condições absolutas. Há uma estrutura simbólica de significações estabelecida socialmente que fornece valores relativizados. E mais uma vez a ontologia é desafiada com novas doses de relativismo.

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O primeiro desses impactos enfrenta e corrói o absolutismo metafísico; já o segundo, dá novo enquadramento compreensivo às questões vinculadas à narrativa, aos discursos. O primeiro faz a demolição da ideia que compreende objetos e sujeitos, quaisquer que sejam, em uma existência independente dos discursos, da história, e assim, confunde arbitrariamente um ente histórico com o Ser da ontologia. O segundo vê-se obrigado a considerar com maior rigor e detalhe a relação entre as narrativas, a materialidade concreta e a história. Nesse segundo impacto, será necessário repensar como as narrativas, as práticas discursivas e até mesmo a linguagem logocêntrica – linguagem em sentido estrito, em sua literalidade – estão imbricadas com as experiências concretas de vida dos falantes. Nesse sentido, a linguagem deixa de ser vista como um constructo da mente de indivíduos, e é observada como um produto etnográfico estabelecido nas vivências compartilhadas em uma coletividade. A ideia de uma linguagem se expande para além da linguística, ganha materialidade e avança pela etnologia. A linguagem, nesse sentido ampliado, um sentido lato, será conceituada como aquilo que porta e articula as significações apreendidas pelos sujeitos, sejam apreensões de sentido literal dado por palavras ou de sentido semiológico dado por objetos. Trata-se da linguagem mais que literal. Como diz Barthes: “os próprios objetos poderão transformar-se em fala se significarem alguma coisa” (Barthes, 1989, p. 133). Derrida ratifica essa compreensão mais que literal ao designar o termo “escritura” como algo que excede e compreende a linguagem literal (Derrida, 1999, p. 10) e que envolve “tudo o que pode dar lugar a uma inscrição em geral, literal ou não.” (Derrida, 1999, 11) Tais significações colocadas nas inscrições derridianas são sentidos, semiológicos.” (p. 20)

[segundo fragmento] (p.21 a p 22)

“O capítulo 1 trata da “crise da história” decorrente do linguistic turn que inquietou, e ainda inquieta, historiadores, por indicar a similaridade entre a narrativa histórica e a narrativa estritamente literária, dando realce aos aspectos comuns dessas narrativas. Para muitos historiadores, isso é motivo de grave apreensão, pois a história é considerada em suas pretensões realistas e a literatura como uma produção ficcional. Assim, aproximar as duas narrativas significaria uma ameaça à história, a perda de seu diferencial básico: o de estar comprometida com alguma forma de realismo. Contudo, é evidente que a situação não é tão simples assim: são diversas as convergências entre as duas narrativas. Já há um longo debate que situa a complexidade da relação da história com a literatura e problematiza bem como a história é uma espécie de ficção – sem que esse caráter ficcional comprometa a

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referência factual da escrita historiográfica. Um de nossos dilemas, como historiadores, é superar maniqueísmos e ultrapassar oposições inflexíveis. No entanto, a questão que pretendo tratar aqui é outra. Para isso, uso a estratégia de substituir a ideia de “crise da história” pela de “crise dos historiadores”. Desloco a questão de um dilema teórico na disciplina história – dilema hoje questionável – para o terreno mais pragmático desse embate que gera, sim, dificuldade para muitos historiadores ante as inovações conceituais que os novos tempos e perspectivas historiográficas trazem para a profissão. A aproximação da história à ficção engendra ameaça para uma classe de historiadores que persistem crédulos em um tipo de realismo que não se sustenta mais. Esses historiadores, eles sim em crise, insistem na sobrevivência de um modelo com sérios vícios ontológicos para a história. Meu objetivo é mostrar que não há crise da história; ao contrário, a história hoje vai muito bem, ela desafia seus limites e avança criticamente por paisagens inesperadas. Esse primeiro capítulo se concentra na demolição de quaisquer valores absolutos na história, tais como os associados aos conceitos de “Verdade” e “Real”, e navega bem pelas águas relativistas que inundam o terreno (aparentemente) seguro do realismo. O realismo aqui é apresentado como mais um integrante de uma ficção – essa sim bastante prejudicial – permeada de certezas míticas pertencentes a outras eras historiográficas. Também já se apresenta a tentativa de ultrapassar o hiato existente entre coisas e palavras. Para tanto, são introduzidos os elementos básicos da análise semiológica dos discursos – tais como: sujeito, sentido, produção de sentido, enunciado, cena discursiva e enunciação –, necessários para a compreensão da linguagem mais que literal que será desenvolvida nos próximos capítulos. Exibe-se um primeiro esboço que caminha na direção de mostrar a materialidade da linguagem e que viria a reunir a ordem das coisas com a das palavras.” (p.22) [INCLUSÃO, NÃO ESTÁ NO LIVRO IMPRESSO] [Ainda que história e ficção tenham pontos de contato, parece-me evidente que o texto histórico possui compromisso com algo que “realmente” aconteceu, ele não é um texto produzido somente pela imaginação. A história persegue e problematiza vestígios, traços presentes de algo ausente, marcas do passado. Podem ser vestígios concretos – ruínas, monumentos, outros textos, restos físicos de vidas que se foram, materiais de cultura que sobreviveram ao devir do tempo – ou podem ser vestígios abstratos contidos na memória societária – os idiomas, os significados instituídos, as crenças e costumes, os hábitos vinculados à sobrevivência etc.] [terceiro fragmento] (p.24)

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[No capítulo 3,] “o conceito de agência interativa prossegue como fundamento de toda análise, e é apresentado como sucedâneo dos modelos representacionais típicos da epistemologia da cognição. Observa-se como a agência material promove uma ecologia para a integração homem–natureza e para o binômio sujeito–objeto. Uma agência ocorre na instância material, mas também convoca para si o registro simbólico. Aqui está a novidade. Em qualquer interação dos sujeitos com o mundo há um todo inseparável: a ação material acompanhada de sua significação para os sujeitos. As significações são componentes indispensáveis das intervenções no mundo. Assim, considera-se que a linguagem mais que literal decorre da interatividade dos agenciamentos, sendo deles uma parcela essencial.” (p. 24)

[quarto fragmento] (p.25) “O capítulo 4 finaliza a apresentação das questões da linguagem mais que literal como prática interativa no mundo, integrada ao agenciamento simbólico-material recíproco. Nossa etnografia dessa linguagem prossegue agora com um objetivo bem específico: atacar o momento no qual as palavras se encontram com as coisas, a cena da enunciação. Isso é, vamos tentar desvendar como os pesquisadores, com base em suas percepções sensórias do mundo material, constroem um texto pretensamente referido aos eventos deste mundo. Essa é base do realismo prático possível. Um realismo contaminado pelo relativismo desses pesquisadores que lhes é intrínseco historicamente e independente de suas vontades. Vamos, assim, para a cena mágica da enunciação primordial que fundamenta, em cada pesquisador, toda pesquisa empírica; vamos para o momento em que os cientistas produzem seus fatos realísticos, a fim de entender como os cientistas capturam uma significação já dada pelos elementos naturais e a transformam, traduzem-na, em uma proposição literal, supostamente com a mesma significação.” (p. 25)

[quinto fragmento] (p.37 a p. 38)

“Verdade, realidade e objetividade como produtos de protocolos discursivos fleckianos

Como Lynn Hunt destaca, interpretando Chartier: “As próprias representações do mundo social são os componentes da realidade social” (1992, p. 9); e atesta também a presença de

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Foucault, em contágio com Chartier: “Foucault demonstrou a inexistência de quaisquer objetos intelectuais „naturais‟” (1992, p. 9). E aqui levantamos o véu sobre algumas questões outras. Toda prática humana com pretensões cognitivas está comprometida com a crença de que fala sobre algo referido ao mundo “exterior” ao produzir seu discurso narrativo, e que essa “narrativa” tem algum compromisso

com

a

“verdade”

desse

conhecimento.

Em

seu

aspecto

menos

comprometedor, trata-se apenas de uma postura pragmática da pesquisa, um princípio heurístico estratégico, sem nenhuma pretensão metafísica; entretanto, dissabores metafísicos infiltrar-se-ão como consequência desse pragmatismo acrítico. Isso é comum a todas as atividades do conhecimento, seja as ciências naturais ou nas ciências históricas. A fragilidade dessa postura prática é a sua ingenuidade crítica. Ao fim, há um sério risco para o historiador: o de enredar-se em instrumentos absolutistas (isso é, a-históricos, válidos por si) da epistemologia ou da ontologia, que lhe são completamente estranhos e inadequados para expressarem o léxico da história. Conceitos como “verdade”, “realidade objetiva do mundo exterior”, “objetividade natural”, “fato objetivo” são alienígenas que vagueiam na penumbra do território do historiador. São conceitos estrangeiros que, por serem contrabandeados, carecem do aval do pensamento histórico para tornarem-se legítimos e poderem circular na legalidade da prática discursiva da corporação de historiadores. Para tanto, os conceitos canônicos de “verdade”, “objetividade” e “realidade” necessitam de um complemento: serem adjetivados pelo termo “histórico”, que os forja em suas historicidades. Trata-se de uma verdade histórica, de uma objetividade histórica e de uma realidade igualmente histórica. Tais conceitos precisam ser acompanhados por uma contínua interrogação crítica que aprecie qualquer solução como provisória e que os exponha como não definitivos, não absolutos, produzidos relacionalmente. Esse é um conjunto de questões a ser compreendido no interior da prática de pesquisa.” (p.38)

[sexto fragmento] (p.39 a p.40)

“A produção do conhecimento se dá por intermédio de práticas discursivas que estabelecem uma gramática protocolar, estratégias, metodologias, programas de pesquisa, teorias e até mesmo uma ética corporativa, os quais validam proposições no interior daquele grupo e constroem e consolidam sua compreensão do mundo. Cada operação cognitiva é uma produção discursiva que verbaliza os seus “fatos” e os constitui, pois, recortando e selecionando para si alguns eventos do mundo, dá a esses eventos existência factual.

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A linguagem é uma intervenção no mundo, um agenciamento que constrói fatos, fatos que compõem a realidade de uma prática. O próprio sujeito conhecedor é produzido nessa prática, por essa prática. Esse sujeito é autorizado a falar e é legitimado em seu saber por tal prática. Deve pensar e produzir conhecimento segundo o Denkstil, o estilo de pensamento, enformado por seus cânones protocolares. Para ser um membro do Denkkolletiv, o coletivo de pensamento, que circunscreve esses agentes, é necessário possuir fluência – a autorização social que lhe dá autoridade como autor – como falante desse universo discursivo.6 Somente ao ingressar em algum cenário linguístico, em algum discurso, em algum coletivo, adquirindo as habilidades do correspondente estilo de pensamento, é que o sujeitoagente encontra o seu vir a ser e pode constituir-se como ser, um ser da linguagem. E assim se abre para ele um mundo, ele pode ver o mundo por intermédio do léxico instituído na gramaticalidade dos procedimentos protocolares daquele estilo-coletivo de pensamento. E esse mundo assim percebido, assim submetido ao tratamento daquela prática discursiva, é que constitui a realidade do grupo de agentes, do coletivo de pensamento. A realidade histórica não se confunde com o “real” da metafísica, um Real absoluto. A realidade histórica é sempre provisional, aberta e constituída pelas percepções que a própria conjuntura histórica, local, propiciou, segundo os protocolos do seu próprio tempo, de seu coletivo de pensamento. Importamos conceitos alienígenas e os manipulamos como históricos – verdade, objetividade, realidade, por exemplo, são conceitos absolutos, conceitos de uma ontologia ahistórica, naturalizados e generalizados como entidades substancialistas. Ora, o historiador, mais do que ninguém, necessita de uma ontologia e de uma epistemologia históricas que se mostrem como formações historicamente constituídas e que apresentem suas entidades como produções históricas. Insistir na noção de que os significados estão clara e univocamente expressos pelos significantes, tal como fazemos ingenuamente em nosso cotidiano, encaminha-nos para uma percepção simplista da realidade.” (p. 40)

[sétimo fragmento] (p.40 a p. 57)

[O Estruturalismo e a ruptura entre natureza e sociedade]

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Aplico aqui os conceitos de Fleck (2010) de “estilo de pensamento” e “coletivo de pensamento” como expressões sociais e materiais que agenciam o caráter protocolar e histórico de todo processo de conhecimento mediante práticas coletivas que são, por isso mesmo, práticas discursivas. Fleck ainda não foi explorado pelos estudos semiológicos e fornece um olhar sóciohistórico necessário para se pensar a linguagem como um modo de ação não apenas construtor de sentidos sobre a realidade como também constitutivo dos próprios falantes.

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“Quero estimar criticamente a naturalização que alcançou o corte natural–social, ao estabelecer uma hierarquização entre esses termos, e que pressupõe o conhecimento natural, o das hard sciences, mais verdadeiro, menos relativista, do que o conhecimento social, das soft sciences. E dou realce a isso pela naturalização significativa do próprio termo – “naturalizar” já se apoia na ascendência objetivista do natural sobre o social – como decorrência dessa hierarquia e das taxonomias implícitas que a acompanham. O ato de naturalizar algo é um efeito de um processo histórico. Especialmente desde os impactos produzidos pela antropologia estrutural de LéviStrauss, e seus desdobramentos nas inúmeras correntes francesas capitaneadas pela análise semiológica do discurso no pós-estruturalismo, antigas dicotomias perderam funcionalidade e clareza em seus limites. Assim, as demarcações, outrora paradigmáticas, entre “natural” e “social”, “natural” e “cultural” não apresentam mais o caráter taxonômico simplificador e utilitário que permitiu ao século XIX instituir sua compreensão ontológica e epistemológica da realidade, ao produzir um modelo de conhecimento centrado nas ciências naturais.7 Essas demarcações perderam sua função heurística, nada mais esclarecem; ao contrário, introduzem, hoje, regiões de sombra no entendimento das complexidades adicionais que nossa contemporaneidade expõe. Enfim, tornaram-se improdutivas ante os novos desafios compreensivos. O procedimento naturalizador ainda sobrevivente – separando mental e material, ou natural e social – parece ser intrínseco aos próprios protocolos de pesquisa adotados nas diversas áreas do saber, cujas orientações heurísticas insistem em pressupor um mínimo de interferência exercida pela linguagem, e que, assim, apagam a força do agenciamento das palavras. A linguagem comparece nesses regimes protocolares como mero instrumento mediador inerte. Como já foi referido, Hayden White (2001, p. 262) observa nesses protocolos generalizados uma redução da linguagem como agência concreta, o que inibe um conhecimento mais amplo da própria cena estudada em sua historicidade semiológica que antecipadamente já fora substituída por uma naturalização objetivista. Necessitamos desfazer nossas mitologias. Sim, o ato de naturalizar algo é um efeito de sentido de um processo histórico que estabiliza “verdades” inquestionáveis. E os próprios protocolos adotados participam desse jogo naturalizador. A naturalização é a construção de mitologias, como diz Barthes (1989) ao pensar o mito. A naturalização como uma fala que se pretende despolitizada e “cuja função é transformar uma intenção histórica em natureza” (Barthes, 1989, p. 162-163), torná-la um ser, um ente, um objeto natural e 7

Discordo de Ciro Flamarion Cardoso (1997) quanto sugere a ocorrência, na contemporaneidade, de um resgate do corte natural–social. Vejo de forma diferente: nossas aporias decorrem em grande parte do destronamento do natural “acima” do “social”, tanto na esfera das ciências naturais – na disputa conhecida como Science Wars – quanto na do linguistic turn. Tornar miscíveis o natural e o social é hoje o obstáculo compreensivo, além de uma necessidade teórica.

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assim gestar o substancialismo, forjar uma ontologia naturista. Dessubstancializar mitos, desfazer as naturalizações é devolver o caráter histórico a esses objetos, é avaliar toda ontologia como uma ontologia histórica, como uma mitologia historicamente constituída. Essa é uma das minhas questões centrais e que reduz, em muito, as aporias do linguistic turn, os desconfortos produzidos por ele. Resgatar o processo histórico que enforma as naturalizações presentes tanto nas ciências quanto na própria história.

O que o mundo fornece ao mito é um real histórico, definido [...] pela maneira como os homens o produziram ou utilizaram; e o que o mito restitui é uma imagem natural desse real. E, do mesmo modo que a ideologia burguesa se define pela deserção do nome burguês, o mito é constituído pela eliminação da qualidade histórica das coisas: nele, as coisas perdem a lembrança de sua produção. O mundo penetra na linguagem como uma relação dialética de atividades, de atos humanos: sai do mito como um quadro harmonioso de essências. (Barthes, 1989, p. 163)

Mais do que duas regiões estanques e disjuntas, dispostas lado a lado como parcelas de um todo esquartejado, os conceitos de “natural” e “sociocultural”, como se forjados por duas “lógicas” distintas de “funcionamento”, apresentam-se hoje como meras ideações analíticas que mascaram, confundem e nada analisam da inquietação central, ou seja, o amálgama natureza-cultura historicamente constituído. E esse amálgama produto/produtor do humano é que é a questão. Um amálgama, tipicamente humano, que não se explica como mera soma, como justaposição daquelas partes. A síntese humana não advém do trabalho de um doutor Frankenstein que costura partes desconexas, nem da prioridade do natural sobre o social, sobre o cultural. O humano é um vir a ser histórico, uma unidade corpo-mente. Assim, como mero exemplo, o propalado “fim do Projeto Genoma Humano”, anunciado pela imprensa no início de 2001 como etapa definitiva no conhecimento pleno do humano, nada mais é do que o fim de uma etapa de um dos incontáveis projetos de pesquisa de uma área do conhecimento bem específica e localizada. E só.8 Não define nenhum tipo de fim, mesmo que provisório, que, além disso, seria insuficiente para a compreensão do humano. O homem não se explica pelo exercício tecnicista do aprendizado com uma pretensão exaustiva de

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“Por dez anos, cientistas do Projeto Genoma Humano e da companhia privada Celera Genomics realizaram uma empreitada monumental – o mapeamento do código genético do homem. Em 2001, as equipes enfim conseguiram montar por completo o quadro de informações do genoma, lançando 95% do sequenciamento nas maiores revistas científicas do mundo.” (“Genoma, reprodução humana e teste de DNA”, s.d.). “„Este é um presente extraordinário para toda a humanidade: todas as letras para o livro de construção do ser humano. Todas as informações do óvulo até a morte‟, afirmou o pesquisador Francis Collins, diretor de Genoma nos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos.” (Sampaio, 2003)

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mapeamento do genótipo naturalizado; necessita-se de muito mais, até mesmo do reconhecimento do seu caráter fenotípico, histórico. Com os procedimentos naturalizadores inverteu-se o processo de produção de sentidos fornecido pela história. E, nessa inversão, perdeu-se o mais importante: a origem e a significação dos jogos de linguagem como instrumentos de uma prática societária. “Uma prestidigitação inverteu o real, esvaziou-o de história e encheu-o de natureza, retirou às coisas o seu sentido humano, de modo a fazê-las significar uma insignificância humana.” (Barthes, 1989, p. 163). Dentre

as

questões

decorrentes

da

base

fundadora

do

estruturalismo

desenvolvidas em seu após, aquelas que mais inovação produziram nas ciências históricas do homem foram o próprio conceito de humano e o processo de objetivação social como empreendimento das subjetividades discursivas. Em ambas comparece o caráter de mistura amalgamada. Contra o texto da dicotomia “natural–social”, estática e estabilizada, substantivada e substancialista, a análise semiológica das práticas discursivas percebe como o verbo “naturalizar” semantiza eventos e coisas de maneira ilusória. A semiologia expõe o processo que é subjacente a essa semântica de naturalização e identifica a sua dinâmica relacional e construtivista, suas razões político-ideológicas. Um processo que envolve a necessária presença do sujeito polifônico heterogêneo – plural, como aparece no dialogismo bakhtiniano –, autores-atores do texto inseridos historicamente em uma cena e uma prática ambas discursivas e que forjam a naturalização das coisas ditas naturais. Uma cena construída por sentidos estabilizados em falas políticas “despolitizadas”. São falas impondo sentidos que nada mais são do que cristalizações do jogo, do embate social, decorrente da historicidade dos seres e dos processos. A base do conhecimento dos sujeitos é uma matriz de sentidos naturalizados.

O sentido é sempre um fato da cultura, um produto da cultura; ora, na nossa sociedade, esse fato de cultura está continuamente a ser naturalizado, reconvertido em natureza pela palavra, que nos faz acreditar numa situação puramente transitiva do objeto. Cremos estar num mundo prático de utilizações, de funções, de domesticação total do objeto, e, na realidade, nós também estamos, pelos objetos, num mundo do sentido, das razões, dos álibis: a função faz nascer o signo, mas esse signo é reconvertido no espetáculo de uma função. Creio que é precisamente essa conversão de cultura em pseudonatureza que pode definir a ideologia de nossa sociedade. (Barthes, 1987, p. 180)

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Assim, merecem realce duas questões interligadas, uma de matiz epistemológico e outra, ontológico. Da percepção de que as formas de objetivação são elaborações de um processo discursivo que envolve as práticas sociais surgem novas interrogações sobre o conhecimento como um processo de produção social. Com isso, as fronteiras entre o natural e o social, e entre as hard e as soft sciences, são desfeitas. Ambas as fronteiras são problemáticas, e ambas são históricas, são produções históricas. Dessa forma, a epistemologia cientificista e naturalista é lançada em uma teia de embaraços e posta em xeque. Aqui se encontram as análises e contribuições de Foucault e de Thomas Kuhn, dentre outros, que encontraram largas aplicações em diferentes continentes do saber. E em decorrência da crítica ontológica sobre o produto do saber e sua pretensa substancialização, que perdeu seu suporte de verdade em si, a naturalização do objeto natural em seu objetivismo se esvai. Essa desnaturalização crítica se expande para o sujeito autor desse conhecimento. Passamos a nos perguntar: o Homem é o quê? –, e assim se promove um descentramento fundamental do próprio sujeito que questiona o essencialismo metafísico, o seu e o das coisas como entes em si. No cruzamento dessas duas questões encontra-se uma consequência da crítica estruturalista desestabilizadora das certezas do cogito cartesiano, de uma racionalidade plena, consciente e voluntária que serviria como termo de garantia de emancipação do ser. Essa crítica deixou-nos órfãos de centros radiadores de certezas. Após a tempestade estruturalista, compreende-se que o próprio sujeito das ações, do verbo, somente emerge como tal, como “autor emancipado”, ao se sujeitar às práticas discursivas historicamente constituídas. Entre a emancipação ficcional pretendida por um sujeito racionalista que expressaria o significado mental saído de um significante e aquela que o aponta, mesmo em sua alienação, como construtor concreto do mundo semiológico, há uma relação interativa entre texto e sujeito, circunscrita pela produção de sentido, de cujos efeitos fluem tanto o próprio devir histórico quanto o sujeito renovado, em outro patamar de emancipação. Assim Pêcheux recupera Althusser: “o indivíduo é interpelado como sujeito (livre) para livremente submeter-se às ordens do Sujeito, para aceitar, portanto, (livremente) sua submissão (Pêcheux, 1997, p. 133).

Efeitos de sentidos versus significados naturalizados: a história contra “a ordem das coisas e a ordem das palavras”

O ser humano se faz na encruzilhada de duas ordens supostas separadas, os dois registros das coisas e das palavras. Entretanto, a ordem das palavras, por sua vez, constitui-se 13

também em uma ordem de coisas, coloca as coisas na história. Eis algo que o linguistic turn, em seu aspecto mais redutor e radical, parece desconhecer: a ordem das palavras somente se faz em uma prática social formada a partir do ato eminentemente histórico, fundador, de tomar a palavra como laço social entre agentes integrados ao mundo. E essa é uma condição essencial para instituir a sociedade. Sendo-se mais consistente e preciso, nem se deveria dizer duas ordens, dois registros, pois isso pode sugerir duas cadeias paralelas: de palavras que possuem vida própria e de coisas anônimas à espera de suas nomeações, de eventos aguardando serem descobertos. O mais próprio é enfatizar um todo inseparável. As coisas e as palavras se fazem juntas, na história: não há duas ordens disjuntas, só há a “encruzilhada histórica”. As coisas emergem na realidade histórica por ação da linguagem, como linguagem.9 Se a coisa em si, supondo que seja possível pensar nessa ficção, é percebida pelo humano, então “ela” é imediatamente designada e nomeada, e, assim, ingressa no mundo dos objetos históricos. Falando com maior rigor: a coisa é percebida por já integrar o mundo simbólico, ela já é uma entidade simbólica. A coisa “em si”, sem o simbólico, é invisível para os sujeitos, não é percebida. É um simples traço imotivado (Derrida, 1999), não possui significação alguma. E a coisa é nomeada exatamente por/em sua atribuição/função social, isto é, ao se constituir como parte integrante, quiçá fundante e motivadora, do diálogo entre indivíduos enlaçados pela linguagem e que são viventes no mundo das coisas. Essa é a proposta de Barthes (1987, p. 173-174) ao tratar semiologicamente da semântica dos objetos. É nessa interação entre sujeitos e a coisa portadora de significação que emerge a história por meio do trabalho humano. O humano somente se dá em estado plural, necessita-se de pelo menos dois – eis um mero sinônimo de apontá-lo como um ser falante para outro falante, como duas entidades vinculadas pelo laço societário. O sujeito se faz ao ingressar, sujeitado, em algum coletivo fleckiano, um coletivo de pensamento, ação e linguagem. Não há falante em si, isolado das coisas ou de outro falante. Neste mundo possível e efetivo que habitamos, é na linguagem que tudo e todos se constituem, em condição necessariamente semiológica, e nela, enfim, ganham realidade, e sempre como uma realidade histórica mais que natural. Mesmo um “outro” mundo, imaginado como um “estado de natureza” autônomo da presença humana, somente é assim estabelecido ao se fazer verbo. Seja pela invenção de termos como “a natureza”, “o cosmos” ou, até mesmo, “mundo natural”; seja pelos processos cognitivos

considerados

mágico-míticos

das

sociedades

“frias”

ou

por

aqueles

9

Fleck (2010, p. 50-51, 81, 83 e 136) considera que há um terceiro elemento, simbólico, entre sujeito e objeto: o saber já constituído. O sujeito somente percebe o objeto, a coisa, mediante o seu estilo de pensamento, isto é, a coisa, o objeto, já integra o espaço simbólico. Ver o Apêndice deste livro. Evidentemente, o sujeito não é independente do estilo de pensamento, todo sujeito se faz sujeito em um estilo. A separação entre sujeito, coisa e o estilo é meramente analítica.

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procedimentos “aquecidos” pela ciência em nossa sociedade moderna, em todos esses casos o que ocorre é a entrada imediata desse “outro” mundo imaginário/imaginado no universo linguístico, simbólico. Antes disso, à margem disso, sem o verbo, o “mundo natural” é simplesmente inapreensível, incógnito, uma fantasmagoria sobrenatural, um conjunto de impressões sensórias indefinidas e irreconhecíveis.10 Pensar em duas ordens, coisas/palavras, é um mero artifício analítico que possui sua utilidade pragmática na vida cotidiana. Situação algo análoga ocorre ao pensarmos o ser humano como um ser constituído em dois estágios: ao se fazer como corpo “natural”, biológico, ele é partejado e eclode em seu mundo de coisas “naturais”, porém ainda não é humano, simplesmente possui as condições materiais, biológicas, para poder vir a ser um humano. Faz-se humano somente ao ingressar processualmente, em um segundo estágio, no mundo histórico, societário: o universo simbólico, dos significantes, das palavras, das práticas discursivas. Doravante está condenado a ser refém, sujeito em sua palavra. Sujeito a caminhar e a estar vestido pela palavra do Outro – o tecido social que o envolve e molda seu modo de viver e de pensar-dizer –, sujeito a falar o discurso-idioma do Outro – la langue saussuriana posta em um discurso. O Outro que se explicita e se individualiza nos seus diálogos com algum outro – um indivíduo específico, semelhante. Justamente por estar sujeitado ao Outro, é que o indivíduo se faz sujeito ante um outro, como queria Hegel em sua dialética do senhor e do escravo. Entre o um e o outro, enlaçando-os, há as palavras: um laço simbólico. As palavras atuam, simbolizam, designam e dão realidade social às práticas que ambos cumprem e às quais se sujeitam em jogos de poder, em jogos de linguagem. Dessa forma, conquistam o poder, sujeitam-no e exercem a sua criação emancipadora. O sujeitado torna-se sujeito. Esse exercício do poder se dá por palavras, pelas leis, pelas normas, pelos valores, pelas naturalizações instituídas. O poder é simbólico, diz-nos Bourdieu (1989). O chamado mundo das coisas naturais somente é apreendido por ser dito, ao ser dito, nomeado, designado e entrar na cultura. O que não é dito não é agenciado pelo simbólico e não habita o mundo humano, não é cultura. O mundo simbólico tem uma ordem, e sua ordem é dada como se fosse simples representação do mundo das coisas, como se fosse uma florescência enraizada nas coisas. Como se os significantes e os significados se referissem a coisas. Esse encadeamento

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Há dois autores fundamentais no suporte a esse entendimento: Fleck e Derrida. A noção fleckiana é de que o coletivo de pensamento produz um “ver formativo”, Gestaltsehen, isto é, aquilo que é visto e percebido somente o é mediante o estilo de pensamento, a linguagem que constitui a realidade histórica desse agente. Já Derrida (1999) contribui seminalmente para a questão ao instaurar o conceito de “traço” como vestígio de algo antes de sua significação: uma percepção sensória ainda não significante. O processo de significação ocorrerá na escritura na qual o agente se inscreve (o seu coletivo fleckiano). Isso fornece uma harmonia entre esses autores e alimenta a noção de que as impressões sensórias indefinidas são o retrato da invasão de um “real” hipotético, fora da linguagem, na realidade historicamente constituída. Entre o “real” imaginado como tal e

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linear é mera aparência naturalizada de uma imbricação mais profunda, do âmago constitutivo do mundo histórico. Uma imbricação triangular entre palavras, coisas e os sujeitos do discurso. E o ser humano não é meramente um substantivo. É, antes de mais nada, um verbo autofecundante – humanizar pelo verbo, pela palavra que o designa. É processo, ação, devir, e não uma substância biológica, um ser isolado: o Mogli de Kipling ou um Robinson Crusoé das robinsonadas tão criticadas por Marx. O ser humano se faz ante outro ser humano: o ser é interativo, dialogal, societário. Ele necessita de laço social, um laço impensável sem o verbal – afinal, o social é estabelecido pela palavra. Falar é falar com alguém. É dar materialidade dialógica, é dar realidade ao enlace societário. Não há relação de poder, não há vínculo social sem a palavra, sem a ideologia verbalizada, sem uma axiologia entronizada. O ser é humano pelo verbo, só é humano ao se designar humano, entre humanos. O ser só é humano ao se batizar pela palavra, pelo simbólico, e assim socializar-se. Não há sociedade sem verbo. Não há história sem linguagem, tal como não há linguagem fora da história. O que funda a história não é a escrita fonológica, logocêntrica e literal, mas a escritura derridiana que a abarca e gesta. Porém, para se compreender esse caráter fundador do ato linguístico, necessitamos de outra percepção do que seja a linguagem, de uma escritura estabelecida na pragmática das ações societárias e que funde palavra e coisa. Posso intercambiar os termos “história” e “linguagem”, sem distingui-los. A propriedade de uma atende à outra.

Ei-la, a língua [ou a história], em toda sua imensa riqueza. O instrumento mais perfeito que herdamos de nossos pais e em cujo aperfeiçoamento colaboraram incontáveis gerações desde a origem da humanidade, ou, talvez, até além dessa origem. Ela encerra em si toda a sabedoria da raça humana. Ela nos liga aos nossos próximos e, através das idades, aos nossos antepassados. [...] No íntimo sentimos que somos possuídos por ela, que não somos nós que a formulamos, mas que é ela que nos formula. Somos como que pequenos portões, pelos quais ela passa para depois continuar em seu avanço rumo ao desconhecido. (Flusser, 1963, p. 18-19)11

a realidade histórica constatada na práxis há o agenciamento da linguagem. Diz-se: o real invade a realidade. O traço do real emerge na realidade e ganha significação, sentido. Ver também Maia, 2006. 11

Esse texto de Flusser refere-se tão somente à linguagem, por ele designada como “língua”. Em outra passagem, ele reafirma a mesma compreensão: “A língua, tal qual a somos, tal qual ela se derramou até nós para formar-nos, é o acúmulo de toda a sabedoria, de todo o esforço criador, de todas as vitórias e de todas as derrotas dos intelectos que nos precederam.” (1963, p. 214).

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Grande parte dos problemas e dificuldades inerentes a essas questões – e até de sua invisibilidade na historiografia – é consequência de, em nossa tradição ocidental, suporse um ato inaugural para a civilização, para a sua história: o surgimento da escrita alfabética, logocêntrica. Antes desse ato mágico, a noção circulante é a de que há somente uma pré-história dos pré-civilizados, dos povos sem escrita, das sociedades “frias”. Vale aqui uma observação: povos sem escrita logocêntrica, sim, porém povos – necessariamente – com outra forma de linguagem, que já os historicizava, que os constituía como seres históricos. Afinal nossa linguagem literal não surgiu de um ato criacionista; ela possui uma história, ela é produto de um longo percurso histórico, um caso particular de uma escritura anterior e mais genérica – de traços, gestos, grafismos, sinais etc. No entanto, ao impor um distanciamento entre primitivos e civilizados, por meio do salto letrado hierárquico, a mitologia da linguagem logocêntrica divide o mundo em dois: de um lado, um mundo abstrato e transcendente às coisas materiais; de outro, o mundo concreto da materialidade imediata das coisas, percebido pelos sentidos. O inteligível e o sensível. Separando as cenas da vida cotidiana entre o mental e o físico, divorciando as palavras das coisas (Derrida, 1999; Maia, 2006).12

Um mito: palavras mentais e coisas materiais

A partir daí ocorre um drama em nossa cultura, um quiproquó metafísico insolúvel instala-se nas tentativas, vãs, de tentar vencer esse hiato e ultrapassar a barreira mítica intermundos. Para destronar o mito, construíram-se outros, novos fetiches foram naturalizados em nossa base cultural. Um deles é o que decorre da disputa filosófica que apregoa emanarem das coisas as nossas concepções e aflorar do referente o dueto significado–significante. Esse mito do objetivismo supõe – pela etimologia do termo “objetividade” – uma qualidade imanente ao “objeto”, uma essência que evidencia e dá significação para “a realidade objetiva do mundo exterior”. Contra esse objetivismo do referente, do objeto, a análise semiológica das práticas sociais, discursivas, já nos apresentou uma ferramenta mais útil e potente. A noção de significado intrínseco das coisas é substituída pela de sentido, um sentido produzido por um sujeito para outro sujeito, em uma cena semiológica, e arranjado dentro de um discurso.

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Há história desde que os humanos se constituíram pelo laço simbólico, no período denominado de pré-história, em geral apresentado como se fosse uma não história.

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Em semiologia, essa noção de significado cristalizado é compreendida como efeito da produção de sentido do texto que a naturalizou como eflúvio do objeto. A noção de “significado imanente às coisas” decorre da mitificação produzida pelo objetivismo do referente – esse, o seu sentido efetivo. Vigotski (1987), no início da década de 1930, já compreendia o limite do “significado” e expandia sua compreensão para o conceito de “sentido” como um deslocamento mais produtivo – por seu uso coletivo, entre sujeitos – do que a noção de “significado”, restrita a palavras em si.13 A naturalização imanentista do significado se reforça e está implicada por outra, a de que para apreender esse significado, essa essência, há necessidade do ser humano isolado possuir e desenvolver habilidades especiais para compreendê-lo – o dom da razão. Em tal mitologia, supõe-se que o sujeito captura – do objeto – esse significado para si e produz mentalmente um significado-cópia, uma imagem especular refletida em sua razão. Essa, a origem da “teoria do reflexo” que Ciro Cardoso abraça. É o modus operandi típico e necessário para alicerçar o pensamento científico moderno. Os arautos dessa visão mentalista utilizam-se costumeiramente da expressão de Galileu “o „livro da natureza‟ está escrito

em

caracteres geométricos” para formularem

explicações e arquitetarem

metodologias voltadas para o desenvolvimento da aptidão inata do investigador para “lê-lo”, a aptidão de sua racionalidade. Para esse mentalismo, ler o “livro da natureza”, saber lê-lo, tornou-se precondição para todo o conhecimento sobre o mundo. Nessa epistemologia ontologizadora, o conhecimento suposto como objetivo decorre da leitura neutra do livro natural. E é um conhecimento objetivo, posto que emanaria do objeto sem interferência da subjetividade do leitor, do sujeito que conhece. Por isso se diz: descobrir as leis da natureza. Trata-se de desvendar, de trazer à tona, o que já estaria lá, aguardando ser descoberto. E isso, claro, desde que esse sujeito-leitor tenha capacidade de fazê-lo, tenha o dom da racionalidade apoiado na metodologia científica para que possa coroar sua “descoberta” com a interjeição de um heureca arquimediano. O “heureca!” lendário da mitologia epistemológica flagra a cena na qual a razão encontrou subitamente a significação até então oculta. É o exato momento em que o sujeito descobridor descobriu, soube ler “corretamente” o “livro da natureza”, atingiu o conhecimento verdadeiro, por ser pura expressão de uma verdade que já estava lá. Lá, alhures, na realidade objetiva do mundo exterior, no real da natureza. Reunião de mentalismo e objetivismo, duas faces de uma mesma solução bastante problemática. Uma solução totalmente estrangeira ao discurso histórico. Na concepção mentalista, o sujeito-leitor é marcado pela passividade: é um leitor inerte, neutro, porém que atua ao “ler o texto da natureza” e que deve saber traduzi-lo em

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Vigotski já anunciava essa diferença entre significado e sentido nessa obra, editada postumamente em 1934, e que, ao receber tradução do russo, transformou-se em marco historiográfico na Europa ocidental.

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“linguagem humana”, letrada. O poder para descobrir e reproduzir as “leis da natureza” em literalidade implica o exercício de sua “aptidão inata” aplicada ao mundo empírico exterior, o mundo natural – ainda que receba o apoio de um adestramento nas técnicas do “método objetivo e científico”. O único agenciamento permitido a esse leitor é o de ser um simples copista, um escrivão. Produz-se assim um texto servil à natureza, um texto objetivo fiel ao objeto, sem as marcas do agenciamento desse leitor. Esse é o texto científico, o texto puro e limpo da lei, sem máculas subjetivas. O cientista como um escriba que simplesmente copia os textos ditados pela “mãe natureza”. Ocorrem aí duas questões interligadas: a noção de objetividade dada e afiançada pelo objeto conecta-se à presença do leitor-escrivão, reprodutor fiel que transfere o aval de objetividade para a “cópia” cognitiva extraída do mundo real. O significado mental é um reflexo do significado natural. O encadeamento identitário construído é, assim, o de referente–significado–significante: de um lado, o significado que as coisas possuem em si, quando as coisas são como garantes da objetividade, como objetos que ditam textos objetivos; de outro, a mente que captura esse significado e o conecta à palavra, a um textosignificante, com o significante como representante do significado que emanou do referente, da coisa. Esse mentalismo objetivista ilude com base numa ponte fantasiosa, idealista, que uniria palavra e coisa. Fornece uma unidade ilusória, entre coisas e palavras, promotora de diversos equívocos. Nesse esquematismo, a conexão entre as palavras e as coisas se dá através do miasma exalado pelo objeto e inalado pelo sujeito, pela capacidade igualmente miasmática do sujeito de copiar, de interpretar essa emanação “objetiva” em um par significado–significante. Essa conexão difusa e evanescente, porém, já não se sustenta nem no cenário da linguística, nem no de qualquer das ciências históricas – da antropologia, da sociologia ou da história tout court. A própria ambiguidade intrínseca à linguagem impede qualquer vinculação unívoca de um significado hipoteticamente mentalizado com o “seu” significante. A linguagem transborda em metáforas, metonímias e ironias, e assim escapa desse continente unicista, de um significado para um significante voltado para um referente.14 Por seu fracasso, tal conexão fantasmática deixa um vazio compreensivo e aprofunda o fosso entre palavras e coisas, reforçando o caráter misterioso e incógnito do

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Essa unidade foi dissolvida em três pela emergência do estruturalismo de Saussure (1971), que apontou a inconsistência linguística que envolvia a suposição de referente, significante e significado desfrutarem de uma univocidade dada pela palavra. A fim de escapar da inadequação da linguagem, Galileu recomendou o uso da geometria para expressar a leitura do “livro da

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distanciamento das coisas às palavras. O hiato persiste. A naturalização do conceito de significado – seja no objetivismo naturalista ainda sobrevivente nas hard sciences, seja no idealismo metafísico de um pensamento que o pensa antes da linguagem – somente amplifica as dificuldades e fortalece a ruptura entre o verbal e o material. Nessas percepções, a linguagem é considerada um mero instrumento para comunicar algo – um suporte neutro que transporta o significado, a ideia. Assim a linguagem fica confinada em uma sintaxe e uma semântica, sem a presença da pragmática do discurso indicando seu caráter agenciador, sem a instância histórica efetiva que mostra o jogo de linguagem entre os usuários, os falantes em ação. Sem a presença dos falantes que agenciam o sentido e interagem com o mundo das palavras-coisas e das coisas-palavras. Deixa-se, assim, de perceber quando o dizer é fazer, como defendia Austin (1990). Foi por meio da estratégia maquiadora de logicistas que a razão consciente do cogito promoveu-se imperial, ao pretender uma sintaxe coerente recobrindo inconsistências, ambiguidades e lacunas semânticas no processo de significação. Nas décadas de 1920 e 1930, o “neopositivismo lógico”, especialmente armado no Círculo de Viena,15 investiu nessa linha de propósitos, com a pretensão de encontrar a fórmula ideal para a transmissão precisa e unívoca de um significado “pensado”, de uma ideia, entre dois seres racionais. Para tanto, necessitava da linguagem depurada de suas ambíguas imprecisões e inconsistências semânticas. Tal consciência cartesiana presente no fisicalismo vienense pretendia “encontrar” o significado do significante de um referente supondo que o significante brotaria do significado idealizado, o qual, por sua vez, “apontaria” univocamente seu referente – o significado fica prenhe e parteja o significante do referente. Grande ilusão! A certeza – enganosa e canhestra – da paternidade triangular entre significado, significante e referente reduziu e confinou, por séculos, boa parte da preocupação filosófica à sintaxe e à lógica, uma quimérica busca da verdade em si, de uma verdade independente da cena vivencial humana, e escamoteou o fundamental, a significação como um efeito pragmático da vida, como desejo, como resultado de um embate entre falantes em ação no mundo. Nesse cenário, a “verdade” é produzida como um veri-ficar, “fazer a verdade”, literalmente, como assinalou Japiassu (1979, p. 32-34), um semantizar sentidos na cena semiológica.16

natureza”. Desde então, generalizou-se na ciência, especialmente na física, o emprego da matemática como forma de redigir a interpretação realizada sobre o mundo natural. Ver também Derrida, 1999, p. 18. 15

Sobre a atuação do Círculo de Viena, berço da filosofia analítica da linguagem, ver nota adiante.

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Fiel à etimologia, Japiassu defende a noção de um veri-ficar – fazer a verdade, fazer o real –, um verbo causativo que indica uma ação na qual o radical “veri-” é causado por “ficar-”, com o significado de “fazer”, tal como em “beatificar”, “purificar”, “mistificar”.

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Da filosofia da linguagem ao discurso em suas práticas

A crítica que membros do linguistic turn efetuam contra essa orientação é fortalecida pela análise discursiva, tal como a desenvolvida por Michel Pêcheux. Em sua obra Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio, Pêcheux (1997) propõe uma teoria da significação fundada numa posição materialista do discurso, enfatiza a preocupação idealizada dos lógicos em tentar estabelecer uma relação transparente e direta entre linguagem e conhecimento. Por meio de uma linguagem natural, os lógicos procuravam a forma válida que levasse ao conhecimento verdadeiro, considerando imperfeições da linguagem qualquer mecanismo que dificultasse essa conexão. Pêcheux se opõe a esse modelo, que denomina de “logicista”, por considerar que trata as questões “ideológicas e políticas” como resultantes de “defeitos” da linguagem. Além de contraditar a visão utópica típica dessa filosofia da linguagem – cuja meta seria esclarecer o obscuro da língua e tentar uma linguagem imune a equívocos –, Pêcheux amplia tal horizonte restrito à instância da língua e lhe dá uma dimensão a mais: a do discurso. Assim, introduz a distinção entre língua e discurso, entre base linguística gramatical e processo pragmático discursivo, sendo a primeira um sistema comum a todos os falantes (no que diz respeito ao conjunto de estruturas fonológicas, morfológicas e sintáticas), enquanto os processos discursivos pragmáticos são diferenciados e resultantes dos processos político-ideológicos que os condicionam. Não é na língua, no idioma comum estabelecido que se encontram as diferenças entre grupos de falantes antagônicos, mas nos diversos discursos que já trazem tal antagonismo. É no interior das práticas discursivas que o sentido é forjado.17 Com isso, perde-se a compreensão de que os processos discursivos, ao se desenvolverem sobre a base linguística, não são “expressão de um puro pensamento, de uma pura atividade cognitiva, etc., que utilizaria „acidentalmente‟ os sistemas linguísticos” (Pêcheux, 1997, p. 91), perdendo-se o entendimento da linguagem como prática societária. Na tentativa logicista combatida por Pêcheux, encontra-se a soberba humana de acreditar ser possível construir as regras sintáticas do correto pensar/dizer sobre o mundo. Bastaria o silogismo para, através de teoremas, alcançar certezas, chegar à verdade. Triste ilusão! Nesse quadro, vê-se a persistência de uma postura de ornamentações superficiais elegantes, na sala de estar, ocultando a desarrumação metafísica do resto da casa: douta ignorância!18

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“O sistema da língua é, de fato, o mesmo para o materialista e para o idealista, para o revolucionário e para o reacionário, para aquele que dispõe de um conhecimento dado e para aquele que não dispõe desse conhecimento.” (Pêcheux, 1997, p. 91) 18

O mais notável e radical exemplo dessa situação ocorreu com a orientação do neopositivismo do Círculo de Viena que pretendia a inexistência de problemas metafísicos desde que a linguagem estivesse livre das suas incoerências sintáticas: “Ou os problemas metafísicos são problemas de linguagem ou não são problemas: não há problemas genuinamente metafísicos”

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Por oposição, em Lévi-Strauss outra cena menos ufanista é desenhada para a ação desse homem-deus. Tal “autor-criador” move-se como um ator em uma dramaturgia coordenada pelo inconsciente antropológico, societário, um ator que organiza o verbo segundo suas leis, faz desse verbo um discurso, enfim, torna-se o Verbo. Esse criador desce do trono – aquele “Homem” morre em sua divindade – e humaniza-se em criatura serva desse Verbo. A acepção mais complexa sobre o valor significativo de um texto – o seu sentido em um discurso – é o grande efeito que extraio de Lévi-Strauss, para os propósitos que persigo aqui neste capítulo. Tomo como um bem do patrimônio estruturalista a condição do significante também estar ancorado alhures, estrangeiro ao significado, alienado do referente, mas articulado a uma estrutura de significações. O ancoradouro não se restringe à semântica unicista no significado, nem é dado por correspondência unívoca a um referente. Há outra lógica sob a lógica especular simples da correspondência um-a-um, significante–significado–referente. Na lógica cartesiana do significante, oculta-se que o dueto significante–significado versus o referente decorre de uma relação complexa entre o sujeito humano, por sua linguagem, com a coisa. O estruturalismo alçou a linguagem como sistema no qual as significações se dão. Porém, claro, sem nenhum sujeito. Faltava-lhe o ser histórico que caminhasse nessas estruturas, que as tecesse e nelas se enredasse. Foi necessário que o pós-estruturalismo emergisse para que tal ocorresse. O “grande efeito” de sentido decorrente do estruturalismo deu-se justamente no conflito que ele gerou e em sua subsequente superação, em seu abandono: o estruturalismo desterritorializou o solo da arrogância iluminista, permitindo uma reterritorialização imprevista no após estruturalista. A cena semiológica deslocou-se de discurso: do estruturalista para o pós-estruturalista. É um efeito inesperado, reativo aos exageros de uma antecipação prematura e confusa da “morte do homem”, decretada nesse estruturalismo – morte do homem cartesiano, sim, porém com a eclosão de um sujeito da linguagem, o homo simbolicus. O seu efeito deu-se no reencontro de algum sujeito movendo-se sob e sobre as estruturas sincrônicas lévi-straussianas, um sujeito bem mais modesto, pragmático, complexo e completo do que o cartesiano. Porém um sujeito mais ativo, um agente construtor de sentidos, como nos ensina Borges, em seu apelo à linhagem pascaliana: “o gosto da maçã não estava nem na própria

era um bordão à época. Alinham-se nessa perspectiva diversas concepções dicotômicas, como: as do corte interno–externo, que engendrou a querela externalismo–internalismo, as da forma sintática e do conteúdo semântico. Nesse olhar, “a” ciência é tomada como estrutura semântica verdadeira e produtora de verdades; a semântica é dada pelo experimentum científico que une um significante a um significado, e essa relação é estritamente verdadeira ou falsa. Já na “lógica” semiológica, pensa-se com base no “sentido em um processo de produção”, que cristaliza em sociedade um “significado”. Há, assim, dois continentes discursivos: o da ciência e o de seus analistas semiológicos; os analistas semiológicos analisam os cientistas tentando compreender como o sentido de Verdade é estabilizado em seus textos, a fim de impor um sentido vencedor em suas

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maçã – a maçã não pode ter gosto por si mesma – nem na boca de quem come. É preciso um contato entre elas” (2000, p. 12). Isto é, o sentido do sabor da maçã só ocorre com a ação de um sujeito, pela reunião do sujeito com a coisa. O sentido depende de muitos fatores; dentre eles, o sentido também resulta da historicidade do sujeito: dos seus hábitos alimentares, do tipo de paladar no qual se educou, da sua estética gustativa – afinal, outra historicidade, outro sentido. Para equacionar as inquietações da “crise da história”, necessitamos desses dois conceitos semiológicos interligados – o de sujeito e o de sentido – que substituem tanto a concepção idealista de ser humano com qualidades inatas quanto a noção de significado intrínseco das palavras típica do mentalismo das noções de linguagem como uma produção cerebral. Sujeito e sentido formam um par conceitual que sugere outro modelo para a concepção iluminista de ser humano e para a noção de linguagem como produto mental. O sujeito não é uma função meramente biológica, com qualidades inatas. Assim, requalificamos o que é o ser humano em sua historicidade constitutiva. Não se nasce humano, torna-se. Torna-se humano ao se integrar a outros humanos, por meio do sentido produzido por esses próprios sujeitos ao interagirem entre si mediante práticas discursivas. O termo “sentido” designa um conceito muito mais rico e dinâmico que o de “significado” hipostasiado nas palavras; ele decorre das significações apreendidas pelo sujeito. O sentido se expressa em um discurso, em uma ampla cena semiológica, na presença humana em sua historicidade constitutiva – é nessa historicidade que os valores (e sabores) que qualificam o sentido se apresentam. O sentido declara o processo de apreensão significativa da coisa pelo sujeito e advém, por uma ação efetiva do simbólico no mundo concreto, do interior de uma prática discursiva. Faço apelo à similaridade com o procedimento dramatúrgico para esclarecer o modo de funcionamento dessa complexa gramática dos sentidos. Na composição dramática, que redijo como síntese explicativa, a narrativa descreve a ação, o palco e seus atores e define conceitos como os de: cena discursiva, texto enunciado e enunciação. Vamos ao texto. A ação simbólica faz-se em uma cena, o objeto-texto está num lugar articulado a outros lugares, compondo uma arquitetura significativa. A gramática semiológica é necessariamente relacional, opta pela geometria das configurações dialógicas que enredam o objeto e o sujeito, avalia a topografia traçada pelos signos para extrair o sentido do texto em uma operação mais dialética que a do significado intrínseco a uma palavra. Para obter-se o sentido de um texto significante, necessita-se de maior campo visual e analítico do que o fornecido pelo foco restrito ao centro do cenário, iluminando somente o controvérsias. O tema da controvérsia é um ponto nevrálgico da problematização semiológica, cena na qual o processo de embates de sentidos desnuda-se.

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proscênio do palco: o falante e seu enunciado. Necessita-se da cena integral para compreender o papel do protagonista significante, ir além do enredo verbalizado nas denotações, ir além do enunciado e resgatar a cena primeva e incógnita de sua enunciação. É necessário olhar os bastidores, a plateia e seus gestos, as instalações do teatro e a circulação publicitária na urbe midiática. E isso não é metafórico: o sentido de uma peça teatral, de um texto, é composto pelo status do teatro no qual a peça é encenada, pela divulgação obtida, pela crítica dos órgãos especializados, pelo patrocínio, por seu públicoalvo, pelos atores etc. É preciso localizar o texto no contexto, nas condições histórico-sociais de sua produção. E mais, nos cotextos, os demais textos aos quais aquele texto emparelha-se e se associa: a intertextualidade que subjaz e intertece significações, com a necessidade de trazer à tona as conotações, denotá-las em seus sentidos implícitos contrabandeados sob a fronteira do explícito. Faz-se necessário ainda localizar o texto no discurso que o baliza, promovendo igualmente a estética da sua recepção, sua pragmática. Afinal, os sujeitos “receptores” na plateia são também ativos e participam da construção dos sentidos (sim, até mesmo o consumidor contribui na produção simbólico-material das mercadorias – no mínimo, pela gerência de marketing que define o produto que o consumidor “solicita”, que detecta qual a demanda do mercado). Delineia-se, assim, uma semiologia dos atos verbais e das práticas sociais como um conjunto dinâmico integrado de produção de sentidos, de representações sociais sobre o mundo. E isso permite uma hermenêutica mais contundente e atenta às sutilezas e idiossincrasias da produção do texto e que ultrapassa a mera interpretação dos significados estáticos já fixados nas palavras deste texto. A coisa anteriormente denominada “significado”, agora sentido, decorre da intervenção de um sujeito em uma cena semiológica. A essa produção coletiva de todos os sujeitos na cena intersubjetiva, ante os objetos que eles designam, a semiologia histórica denomina produção de sentido. Esse sujeito participa também de outra situação cênica, semiológica. Ele materializa a linguagem no mundo concreto, e todos são agentes efetivos: a linguagem, o sujeito e o mundo. Essa é a proposta da análise da pragmática da linguagem, de seu uso pelos falantes. Esse é o momento da enunciação: o termo de investigação da história. A história empenha-se em trazer o passado histórico da enunciação à tona, e essa enunciação aflora no presente. Assim, ao recompor a cena mais completa, no ato coletivo de enunciação, a dramaturgia histórico-semiológica captura o tempo e o lugar do sujeito em ação, da 24

linguagem como ação. Esse é o momento em que a palavra proferida estabelece, por intermédio do agente falante, um vínculo indicial com a coisa “designada”. Os indicadores, os dêiticos, situam e ancoram a linguagem e o falante no mundo. Os índices se apresentam em sua materialidade. Gestos, olhares, expressões faciais, sons interpelativos – e também marcas, signos e traços indiciais –, tal como os próprios órgãos dos sentidos, todos se envolvem no ato de designar, de se referir ao mundo, de constituir a realidade histórica. O referente ingressa na linguagem e ela se espraia pelo mundo. As palavras e as coisas se encontram. Fim do ato dramatúrgico.

Conclusão [sobre] a crise dos historiadores

Agora, em nosso tempo histórico, estamos habilitados a compreender de outra forma a questão da “crise dos historiadores” ante os avanços e conquistas da disciplina história. Aquilo que esses historiadores denominaram de “crise da história” não passou de uma produção de sentido forjada por esses próprios historiadores – eles sim em crise, pois os novos princípios semiológicos entraram em conflito com as suas posturas historicamente constituídas, nas suas respectivas subjetividades. Os novos terrenos conquistados pela disciplina história foram considerados “pós-modernizações” indesejáveis que assombraram as mitologias positivas do iluminismo incrustadas nas historicidades desses historiadores. O sentido que deram ao declararem uma “crise da história” reflete como o sentido decorre das historicidades dos sujeitos na cena. Para esses historiadores, tal situação revestia-se de perigos, representava um ataque ao império de seu racionalismo idílico, desmontava o velho e seguro paradigma consolidado. Para um historiador formado nos cânones absolutistas, toda e qualquer dose de relativismo é venenosa, corruptora. Ante a evidência de que a Verdade jaz, de que o significado unívoco de um texto esgarçou-se, o historiador que perdeu o seu norte invoca seus absolutos, roga e suplica pelo retorno de seus valores míticos, clama por um caminho de aproximações sucessivas ao antigo reino de certezas, o seu arcaico paraíso ilusório definitivamente perdido. O que esses historiadores em crise anunciam como crise da história e denunciam o linguistic turn como inimigo é um mero efeito de sentido de suas próprias construções discursivas naturalizadas que apagaram a autoria criacionista que eles próprios realizavam. A crise está neles. Construíram um mundo esquizofrênico no qual os objetos, as coisas, são os únicos legisladores objetivos e os humanos “neutros” são meros assistentes, aguardando que a objetividade, como um miasma, seja exalada dos objetos para ser “descoberta”. O

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humano como simples detector inerte das “objetividades do mundo exterior” – um humano sem subjetividade alguma, um humano sem história. A história humana se faz na interseção das coisas com as palavras proferidas por um falante para outro falante e, assim, hegelianamente enlaçados. Humanos situados no mundo das coisas, mas de coisas que somente são apreendidas ao se constituírem pela palavra. A palavra como ação constitutiva desses humanos como um corpus histórico, em modulação sobre seus corpos meramente biológicos.” (p. 57)

[oitavo fragmento] (p.74 a p. 76)

[A agência material]

“A “teoria da ação” que percebo como subentendida no imbróglio da simetria callonlatouriana é, na sua essência, equivalente a desvendar as maneiras concretas pelas quais as coisas atuam sobre os humanos, ou seja, uma “teoria” que reconhece o processo de agenciamento para os objetos do mundo: a agência material. Uma agência material – entre coisas e sujeitos humanos – ocorre sempre que o objeto afetar19 um humano. “Afetar” é equivalente em semiologia a produzir um sentido para aquele sujeito. Isto é, se aquele evento ou coisa afeta o sujeito, então esse sujeito extrai uma significação dessa coisa ou evento. Assim se configura a agência desse objeto ou evento, a sua produção de sentido. Por esses instrumentos, a linguagem – na qual os sentidos se cristalizam – torna-se um elemento essencial dos agenciamentos.20 A agência não é definida como um ato intencional humano, agência é algo que produz algum efeito. Basta que afete, tal como o movimento cíclico solar afeta todos os ciclos vitais em nosso planeta, ou como ocorrem os agenciamentos climáticometeorológicos. Esses aspectos da agência material afetam diretamente a constituição da história humana, tal como também já afetaram e constituíram as diversas formas de vida 19

Extraio da Gramatologia derridiana (Derrida, 1999) a motivação para o conceito de “afetar”. Evidentemente, “ser afetado” não é uma qualidade inata do agente; ela depende do aprendizado decorrente de vivências anteriores, depende do estilo de pensamento desse agente, como diria Fleck. Cada impressão, cada traço que afete um agente sofrerá uma “decodifição” por esse agente segundo as suas categorias mentais. “O traço afeta tanto o leigo quanto o especialista, como pura diferença percebida como tal, porém cada um desses sujeitos resolve essa percepção – essa afecção/afeição – dentro do seu próprio universo discursivo, de sua semântica, de seu léxico” (Maia, 2006, p. 52). Assim, ante uma ultrassonografia, o especialista e o leigo são afetados de maneiras diversas pela imagem exposta, eles compreendem diferentemente a significação daquele objeto que os afeta: para o especialista, trata-se de um feto; para o leigo, uma simples mancha sem maiores significações. Derrida menciona affection jogando com seu duplo sentido afecção/afeição (Derrida, 1999, p. 13). 20

Evidentemente que a linguagem, nessa semiologia de objetos e coisas, vai além do significação, um sentido. O termo “sentido”, ainda nessa semiologia, difere do termo restrito em sua associação estritamente literal e que é independente da presença de significado da palavra, independentemente da ação de um sujeito. Já “sentido” introduz ou não.

literal, e ocorre sempre que haja uma “significado” da linguística, bem mais um sujeito. Em linguística, fala-se do e articula um sujeito a um texto, literal

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existentes no planeta em suas longas cadeias evolutivas, interativas. Cada organismo presente no cenário biológico é fruto de cadeias interativas com o seu meio, isto é, sofreu um agenciamento material. A evolução de cada organismo é uma função dessas lentas e contínuas interações. Porém não se esgota aí a ação das agências materiais. Se, por um lado, essa ação interativa, essa afecção, essa agência material interfere na formação dos mais diversos organismos, por outro, tal agência também condiciona comportamentos dos seres vivos, enforma seus saberes e fazeres. Ou seja, há duas dimensões para a ação das agências materiais. Elas atuam no plano da materialidade orgânica e, igualmente, agem no registro simbólico, imaterial. Assim, o saber-fazer humano – que é uma atividade simbólico-material – também decorre de uma prática interativa com o seu meio. A interação com o meio ambiente é realizada por meio de diversos tipos de agenciamentos. Uma sugestão de uso de algo material já é uma agência, já é algo que afeta. Por exemplo, seja um graveto indicando seu uso a um chipanzé ante um formigueiro. O chipanzé introduz o graveto no orifício do formigueiro e “pesca” formigas: essa sugestão de uso é uma agência material. Ou, seja também, o homem primitivo ante a ossada de um grande mamífero: ele recolhe e guarda a tíbia para usá-la adiante como uma clava. Diremos que ele foi afetado pela tíbia, a tíbia forneceu a ele uma “recomendação” de uso.21 Uma sociologia de cunho materialista já oferece alternativas para compreender as relações entre as pessoas e a materialidade do mundo. Isso se dá pelo conceito de trabalho. É através do trabalho que os humanos e o mundo natural formam um amálgama, e nessa interseção é que se constitui a sociedade. A sociedade-cultura somente ganha existência quando a vida – humana – assume formas organizacionais coletivas de intervenção na natureza. O trabalho é a expressão última da condição societária humana e de seu modo de vida coletivo. Pode-se dizer que a história é, em última instância, a história do trabalho:

Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e pernas, cabeças e mãos –, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a

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Um grupo social passa de nômade a sedentário impulsionado por certas condições materiais. A pecuária e a agricultura foram “recomendações” de possibilidades extraídas pelos humanos em suas interações com a natureza. Sobre a noção de “recomendação”, ver Asplen, 2006 e o próximo capítulo.

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natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica a sua própria natureza. (Marx, 2002, p. 211)

Uma clara evidência de como a agência material atua é observada ao se analisar o trabalho em sua interatividade material e agenciadora. Desde a mais arcaica pré-história humana há trinta mil anos, o trabalho solicita aparatos materiais para a sua efetivação, aos quais Marx denominou de meios de trabalho: “O uso e a fabricação de meios de trabalho, embora em germe em certas espécies animais, caracterizam o processo especificamente humano de trabalho” (Marx, 2002, p. 213).22 Esses meios são encontrados, ao lado da própria terra e de animais domesticados, em cada ferramenta e utensílio fabricado desde os tempos mais remotos. O mesmo pode ser dito dos instrumentos e aparelhos técnicos mais recentes. Cada artefato produzido é uma consequência, um produto acabado do agenciamento ocorrido. A ferramenta decorre da interação homem–natureza, ela é uma produção humana, porém também é simultaneamente um produto natural. Cada ferramenta captura sentidos do mundo como também inscreve significações nesse mundo”.23 (p.76)

[nono fragmento] (p.101 a p.109]

“Os problemas do meio ambiente mostram a interdependência entre o social e o natural. A natureza afeta a cultura tal como a cultura interfere na natureza. Mais do que uma dicotomia, há um par indissolúvel. Enfim, necessitamos ir além do relativismo sociológico posto pelo construtivismo social que produz uma realidade “construída” somente pelas decisões humanas, em que a sociedade engole a natureza. O meio ambiente integra essa realidade “construída socialmente”, quer queiram ou não os construtivistas. Com a agência o que temos é uma construção sociomaterial da realidade.24

Agência como prática: ferramentas, utensílios e símbolos ante o sujeito histórico

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“O meio de trabalho é uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto do trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto.” (Marx, 2002, p. 213) 23

Como as ferramentas decorrem de uma interação com o mundo, isso implica que cada ferramenta deva capturar do mundo a maneira correta de interagir. A função específica de uma ferramenta deve obedecer às necessidades que lhe são dadas – esse é o sentido capturado do mundo. Assim, a diferença de design entre a chave de fenda e o martelo reflete essa captura de sentido diferenciado que o uso de cada um obriga. Evidentemente que o uso da ferramenta produz significações as quais são o resultado desse uso: o serrote produz um corte na madeira, uma transformação. Esse corte é também uma significação inscrita na madeira, o sentido de seu uso. 24

Essas questões ganham melhor compreensão com a “teoria” do ativo–passivo de Fleck, descrita no Apêndice ao final deste livro.

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Fabricar e usar uma ferramenta é agenciar.

A saída é a proposta de agência, que parte de outra configuração e redesenha o modelo sujeito–objeto: sem aquela ruptura de isolamento objetivo e também sem o predomínio subjetivo. Faz-se a opção pelo caráter interativo, pela ecologia da interação entre aquele que se pretende como sujeito e aquilo que se coloca como seu pretenso objeto. Ambos participam. Ambos atuam, eles interagem.25 Essa proposta inovadora se alinha com a tradição da práxis, o saber como decorrência do fazer. Dessa forma, silenciamos a tagarelice do sujeito racionalista que “conhece” antes de agir. Paralelamente, demos alguma “voz” ao objeto silenciado no sociologismo. É no fazer que se conhece, que se apreende um saber: o como agir. Aprendese como agenciar. Com o conceito de agência, o relativismo não é tão demoníaco assim. Pode ser encarado como um aspecto ainda inconcluso, incompleto, de um processo de entendimento da nossa relação com o mundo e suas coisas. O relativismo é meramente uma compreensão problemática, não é mais um sacrilégio ou uma ofensa herética e profana aos mitos fundamentais. Não há fundamentalismo conceitual, não há ontologias sagradas. O Real é simplesmente tomado como a realidade histórica já instituída, e a Verdade – mais modesta – veste-se como o processo válido para se constituir uma agência. Real e Verdade – entes metafísicos – transfiguraram-se nos conceitos práticos de “realidade” e de “validade”. Dessa forma, este capítulo examina o próprio caráter da noção de agência como um sucedâneo dos modelos representacionais típicos da epistemologia da cognição. A agência situa-se em favor de uma “teoria” da prática que toma a performance localmente situada na qual contexto e “atores” são – todos – ativos. Admite-se a ideia integradora de interdependência entre os agentes posta por uma ecologia do humano. Hoje, a noção de agência, apesar de ocupar um lugar central nas pesquisas, ainda carece de alguns refinamentos que a apresentem como “entidade etnográfica” em toda a sua extensão. Há necessidade de se olhar agência como a forma pela qual a relação homem–natureza é efetivamente realizada como uma ecologia. Em uma teoria da prática, ambos, homem e natureza, atuam e formam a base agenciadora; dito de outro modo, o antigo binômio sujeito–objeto é refeito, encontra-se agora amalgamado e conforma a agência como síntese para um dueto interativo. 25

Fleck (2010, p. 50-51, 81, 83 e 136) propõe a novidade, há um terceiro elemento na dicotomia: o saber já constituído. Ver também o Apêndice ao final deste livro.

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Porém, ainda restam algumas questões instigantes sobre a agência material: como as coisas – animadas e inanimadas – podem agir e atuar como agentes? como o objeto desprovido de intencionalidade pode intervir sobre os humanos? pode haver ação sem intenção?26 enfim, como ocorre a agência material? Estamos tão habituados a entender o agenciamento como um ato volitivo de humanos – mas, insisto, a agência não se define pelas intenções, e sim pelos efeitos de sentido produzidos –, que as mais óbvias e cotidianas ações materiais, tal como a exercida pelo ar que respiramos, passam despercebidas, tornam-se invisíveis. Ou as mais impactantes coerções realizadas pelo mundo natural – como as produzidas pelo sol e pelos elementos climático-meteorológicos. A rotina do movimento solar aparente no horizonte é uma das mais primárias determinações dos ciclos diários do nosso metabolismo e da vida em geral. O sol é o agente responsável pela sucessão de estados de alerta diurno e de adormecer noturno para grande parte das formas de vida. Além desse agenciamento vital, há ainda os promovidos pelo clima. O tipo de sociedade que se ergue em uma dada região é extremamente dependente das condições geoclimáticas e meteorológicas, das interações com seu ambiente físico. Lucien Febvre, Fernand Braudel e muitos outros historiadores já haviam observado essa pertinência da agência material na constituição da história humana. Ao lado da sociologia ambiental de Lisa Asplen, uma história ambiental trataria – dentre outros aspectos – das precondições que condicionam o evolver histórico, dos agenciamentos materiais sobre a sociedade e da ação dela sobre o meio ambiente. Além desses aspectos mais gerais de intervenção e que são constituintes básicos do mundo material, há outros mais sutis, que afetam (Derrida, 1999, p. 13) inesperadamente os viventes em seus fazeres cotidianos. São interações situadas em cenas específicas da vida, nas quais o ambiente físico oferece soluções para o viver. Imagine-se o homem primitivo em suas andanças e que se depara com uma gruta protetora ao cair de uma noite fria e chuvosa. Esse abrigo imprevisto é o resultado de uma agência material sobre o indivíduo nômade. A natureza afetou, apresentou sua sugestão de uso, fez sua indicação de uma aplicação prática para aquela gruta, sugeriu-lhe uma função. Cabe ao indivíduo captar a “recomendação” feita e simplesmente usá-la.27 Essa interação homem–natureza não 26

A compreensão clássica do racionalismo iluminista promove os humanos a um patamar de diferenciação autoral. Os humanos seriam os seres do livre-arbítrio e das ações conscientes e intencionais. Hoje, após a psicanálise, o estruturalismo e sua crítica – o pós-estruturalismo – essa condição de humanidade já não é tão clara e definidora assim. Já não temos mais tanta certeza na possibilidade de separar as ações humanas das demais intervenções que as coisas, animadas e inanimadas, do mundo possam produzir. Em uma concepção pragmática, conceitos como “intenção” e “consciência” possuem uma semântica obscura imersa na inexpugnável subjetividade do “autor”. 27

Essa talvez seja a origem para a significação imaginária que os tempos futuros deram ao conceito de “lar”, de “casa”. Essa “casa” não surgiu de uma representação, de uma ideação intencional de um “arquiteto” primitivo e, sim, do encontro

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solicita espaço para ações intencionais – nem do homem nem da natureza – e oferece um claro exemplo de como a agência material ocorre, estimulando certas práticas e estilos para a ação adotada pelas formas de vida. Nesse caso, vemos que a materialidade do mundo estabelece não só coerções e limites, mas apresenta também novas possibilidades para o agir e viver humanos; o meio ambiente se apresenta como recurso material para sustentar a sociedade. A agência material “recomenda” seletivamente algumas transformações para o viver social. Outra expressão forte da agência material é a envolvida nos processos de alimentação. Os hábitos alimentares decorrem de interações milenares que acumularam múltiplas “recomendações” da natureza para comporem os diversos registros culturais. É o que acontece com o patê de foie gras francês ou com a tortilla mexicana. Em geral, todos os hábitos e costumes sintetizam esse acúmulo de experiências trazidas pelas agências materiais. As diversas habilidades técnicas foram desenvolvidas a partir do que é oferecido pelo ambiente. Uma clara evidência de como a agência material promove uma ecologia para a integração homem–natureza, sujeito–objeto, dá-se em cada ferramenta e utensílio fabricado desde os tempos mais arcaicos. O mesmo pode ser encontrado nos instrumentos e aparelhos técnicos mais recentes.28 Cada artefato produzido é uma consequência, um produto acabado do agenciamento ocorrido. A ferramenta decorre da interação homem– natureza, ela é uma produção humana, porém, simultaneamente, também é um produto natural. Desvenda-se a agência fazendo a etnografia desses artefatos, uma etnografia da fabricação e das utilizações das ferramentas no trabalho.29 Assim, cada ferramenta fornece o “corpo”, a materialidade de uma agência, e representa também uma habilidade humana situada historicamente, uma habilidade que ocorre no espaço simbólico e que é decorrente do nosso enfrentamento ao agenciamento material. E essa reunião do material com o simbólico dá-se tanto na fabricação quanto no uso de algum artefato, nas regras de seu contingencial de uma gruta, que permitiu uma percepção para sua utilização. A mesma situação ocorre com a descoberta súbita de um rio piscoso, de uma árvore frutífera, de uma manada de ruminantes. Todas sugerem um tipo de atividade, de prática. Uma forma de vida é condicionada pelo ambiente. Um grupo social passa de nômade a sedentário impulsionado por certas condições materiais. A pecuária e a agricultura foram recomendações de possibilidades ofertadas pela natureza. Lisa Asplen (2006, p. 327) dá ênfase a essa noção de “recomendação”, observando, porém, seu caráter não determinístico. Ela cita o trabalho de Kate Soper: “Como Soper (1995) explica, uma agência material “pode recomendar” certos tipos de ação, e ela sempre terá uma palavra a dizer na determinação dos efeitos de nossas ações.” (“As Soper (1995) explains, material agency „may recommend certain types of action, and it will always have its say in determining the effects of ours actions‟.”). 28

Os artefatos, tipicamente utilizados pela instrumentação científica, foram fabricados de forma interativa. Não houve um projeto acabado produzido pela mente: a forma final útil decorreu de longas interações e aprendizados empíricos, tal como o telescópio de Galileu, o microscópio ou uma máquina fotográfica. O mesmo pode ser dito a respeito do automóvel, do telefone ou da lâmpada elétrica. Cada artefato alterou nossa percepção do mundo e, assim, abriu novas oportunidades de agenciamento. São artefatos que redesenham a fenomenologia da existência. 29

Uma etnografia da fabricação e uso das ferramentas e utensílios é o passo fundamental para mostrar como a agência entre homem e natureza é interativa. Acompanhar em seus detalhes mínimos a produção dos artefatos é desvendar como há uma dupla participação – do indivíduo e do meio natural – na solução de um problema. Ao produzir, por exemplo, uma lâmina cortante por meio do polimento de um osso, o agente humano teve de levar em consideração as possibilidades que a peça bruta de osso oferecia, e teve de respeitar os limites materiais impostos por essa peça originária. O planejamento e a confecção de uma faca de origem óssea depende desses dois agentes: o homem e o osso.

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manuseio. Uma pedra lascada, um osso que se lapidou, uma lança produzida a partir de um galho, todas são formas de agências que pertencem simultaneamente ao mundo dito natural e ao mundo simbólico da cultura. O mesmo vale para produtos mais elaborados por nossa era industrial. O evolver humano pode ser descrito como o desenvolvimento das suas ferramentas, das formas de agências nas quais o ser histórico se envolveu desde a préhistória até os dias atuais. Para produzir uma ferramenta – que servirá para ampliar as intervenções humanas no mundo –, o indivíduo teve de desenvolver uma maneira interativa de ação no mundo, teve de equacionar um problema posto por sua rotina de vida em contato com a natureza. Cada ferramenta já se apresenta como solução de um problema causado pelo enfrentamento homem–natureza. No entanto, é uma solução extraída do mundo. Ou seja, a ferramenta decorre de algo preexistente no mundo que por si já afeta aquele indivíduo e, ao afetar, já se apresenta como uma ação da coisa sobre o indivíduo (Derrida, 1999, p. 13). Ao “inventar” uma lança usada na caça a partir de um tipo de galho arbóreo, o hominídeo primitivo foi afetado pela “recomendação” sugerida e teve de se submeter às propriedades materiais daquele pedaço de madeira, à sua rigidez e à sua plasticidade. Uma ferramenta que se estabiliza dentro de um grupo societário revela o ingresso desses entes – do usuário e do próprio utensílio – na história. A reprodução dessa ferramenta dentro do grupo – sua confecção e seu uso continuados – são claros sinais da historicidade do artefato que decorre do estágio da relação homem–natureza em que tal grupo se encontra. Assim, cada ferramenta é um indicador de como naquela fase histórica o homem reage, responde e se contrapõe ao seu meio. É um anúncio do tipo de forma de vida estabelecida naquele ponto da história. A história é essencialmente o evolver desses agenciamentos, dessas afecções derridianas da natureza sobre o homem. Essa alternativa em favor da agência resgata o homem em sua efetiva prática societária e natural desde a sua mais primal experiência vivencial. Homem e natureza encontram-se integrados em uma práxis que desenha um cenário de múltiplos e variados “atores”. Tudo e todos participam. A natureza do homem está integrada à natureza das coisas. Assim se recuperam e intensificam clássicas propostas já anunciadas pelas “teorias” da prática que, ainda no século XIX, partiam do pressuposto da necessidade de analisar a ação humana desde os seus primeiros princípios, ou seja, considerando a vida e a história humana como uma questão de sobrevivência. Dessa forma, descortinamos o movimento inaugural da história: os homens buscam satisfazer suas necessidades de sobrevivência ao trabalharem a natureza:

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[...] o homem necessita, em primeiro lugar, comer, beber, ter um teto e vestir-se antes de poder fazer política, ciência, arte, religião etc.; a produção dos meios de vida imediatos, materiais [...] é a base a partir da qual se desenvolvem as instituições políticas, as concepções jurídicas, as ideias artísticas e inclusive as ideias religiosas dos homens e em relação à qual devem ser explicadas, e não o contrário.30 (Engels, 1974, p. 171-172; minha tradução)

Trabalho: um agenciamento

Essa consideração nos encaminha para a noção relacional de trabalho como o procedimento por meio do qual a integração homem–natureza ocorre. No trabalho tudo e todos se transformam, e dele tudo e todos participam. As coisas e os homens se fazem e se refazem, se integram. Tudo e todos são atores, ou melhor, agentes, coisas e pessoas. O trabalho é a agência por excelência, é a ação interativa. É pelo trabalho que o homem transforma a natureza e transforma a si próprio. Isso nos leva ao dístico clássico da teoria da práxis: a história é o processo de criação do homem pelo trabalho humano.31 Não há separação entre um universo interior, mental, e outro corpóreo, material. Há uma unidade interativa. Pelo trabalho o homem se relaciona com a natureza e com os outros homens. Não há espaço para relativismos subjetivos; há uma objetividade interativa, está-se ante um realismo prático, um “agential realism”.32 Transforma-se efetivamente o mundo, a natureza, e transformam-se simultaneamente os homens, as relações que eles estabelecem entre si. Da pedra lascada à polida, do fogo à panela, da coleta e caça à agricultura e à pecuária, há uma série de etapas de trabalho material e mental. Um evolver de agências. Formas sucessivas de agenciamento que movimentam a história. Produzem a humanização do homem e alteram também a superfície do planeta. O mundo antes de ser compreendido como conjunto de fatos é um mundo de agências, como se refere Pickering (1995, p. 6),33 um mundo de trabalho. A história do mundo, da “civilização”, é a história das 30

“[…] el hombre necesita, en primer lugar, comer, beber, tener un techo y vestirse antes de poder hacer política, ciencia, arte, religión, etc.; que, por tanto, la producción de los medios de vida inmediatos, materiales, […] es la base a partir de la cual se han desarrollado las instituciones políticas, las concepciones jurídicas, las ideas artísticas e incluso las ideas religiosas de los hombres y con arreglo a la cual deben, por tanto, explicarse, y no al revés.” 31 “Antes de tudo, o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. Defronta-se com a natureza como uma de suas forças. Põe em movimento as forças naturais de seu corpo – braços e pernas, cabeças e mãos –, a fim de apropriar-se dos recursos da natureza, imprimindo-lhes forma útil à vida humana. Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica a sua própria natureza.” (Marx, 2002, p. 211) 32

Barad (1999, p. 7) propõe uma “ontologia” que designa aquilo que os historiadores denominam de “realidade histórica” como “agential reality”. Dessa forma fica afastada a ideia de um Real metafísico que desconhece a pragmática das ações humanas. Só temos contato com essa realidade contra a qual nós intra-atuamos e nos constituímos como entes. 33

“[...] o mundo não é preenchido, em primeira instância, com fatos e observações, mas com agência” (“[...] the world is filled not, in the first instance, with facts and observations, but with agency”).” (Pickering, 1995, p. 6).

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agências envolvidas, da pedra lascada à polida e aos metais. Uma história das agências, uma história das formas de trabalho. No impasse erigido pelo confronto entre realismo e relativismo há que se resgatar o que faz sentido em ambos e, simultaneamente, descartar os seus equívocos. Para tanto, é preciso incorporar os fatores materiais às práticas denominadas restritivamente de discursivas, como se não fossem também materiais. Minha alternativa vai em direção do encontro da materialidade com a literalidade. Trata-se de uma proposta de agência simbólico-material decorrente da pragmática, do uso da linguagem. É na prática concreta das ações humanas que se ultrapassa o dilema realismo–relativismo. Karen Barad (1999, p. 2), também alinhada com a preocupação de vencer esse dilema, ao propor o seu “agential realism”, adota uma compreensão para as atividades científicas como “práticas material-discursivas”. Compreendo que tanto o realismo quanto o relativismo padecem de um limite comum: não percebem a materialidade da linguagem como uma forma de agência material-discursiva. Hoje, muito mais do que em épocas passadas, a agência material das coisas está ainda mais evidente. Até o século XX, pensava-se que as interações humanas com o seu meio circundante advinham das próprias necessidades materiais humanas, entretanto hoje, em nossa pós-modernidade, já se tornou um lugar comum ampliar essa noção de necessidade material para a de desejo simbólico. O homem definido não só por suas necessidades, mas pela instância simbólica, por seus desejos. O desejo abarca a necessidade. Considerava-se a necessidade como algo material e “natural”, predeterminado e que já estaria lá – no organismo e no mundo, como a fome e o frio; já o desejo passa por uma criação contínua, inventa-se um novo desejo a cada dia. Diz-se: o desejo cria necessidades.34 O desejo é sedução do querer, é ponto de partida da movimentação de consumidores. E, nesse quadro, a noção de agência ganha importância e evidência inigualáveis. Falamos hoje de uma semiologia desejante dos objetos. Os objetos – especialmente aqueles denominados “bens de consumo” – transformam-se em agentes do desejo de consumidores, os “antigos” cidadãos. Eles, os objetos materiais, capturam e movimentam os “indivíduos racionais” em sua direção; os objetos de desejo tornaram-se sujeitos que mobilizam indivíduos e também multidões. Os objetos na lógica do mercado, da publicidade e do marketing são os novos senhores, tornaram-se causas dos acontecimentos sociais. O consumidor supõe que decide, mas a decisão é de quem? Um estudo contemporâneo das estratégias de publicidade vai revelar a importância dessa concepção

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Marx analisa a mercadoria como objeto das necessidades humanas e trata da sua relação com o desejo. A mercadoria como laço societário. E o “desejo envolve necessidade” diz-nos Marx, a mercadoria “satisfaz necessidades humanas, seja qual for a natureza, a origem delas, provenham do estômago ou da fantasia” (Marx, 2002, p. 57, n. 2).

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de interatividade subjacente ao conceito de agência, de agência material. O objeto também decide.35 Talvez o maior obstáculo para o entendimento do humano como integrante de agências decorra da sobrevivência do modelo racionalista difundido pelo iluminismo. Uma mente racional que expressa seus pensamentos e vontades por meio da linguagem. Uma consciência plena de si que verbaliza intenções: “Eu quero, eu penso, logo, eu falo e, em seguida, eu ajo”. Esse modelo retira o indivíduo da agência – como ação coletiva e interativa – e o isola, aloca-o na cena como um autor, o protagonista definitivo dos acontecimentos no mundo, o ator social da sociologia, um autor intencional, racional, um semideus. Como uma consciência em plenitude, todas as suas decisões parecem fluir do seu centro decisório, independentemente do mundo que o cerca, dos acontecimentos que efetivamente o coagem. Ele nem vê como é coagido em cada encontro com as coisas. Ele não vê o seu núcleo interativo com as coisas do mundo: como as coisas o afetam e sensibilizam, como afetam seus desejos. Tudo parece emergir dele e somente dele, de sua intencionalidade. No entanto, os “objetos” afetam, coagem e, assim, interagem. Necessito entender o humano fora de seu casulo iluminista de uma consciência egotista, totalmente livre e autocentrada na racionalidade; necessito de um humano que sofra afecções do seu entorno no mundo, que é coagido e responde às coerções das coisas do mundo, um humano pulsional, alinhado com uma ecologia da vida. Assim, toda pesquisa que envolva o conceito de agência deve, pari passu, desenvolver uma “teoria” para o humano, mesmo que esteja tão somente implícita nas entrelinhas do texto. Como se dá o agenciamento que envolve humanos com o mundo? Como as coisas do mundo interagem com esses humanos? Que humano é este? Essas são questões que necessitam de uma apreciação para detalhar o conceito de agência. Além disso, não se pode perder de vista que uma agência integra – no mínimo – dois agentes em uma ação que é material e que é também, simultaneamente, simbólica. Uma das lacunas atuais para se atingir esse objetivo decorre daquilo que se entende como o humano. O que é o humano? Um autor-ator já pleno e acabado? Um substantivo ontológico ou um adjetivo histórico? O humano é o quê?

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Pode-se dizer que por trás da ação “aparente” do objeto está o cérebro de um humano, o “marqueteiro” – o agente do marketing. O “marqueteiro” ocupa o lugar daquele que produz a indução dos movimentos, é o novo deus do mercado, é quem decide. Programou a ação do consumidor, atraiu-o e o seduziu. Mas, é possível retrucar a esse argumento: quem é o “marqueteiro”? É aquele que sabe como a interação se dá, sabe fazer um agenciamento acontecer, conhece as táticas que atrairão os indivíduos. É aquele que sabe atrair o consumidor.

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O humano: um produto de agenciamentos

No cenário da vida, o humano é uma distinção construída. Cada ser humano é um artefato produzido no seu particular devir histórico. Não se nasce humano, torna-se. Em história entende-se que cada indivíduo biológico, dito “humano”, não nasceu assim. Ele tornou-se humano a partir de suas relações coletivas, societárias, em suas interações com o mundo. O humano não é um estado existencial biológico dado por uma tipologia inata ao ser. O humano é uma condição, histórica, do ser. O ser torna-se humano ao se sujeitar ao processo histórico de humanização, um processo de vir a ser que o caracteriza e particulariza pela convivência e o contágio com os demais humanos. Humanização que inscreve cada indivíduo biológico no evolver constitutivo da humanidade. Aqui se confundem dois conceitos homônimos: humanidade como algo historicamente constituído – uma condição – e humanidade como conjunto de indivíduos que formam uma espécie – uma taxonomia de essências. O ser biológico denominado Homo sapiens é insuficiente para definir a qualidade humana, que somente se dá no devir histórico, na existência concreta de cada indivíduo.” (p.109)

[décimo fragmento] (p. 118 a 120)

A linguagem, uma prática compartilhada

Ao ser protagonista em um conjunto de agências, cada membro de um grupo participa de certo número de práticas compartilhadas das diversas cadeias operatórias necessárias para a sobrevivência individual e coletiva. Isso produz uma arquitetura simbólico-material de significações comuns para o grupo e desenha uma maneira pela qual seus membros vivem e sentem o mundo, desenha uma “forma de vida” wittgensteiniana. Define o que é o humano naquele momento histórico. A trama de cadeias operatórias utilizadas estabelece uma percepção do que seja o mundo e de como agir nesse mundo. O mundo se apresenta como um feixe de agências que expõe significações para seus usuários-agentes, significações que constituem uma linguagem.36 O mundo não é mais um “mundo natural”, um fotograma de um objeto distante, afastado do sujeito que o habita, mas um artefato simbólico que envolve o sujeito. O mundo é definido e expresso pelas significações semiológicas, o 36

Essa forma de articular Wittgenstein com a noção de agência é essencial para a nossa compreensão pragmática que inclui o “seguir uma regra” como fundamento de uma etnografia.

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sentido. É uma extensão do sujeito. Sujeito e objeto estão enfim amalgamados, estão postos juntos na cena, estão superpostos entretecidos pela linguagem. Nesse estágio, a historicidade de certo membro do grupo é dada pelo conjunto articulado de agências que compõe e rege a sua vida naquele grupo. Ele age no mundo e percebe o mundo através de sua historicidade, das significações disponíveis e que estão enfeixadas por essa trama de agências. Tais agências se compõem de práticas que são, reciprocamente, significações partilhadas. O mundo é um constructo simbólico, é constituído por aquilo que é dado pela linguagem em sentido lato, a linguagem mais que literal que é constituída pelas significações extraídas da coisa, ela é “a unidade ou toda a síntese significativa, quer seja verbal ou visual: uma fotografia será, por nós, considerada fala exatamente como um artigo de jornal; os próprios objetos poderão transformar-se em fala se significarem alguma coisa”. (Barthes, 1989, p. 133) Assim, justifica-se a percepção de Flusser de que a realidade é simplesmente um aspecto da língua, ou de que a língua “é igual à totalidade da realidade” (Flusser, 1963, p. 231).37 Essas significações, que dão forma e cor ao cenário do mundo e que constituem a linguagem, fornecem uma orientação prático-simbólica para aquela “forma de vida” viver a sua vida, para a sua existência e andanças nesse mundo. A parcela do mundo que não participa dessas agências é percebida de maneira diferente, chega a ser desconsiderada, por não integrar os interesses e motivos daquela “forma de vida”. Ela não possui significação, torna-se invisível, não é percebida. Se algo dessa parcela incógnita “tenta” emergir, torna-se aquilo que Derrida (1999) denomina “traço”,38 um traço imotivado que ainda não recebeu o significado, ainda não se tornou uma inscrição, ainda não se constituiu como uma palavra, como linguagem. Ainda é uma parte do mundo que não ganhou visibilidade e não adentrou o sistema simbólico das significações instituídas, nem se constituiu como significante. Flusser (1963, p. 23) designa essa situação de dados brutos que se apresentam como “palavras in statu nascendi”. Assim, as agências fornecem percepções seletivas: há aspectos em evidência e outros que serão pouco percebidos. A natureza não é olhada como um todo homogêneo. Essas diferenças de “visibilidade” produzem uma taxonomia. Estabelecem para o mundo uma grade de significações diferenciadas. Na natureza do mundo, somente ganham destaque aquelas entidades, aqueles significantes que já integram o sistema simbólico, que já possuem significados naquele grupo, que se tornaram significantes nas práticas de agências vividas por aquele grupo. O olhar dirigido ao mundo filtra, recorta, o que deve e 37

Para Flusser, a língua é bem abrangente: “conhecimento, realidade e verdade são aspectos da língua” (1963, p. 15). “A língua, tal qual se projeta a partir do balbuciar primitivo, criou a natureza, uma natureza sempre crescente e sempre mais ampla, e transformou essa natureza em civilização” (1963, p. 226). 38

Essa questão será tratada, com maior detalhe, no capítulo 4, item “Traço-inscrição”.

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pode ser visto. O cenário do mundo recebe iluminação desigual, boa parte desse cenário permanece na penumbra dos interesses. Delimita-se e foca-se a cena por meio desse perceber dirigido, orientado e engendrado na historicidade de seus agenciamentos anteriores e articulados entre si. É um ver seletivo ou, como dizia Fleck, um “ver formativo” – um Gestaltsehen que, igualmente, é também uma recepção simbólica. Percebem-se umas formas e não outras.”39 (p.120)

[undécimo fragmento] (p.132 a p.145)

“A unidade das palavras e das coisas

Nesse percurso, apresentamos uma alternativa para o dilema idealista: como palavras e coisas se conectam? Sem encontrar uma solução satisfatória, o idealismo propôs soluções sofisticadas e artifícios analíticos complexos que tentavam vencer o hiato entre o mental e o material. Pontes foram erguidas entre os dois mundos. Todas possuíam em comum o mesmo projeto: resolver o mistério da referência no mundo material. Em linhas gerais, pensava-se que cada palavra possuía um referente, isto é, a mente designava algo que pertencia ao mundo concreto, da matéria. Ao mencionar “árvore”, estaríamos indexando o objeto árvore, sem mostrar – e aqui está o problema – como efetivamente essa indexação ocorria. Deslocava-se o mistério originário, a ruptura material–mental, natureza–cultura, para uma ilusória solução, que permanece misteriosa e soa como falácia. Em qualquer “teoria referencial do significado”, a separação entre mente e corpo persiste. A base de sua análise encontra-se na partição radical entre o que é abstrato e o que é concreto, entre mental e material. Já em uma orientação pragmática, o primeiro princípio é o de que vivemos e transitamos entre esses “dois mundos” como se fossem uno: executamos práticas por meio de ferramentas – não importa qual a sua substância, seja um instrumento mental, simbólico, seja um concreto, tangível. A intervenção prática possui ambos os aspectos, um abstrato e outro concreto – afinal, a construção de um edifício solicita uma planta arquitetônica que

39

Em Fleck (2010, p. 142), é indispensável que se compreenda as atividades cognitivas como produzidas por práticas compartilhadas em um grupo. Há um “estilo de pensamento” associado a um “coletivo de pensamento”. O estilo de pensamento, Denkstil, é a expressão dos contornos que a linguagem impõe ao modo de agir societário e que permite um Gestaltsehen.

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discrimine e oriente as execuções materiais. Marx já afirmava: o trabalho é simultaneamente simbólico e material.40 Somos uma imbricação de mente e corpo, uma unidade. Nosso desafio é ultrapassar o entendimento da linguagem como expressão puramente mental, como mera forma de comunicação. Nossa pretensão é apresentar a linguagem como algo mais do que uma simples transmissora de mensagens. Pensamos linguagem como produtora de agenciamentos nos quais a “própria palavra é uma forma de ação” (Kerbrat-Orecchioni, 2005, p. 11).41 Essa proposta apoia-se em contribuições oriundas de diferentes latitudes que consideram o registro pragmático de uso da língua, ao lado dos já clássicos recortes da semântica e da sintaxe.42 Para tanto, nossas conclusões nos levam a compreender o homem como um animal simbólico, que age por intermédio de significações apreendidas, as quais se constituem como sentidos que o afetam. Ele é habitante de um mundo pleno de inscrições significativas. Diremos, o mundo é uma escritura. Esse é o mundo histórico no qual os indivíduos emergem e tornam-se sujeitos com o compromisso e a obrigação de reproduzirem os formatos interativos preexistentes. Esse homem age por meio de sons e gestos, todos eles como atos significativos. É um ser social que se comunica e atua no mundo segundo o códice societário vigente em seu grupo. Ele lê, decodifica e produz inscrições nesse mundo. Ele percebe os utensílios cotidianos como instrumentos de transformação, e os usa como tais. Cada ferramenta, tal como cada palavra, é um agente de interação e de intervenção prática na realidade. Ambas – palavra e ferramenta – produzem novas inscrições e reproduzem significações daquela sociedade. A palavra é ferramenta. Cada

objeto

que

consta

no

cenário

sócio-histórico

possui

significação,

sendo

simultaneamente uma forma e um conteúdo, forma simbólica e conteúdo material. Cada indivíduo socializado tem a capacidade de “ler” os significantes de seu tempo, desde uma peça de vestuário a um tipo de alimento, de uma metáfora a uma ironia, de um gesto jurídico a um ato político. Ele deve saber circular com desenvoltura em um shopping center, no Google, nas rotinas funcionais de uma empresa, bem como compreender os códigos de conduta e valores morais de seu grupo social. Ele precisa ler as inscrições que fazem a escritura de seu mundo, que tornam o seu mundo uma escritura. Cada inscrição já é a síntese entre a coisa e a palavra e apresenta uma significação para aquele ser histórico. As coisas ganham uma significação e tornam-se palavras.

40

Marx supõe uma alternativa que considera ambos os aspectos, as ações materiais do trabalho são acompanhadas de sua significação simbólica, como já explicitado no exemplo de Marx sobre a aranha e a abelha citado no capítulo anterior (Marx, 2002, p. 211-212). 41

A autora traça um panorama da tendência pragmática inaugurada por Austin, que enuncia a máxima “quando dizer é fazer”.

42

Como ocorre em Austin, Searle, Wittgenstein, Pêcheux, Barthes, Foucault, dentre outros.

39

Obedece-se aqui a uma insistência semiológica que transborda o literal para o material e que fabrica novos instrumentos como teares de uma textura diferenciada para os textos moldados em uma tessitura mais que literal. Empregamos como instrumentos de trabalho os conceitos de “traço”, “inscrição” e “escritura”, tomados de empréstimo da Gramatologia derridiana (Derrida, 1999), ao lado dos ingredientes mais estritamente semiológicos de “sujeito”, “sentido”, “cena discursiva” e “enunciação”, aplicados a realidades históricas concretas. São instrumentos que expandem a superfície textual, dão-lhe espessura e densidade – em consistências nada metafóricas –, desenham e enformam espaços-volumes, modelam um corpo significante como vestuário amalgamado com as coisas do mundo. É o literal em sua materialidade mais concreta: o mais que literal. Vamos a nossos instrumentos teórico-metodológicos de trabalho.

Traço-inscrição: a agência do real enlaça a realidade

Como as coisas do mundo são apreendidas pelos sujeitos falantes? Como a materialidade veste-se em literalidade? Como as coisas encontram as palavras? Vamos em busca da cena originária hipotética que envolve o encontro das coisas com as palavras, vamos para esse tempo anterior ao da palavra. Focalizemos a cena corriqueira na qual esse encontro misterioso ocorre. Esse evento se materializa em inúmeras situações em nossas práticas diárias, seja pelo impacto inesperado – antes de sua nomeação – de uma gota de chuva no rosto, ou por um ruído súbito não identificável, ou por um aroma incógnito, ou pelo surgimento de uma sombra imprevista... Algo, ainda desconhecido e enigmático, aconteceu, mas aconteceu o quê? Ainda não se sabe, somente percebe-se que ocorreu um algo diferente. Esse algo é um simples traço perceptível. Aquelas percepções são traços que afetam. Eis aí e assim o momento em que o mundo real surpreende e invade a cena de vida de cada sujeito, eis como o real – não simbolizado, não verbalizado – mostra-se à realidade humana, histórica. Lacan faz uma útil distinção entre real e realidade, na qual o real precede a linguagem e a letra, e até resiste à simbolização. Já a realidade – historicamente constituída – suga o real para dentro da linguagem, para o interior dos signos destinados a escrevê-lo e, dessa maneira, neutraliza-o. Porém o real hipotético está sempre lá, fora da linguagem, “separado de nossa realidade” (Fink, 1998, p. 44), pronto para invadi-la.43

43

Uma síntese desse olhar lacaniano encontra-se em Fink, 1998, especialmente no capítulo três, “A função criativa da palavra” (p. 43-52). Ver também essa discussão em Derrida, 1999, p. 79.

40

Assim, eis a fábula do evento primordial: “E no princípio, antes do Verbo, era um simples traço diferencial...”, no qual a coisa mostra-se apenas como diferença, um rastro sem a presença de qualquer significação – tão somente a sua diferença é percebida. É um algo, uma coisa, que afeta nosso aparelho sensório. E esse fabular cênico é estritamente relacional, entre o traço e o sujeito afetado. O traço tão somente marca uma diferença; ele não remete a nada. O traço “real”, um vestígio do Real, atravessa a realidade historicamente constituída e pode ser percebido pelo agente nessa realidade. No entanto, o traço se encontra aquém das palavras, é simplesmente uma diferença que “se anuncia como tal” – declara Derrida, “é preciso pensar o rastro antes do ente” (1999, p. 57). 44 Ao considerar de maneira mais concreta essa invasão do real do mundo “extralinguístico” no cenário das ações humanas, permaneço aqui, agora, refletindo ao escrever essas palavras, enquanto observo uma ultrassonografia preenchida por manchas desiguais, por traços, rastros derridianos, na qual as manchas de claros e escuros não me remetem a nada. Para a minha observação leiga, esses traços só mostram diferenças visuais, de tons. Um especialista, contudo, delineou com sua caneta um contorno e anexoulhe uma designação: “feto no quinto mês”. Ele nomeou uma diferença exposta pelo traço; a diferença constituída no traço tornou-se significante. As formas de significação partem da captura da diferença, do traço que se institui (Derrida, 1999, p. 80). Após a nomeação, a coisa se fez um ente – uma presença, um objeto. Porém, para que o traço se faça uma presença é solicitada a participação de um sujeito. De um sujeito afetado pelo traço. Ante a ultrassonografia, o leigo naquela prática é afetado por manchas: ele vê manchas. Já o especialista na prática que produziu aquele artefato, a ultrassonografia, é afetado por um “contorno fetal” que lhe é visível: ele vê um feto. Ele vê o feto, por ser sujeito em uma prática discursiva, uma prática na qual a palavra “feto” já circula semanticamente em um estilo de pensamento fleckiano. Esse estilo, por sua vez, já conduz uma taxonomia para o mundo, taxonomiza a realidade histórica constituída naquela prática, naquele coletivo de pensamento, por intermédio do Gestaltsehen45 – essa a sua condição sine qua non, isto é, a 44

Derrida utiliza o termo “la trace” que foi traduzido por “rastro” em Gramatologia. Parece-me pertinente a observação de Claudia Rego, que prefere o termo, já consolidado em psicanálise, “traço”. Rastro sugere uma relação figurativa com a marca deixada por um animal, o que não é o caso para o conceito “la trace”, que não figura, não remete a nada, somente marca a diferença: “a partir do rastro ou pegada de um animal, você pode, pela forma do rastro, que decalca a pata, saber de qual animal se trata” (Rego, 2006, p. 151). Eu preferi seguir a indicação de Rego e uso preferencialmente o termo “traço”. Ver, por outra parte, a justificativa dos tradutores de Derrida da escolha de “rastro”, “pois [trace] se refere a marcas deixadas por uma ação ou pela passagem de um ser ou objeto” (Derrida, 1999, p. 22); ver também seus empregos, especialmente em Derrida, 1999, p. 56-58, 77-81 e 86-89. “O rastro é a diferença que abre o aparecer e a significação” (Derrida, 1999, p. 80). 45

Em Fleck, essa maneira de “ser afetado” é apresentada pelos conceitos Gestaltsehen (“ver formativo”, o perceber orientado) e pelos conceitos Sinnbilder (“imagem-sentido”, ilustração visual, imagética de certas ideias e sentidos) e Sinn-Sehen (“versentido”, uma percepção visual do sentido). As percepções sensórias são condicionadas pelo coletivo do pensamento que define um ver direcionado e produz sentido. Em termos da semiologia atual, diríamos que, em Fleck, o consenso intersubjetivo é estabelecido em torno dos efeitos de sentido produzidos nos “leitores” pelos afetantes, pelas sensibilizações. Assim, cada coletivo fleckiano padroniza o mesmo modo de “ver”, de perceber o mundo, de ser afetado pelas coisas do mundo. “A percepção da forma (Gestaltsehen) imediata exige experiência numa determinada área do pensamento: somente após muitas

41

condição para nomear o traço, para identificar o traço no protocolo de sua prática discursiva, a qual o submeterá à sua gramática. Aquele traço afeta tanto o leigo quanto o especialista, como pura diferença percebida como tal, porém cada um desses sujeitos resolve essa percepção – essa afecção/afeição46 – dentro do seu próprio universo discursivo, de sua semântica, de seu léxico, enfim, de suas condições históricas de subjetivação. São sujeitos históricos que trabalham

no

interior

de

suas

respectivas

historicidades

constitutivas,

de

seus

coletivos/estilos de pensamento. O leigo nomeia “mancha”, o especialista, “feto”. Uma percepção para cada Gestaltsehen. O real do traço é conduzido para o interior da realidade simbólica, ele invade e atualiza a realidade histórica. Assim o traço ingressa na linguagem: torna-se uma inscrição (Derrida, 1999, 11); recebe o batismo simbólico, das palavras. Por meio do Gestaltsehen, o traço “abre o aparecer e a significação” (Derrida, 1999, p. 80). Eis o salto de coisas a palavras. A coisa-objeto, ativa, irrompe na cena e mostra-se ao sujeito passivo. Esse é o fracasso do relativismo: há um agenciamento material concreto dado pelo traço, algo extrapola as subjetividades e o “real” do objeto agencia os sujeitos. Recupera-se, aqui, algo comum ao realismo científico. Porém, agora, com uma distinção fundamental em relação a esse realismo: o sujeito também atua ao inscrever o traço na realidade. O sujeito, submetido à coerção de seu estilo de pensamento, “vê” o sentido dado por aquela inscrição ao estar ante o traço. Ao contrário da compreensão realista, a inscrição – realizada pelo sujeito – obedece ao código do relativismo, é subjetiva. Realismo e relativismo misturam-se e se descaracterizam. Enquanto estivermos no momento de um puro traço, o sujeito é afetado e o traço detém a ação, o sujeito encontra-se inerte e sofre o agenciamento do traço. Porém, ao completar o processo que se inicia com a emergência do traço e termina com a inscrição, as funções de agenciamento se invertem. O sujeito torna-se o elemento ativo, ele atua por intermédio de seu estilo de pensamento, um estilo que demarca a especificidade histórica e sociológica desse sujeito. A subjetividade do leigo é ativa ao designar o traço como “manchas” e a do especialista é igualmente ativa ao designar o mesmo traço como “feto no quinto mês”. Na produção do conhecimento, tal como é descrita aqui, sujeito e objeto

vivências, talvez após uma formação prévia, adquire-se a capacidade de perceber, de maneira imediata, um sentido, uma forma e uma unidade fechada. Evidentemente, perde-se, ao mesmo tempo, a capacidade de ver aquilo que contradiz a forma (Gestalt). Mas essa disposição à percepção direcionada é a parte mais importante do estilo de pensamento. Sendo assim, a percepção da forma é uma questão que pertence marcadamente ao estilo de pensamento” (Fleck, 2010, p. 142). 46

Como já mencionado, Derrida utiliza “affection” jogando com o duplo sentido afecção/afeição do termo. Ver alerta de Miriam Chnaiderman e Renato Janine Ribeiro (Derrida, 1999, p. 13, nota), tradutores de Gramatologia, ao proporem o uso do termo afeção. Derrida, em sua crítica ao logocentrismo fonológico, descreve situações nas quais esse fonologismo entre o som e a produção do sentido se dá por meio das afeções da alma, base para o sentido pensado no logos (Derrida, 1999, p. 14). Independentemente da crítica derridiana, o que realço aqui é a circunstância do termo como mediador para a produção de sentido. Ao referir-se a Hegel, Derrida menciona as impressões sensórias da visão e da audição como formas de “affection” (Derrida, 1999, p. 14), tal como situa no ato de ouvir o som da própria voz: “o sujeito afeta-se a si mesmo” (Derrida, 1999, p. 15).

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alternam-se em seus papéis de ativo e passivo, como Fleck (2010) também propõe em sua “teoria do ativo–passivo”.47 E essa teoria fundamenta nossa hipótese do agenciamento recíproco. No entanto, a captura da “afecction” do traço para o interior da linguagem não é a reprodução do dueto metafísico sensível-inteligível. Ao contrário, há a sua quebra, a sua demissão. As próprias percepções sensórias estão condicionadas pelo seu contexto de realidade local e momentâneo, isto é, as percepções do sujeito são mediadas pelo estilo de pensamento desse sujeito.48 O ingresso do traço na realidade solicita três componentes: um traço diferencial (que afete um sujeito em sua percepção), uma linguagem (que já constitua uma prática discursiva e que decodifique aquela percepção) e um sujeito da linguagem (que seja afetado pelo traço). Não há o sensível em si, simplesmente por o sujeito já estar integrado a um estilo de pensamento. Fleck considera os mesmos três componentes na produção do conhecimento.49 A mera designação ou indicação gestual de um traço do mundo já lhe imprime significação, um uso, uma função, uma aplicação, uma classificação. Uma nomeação é seletiva, recorta e focaliza, seleciona um dentre muitos, designa a diferença do traço, destaca-o de seu entorno de contrastes. Já o veste de cultura, impõe-lhe uma nomenclatura, declara-o objeto e lhe inscreve um sentido, uma taxonomia.50 Torna-o uma presença: presença objetal, presença textual. E essa inscrição, (Derrida, 1999, p. 11) doravante, será inseparável daquele objeto. O objeto nomeado não mais se apresentará em seu “estado de natureza”, despido, incógnito, amorfo. Estará situado na contraluz de diferenças e semelhanças taxonomizadas que o evidenciam. Será visto, percebido, reconhecido, utilizado, pensado com e por meio de sua inscrição. Essa inscrição retira aquele objeto do anonimato silencioso na multidão e lhe dá distinguibilidade; sua inscrição torna-o visível, audível, torna-o um significante que grita sua diferenciação inscrita para o ouvinte, torna-o um falante. Instaura-se uma cena 47

O sujeito que se encontra “livre” – sujeito ativo – depois de sofrer a afecção dada pelo traço está, entretanto, sob a coerção de seu estilo, ele está obrigado a “ver” naquelas manchas a presença de um feto e, assim, retorna a uma posição passiva. A “teoria do ativo–passivo”, que se encontra diluída no corpo da obra fleckiana, será abordada no Apêndice. Essa é a compreensão de Fleck da disputa entre realismo cientificista (sujeito passivo, natureza ativa) e relativismo sociológico ou linguístico (sujeito ativo, mundo passivo). 48

O traço pode não agenciar, não enlaçar nenhum sujeito; o traço é a invasão do real na realidade histórica que já lhe seja sensível. Um enólogo detecta sabores e aromas indistinguíveis ao não iniciado, que não é afetado por aqueles traços sutis. Somente no coletivo dos enólogos desenvolve-se a capacidade de sua percepção. O mundo sensório não se desvincula de um estilo de pensamento. A noção de traço desmonta os pilares da distinção entre um conhecimento sensível e um inteligível. Derrida argumenta que a diferença entre duas ordens de expressão, como a fala e a escrita convencionais, é que “funda a oposição metafísica entre o sensível e o inteligível” (1999, p. 77). 49

Ou seja, o saber já constituído, o sujeito e o “real” (Fleck, 2010, p. 50-51, 81, 83 e 136).

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Essa vinculação do simbólico com o mundo concreto é aplicável amplamente, para todas as coisas, manufaturadas ou ditas da natureza. Um gesto, uma ferramenta ou um utensílio são formas significantes, signos materializados; o mesmo ocorre em relação a um animal qualquer, cuja nomeação classificatória já estabelece uma materialidade para o signo – mamífero, equino, zebra, por exemplo –, forjado como um objeto semiológico, isto é, conduz um sentido. Uma taxonomia é em sua essência uma fôrma de materialização de sentidos: ela enforma e encorpa significantes.

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dialógica, um enlace. Não há palavras em oposição a coisas, objeto de um lado e palavra do outro, há uma unidade: uma coisa-objeto-palavra que produz laço, que afeta. Enlaça em sua unidade aquele/aquilo que foi afetado. Para ver o objeto é necessário distingui-lo. E sua distinção inscrita acena para o leitor, torna-o um signo. O mesmo ocorre com a impressão de uma forma diferencial sobre um objeto, como a modelagem de uma peça de cerâmica compondo um vaso. A forma “vaso” torna-se uma escritura-inscrição derridiana51 para o sujeito usuário de utensílios. Não há mais argila em si, de um lado, em “estado de natureza”, e a forma ideal platônica “vaso”, de outra. Eles compõem agora uma unidade, um objeto com inscrição, ainda que não literal. A forma – o design, a sua atribuição utilitária, a sua função – está inscrita na argila, é inseparável dela. E essa forma percebida que afeta o sujeito, justamente por afetar o sujeito, é transcrita literalmente no termo “vaso”. A forma que afeta – o design – e a designação literal “vaso” são, ambas, inscrições. A fidelidade dessa transcrição, de uma inscrição não literal para uma literal, é garantida pela continuidade do sentido estabelecido pela affection derridiana, naquela relação do sujeito com a inscrição da coisa. Tanto o design quanto a palavra “vaso” portam o mesmo sentido para o sujeito afetado. O traço é a ignição para a produção de sentido, para a significação estabelecida pelos leitores da inscrição.52 Os objetos do mundo eclodem pelas inscrições que lhes dão sentido, sejam elas literais ou não. São significantes que passam a povoar o mundo, e o mundo torna-se uma imensa escritura e deve ser lido logo que seus traços afetem algum leitor, invadam a sua realidade: “os próprios objetos poderão transformar-se em fala se significarem alguma coisa” (Barthes, 1989, p. 133). O débito com os atrevimentos derridianos é impagável, por desconstruir a tradição que se atém à linguagem fonológica – na qual a escrita seria mera consequência, uma representação, da fala, e na qual o conceito “idealizado” antecederia a sua expressão gráfica. Ao demitir o primado do fonocentrismo, Derrida expande a noção de escrita que deixa de ser subalterna: “a linguagem é primeiramente escrita” (1999, p. 45), “a língua oral pertence já a esta escritura” (1999, p. 68). Seu conceito de “escritura”, uma linguagem mais que literal, excede e abarca o de linguagem literal (Derrida, 1999, p. 10). Nessa subversão, abrem-se possibilidades de leitura das inscrições postas no mundo, nos traços do mundo – leitura que interligará os leitores em uma cena histórica, societária. No cenário da realidade histórica, tudo e todos estamos vinculados pelo agenciamento que nos afeta. Lemos e somos lidos, nossas ações afetam coisas e nos enlaçam com outros agentes leitores-inscritores. Dessa forma, a escrituraleitura das inscrições cumpre uma função promotora dos laços constitutivos da historicidade, da realidade histórica.

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Derrida designa por “escritura” “não apenas os gestos físicos da inscrição literal, pictográfica ou ideográfica, mas também a totalidade do que a possibilita; [...] tudo o que pode dar lugar a uma inscrição em geral, literal ou não”. (Derrida, 1999, 11)

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Habitamos a semiosfera, diz Iuri Lotman (1996), um mundo permeado de significações. É o modo fashion de ser de tudo e de todos, que se encorpam em vestes semióticas. Não há nudez, nada se apresenta em seu estado de “pureza” em si, em seu singelo “estado de natureza”, anônimo e despido de inscrição. Não há corpo sob o texto, mas corpos-textos. As formas fundidas em conteúdos. O mundo e suas coisas, humanas ou não, expressam-se como vestimentas imaginário-simbólicas, com suas texturas de significação, o literal inscreve formas esculturais, o gesto indicial e o uso de signos literalmente inscrevem sentidos, somente há esculturas semiológicas. E a escultura é forma e conteúdo, inseparáveis: letra inscrita em matéria, enformando-a. E mais, como foi dito, essa morfologia é taxonômica: a forma imprime sentido à coisa material, classifica-a, dá-lhe valores, propriedades e qualidades, enfim, adjetiva-a. São adjetivos aplicados a substâncias, encontram-se substantivados e propõem uma nova ontologia para os substantivos.53 Há uma semiologia que modula o existir, o estar e o devir do mundo; o mundo torna-se uma modulação deleuziana. Enfim, o mundo é um corpo-texto material de múltiplas inscrições. Daqui decorre o dizer renovado, revigorado, outrora expressão militante do construtivismo linguístico: “tudo é texto”, sim, mas textos mais que literais. Essa é a consequência mais direta da noção de inscrição de Derrida em Gramatologia, o primeiro instrumento que impõe uma gramaticalidade relacional – como toda gramática, ela expressa a articulação entre as coisas inscritas – para as inscrições esculpidas. A gramática das inscrições materializadas impede coisas em si, em seu “estado de inocência natural”, interdita o nudismo edênico dos seres e das coisas em um idílico mito naturista.54 Aquilo que é anônimo é igualmente invisível, inaudível, impensável. Não há palavras de um lado e coisas em si de outro, aguardando o encontro. Não há mais como permanecer aprisionado ao idealismo da linguagem, que a separa do mundo, que a supõe um fruto da “razão criadora”. Linguagem como um produto da mente desenvolvido para designar as coisas do mundo real, anteriormente percebidas. Não há como perceber esse real, anterior e fora da linguagem. A realidade é o conjunto de coisas-inscrições, já reunidas. Essa é a “hipótese fundamental” de Flusser: “o caos irreal do que estamos acostumados de chamar de realidade surge à tona, aparece ao intelecto, organiza-se em cosmos, em breve: realiza-se nas formas das diversas

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“O rastro pertence ao próprio movimento da significação” (Derrida, 1999, p. 86-87); ver também o traço “abre o aparecer e a significação” (Derrida, 1999, p. 80, já citado). Sobre o sentido, ver Derrida, 1999, p. 335, nota dos tradutores. Afinal o sentido é a base, a razão de ser de todo projeto semiológico. 53

Os substantivos, ao nomearem coisas, dão-lhes uma ontologia, podem transformar um ente em ser. Os adjetivos qualificam a ontologia dando-lhe valores – são relacionais. 54

Essa produção de materialidade significante, com sentido, ocorre desde o mundo dito “primitivo”, na construção de ferramentas, na definição do clã, dos ritos e mitos, dos ídolos; dá-se como semiologia na agricultura, na caça e na coleta, enfim, ocorre em toda e qualquer relação dos seres entre si ou dos seres com as coisas do mundo. Tudo e todos estão marcados por inscrições. E, nesse sentido, são artefatos tanto reais quanto construídos, já sejam “inventados”, um automóvel saído da linha de produção, sejam “descobertos”, uma nova espécie botânica que entra na taxonomia semiológica, ou o ácido lático de Latour-Pasteur.

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línguas” (1963, p. 141)55. O real ao qual temos acesso nos é dado vestido pelo registro simbólico, pelas práticas discursivas que configuram uma linguagem.

A linguagem não pode se conceber como o resultado de uma série de rebentos e botões, que sairiam de cada coisa. O nome não é como a cabecinha do aspargo que emergiria da coisa. A linguagem só é concebível como uma rede, uma teia sobre o conjunto das coisas, sobre a totalidade do real. Ela inscreve no plano do real esse outro plano a que chamamos aqui o plano do simbólico. (Lacan, 1986, p. 298-299; grifos meus)

Com a noção de inscrição derridiana, enfim, ultrapassamos o eterno e insolúvel enigma de uma antiga bipartição metafísica: das palavras em confronto com as coisas, do literal mental e do objeto material; vencemos a aporia do referente: de como as palavras “se ligam” às coisas referidas. Misturamos e fundimos o natural com o social, o cultural. A inscrição é a presença do signo na coisa, a própria coisa como signo. Não há o “problema do referente linguístico”! Há, sim, um pseudoproblema produzido por uma ontologia essencialista, mentalista, idealista e alérgica a uma visão histórica e pragmática do mundo. Um falso problema gerado pela invenção de uma dicotomia que rompeu a unidade historicamente constituída: palavras-coisas. O “problema do referente” é o resultado do corte, esse sim problemático, que separou as palavras das coisas e apagou as suas inscrições. Uma visão outra que observe a linguagem em seu uso efetivo pelos agentes vivendo no mundo, em seu modo de agenciar o mundo, nas maneiras pelas quais afetam e são afetados, mostra-nos diferente possibilidade de entendimento. A instauração da linguagem, literal, associada a coisas, dá-se como efeito de sentido – transcrito –, gestado nas inscrições enformadas nas coisas e que afetam o sujeito. Nesse caso, a linguagem mais que literal, da semiologia dos objetos, foi transcrita em letramento, na linguagem literal. Se um toco de madeira sugere seu uso – por suas dimensões e forma constituírem uma inscrição que afeta – como um assento rústico então terá essa inscrição material transcrita literalmente pela palavra que designa aquele uso, aquela função: “banco”. A palavra “banco” se reúne à coisa que já apresentava a inscrição material originária. Essa palavra “banco” é uma tentativa de persistir com aquele sentido que afeta, é a transcrição literal daquela inscrição material. A visão daquele toco ou daquela palavra produz o mesmo efeito – se a transcrição for fidedigna ao sentido que afeta.

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Nessa passagem, Flusser inclui também, analogamente, ao lado da realidade, o instinto e as impressões sensuais. Todos fazem parte do “caos irreal” que somente “realiza-se nas formas das diversas línguas”.

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Diremos, em generalização, que a leitura da inscrição naquele toco ou a leitura da palavra “banco” devem ser índices do mesmo sentido. Inscrição-transcrição compõem um binômio na contínua produção de escrituras. A reunião de coisas e palavras é o mero efeito de uma transcrição, de transcrever em termos literais o sentido inscrito materialmente na coisa. Passamos da coisa para o nome, para a designação literal da característica inscrita e capturada pelo olhar, pelo tato, pelo sabor; enfim, transcrevemos a inscrição em outra inscrição, transcrevemos literalmente aquilo que afeta os órgãos dos sentidos e, assim, produzimos uma nova modalidade de inscrição. Dela, novas transcrições se desdobram. A transcrição é incessante, está em ação contínua. De um fragmento de cerâmica encontrado em um sítio arqueológico, que por essa inscrição afetou o pesquisador, passamos para a inscrição literal “vaso asteca”, e, dessa inscrição, passamos a outras, como o texto desenvolvido em um tratado geral da cultura précolombiana – todas, meras transcrições. A linguagem mais que literal é gestada por qualquer tipo de inscrição, literal ou não. Ela é constituída por tudo aquilo que porta sentido, seja palavra ou objeto, e o sentido é a significação extraída de algo pelo sujeito – sujeito de uma prática discursiva em uma cena semiológica. Como diz Derrida sobre a “escritura”, é algo que excede e compreende a linguagem literal (Derrida, 1999, p. 10).

Inscrição em sua enunciação, a cena histórica

A linguagem, literal ou não, gestual ou das formas históricas enformadas nas coisas está no mundo: é a humanidade do mundo, é a articulação que inscreve o mundo nos humanos e os humanos no mundo, a realidade é o mundo que se percebe como signo, como linguagem. A inscrição é o dêitico por excelência: aponta e localiza o objeto-palavra, mistura e funde palavra e coisa. Encontra-se aí e assim o que se designa como semiologia dos objetos – na esteira de Barthes –, que ampliou a semiologia para além do literal. E ainda mais, a inscrição é dramatúrgica, é performática, implica agentes em ação em uma cena, agentes que são afetados e produzem inscrições; e é performativa (Austin, 1990): a própria inscrição é um agente. Entramos, assim, no território da pragmática da linguagem, de seu uso, no qual a própria palavra constitui uma forma de ação, como Austin (1990) propôs. O que nos conduz ao segundo instrumento semiológico, complementar, da inscrição, e que nos apresenta à historicidade do texto, do enunciado: mostra-nos a maneira pela qual se dá a construção do texto, a produção das inscrições enunciadas, a linguagem em situação. É o momento e a 47

cena em que se dá a inscrição. Trata-se da enunciação. Ela abre o palco para a ação, para os atores e a performance. Torna visíveis os agentes das inscrições, expõe a cena de agenciamento, os gestos indicadores, as formas literais indiciais, os atos de nomeação e decifração que possibilitam o enunciado. Mostra os enunciados com funções dêiticas que se explicitam nas cenas de enunciação. Ora, se o enunciado – qualquer enunciado, um documento letrado, um artefato, um “ser da natureza” – possui historicidade, então ele nos remete diretamente para as condições nas quais essa inscrição enunciada é produzida. Afinal, as inscrições não surgem do nada, decorrem de uma, de alguma situação de inscrição. Diremos com Benveniste (1989) e Barthes (1987), todo enunciado decorre de uma enunciação. É a relação entre o dito e o dizer. Enfim, trata-se de um “ovo de Colombo” declarado por Benveniste (1989): o enunciado é o produto que emerge de um processo de enunciação, de uma cena semiológica, histórica, na qual a inscrição se fez. E a enunciação é o cerne da questão histórica, é o evento histórico por excelência (Fiorin, 2001).56 O enunciado aproxima-se do “fato”, do já acontecido, e a enunciação nos revela o momento e as condições em que tal “fato” ocorreu, revela quais as circunstâncias de tal acontecimento. É no ato de enunciação que o enunciado recebe o batismo do devir histórico; ele é forjado em historicidade. O enunciado é um produto histórico, entra na história justamente por advir de uma enunciação, a sua produção. Um enunciado sem enunciação é um produto sem produção, um algo que surgiria do nada, do vazio histórico. Um enunciado flutuante, isolado, é uma criatura historicamente inadmissível, que fundamentaria as arcaicas ontologias de seres em si, ótimo alimento para doutrinas criacionistas, mas para a história, que aposta em outra ontologia, relacional, a da enunciação, não há dito sem o seu dizer, não há escrito sem o seu escrever, não há enunciado sem a sua enunciação. O Verbo provém de uma verbalização, de suas condições de produção. O humano, como um enunciado, advém do processo de sua hominização/humanização,57 advém das suas cenas históricas de enunciação. O humano, como um artefato, emerge do seu vir a ser, o humano vem a ser, não é um ser no sentido ontológico de algo isolado, com propriedades em si, um invariante, não é um algo predicado pelo Ser, mas um ente no mundo. Nesse sentido, tomamos Lacan: “‘Ser falante‟ [...] é um pleonasmo, porque existe apenas ser devido à fala; se não fosse pelo verbo „ser‟, não existiria nenhum „ser‟.” (Lacan, seminário 21, 15 de janeiro de 1974, apud

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Em geral, para os linguistas, a enunciação é tratada somente pelos vestígios que deixa no texto, aos quais eles designam como enunciação enunciada. Para os historiadores, entretanto, além da importância desses vestígios documentais presentes nos textos, é prioritária a tentativa de reconstruir a cena originária mesma, na qual o enunciado-documento se fez, isto é, a meta é refazer o passado histórico. O que o historiador procura desvendar é justamente a cena histórica – o cenário completo da enunciação – que deixou aqueles vestígios documentados, enunciados. 57

Ver, no capítulo 3, o subitem “O humano: um produto de agenciamentos”.

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Fink, 1998, p. 220).58 A substância do ser é sua historicidade forjada em escrituras, em letramento. É justamente em sua enunciação que aquilo denominado “humano” recebe suas inscrições e advém. Torna-se sujeito – humano – por se sujeitar. Na enunciação, as inscrições se materializam, incorporam-se ao ser, produzem o ser. Na enunciação, o literal inscreve-se como material, e o humano se faz como texto, texto mais que literal: “o ser escrito” derridiano (Derrida, 1999, p. 22) ou a sua “escritura” (Derrida, 1999, p. 10-11). O humano é uma qualidade modulada sobre o seu ser biológico, o humano é uma inscrição. Tanto em sua relação vivencial – sua historicidade sincrônica – quanto em sua herança cultural – sua historicidade diacrônica. Ambas formam a historicidade humana que inscreve os indivíduos na História. E isso merece uma altissonância: inscrevem a História nos indivíduos, em cada indivíduo, e os fazem humanos. Transformam aqueles indivíduos biológicos em seres históricos, qualificam-nos como humanos. Eles não eclodem humanos. Fora da sociedade e da materialidade, desarticulados de suas redes existenciais, só lhes resta uma essência orgânica, biológica, muito pouco humana, em estado de coma simbólico: são cegos, mudos e surdos. “O humano é um ser histórico”. Essa frase contém armadilhas lexicais: “é um ser” sugere uma ontologia estática, atemporal, entretanto, adjetivada pelo termo “histórico”, aquela expressão, “o humano é um ser”, ganha um sentido outro, dinâmico e processual, diferente do típico entendimento – estático e definitivo – dado pelo verbo “ser” e por sua substantivação estática, “o ser”. A expressão “ser histórico” implica ação, devir, vir a ser. E sua substantivação torna-se dinâmica, desloca-se para o vir a ser, o devir. E como isso ocorre? Como o ser se transforma em vir a ser? Justamente pela enunciação. A enunciação é uma performance, é o ser em ação, é o desempenho dos agentes, é o dizer, é a cena na qual o enunciado é dito e cristalizado, e a inscrição é forjada. A enunciação é a entrada em um processo, em uma cena histórica na qual os enunciados ocorrem. A enunciação é o vir a ser do ser, é o advento do sujeito. É o processo do dizer, processo de produção dos ditos, dos enunciados, dos agenciamentos. E mais: não há uma enunciação, exclusiva e definitiva. Há enunciações, encadeadas, sucessivas e inter-relacionadas. São intertextualidades sincrônicas. E igualmente diacrônicas: a cada dia, uma enunciação se desdobra em mais uma enunciação, articulada com a anterior e que gesta a seguinte, em justaposição historicamente situada. A cada dia, uma etapa da metamorfose que liberta o ser-crisálida estático para os seus voos no devir. Cada experiência vivencial do ser (o vir a ser) é uma enunciação produtora de inscrição e de sentido no ser, produtora de “novo” ser, construtora

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Ver também em Derrida (1999, p. 25-28), a discussão sobre o ser e o uso do verbo “ser”, igualmente apoiada, tal como fizeram Lacan e Fink, nas discussões heideggerianas.

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do vir a ser – logo, a cada dia um novo vir a ser, em contínuo movimento. O “eu sou” é um enunciado que decorre das enunciações que permitam que “eu venha a ser”. O enunciado – aparente, concreto e definitivo – é resultado e produto da enunciação, da cena de produção, essa a genealogia histórica. Se a história se baseia em documentos-enunciados, é por esses documentos serem índices e conterem vestígios de um acontecimento que, por princípio fundante da história, efetivamente ocorreu: a cena de enunciação. “Realmente ocorreu”, tal suposição é a conjectura básica da disciplina história. Porém em geral essa enunciação está lá, mais além, no passado histórico incógnito. É a hipótese realista da disciplina história: supor a existência dos fatos enunciativos, das enunciações. Enunciações que produzem enunciados indiciais: os documentos históricos. E o que são documentos históricos? Ora, é toda e qualquer inscrição,59 como nos ensina Roland Barthes: “É a história que transforma o real em discurso” (1989, p. 132). A enunciação, nessa hipótese de um real da história, comparece direta e discretamente no enunciado, sob a forma de traços indiciais: é a enunciação enunciada. São pegadas das presenças “acontecimentais” naquele documento, as marcas da enunciação, uma enunciação que se apresenta como enigma, como diz Guimarães Rosa (1985, p. 95) em Ave, palavra: “toda língua são rastros de velhos mistérios”. E tais vestígios tornam-se pistas perseguidas, organizadas na recomposição de uma cena semiológica de produção – a enunciação-enigma – para aquele enunciado-documento. O historiador rastreia os sinais, os indícios, faz a perícia em uma cena documental com o objetivo permanente de reconstituir a hipotética cena de enunciação, de decifrar e aproximar-se da realidade histórica.60 A distinção entre a narrativa histórica e a ficcional é estabelecida por tal situação de enunciação. É na enunciação que todo relativismo encontra, enfim, o seu contraditório, o destino de alguma certeza, a sua sanidade: a realidade histórica – as cenas de enunciação. Assim se resolve a aporia posta pelo “linguistic turn” que provocou a crise de realidade na história-disciplina.” (p. 145)

[duodécimo fragmento] (p.156 a p.159)

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Um fragmento de cerâmica, uma gravação rupestre, uma ferramenta, um utensílio, um texto literal, um monumento arquitetônico, todos são enunciados, isto é, inscrições historicamente produzidas. Essa é uma concepção de linguagem bem mais abrangente do que a convencional, restrita ao mundo literal. Temos uma linguagem que dá conta das inscrições mais que literais que abundam no mundo.

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[O agenciamento da linguagem mais que literal]

[Em geral deixa-se de ver o agenciamento promovido pela linguagem, e o que mais importa, perceber a linguagem em sua forma mais extensa e abrangente. Quando falamos “linguagem” pensamos rotineiramente em linguagem literal. Entretanto a forma mais penetrante e eficaz em suas ações é a da linguagem mais que literal.] [Trata-se de] “ver o agenciamento da linguagem mais que literal, de uma linguagem que vai muito além do letramento, da literalidade e da linguagem fonética. Uma linguagem como escritura derridiana, enfim, como “tudo o que pode dar lugar a uma inscrição em geral, literal ou não, e mesmo que o que ela distribui no espaço não pertença à ordem da voz” (Derrida, 1999, p. 11). Para a vitalidade da escrita da história ante as questões contemporâneas essa compreensão mais extensa de linguagem é essencial. Rompe com a ideia típica do século XIX de que a história somente tem uma “origem” a partir da nossa forma de escrita fonológica. Aquilo designado como “pré-história” já é história em termos da escritura derridiana, afinal, o devir histórico se expressa como uma escritura desde o alvorecer do humano como tal, como inscritor de sentidos. A história assim compreendida toma as sociedades “frias” como constituídas por seres históricos da linguagem – uma linguagem que transborda do literal para o material e que se torna instrumento para instituir o laço social e a historicidade. A “própria historicidade está ligada à possibilidade da escritura” de forma tal que “a história da escritura deveria voltar-se para a origem da historicidade” (Derrida, 1999, p. 28).61 Aqui, pensa-se história como o devir das enunciações das escrituras. É na enunciação de uma inscrição-enunciado que se observaria o hominídeo primevo interagir com uma pedra como ferramenta-linguagem com um objetivo, uma intenção de uso, e doravante transportá-la e valorizá-la por esse sentido, que permanecerá inscrito naquela pedra e nas demais que sejam adequadas a tal interação como artefato, a tal função. Um sentido também inscrito nele próprio: o hominídeo-ferramenta, o hominídeo litográfico. E outro hominídeo pode usufruir desse aprendizado, desse efeito de sentido, mediante o laço societário efetuado pela linguagem na sincronia, e assim poderá também “ler a inscrição de sentido” modulada naquela pedra como utensílio histórico e “ler” também os demais efeitos de sentido produzidos por aquela inscrição petrificada, seus agenciamentos, suas novas inscrições, seus novos usos como no abate de uma caça, no corte e coleta de um arbusto. Temos assim um artefato historicamente constituído, uma

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Paul Veyne (1987) é mestre em mostrar o pesquisador nessa investigação pericial, perseguindo por meio do documento a reconstituição do passado histórico, um passado suposto real: a disciplina história desvenda a História. 61

Derrida ainda acrescenta que a historicidade está ligada “à possibilidade da escritura em geral, para além destas formas particulares de escritura em nome das quais por muito tempo se falou de povos sem escritura e sem história. Antes de ser o

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ferramenta-agente que deixa vestígios de seu agenciamento, marcas litográficas na diacronia. Esses hominídeos intervêm e leem as coisas do mundo como textos, como inscrições “litografadas”. O mundo se lhes apresenta como texto. Em síntese, e em favor do próprio método latouriano, o que a descrição detalhada, etnográfica – tal como Latour a desenvolve –, da cena de enunciação revela é a maneira pela qual as coisas afetam os sujeitos, pela qual elas agenciam o seu sentido (e vice-versa), e assim elas próprias se vestem de sujeitos da ação, tornam-se agentes. E afetam não por uma qualidade anímica intrínseca às coisas – como solicita o “princípio de simetria” –, e sim por constituírem inscrições, por serem inscrições implícitas que se explicitam ao sujeito, que podem ser lidas pelo sujeito. Esse é o caráter de ação da linguagem. Não é preciso antropomorfizar a pedra, dar-lhe simulações de intenções, sugestionar volições fantásticas, para que ela atue sobre o humano e constitua com ele um coletivo latouriano de agenciamento. O hominídeo ante alguma pedra poderá ser capturado pelo sentido inscrito no actante pedra, poderá ler esse sentido. Assim, a pedra nomeada age, atua, afeta, sensibiliza os humanos. A mais simples leitura de inscrições transforma meras pedras inertes em artefatos, em agentes. Dependendo da situação, do tipo de inscrição moldado no utensílio-coisa – uma pedra inscrita como martelo, como faca ou como projétil –, teremos o agente coletivo: homem-martelo, homem-faca, homem-projétil etc.

[O realismo histórico]

Essa associação de inscrição, de enunciação e de agenciamento recíproco entre as ideias – os três elementos que constituem uma “teoria da ação” inovadora – molda uma notável contribuição para o pensamento histórico. Elas formam um tríptico metodológico fundante. O historiador em sua rotina já pressupõe o duo inscrição-enunciação; faltava-lhe o conceito de agenciamento recíproco dessa “teoria da ação” em seus contrafortes teóricos e que explicita a forma de interação com a agência material. Há um mérito de Callon-Latour, ao insistirem – ainda que equivocadamente, pela simetria de agentes – na participação ativa das coisas materiais, para vencer o relativismo. Na história, esses três elementos – constitutivos da “teoria da ação” – se articulam em sua escritura da realidade. O que a história procura é, a partir da leitura de documentos-inscrições, desvendar a enunciação, refazer o percurso de produção

daquele

documento-enunciado,

redesenhar

sentidos

conjecturais

que

supostamente estariam inscritos nele, recompor a trama dos agentes na cena histórica

objeto de uma história – de uma ciência histórica – a escritura abre o campo da história – do devir histórico. E aquela (Histoire, diríamos em alemão) supõe este (Geschichte)” (1999, p. 34). Carneiro Leão, em nota, esclarece ainda mais esses empregos.

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originária, hipotética. Essa, a premissa fundante do realismo histórico. Tais inscrições são os agenciamentos que marcam a historicidade dos seres, das coisas. Somos seres históricos por recebermos inscrições, por sermos inscrições, por fazermos inscrições e por lermos inscrições. O passado histórico nada mais é do que um texto inscrito, um passado de eventos inscritos que atuam como agentes, que afetam o estado presente do mundo. A “teoria da ação” fornece robustez conceitual à afirmação de que o presente é agenciado pelo passado e aponta a forma entrançada pela qual o devir histórico se constitui. As lições retiradas dos deslizes latourianos servem de diretriz para o procedimento do historiador ante o agenciamento produzido por suas “coisas” materiais, seus “fatos duros como pedras”, como queria Ranke. A narrativa histórica possui um compromisso com os “agentes materiais”, os “acontecimentos”. E sejam quais forem seus instrumentais analíticos e interpretativos, em seu horizonte discursivo, estará lá o evento histórico, solicitando um compromisso com uma forma de narrativa que o indicie. Ao lado desse comprometimento, há a necessidade de incluir o cenário mais completo na cena histórica, de incluir as ocorrências como forma de agenciamento efetivo. Como solicitou Braudel e como a história ambiental e a geografia – áreas nas quais Latour já se faz presente – realizam com sucesso. A história, como as demais ciências humanas, não pode abrir mão da compreensão que especifique e particularize aquilo designado como ser humano. E aqui está um obstáculo à absorção de Latour por essa área. O objetivo das ciências humanas é enfrentar o enigma do humano, e o “princípio de simetria generalizado”, se tomado literalmente, promove um retorno a uma versão animista do mundo que já mostrou sua utilidade e seu limite na pré-modernidade. Nossa modernidade apostou na diferença centrada no racionalismo e no objetivismo científico, o que nos legou uma exacerbação, produzindo um exagero radical, a soberba iluminista. Nenhuma das duas soluções nos serve. Já pagamos um alto preço por esses engajamentos, e que o custo não aumente se perdermos o específico do humano, sua assimetria com as coisas do mundo, sua natureza historicamente constitutiva. Não há como entender o que seja a escritura histórica sem acompanhar o que é especificamente humano, demasiado humano. Enfatizemos o mérito e as limitações de Latour. Por sua orientação antirrelativista, ele contribui para a nossa proposta de uma “teoria da ação”, tal como expus. Porém, a hipótese de simetria entre os agentes é uma pressuposição apressada, ela parte de um a priori equivocado: que as ações desses agentes são equivalentes. Aquilo que deveria ser o destino da investigação, o resultado do trabalho dos STS – apontar como cada agente intervém –, já aparece como premissa. Para mostrar a efetiva reciprocidade de agenciamentos, é necessário que especifiquemos como cada agente atua. Esse é o detalhamento que merece nossas preocupações. Anoto ainda uma grave lacuna na 53

formulação latouriana desse problema: a linguagem e seus desdobramentos. Tomar a linguagem, de preferência a linguagem mais que literal, como mais um dos agentes que compõem o coletivo, parece-me uma necessidade. Há que se considerar a participação da linguagem produtora dos sujeitos, “humanos” e “não humanos”, e da própria realidade histórica. Minha participação neste capítulo tenciona essa ênfase e percorre os caminhos do letramento e da escritura. São caminhos que agenciam e produzem aquilo designado como humano, são caminhos traçados pela linguagem como um agente efetivo que arquiteta o nosso mundo como realidade.

Reflitam um instantinho sobre o real. É porque a palavra elefante existe na sua língua, e porque o elefante entra assim nas suas deliberações, que os homens puderam tomar em relação aos elefantes, antes mesmo de tocá-los, resoluções muito mais decisivas para esses paquidermes do que o que quer que lhes tenha acontecido na história – a travessia de um rio ou a esterilização natural de uma floresta. Só com a palavra elefante e a maneira pela qual os homens a usam, acontecem, aos elefantes, coisas, favoráveis ou desfavoráveis, fastas ou nefastas – de qualquer maneira, catastróficas – antes mesmo que se tenha começado a levantar em direção a eles um arco ou um fuzil. (Lacan, 1986, p. 206)”62 (p. 159)

[décimo terceiro fragmento] (p. 161 a p. 166)

Conclusão: da ciência sem sujeito à ciência com sujeito

Voltemos ao cerne de nosso embate: os desafios para compreender o saber ante a disputa realismo versus relativismo. Retornemos, por um momento, à era do nascimento da ciência moderna e da sua construção da mitologia cientificista. A historiografia de nossa área divulga que na Revolução Científica instalou-se uma nova orientação para a produção do saber: a objetividade e a neutralidade axiológica constituiriam o seu norte. Declarava-se que, para o conhecimento ser objetivo, o espaço do objeto de estudo deveria ser demarcado, isolado da presença do sujeito que tentava entender as articulações lógicas desse objeto natural. Nesse discurso, o sujeito e sua subjetividade deveriam ficar afastados dos fenômenos da natureza. Afinal, nessa lógica, o sujeito é idiossincrático ao passo que os 62

No parágrafo anterior a essa citação, Lacan insiste no tema da realidade dada pela palavra: “A palavra ou o conceito não é outra coisa para o ser humano do que a palavra na sua materialidade. É a coisa mesma. Isso não é simplesmente uma sombra, um sopro, uma ilusão virtual da coisa. É a coisa mesma.” (Lacan, 1986, p. 206).

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eventos naturais são previsíveis e repetíveis, estão submetidos a relações causais. O sujeito é dirigido por volições e intenções, já o mundo natural é comandado por leis e normas lógicas bem definidas, é o território da causalidade. A natureza é regulada e cabe ao espírito humano – distanciado, situado somente como observador externo, como um sujeito que não interfere no objeto – captar essa regulação por meio do seu intelecto e da sua percepção dirigida. Essa ordem natural capturada pelo entendimento constituiria o saber objetivo do sujeito. Aqui estão dispostos dois lugares disjuntos, o do sujeito e o do objeto. O saber objetivo – que emanaria do objeto – está protegido das interferências da subjetividade do sujeito. Essa orientação percebe modos diferentes de funcionamento para esses dois espaços: o das coisas naturais e o das coisas humanas. A causa da movimentação dos indivíduos é teleológica, a finalidade de suas ações é que fornece a explicação de seus atos, atos volitivos, intencionais. Já a causa dos acontecimentos naturais é lógica, obedece à causalidade, um evento anterior define um posterior e condiciona esse percurso. Há uma cadeia causal que até pode ser matematizada em grande parte dos casos. O procedimento da natureza é analítico, e o comportamento humano é psicanalítico. Temos aqui uma renovação da relação aristotélica que hierarquiza as quatro causas. Agora, aqui, a causa eficiente tomará uma posição privilegiada ante a causa final.63 O alvo dessa estratégia objetivista para a materialidade da natureza é atingir “a realidade objetiva do mundo exterior” tal que a percepção dessa materialidade esteja protegida das deformações promovidas pela subjetividade cognitiva. O real da natureza é alcançado e se torna inteligível, de forma mais precisa, através de intelecções que ultrapassam as meras percepções sensórias subjetivas. Assim chega-se às leis causais dos fenômenos, as leis da natureza. Na era revolucionária, firmou-se tal parâmetro lógicoexperimental galileano na base do realismo científico que doravante prevalecerá. É um realismo que se distancia do realismo mais ingênuo, que mostrava o real como algo dado direta e exclusivamente pelos sentidos. A inovação desses tempos mostra um realismo inteligível que se contrapõe ao realismo sensível, mais simples. Desde então, e até hoje, prevalece entre os cientistas o entendimento de que há um real externo apreendido por estratégias ainda mais elaboradas do que as galileanas dos

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Até a Revolução Científica era usual dizer-se que prevalecia a “teoria das quatro causas” aristotélica. Há uma ordem crescente de importância e determinação nas causas que produzem os fenômenos: causa material, causa eficiente, causa formal e causa final. Por exemplo, a causa da existência de uma estátua de Diana é: causa material – a substância da estátua, por exemplo, o mármore; causa eficiente – o trabalho do artesão que esculpe a imagem de Diana; causa formal – a imagem de Diana; causa final – a vontade daquele que é o responsável pela feitura da estátua, o senhor que adquire o bloco de mármore, que contrata o artesão e que decide que a estátua deve ser de Diana. Esse sujeito seria a “verdadeira” causa da existência da estátua, a causa final. A partir da Revolução Científica, que observa a relação causal entre os eventos materiais, passa-se a privilegiar a causa eficiente como a única causa que vincula um fenômeno a outro. Causa eficiente tornou-se sinônimo de causa, simplesmente. A

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primeiros tempos.64 O realismo científico contemporâneo é uma proposição que possui um aspecto pragmático. Ele reflete simplesmente um desejo do pesquisador. O desejo de compreender os ditos fenômenos da natureza de forma independente da existência, ou da presença, humana. Há aqui um passo descuidado. Os objetos e fatos científicos, os componentes da “realidade concreta e objetiva do mundo exterior”, seriam alcançados e compreendidos sem a interferência da participação humana. Veja o impasse e a incoerência que se cria: uma coisa é partilhar da crença em uma ontologia, isto é, que estrelas, elétrons e bactérias existam, sejam entidades ontológicas; outra é supor que a captura desses objetos pelo entendimento seja independente do sujeito. Aqui parece que se esquece que todo saber é um discurso, um texto cuja literalidade é expressa por um sujeito. Saber um algo é diferente do algo, são duas instâncias diferentes: a do saber e a da coisa. Todo saber é saber de um sujeito, não há saber sem sujeito. O cientificismo iluminista supõe uma ciência sem sujeito, mas o conhecimento decorre de uma prática discursiva desenvolvida por sujeitos humanos, sujeitos em e por um estilo de pensamento. A produção do saber envolve simultaneamente sujeito e objeto. Dizer que o conhecimento é independente do observador é uma falácia. Para haver conhecimento sobre algo é necessário a participação do sujeito que conhece. Sem físicos não há física. Essa questão, sim, é que é independente das crenças dos sujeitos observadores: onde há conhecimento há um sujeito que conhece. Mesmo para um realista radical, dos mais ingênuos, a percepção dos objetos depende do sujeito, aquele que percebe. E a percepção do sujeito depende do aparelho receptor de suas impressões sensórias, um aparelho constituído historicamente, como diz Fleck, pois depende também do conhecimento anterior já estabelecido, e de um sujeito que é histórico, socializado por estilos de pensamento, e que pensa mediante o uso de uma linguagem-discurso. O conhecimento é uma produção dessa linguagem em uma prática discursiva. Ou seja, somente há ciência com sujeito. É essa a ciência que analisamos neste livro. Ela está inexoravelmente imbricada com a história e a linguagem. A análise e compreensão da ciência não pode omitir essa imbricação, sob o risco de perder rigor. Isso vale para todos os discursos sobre a ciência, seja da filosofia, da antropologia, da sociologia ou da própria história. Assim, uma história da ciência com sujeito é bem mais precisa, razoável e complexa do que a dada pela ilusão de uma ciência sem sujeito.

causa final, típica da intencionalidade humana, foi descartada das condições de cientificidade. Instalaram-se assim critérios para demarcar as Naturwissenschaften das Geisteswissenschaften de Dilthey, explicar versus compreender. 64

Após Ernst Mach e Pierre Duhem e as teorias inovadoras da física surgidas desde o início do século XX, o realismo científico tornou-se bem mais complexo.

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Entretanto, como vencer o desafio posto pelo relativismo diante de empresas com pretensões realistas em seus respectivos conhecimentos? Em uma ciência com sujeito, como fica o realismo? O dilema relativismo versus realismo deve ser analisado nesse novo enredo, esse foi meu objetivo ao trabalhar na escritura deste livro. Entretanto, insisto aqui no alerta – já anunciado em parágrafo anterior – sobre mais um aspecto desse dilema. Temos que considerar que um saber sofre contaminações do desejo e da intenção do autor 65 – seja lá o que for “intenção”. Um saber traz rastros da historicidade do autor e também de suas atitudes pessoais e idiossincráticas. Porém esses rastros podem ser enganosos a uma leitura descuidada. Meu alerta é sobre a postura “realista” do pesquisador que persegue a “verdade” de seu objeto. Em geral, é uma postura dada pela prática cotidiana de vida. Tal como apressarmos o passo na travessia de uma rua para escapar do veículo que se aproxima ameaçadoramente, para o pedestre o carro é um objeto “real” e o objetivo é chegar à calçada. Não há maiores polêmicas, não há dúvidas, não se questiona o realismo daquela impressão subjetiva. Essa é nossa rotina cotidiana, bem prática e realista, um realismo pragmático. Esse procedimento não deve ser confundido com a adoção metafísica do realismo. Todo pesquisador adota como premissa que sua pesquisa persegue a melhor reprodução/interpretação textual de seu objeto. Isso vale para todas as áreas designadas como scientia. Seja o conhecimento da Física ou da História. Todos partem de um já conhecido (o acervo de sua disciplina) e também supõem que há um não conhecido, a ser conhecido. Esse é o objetivo, o problema-alvo da pesquisa. Ocorre aqui uma atitude de bom senso: tomar o alvo como se fosse real. Assim todo profissional elabora: há um “real” hipotético a ser investigado. É uma estratégia fundamental para as expectativas de cada pesquisador. Entretanto, ela é uma hipótese meramente heurística, uma hipótese de trabalho. É um “realismo” heurístico, um ato de fé necessário para o desenvolvimento da pesquisa que simplesmente simula uma ontologia. Na “prática”, todo pesquisador age como se fosse realista. Mesmo os relativistas. Essa estratégia “realista”, pessoal, nada diz sobre as qualidades ontológicas da teoria envolvida na pesquisa. Ela nada esclarece sobre a forma como os saberes são produzidos: a fisiologia do processo de conhecimento.

Qual a fisiologia do conhecimento?

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Se o autor pressupõe que seu saber deva ser “objetivo” e “neutro” ele irá produzir um texto com essas marcas. O autor tentará apagar sua presença, os seus rastros subjetivos no texto. Nunca dirá “suponho que” mas, sim, “verifica-se que”. Suas frases serão expressas com o sujeito oculto ou indeterminado. Ele seguirá o padrão de não falar na primeira pessoa.

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Um conhecimento, qualquer conhecimento, inclusive o científico, decorre da interação entre um sujeito e um objeto. Já sabemos, por Barad, que se trata de uma intra-ação, que transforma ambos. O sujeito que conhece é um novo sujeito. Com o objeto ocorre o mesmo. Como nos conta Fleck, o médico antes e depois da reação Wassermann é diferente, tal como a própria sífilis. Conhecer algo é um evento transformador. Quando os colonizadores europeus chegaram à América interagiram com (conheceram) diversos produtos, como o milho. E tudo ficou diferente, inclusive o milho. O saber é um processo com uma dinâmica acentuada entre o par sujeito-objeto, ele procede de movimentos intra-ativos desse par e resulta em outros movimentos similares que alteram as entidades envolvidas e modificam a cena da intra-ação. Após a chegada dos espanhóis a terra invadida é outra, torna-se a América. O motor desses movimentos é o agenciamento recíproco que integra sujeito e objeto por intermédio da linguagem mais que literal. Contudo, o saber não possui um nascimento, ele é um processo sem origem fora de si mesmo. Todo saber parte do saber anterior e converte-se no posterior, há um encadeamento contínuo. Como conclusão: o saber é devir, é história. A origem e o fim do saber é o próprio saber. O saber antecedente é combustível para o consequente, é o que dinamiza o agenciamento recíproco. A articulação do saber com o agenciamento recíproco é o elo que reúne os termos deste livro: HISTÓRIA, CIÊNCIA E LINGUAGEM. Trata-se da linguagem mais que literal que, ao ser verbalizada a posteriori, substituirá toda a intra-ação ocorrida por um texto literal. O mais que literal será comprimido e codificado no literal, será reduzido ao sentido dado pelas palavras. O texto em linguagem literal costuma ocultar esse processo, o processo que retrata a fisiologia do conhecimento. Assim, o saber em processo é a síntese da prática interativa entre o objeto e o sujeito, ele será o resumo dessa interação promovida pelo agenciamento recíproco. O texto final de uma pesquisa não explicita em si, diretamente, os bastidores interativos que permitiram sua feitura, cabe a nós fazer a arqueologia desse processo.” (p. 166)

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