Realismo versus simulação: o paradoxo da imagem digital

June 3, 2017 | Autor: Felipe Polydoro | Categoria: Rumores
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edição 12 | ano 6 | número 2 | julho-dezembro 2012

Realismo versus simulação: o paradoxo da imagem digital

Felipe da Silva Polydoro1

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Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). [email protected]

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Resumo

Este artigo busca elencar e problematizar pontos fundamentais para uma análise ontológica e estética da imagem digital. O enfoque da reflexão estará no seguinte paradoxo: a ciência da computação e a linguagem binária, protagonistas da virtualização das imagens e da construção de um rico espaço imaterial e imersivo, propiciam também, graças à disseminação de câmeras nos mais variados hardwares, a multiplicação de registros de renovado realismo, com destaque para os vídeos captados por anônimos, que costumam ser tomados como provas factuais precisas e donos de um estatuto de revelação da verdade.

Palavras-chave

Cibercultura, imagem digital, realismo, virtual.

Abstract

The objective of this article is to raise potential fundamental issues for the analysis of the ontology and aesthetics of digital image. The reflection presented here focuses on a paradox. Computational science and the binary language are the creators of a virtual reality with digital images as part of an immaterial space. However, with the proliferation of digital cameras available in various hardware devices, there is an increase in the number of anonymously captured videos that are assumed truthful and real providing a precise factual prove of reality.

Keywords

Cyberculture, digital image, realism, virtual.

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Não raro, pensa-se o trajeto das imagens técnicas tal como uma linha reta que marca o gradual afastamento entre signos e referentes. Da fotografia, cuja técnica se ancora na persistência do rastro físico do referente originalmente captado, rumamos até a imagem numérica: sintética, produzida sobre o vazio, sem referentes concretos, fruto de uma tecnologia – computacional, digital – abstrata. Neste prisma, tratar-se-ia de um caminho de constante e progressivo distanciamento da realidade. Couchot (2011), que define esse percurso como aquele da representação à simulação, é um dos tantos a refutar associá-lo a um crescente artificialismo. Embora haja significativas alterações de ordem técnica, é um equívoco compreender as variações nas tecnologias de representação em termos de graus de fidelidade ao mundo empírico. Ora, o que o senso comum entende por “realidade” é algo cultural, social e historicamente construído – caberia sempre definir exatamente qual a acepção do termo. A ideia de imagem como representação também é oriunda de convenções. Insere-se na linhagem do pensamento ocidental. Tomada como representação, a imagem digital – seja na fotografia, no cinema, no vídeo e nas diversas telas de computador e devices móveis – não é naturalmente menos real ou mais artificial que imagens técnicas de gerações anteriores. São, isso sim, dotadas de outra materialidade e possuem estatuto diverso diante do mundo empírico se comparadas ao cinema de película, à fotografia de sal de prata, ao vídeo e à televisão da varredura elétrico-eletrônica. Produto da cultura, a tecnologia digital-computacional reflete e alimenta determinada visão de mundo. Há correspondência entre os atributos físicomateriais das mídias, as estéticas que acabam por preponderar em tais meios e os valores culturais-históricos (bem como as determinações sociais e econômicas) a imperar em certo período histórico2. 2

Importante: não se estabelece aqui uma relação causal entre os fenômenos; não se afirma, por exemplo, que as modificações tecnológicas resultam em posteriores alterações nas estruturas sociais e do pensamento, tal como entende Marshall McLuhan, ou que a infraestrutura econômica condiciona a superestrutura, como propugna a tradição marxista.

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Johnson (2001), relevante pensador da cibercultura, informa que busca em suas pesquisas e análises:

Pensar o mundo-objeto da tecnologia como se ele pertencesse ao mundo da cultura ou como se esses dois mundos estivessem unidos. Pois a verdade é que sempre estiveram unidos. O primeiro pintor de cavernas era artista ou engenheiro? Era ambas as coisas, é claro, como o foram, em sua maior parte, os artistas e os engenheiros desde então. Mas temos o hábito — cultivado por muito tempo — de imaginá-los como separados, os dois grandes afluentes correndo incessantemente para o mar da modernidade e dividindo, em seu curso, o mundo em dois campos: os que habitam nas margens da tecnologia e os que habitam nas margens da cultura. A oposição influencia grande parte do pensamento contemporâneo (JOHNSON, 2001, p. 13).

É com este enfoque culturalista e histórico que se vai apresentar e problematizar pontos fundamentais para uma análise ontológica e estética da imagem digital. O tema é vasto e, dado o espaço curto, o foco estará em um instigante paradoxo: a ciência da computação e a linguagem binária, protagonistas da virtualização das imagens e da construção de um espaço imaterial e imersivo, propiciam também, graças à disseminação de câmeras nos mais variados hardwares, a multiplicação de registros de renovado realismo. De um lado, o cinema em três dimensões com crescente geração e/ou manipulação computacional da cena; de outro, as captações de amadores e das câmeras de vigilância, donas de uma estética desconcertantemente crua e imediata – registros que o jornalismo toma como prova de veracidade dos acontecimentos e o cinema mimetiza para carregar no naturalismo.

O digital: ápice da técnica moderna Quando as tecnologias da informática começaram a se popularizar, graças ao desenvolvimento e consolidação da computação pessoal, os teóricos da imagem concentraram-se, sobretudo, no traço artificial desta, dada a possibilidade de, por meio de algoritmos e operações numéricas, erigir uma

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imagem realista do zero, vazia de referentes. Era nítida a iminência de imagens integralmente construídas no computador com o mesmo nível de realismo de uma fotografia; simulações capazes de enganar o olho humano. A prioridade inicial que as investigações teóricas concederam às figuras sintéticas se justifica: estas condensam as modificações mais relevantes em termos de representação. Conforme Santaella (2007, p. 372):

Nos anos 80, foi grande o impacto cultural e artístico produzido pelas imagens computacionais. Não é para menos. Produzidas por computador, as imagens numéricas, infográficas ou sintéticas representam uma mudança

paradigmática

de

grandes

consequências,

até

mesmo

epistemológicas. Significaram a passagem do paradigma fotográfico (foto, cine, tevê, vídeo e holografia) para um novo paradigma, que tem sido chamado de “pós-fotográfico”.

Já nesta época, autores como Mitchell (1994) alertavam para outra consequência do paradigma digital: o abalo no estatuto de verdade da fotografia, frente à possibilidade de manipulação dos elementos via computador, mesmo em fotos captadas diretamente do real. “O inventário de fotografias fidedignas que formou nosso entendimento do mundo por tanto tempo parece estar destinado a ser superado pela inundação de imagens digitais de estatuto muito mais incerto” (MITCHELL, 1994, p. 19).3 Estava em jogo a indexicalidade, a certeza do “isso foi” que Barthes (1989) definiu como marca essencial da fotografia. Bazin (1991), no seu comentário acerca da ontologia fotográfica, sublinha exatamente o rastro físico, o pedaço efetivo de realidade plasmado no sal de prata resultante de uma técnica que automatiza o processo de maneira a quase dispensar a ação humana, limitada a apertar o botão da máquina. O mesmo traço de real fixa-se na película cinematográfica. Ambas são formas de representação contínuas. Ao contrário do digital, cuja representação é discreta – isto é, 3

Tradução do autor: “So the inventory of comfortably trustworthy photographs that has formed our understanding of the world for so long seems destined to be overwhelmed by a flood of digital images of much less certain status”.

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não há qualquer semelhança ou continuidade entre o referente e o sistema numérico que armazena e organiza a imagem. Nada disso significa que a fotografia original – ou o cinema, mesmo o gênero documentário – oferecesse maior objetividade. Toda e qualquer forma de representação reflete um ponto de vista. É subjetiva em algum nível. A matriz da fotografia é a perspectiva renascentista, cuja transformação estética fiava-se na centralidade do olho humano. Como é sabido, o Renascimento alça o homem à posição dominante. Nascem, então, os princípios e a visão de mundo que, de certa forma, imperam até hoje. São os primeiros passos do que Heidegger (2002) denominou época moderna, quando a essência da técnica vincula-se, simplificando bastante, ao projeto de dispor do mundo e da natureza com a finalidade de atender as demandas civilizacionais do Ocidente. O mundo natural torna-se fonte de matéria-prima e reserva de energia. Prosseguindo com Heidegger (2008): a concepção moderna do termo “realidade”, bastante próxima daquela do senso comum, leva em conta apenas uma parcela dos existentes. “No sentido de fato e fatual, o ‘real’ se opõe ao que não consegue se consolidar numa posição de certeza e não passa de mera aparência ou se reduz a algo apenas mental” (HEIDEGGER, 2008, p. 44). Noção próxima à etimologia do vocábulo “real”: o latim res, coisa concreta, material. A definição para “real”, nesta concepção moderna, é: aquilo que está efetivado e se opõe ao imaginado, fictício – não é à toa que o senso comum separa o espaço virtual das redes cibernéticas, imaterial, do real imediato: concreto, palpável e efetivado. Nesta concepção moderna, a verdade vincula-se a uma resposta precisa, matematicamente exata. A exatidão aparece como exigência necessária do sentido da técnica nessa época: o domínio e o usufruto do mundo natural. E o que os modernos chamam “realidade” engloba somente a parcela dos entes apta a oferecer respostas exatas, ficando de fora uma dimensão mais essencial dos entes. Trata-se de noções alinhadas com o espírito racional e científico, uma cosmologia tão entranhada na nossa cultura que o traço cultural acaba escondido.

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Embora a filosofia, entre outras disciplinas, venha desconstruindo há décadas a hipótese de uma verdade única e de um fundamento absoluto das leis universais, os objetos da tecnologia digital – imagens inclusive – vivem sob a alçada da essência da técnica moderna. A vontade de dispor do mundo e da natureza, que Heidegger (2008) sintetiza no neologismo alemão Gestell, impulsiona métodos técnico-científicos de crescente precisão. Para todo o lado, na física, na biologia, na química, na eletrônica, na computação, a tecnociência visa as partículas elementares, o menor denominador que se torna a matériaprima da ciência e da tecnologia: os genes, os quanta, os quarks, os bits da linguagem binária. Ininterrupta fragmentação dos objetos, desconstrução analítica com o ímpeto de intervenção na realidade. A capacidade de manipulação e de processamento da tecnologia digital e computacional representa um considerável avanço em relação a técnicas anteriores. Conforme Lévy (2007, p. 52),

A informação digitalizada pode ser processada automaticamente, com um grau de precisão quase absoluto, muito rapidamente e em grande escala qualitativa. Nenhum outro processo, a não ser o processamento digital, reúne, ao mesmo tempo, essas quatro qualidades.

A imagem numérica, seja de que tipo for, é um objeto já feito para ser modificado. E enquadra-se no espírito contemporâneo de metamorfose, modelagem e liquidez de todas as coisas. O próprio corpo humano passa a ser entendido como um molde propício a intervenções de crescente agressividade, como se observa na disseminação dos mais variados tipos de cirurgias plásticas ou na sofisticação das drogas sintéticas. Domínio de uma ontologia modular, que compreende os objetos como estruturas desmontáveis, pedaços manejáveis autonomamente. Exemplo prosaico: pode-se modificar cada parte deste texto, que está sendo escrito no programa Microsoft Office Word, de maneira independente – pintar cada parágrafo de uma cor ou usar um tipo de fonte em cada página.

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Conforme Lévy (2007, p. 92), a mutabilidade intrínseca aos objetos computacionais resulta da codificação digital, pois é esta que “condiciona o caráter plástico, fluido, calculável com precisão e tratável em tempo real, hipertextual, interativo e, resumindo, virtual da informação que é, parece-me, a marca distintiva do ciberespaço”. Em síntese, as especificidades técnicas e estruturais das imagens digitais (fixas e em movimento) têm correspondência – e, de certa forma, condicionam – as estéticas e as formas narrativas sobressalentes. E tudo isso guarda relação com o imaginário da época.

A cosmogonia do computador Manovich (2001) lista cinco princípios fundamentais compartilhados pelos objetos das novas mídias: representação numérica; modularidade; automação;

variabilidade;

transcodificação.

Todos

se

ancoram

na

materialidade do meio digital, que obedece às lógicas estrutural, funcional, estética e narrativa da computação. Essa ontologia computacional gradativamente domina as formas das imagens, das narrativas audiovisuais e, de maneira mais ampla, a cultura como um todo. Neste ser-computacional, conforme Manovich (2001), a imagem é uma interface para um banco de dados. E o database alça-se à posição de forma narrativa predominante. Duas consequências derivam daí: os objetos se aprofundam, tornam-se imersivos e tridimensionais; e a narrativa linear reinante durante séculos dá lugar a uma estrutura não-hierarquizada, interativa e hipermidiática. Sai o domínio da estrutura sequencial-temporal, entra em cena a narrativa espacial, na qual o público imerge de maneira mais literal, navegando por janelas, ícones e páginas, escolhendo um caminho a partir de uma série de opções pré-estabelecidas por programadores. Nas mídias tradicionais, se é espectador passivo e a imersão se dá em um sentido psicológico, mental e figurado. Nos meios digitais, o público entra em um espaço virtual, isto é, dotado de uma materialidade, a da tecnologia computacional-digital, que

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propicia a construção de uma imagem modular na qual o usuário produz ações com consequências imediatas e visíveis. Para Murray (2003), cujos estudos sobre as mídias digitais concentramse principalmente nas narrativas, três conceitos sintetizam a estética do meio: imersão, agência e transformação. O usuário imerge em um espaço; no qual produz ações com consequências imediatas e perceptíveis; e encontra-se apto a produzir mudanças na forma e no conteúdo. O prognóstico de Murray (2003) é de que todas as narrativas gradativamente rumem para o modo participativo. No entanto, o formato interativo, até o momento, fracassou nas narrativas audiovisuais de ficção convencionais no cinema e na televisão, mesmo que estes meios tenham se tornado predominantemente digitais. Foi em novas categorias de narrativas, como os reality shows, que o modelo participativo vingou de maneira efetiva, embora o nível de intervenção do público seja limitado. Seja como for, o alastramento da interatividade e da experiência midiática efetivamente imersiva se dá, sobretudo, nos videogames, um dos segmentos mais abastados da indústria do entretenimento. Em termos de imagem, objeto deste artigo, a mudança marcante em andamento diz respeito à consolidação do cinema em terceira dimensão, anunciando o provável domínio da tecnologia também na televisão. A imagem do cinema de película aprofundava-se, estimulava a imersão passiva na sala escura, penetrava para dentro. A materialidade eletrônica do vídeo e da televisão, dotada de texturas e camadas superpostas, arremessava os objetos para fora da tela. A imagem em 3D, ao mesmo tempo, aprofunda-se para dentro e estendese para fora. Há um impulso de eliminação da tela, de uma presença em direto de um ausente, perceptível também nas representações holográficas. Não à toa, a noção de representação agrava sua crise com a disseminação da linguagem binária. Nesta passagem, Lévy (2007) resume as modificações na dimensão sígnica que acompanham o meio digital:

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Quanto à imagem, perde sua exterioridade de espetáculo para abrir-se à imersão. A representação é substituída pela virtualização interativa de um modelo, a simulação sucede a semelhança. O desenho, a foto ou o filme ganham profundidade, acolhem o explorador ativo de um modelo digital, ou até uma coletividade de trabalho ou de jogo envolvida com a construção cooperativa de um universo de dados (LÉVY, 2007, p. 150).

O projeto moderno de exploração do mundo natural e de construção de uma realidade formada por objetos à disposição do homem, tal qual descrito por Heidegger (2008), atinge algo próximo do ideal com o ciberespaço: um espaço efetivo, embora imaterial, ontologicamente constituído por números e, por isso, calculável e mutável na sua íntegra. Neste espaço matemático e veloz, todas as formas tornam-se existentes em potência, qualquer objeto pode vir a se atualizar. É esta a definição rigorosa de virtual: um tipo de existência potencial, apta a atualizar-se. Aquilo que é potencial, virtual, em certo sentido encontra-se disponível. A virtualidade que é marca contemporânea guarda semelhanças com a noção de disponibilidade. Virtualizados, os entes tornam-se sempre disponíveis e metamorfoseáveis, aptos a atualizar-se em qualquer circunstância. Exemplo extremo: recentemente, o músico de rap americano Tupac Shakur, morto em 1996, contracenou no formato de holograma com outro rapper, Snoop Dogg, em um show nos Estados Unidos. Para o público, a sensação era a de uma presença física, ainda que fantasmagórica. Em tempo: há notícias4 sobre uma possível turnê hologramática de Michael Jackson, que morreu em 2009. Tratase de feitos propiciados pela tecnologia digital, mas que só se efetivam em um contexto cultural de virtualidade e disponibilidade dos seres. Na verdade, ainda mais arrepiante é a perspectiva de feitura física, orgânica, de indivíduos – quiçá celebridades falecidas – por meio da engenharia genética. Tal hipótese deve ficar no terreno da ficção científica, é pouco provável que se concretize, mas o simples fato de estar no horizonte tecnológico já é significativo. 4

Notícia disponível aqui: http://rollingstone.com.br/noticia/holograma-de-michael-jackson-pode-sair-em-turne-comirmaos-do-rei-do-pop/

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O tema da mudança de forma no nível da aparência permeia diversos objetos audiovisuais. No cinema, por exemplo: a onda de filmes de superheróis, entre eles os mutantes da trilogia X-Men; algumas obras recentes de David Lynch, como Estrada perdida e Cidade dos sonhos; o filme A pele que habito, de Pedro Almodóvar. Também há predileção, no cinema e em outros meios, por objetos culturais espacializados e cuja estrutura formal constitui um mundo fechado em si, imanente. Veja-se o caso recente da trilogia cinematográfica Senhor dos Anéis, sucesso arrebatador5. A simbologia e a mitologia da obra tendem a um fechamento, fazem sentido, sobretudo, naquele espaço diegético. Sempre é possível identificar alegorias e outras figurações em uma narrativa, mas, neste caso, exige-se um esforço e um deslocamento considerável para apontar remissões dos signos da trilogia Senhor dos Anéis ao mundo histórico. Mesmo as narrativas em transmídia (JENKINS, 2009), que obedecem a uma estrutura hipertextual e de fluxo, também contribuem para a espacialização e a tridimensionalidade e, de certa forma, para a criação de um mundo com leis próprias.

A narrativa transmidiática é a arte da criação de um universo. Para viver uma experiência plena num universo ficcional, os consumidores devem assumir o papel de caçadores e coletores, perseguindo pedaços da história pelos diferentes canais, comparando suas observações com as de outros fãs, em grupos de discussão on-line, e colaborando para assegurar que todos os que investiram tempo e energia tenham uma experiência de entretenimento mais rica (JENKINS, 2009, p. 49).

Ainda que a narrativa transmidiática envolva o espalhamento, a fragmentação e a extensão de uma trama em diversos meios, visando uma postura participativa do público, a história em si continua sendo um objeto fechado. A muralha que envolve o território narrativo acompanha a expansão da história e continua delimitando as fronteiras do universo diegético. 5

Os três romances do escritor britânico J.R.R. Tolkien que deram origem à trilogia cinematográfica foram escritos entre 1937 e 1949 e publicados em 1954 e 1955. Tiveram bastante sucesso, mas a repercussão não é comparável à dos filmes dirigidos por Peter Jackson, lançados entre 2001 e 2003.

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Vontade de real e nostalgia do autêntico Esse paradigma da virtualidade, da elaboração de espaços imanentes e da construção de uma realidade artificial (embora deva-se sublinhar o caráter artificial e construtivista que sempre acompanhou a noção moderna de realidade) convive com uma vontade de transparência, autenticidade e de um contato mais direto, imediato com o mundo histórico – nos sentidos temporal e espacial. Bolter & Grusin (2000) cunharam o conceito de immediacy, algo como “imediacidade” ou não-mediação, para dar conta de tal impulso. Na verdade, muitos autores, de diferentes áreas e com variados enfoques (BAUDRILLARD, 1991; ZIZEK, 2003; JAGUARIBE, 2007; LINS & MESQUITA, 2008), diagnosticam, na contemporaneidade, uma demanda por signos da realidade e a crescente oferta de produtos midiáticos com narrativas da vida real – esses objetos, ao mesmo tempo, simulam um contato mais direto com os referentes do mundo empírico e valem-se de linguagens que fundem signos do real e da ficção. Entre os exemplos desse fenômeno estão: os reality shows; o fôlego renovado dos documentários; a adoção crescente de uma linguagem documental em narrativas ficcionais, bem como a busca de outras linguagens voltadas a uma imitação que carregue no realismo. Mesmo a evolução da ciência da computação caminha nessa trilha. As tecnologias voltadas a interfaces intuitivas (este é o termo que a indústria da informática utiliza), tais como o touchscreen e o reconhecimento de movimentos e de voz, perseguem interações mais naturais e até mesmo primitivas. Basta ver uma criança pequena manejando um tablet ou um smartphone com touchscreen para perceber o apelo instintivo da interface baseada no toque na tela que, pragmaticamente falando, envolve a pressão direta do dedo em algum ícone. A proliferação de vídeos amadores e anônimos – donos de grande audiência no Youtube, por exemplo – também tem sido apontada como uma evidência do interesse renovado por estéticas realistas, dado o efeito de real em direto. Trata-se de um fenômeno típico da cibercultura, pois a

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multiplicação de registros imagéticos, bem como suas velozes circulação e exibição, decorrem, entre outros fatores, da disseminação de hardwares dotados de câmera, como celulares e tablets. A respeito de tais vídeos, algumas distinções fundamentais. Primeiro, a categoria “anônimos” engloba tanto as imagens captadas por amadores – pessoas comuns, não-profissionais, não remuneradas pela atividade de cinegrafista, sem especialização técnica na função -, quanto às imagens de autoria de câmeras de vigilância. Em comum, os vídeos produzidos em tais condições transmitem a ideia de neutralidade, de ausência de intencionalidade e de manipulação durante o registro, bem como a proeza de documentar visualmente os fatos no instante de sua ocorrência. A diferença, no nível da linguagem: o vídeo produzido pelo amador exibe uma perspectiva de uma ação, mas expressa também a sensação, mergulha o espectador no ambiente filmado – fruto do efeito de subjetividade da câmera na mão. A presumida objetividade vem acompanhada de intensa subjetividade. A câmera de vigilância atinge uma espécie de grau zero de neutralidade. O vídeo centra-se no fato. Seja lá o que acontece, é este acontecimento que reina na imagem flagrada pela câmera de vigilância. É importante distinguir ainda entre os registros de trivialidades e banalidades e aqueles que documentam algum fato inserido em um acontecimento de relevância midiática e/ou histórica – salientando, porém, o caráter cultural e histórico da eleição do que vem a ser “relevante”, cujos critérios vêm se modificando gradualmente, dada a audiência significativa de banalidades como imagens de animais de estimação e de alguns vídeos de família. Os vídeos anônimos que captam acontecimentos são mais desafiadores e desconcertantes, dado que, além de ganhar, do ponto de vista estético, em “imediacidade”6 e crueza, ainda constituem-se de um traço de imprevisto e promovem algum tipo de revelação. Em muitos casos, os fatos ali registrados 6

A referência aqui é o conceito de “immediacy”, de Bolter & Gusin (2000), que remete à ideia de um contato direto com o referente, sem mediação, conforme definido anteriormente no texto.

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– ou alguns detalhes desses fatos – não seriam do conhecimento público não fosse a presença da câmera. O modo como os telejornais e os sites de notícias se apropriam dessas imagens revela o quanto estas são tomadas como um documento a comprovar a veracidade dos acontecimentos veiculados. Nenhum objeto hoje é mais verdadeiro e real para os meios de comunicação do que as imagens anônimas. É com esta conotação que o senso comum, o jornalismo, o cinema e outras instituições midiáticas tomam os vídeos anônimos: verídicos, neutros, reais, imediatos, autênticos, genuínos. Trata-se de uma apreensão consensual e não essencial. Tais vídeos não são essencialmente mais reais ou verdadeiros. Não há espaço aqui para discutir todos os condicionantes subjetivos e as determinações culturais, históricas e estéticas que levam tais imagens a estarem associadas à transparência do real, nem cabe a desconstrução da verdade pretensamente intrínseca em tal apresentação dos fatos. Por ora, o objetivo deste texto, como exposto no início, era exaltar a contradição, nas dimensões pragmática e estética, entre: a) o artificialismo e o traço construtivista das linguagens digitais e do paradigma do virtual, bem como o vazio de referentes da representação discreta da imagem numérica; e b) a crueza realística, o efeito estético que remete a um contato não-mediado e transparente, além do caráter de revelação da verdade do fato das imagens anônimas. Dialética entre a imanência dos objetos virtuais (universos fechados, formados por signos voltados para dentro de si) e a transcendência que caracteriza as imagens digitais representativas do real, a remeter para referentes algures, por vezes carregadas no realismo graças à precariedade na captação, distribuição e exibição; entre uma imagem numérica feita para ser modificada, cujo estatuto é de liberação do signo e de incerteza quanto à realidade do referente e o de um registro percebido como neutro, direto, imediato e transparente na apresentação e presentificação desta mesma realidade. Choque do ceticismo diante de vídeos digitais cuja materialidade favorece a manipulação já no nascedouro (cujo potencial metamorfoseador está geneticamente entranhado) com o estatuto de prova factual e reveladora da verdade.

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São oposições na dimensão imagética de um ambiente digital, de uma rede mundial e de uma tecnologia da computação marcados por contradições essenciais: um espaço sem poder central com inédita liberdade de expressão, troca de ideias e opiniões e mobilização política que também propicia mecanismos ferrenhos de controle e vigilância típicos da sociedade disciplinar (FOUCAULT, 1989); um princípio de colaboração e igualdade que convive com poderosos oligopólios. Paradoxos que talvez só sirvam para confirmar que a contradição é o que há de mais fundamental nas imagens e nas tecnologias da modernidade.

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Referências

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio D’Água, 1991. _____________. A troca simbólica e a morte. São Paulo: Edições Loyola, 1996. BARTHES, Roland. A câmera clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989. BAZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991. BOLTER, David; GRUSIN, Richard. Remediation: understanding new media. Cambridge: MIT Press, 2000. COUCHOT, Edmond. Da representação à simulação. In: PARENTE, André (org.). Imagemmáquina: A era das tecnologias do virtual. São Paulo: Editora 34, 1993. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1989. HEIDEGGER, Martin. O tempo da imagem de mundo. In: Caminhos de floresta. Lisboa: FCG, 2002. _____________.

Ensaios

e

Conferências.

Petrópolis:

Vozes,

2008.

JAGUARIBE, Beatriz. O choque do real: estética, mídia e cultura. Rio de Janeiro: Rocco, 2007. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. JOHNSON, Steven. Cultura da interface: como o computador transforma nossa maneira de criar e comunicar. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. LEVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 2007. LINS, Consuelo; MESQUITA, Claudia. Filmar o real. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008. MANOVICH, Lev. The language of the new media. Cambridge: MIT Press, 2001. MITCHELL, William. The reconfigured eye: visual truth in the post-photographic era. Cambridge: MIT Press, 1994.

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MURRAY, Janet. Hamlet no holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: Unesp, 2003. SANTAELLA, Lucia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007 ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real! São Paulo: Boitempo, 2003.

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