Realismo Marginal: (Des)Colonialidade do Saber e Práxis Antipunitiva (2016)

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5 Realismo Marginal (Des)Colonialidade do Saber e Práxis Antipunitiva Samuel Silva da Fonseca Borges

“Somente o nível de violência a que assistimos e sua trágica progressão fazem-nos tomar a decisão de 'sair do sistema planetário'. É possível que não se trate de 'sair' e, sim, de reconhecer que estão nos deixando de fora. De qualquer maneira, assumir conscientemente a condição de marginal é pressuposto iniludível para se tentar sua superação” Eugenio Raúl Zaffaroni

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1. Realismo Marginal O signo dos sistemas penais latino-americanos é o genocídio. É a partir dessa impactante constatação que o penalista argentino Eugenio Raúl Zaffaroni (2010) elabora uma teoria engajada, uma práxis, para a contenção do poder punitivo na realidade da América Latina. A recusa de se conformar aos e de legitimar os discursos oficiais e jurídico-penais que sustentam o aparato penal, devido a sua total desconexão com a operacionalidade real dos sistemas penais na realidade periférica do poder mundial que é a América Latina, levam Zaffaroni a se engajar em uma posição por ele denominada como Realismo Marginal. O discurso jurídico-penal tradicional, ao afirmar as propriedades defensoras da sociedade (igualitárias, tuteladoras da vida e preventivas do aparato penal) sempre se mostrou falso quando posto em contraste com a realidade da América Latina. Contudo, tal falsidade era normalmente justificada a partir da acusações de defeitos conjunturais dos aparatos penais latino-americanos, que poderiam ser corrigidos a partir da correta implementação das dogmáticas penais do centro hegemônico da modernidade, sobretudo a Europa Ocidental. Ao se superar o suposto subdesenvolvimento regional, o progresso naturalmente levaria à consolidação de sistemas penais tais quais os dos países centrais (ZAFFARONI, 2010, p.14-15). Para Zaffaroni, essa argumentação foi refutada em duas grandes rupturas teóricas. Primeiramente, constatou-se que a operacionalidade real dos sistemas penais nos países centrais também era radicalmente distinta dos discursos jurídico-penais que a legitimavam.

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Hoje, temos consciência de que a realidade operacional dos nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, e de que todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício que cancelam o discurso jurídico penal e que, por constituírem marcas de sua essência, não podem ser eliminadas, sem a supressão dos próprios sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias, não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais. (ZAFFARONI, 2010, p.15).

Vera Andrade (1997) resume esse argumento apontando a eficácia invertida do poder punitivo, que declara funções que não cumpre ao mesmo tempo em que cumpre outras funções sem declarar. Por exemplo, a partir da constatação dessa cifra oculta, tornou-se claro que: a impunidade é a regra e que a criminalização é a exceção; devido ao processo de rotulação do criminoso ocorre a seletividade penal a ameaça e a aplicação da pena são incapazes de defender bens jurídicos, sendo mais violadores de direitos humanos do que seus defensores, tanto pela ausência de efeito preventivo positivo e negativo da pena, quanto pela falácia da ressocialização do preso; o aprisionamento, além do mais, provoca a reprodução de desigualdades através da imposição de sofrimento estéril, etc. Desde então, o paradigma da Reação Social inaugurou uma fértil corrente teórica denominada Criminologia Crítica, voltada à desconstrução dos paradigmas etiológicos e positivistas ainda presentes no Sistema Penal. Como Aniyar de Castro explica (2005, p.41, 46), a Criminologia Crítica investiga o processo de criminalização, ou por que certos

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grupos e comportamentos são criminalizados, e como tal processo ocorre na realidade sociopolítica de determinada região em contraste com os discursos jurídico-penais formais, em vez de se debruçar sobre o estudo do "delinquente", do "delito" ou da "delinquência" (perguntando-se quem?, o quê? e quanta?) como a Criminologia tradicional faz, assumindo de forma acrítica a definição legal do delito, valendo-se de uma lógica metodológica invariantemente causal-explicativa e, apesar de sua declarada e aparente neutralidade, apresentando efeito legitimador do controle social punitivo.. O segundo argumento em direção à ruptura teórica é, parcialmente, fruto dos debates provocados pelas Teorias da Dependência. Enquanto as teses difundidas pelo poder central mundial defendiam que o capitalismo era centrífugo, espalhando gradualmente a industrialização e as benesses capitalistas-modernizadoras para as regiões marginais, as Teorias da Dependência constataram que o capitalismo tinha um caráter centrípeto, aprofundando as clivagens de poder e de riquezas entre os centros e periferias globais (ZAFFARONI, 2010, p.63-4). Um exemplo dessas imposições seriam as imensas, impagáveis e sempre crescentes dívidas externas que os países marginais são submetidos a pagar, extraindo continuamente para as elites mundiais grande parte das riquezas locais produzidas. Os desenvolvimentos destes países marginais, assim, não estariam meramente "atrasados", podendo ser alcançados tão logo os países centrais fossem 'imitados', uma vez que os processos de desenvolvimento são aqui e acolá análogos. Na realidade, o desenvolvimento periférico era condicionado pelo desenvolvimento central, dependente dele. Da Revolução Mercantil à Industrial e à Tecnológica, a América Latina esteve submetida a processos coloniais, neocoloniais e tecnocoloniais, sempre sob influência imperialista das grandes potências históricas, como Portugal, Espanha, França, GrãBretanha e Estados Unidos. (ZAFFARONI, 2010, p.65, 76)

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Além disso, Raúl Zaffaroni problematiza a tradicional importação de teorias e paradigmas eurocêntricos por meio do que chama de "fábricas reprodutoras de ideologia" dos sistemas penais na periferia. Longe de imprudentemente descartar sua importância, Zaffaroni ressalta a parcial disfuncionalidade de teorias dos centros hegemônicos para a realidade marginal. É preciso, nesse sentido, reconhecer que até um grande crítico do poder punitivo aclamado globalmente, como Michel Foucault, foi um pensador eurocêntrico, pois construiu suas obras focando-se na análise de sua realidade próxima. Torna-se, pois, problemática a simples transposição mecânica de seus conceitos para uma realidade periférica sem a devida contextualização. (ZAFFARONI, 2010, p.74) Como o peruano Aníbal Quijano aponta, o aspecto eurocêntrico do padrão de poder mundial inaugurado com a colonialidade-modernidade concentra na Europa uma hegemonia de controle "[...] da subjetividade, da cultura e, em especial, do conhecimento, da produção de conhecimento" (QUIJANO, 2000, p.13). Tal disfuncionalidade subjetiva, uma colonialidade das mentes, nos impede de identificar nossos próprios problemas, quanto mais resolvê-los de forma coerente e completa. (QUIJANO, 2000, p.5) Rosa Del Olmo (2004) caracteriza essa colonialidade das mentes como um mimetismo das classes dominantes de ideias estrangeiras, incluindo-se aí grande parte dos "especialistas". Alguns poucos foram exceção à regra, mas quanto mais originais e importantes, ao invés de importados, mais silenciados também foram tais pensamentos (LYRA apud DEL OLMO, p.18). Neste cenário de mimetismo teórico (que sempre requer, para Del Olmo, um grau de amnésia), Zaffaroni promove uma "aproximação desde uma margem" ao saber central, de forma a conseguir subtrair conhecimentos úteis ao mesmo tempo em que realiza uma espécie de "subversão epistêmica", ou uma "antropofagia conceitual", para problematizar certas categorias à realidade da América Latina. Por exemplo, enquanto

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Foucault denominou como instituições de sequestro as instituições totais de sua realidade, como as prisões, os hospitais, as escolas, os manicômios, etc., Zaffaroni percebe a omissão de Foucault em nomear a colônia como uma espécie de instituição de sequestro, a maior de sua era (ZAFFARONI, 2010, p.74). Não é possível, para Zaffaroni, ignorar o caráter da gigantesca instituição de sequestro da colônia, que impossibilita autonomia política, que impõe um regime de produção de exploração extrema de recursos naturais e humanos e que extermina culturas ao impor a língua, a religião, os costumes e os valores dos colonizadores, ignorando qualquer direito à autodeterminação. Não obstante, essa mesma instituição considera os nativos indígenas como humanoides subdesenvolvidos, que necessitam da tutela europeia; extrai seres humanos de um continente para outro, coisificam-nos para vendê-los, explorá-los, estuprá-los, demonizá-los e, em uma palavra, desumanizá-los através de um vasto sistema discursivo, repressor e configurador de uma realidade de extrema subalternidade como é a escravidão. O colonialismo consegue por fim justificar seus genocídios como uma obra de piedade, face à superioridade racial do homem ocidental sobre selvagens e primitivos (ZAFFARONI, 2010, p.75). O fardo do homem branco, como exposto na macabra poesia de Rudyard Kipling, coloca o europeu como a vítima dessa gigantesca instituição de sequestro; não importa o "sacrifício", o altruísmo ocidental é confirmado pela persistência em se manter na posição de Colonizador. Colonização essa que atravessa a necessidade de ocupação territorial da colônia pela metrópole, que escapa do poder simbólico das formais independências latinoamericanos. Em verdade, as ex-colônias assistiram a uma versão atualizada da influência agora neocolonial dos centros hegemônicos, representados pelo governo de minorias proconsulares mantidas no poder. Longe de real independência, deu-se continuação a uma estrutura de dependência econômica ao centro do poder mundial e ao genocídio

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explícito de incontáveis povos, civilizações, culturas, saberes, epistêmes e cosmologias (ZAFFARONI, 2010, p.118). Outra disfuncionalidade central na análise dos sistemas penais, identificada por Zaffaroni, é o próprio exercício do poder punitivo. Enquanto o poder penal se mostrava configurador na Europa Ocidental a partir de uma estrutura panóptica (modelo de Jeremy Bentham para prisões, utilizado por Foucault para caracterizar o poder configurador nas sociedades modernas), traduzido pela vigilância extrema que é internalizada e naturalizada pelos sujeitos, o paradigma que melhor se aplica à América Latina é o atavismo lombrosiano (a partir das teorias derivadas do pensamento de Cesare Lombroso), que entendia a criminalidade como própria de raças degradadas. Se a inferioridade biológica era atribuída pelo criminólogo positivista italiano às minorias de sua sociedade, por sua vez toda a América Latina, com seus povos nativos, afrodescendentes e mestiços, era vista como inferior. O criminoso europeu era análogo aos selvagens e todos aqueles selvagens eram, naturalmente, criminosos. (ZAFFARONI, 2010, p.77). Nada mais coerente ao pensamento racista, então, do que um poder punitivo expandido para lidar com as "raças inferiores" latino-americanas, direcionando o sistema penal colonial para o genocídio. Nesse sentido, a luta anticolonial se configura como uma luta antipunitiva. Zaffaroni (2010) também aponta o fato de que as agências penais marginais, como as policiais e penitenciárias, têm como regra a constituição formal ideológica militarizada, apesar de possuírem uma função claramente civil (p.137). Além disso, é comum que os Estados latino-americanos tenham fracos ou instáveis investimentos estatais na seara social, como em relação à promoção de habitação, de saúde e de educação dignas, públicas e gratuitas à população, processo esse intensificado pela pressão neoliberal nos Estados marginais (identificado por Zaffaroni como a ideologia econômica do tecnocolonialismo). A escolha política pela omissão de prover condições

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mínimas de bem-estar é responsável pelo cenário local de altíssimo nível de mortalidade infantil e mortes prematuras de trabalhadores superexplorados, complicações dadas pelo não enfrentamento de interesses burgueses que leva grande parte da população a se alimentar com substâncias químicas proscritas nos países centrais e a lidar com indiferença em relação à taxa absurda de ''acidentes de trânsito'', etc. (BATISTA, 2007, p.4) Em vez de reverter esse cenário através de forte engajamento de cunho social e humanista, nossas sociedades, tão marcadas por fortes clivagens de poder econômico, racial e de gênero, continuamente deslocam fundos da seara social para o aparato repressor do Estado. A gestão da miséria acaba por ser muitas vezes a penal, levando às altas taxas de prisionização, tortura e à atividade policial e parapolicial letal (ZAFFARONI, 2010, p.120). A atuação miliciana e de grupos de extermínio é tão intensa que aqui cabe o conceito, cunhado pela criminóloga venezuelana Lola Aniyar de Castro, de Sistema Penal Subterrâneo, , atuando paralelamente a um Sistema Penal Aparente (ANIYAR DE CASTO, 2005, p.128-9). A disfuncionalidade teórica centro-periferia não é nada mais do que derivada da diferença real marcada pela colonialidade. Vera Andrade sintetiza tal discrepância:

Aqui, na periferia, a lógica da punição é simbiótica com uma lógica genocida e vigora uma complexa interação entre controle penal formal e informal, entre público e privado, entre sistema penal oficial (pena pública de prisão e perda da liberdade) e subterrâneo (pena privada de morte e perda de vida), entre lógica da seletividade estigmatizante e lógica da tortura e do extermínio, a qual transborda as dores do aprisionamento para ancorar na própria eliminação humana, sobretudo dos sujeitos que “não tem um lugar no mundo”, os sujeitos do “lugar do negro” (ANDRADE, 2012, p.106-7).

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Assim, apesar das especificidades de cada país, as sociedades latino-americanas possuem em comum uma realidade de exercício de poder punitivo, em consonância com um modelo econômico capitalista periférico organizado pelas elites locais, pautado em superexploração do trabalho e dos recursos naturais, bem como por uma visão de mundo racista e patriarcal. Essa realidade de dominações intersecionais da América Latina (região marginal do poder mundial) tem historicamente o poder penal, como instrumento de controle social que é, como o signo da manutenção do status quo, da submissão e de sistemáticos massacres.. O reconhecimento dessa realidade marginal, que pode ser denominada como genocida como o fez Zaffaroni, é condição necessária para superar tal condição. Todas as pensadoras e os pensadores citados aqui tentam romper com a colonialidade das mentes que nos impedem de analisar nossa própria realidade. O Realismo Marginal, como proposto por Zaffaroni, assim como a Criminologia da Libertação, de Aniyar de Castro, são belos exemplos de tentativas de romper tanto com o mimetismo quanto com a amnésia teórica tão comum em nossa região periférica, decorrente não de uma inferioridade intelectual de nosso povo, tal como o discurso racializante propõe, mas sim de uma colonialidade de poder, que silencia vozes dissonantes do discurso hegemônico. Lola Aniyar de Castro, Rosa Del Olmo, Raúl Zaffaroni, Vera Andrade e Vera Malaguti Batista são criminólogas/os de diferentes países latino-americanos que têm como objetivo construir uma criminologia crítica (ou uma sociologia política do poder punitivo) da América Latina para a América Latina, descolonizando saberes e práticas, por meio de uma práxis antipunitiva. Referências Bibliográficas ANIYAR DE CASTRO, Lola. Criminologia da Libertação. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2005.

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ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Pelas mãos da criminologia - o controle penal para além da (des)ilusão. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2012. BATISTA, Vera Malaguti. O Realismo Marginal: Criminologia, Sociologia e História na Periferia do Capitalismo. In: MELLO, Marcelo Pereira de (Org.). Sociologia e Direito: explorando as Interseções. Niterói: UFF (Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito), 2007. DEL OLMO, Rosa. A América Latina e sua Criminologia. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2004. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas: a Perda de Legitimidade do Sistema Penal. 5.ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2010. QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. Lima, Peru: Centro de Investigaciones Sociales (CIES), 2000.

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