Receitas de Ano Novo com Poesias em Lusofonias

June 3, 2017 | Autor: I. Carneiro de Sousa | Categoria: Portuguese and Brazilian Literature, Lusofonia, New Year, Brazilian poetry, Portuguese Poetry
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Ao começar um Novo Ano ainda envolto na agitação das muitas festas natalícias e reveillons vários, estas sempre suas Lusofonias só podem mesmo associar-se a este clima fraterno descansado entre feriados e alguma preguiça oferecendo alguma dessa poesia que, felizmente tão abundante quanto marcante, tem ajudado a construir as literaturas dos países de língua oficial portuguesa. Acontece, contudo, que nas suas diversas expressões culturais e nacionais a poesia escrita em português dedicada ao Ano Novo é curta, escassa, difícil até de reunir. Existe, felizmente, um poema célebre de autor ainda mais famoso, Carlos Drummond de Andrade, a que normalmente se recorre para inspirar receita de novo ano. Aqui se convoca outra vez esse oportuno texto poético do grande arauto do primeiro modernismo brasileiro, mas que se decidiu acompanhar de uma muito despretensiosa selecção de outros poemas devidamente distribuídos em alfabética ordem pelos oito países de língua portuguesa, logo depois simbolicamente concluídos com um pequeno texto poético originário de Macau, escrito por José dos Santos Ferreira – ou, melhor, Adé –, servindo para recordar tanto a imensa pluralidade do que temos vindo a designar por lusofonias como esse papel que a RAEM quer promover de querer ser

lusofonias nº 25 | 06 de Janeiro de 2013 Este suplemento é parte integrante do Jornal Tribuna de Macau e não pode ser vendido separadamente

COORDENAÇÃO: Ivo Carneiro de Sousa

TEXTOS: • Carlos Drummond de Andrade • Alda Lara • Manuel Bandeira • Jorge Barbosa • Agnello Regala • José Craveirinha • Fernando Pessoa • Caetano da Costa Alegre • Francisco Borja da Costa • José dos Santos Ferreira (Adé)

Dia 13 de Janeiro: Oito Séculos de Língua Portuguesa (1214-2014)

APOIO:

Receita de Ano Novo Com

Poesia em Lusofonias

RECEITA DE ANO NOVO

com Poesia em Lusofonias Ivo Carneiro de Sousa

A

o começar um Novo Ano ainda envolto na agitação das muitas festas natalícias e reveillons vários, estas sempre suas Lusofonias só podem mesmo associar-se a este clima fraterno descansado entre feriados e alguma preguiça oferecendo alguma dessa poesia que, felizmente tão abundante quanto marcante, tem ajudado a construir as literaturas dos países de língua oficial portuguesa. Acontece, contudo, que nas suas diversas expressões culturais e nacionais a poesia escrita em português dedicada ao Ano Novo é curta, escassa, difícil até de reunir. Existe, felizmente, um poema célebre de autor ainda mais famoso, Carlos Drummond de Andrade, a que normalmente se recorre para inspirar receita de novo ano. Aqui se convoca outra vez esse oportuno texto poético do grande arauto do primeiro modernismo brasileiro, mas que se decidiu acompanhar de uma muito despretensiosa selecção de outros poemas devidamente distribuídos em alfabética ordem pelos oito países de língua portuguesa, logo depois simbolicamente concluídos com um pequeno texto poético originário de Macau, escrito por José dos Santos Ferreira – ou, melhor, Adé –, servindo para recordar tanto a imensa pluralidade do que temos vindo a designar por lusofonias como esse papel que a RAEM quer promover de querer ser plataforma pertinente de serviços entre a grande China e os países lusófonos soberanos. Em 2014, não faltam comemorações, datas, eventos e temas importantes cruzando e sigeriondo certamente estudos, investigações e reflexões inteligentes sobre as lusofonias. É precisamente em 2014 que se cumprem, comemoram e, espera-se, se venha a investigar com profundidade e actualizado rigor os Oito Séculos de Língua Portuguesa. O testamento do rei D. Afonso II – homem doente, cavaleiro não conseguiu ser, mas cognome de O Gordo haveria de ganhar em crónicas, primeiro, e em oitocentistas manuais de história, depois – apresenta-se normalmente como o primeiro documento oficial escrevendo o que viria a ser a língua portuguesa vernácula agora espalhada por oito países e quase todos os continentes. Uma língua que, na longa duração da história, foi verbo tanto de opressão, escravatura, quanto de libertação e independências. Língua de ciência já era durante o Renascimento, de fina parenética também o foi na pena maior do Padre António Vieira, espalhando-se desde esse seu século XVII em muitas literaturas, vários géneros, misturando-se mesmo aos falares e outras linguagens que se encontravam (e ainda se encontram...) pelos diferentes espaços da expansão e presença colonial portuguesa. Uma mais do que importante língua de cultura, uma língua hoje de várias literaturas, mas uma língua definitivamente de poesia. Segue, por isso, sem qualquer pretensão antológica ou afim, um muito singelo presente de poesias em língua portuguesa com que se procura cultivar somente o amor sempre culto e excitante por uma língua que oito diferentes países quiseram mobilizar para erguer a sua soberania e que, aqui por Macau, pretende concretizar uma extraordinária aventura de bilinguismo que se inscreveu solene na Lei Básica desta Região Administrativa Especial da República Popular da China. A ler preguiçosa e poeticamente como convém a estes dias festivos. Uma receita com que se expressam os nossos mais sinceros votos de um Feliz Ano Novo de 2014!

Carlos Drummond de Andrade

Receita de Ano Novo Para você ganhar belíssimo Ano Novo cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido (mal vivido talvez ou sem sentido) para você ganhar um ano não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; novo até no coração das coisas menos percebidas (a começar pelo seu interior) ovo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, mas com ele se come, se passeia, se ama, se compreende, se trabalha, você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, não precisa expedir nem receber mensagens (planta recebe mensagens? passa telegramas?) Não precisa fazer lista de boas intenções para arquivá-las na gaveta. Não precisa chorar arrependido pelas besteiras consumidas nem parvamente acreditar que por decreto de esperança a partir de janeiro as coisas modem e seja tudo claridade, recompensa, justiça entre os homens e as nações, liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, direitos respeitados, começando pelo direito augusto de viver. Para ganhar um Ano Novo que mereça este nome, você, meu caro, tem de merecê-lo, tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, mas tente, experimente, consciente. É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre.

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II

Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 • LUSOFONIAS

lusofonias

Angola com Alda Lara De

N

ascida em Benguela, em 1930, falecida em 1962, licenciada em Medicina pela Universidade de Coimbra, Alda Lara é nome maior na renovação e fundação de uma poesia verdadeiramente angolana. Nacionalista convicta e figura fundamental na divulgação dos poetas africanos, Alda Lara não assistiu infelizmente em vida à publicação da sua obra, editada entre 1966 e 1984, muito graças ao diligente trabalho de compilação do seu marido, o escritor Orlando Albuquerque. Por aqui se celebra e revisita com poema importante de Alda Lara, simplesmente intitulado Prelúdio.

M

anuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho, de seu nome completo, nasceu no Recife, em 1886, e faleceu no Rio de Janeiro, em 1968. Manuel Bandeira dispensa apresentações: foi provavelmente o maior poeta brasileiro do século XX. Sem outras demoras, fique-se com esse poema maior que, de “pérsica” inspiração, o grande poeta da línos versos originais -se na original poesia de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro, em 1968. Manuel Bandeira dispensa apresentaçngua portuguesa chamou Vou-me embora pra Pasárgada. Poema lido e relido, muitas vezes imitado e glosado, mas que só pode mesmo revisitar-se nos versos originais de Manuel Bandeira.

Alda Lara Prelúdio

Manuel Bandeira Vou-me Embora pra Pasárgada

Pela estrada desce a noite Mãe-Negra, desce com ela...   Nem buganvílias vermelhas, nem vestidinhos de folhos, nem brincadeiras de guisos, nas suas mãos apertadas. Só duas lágrimas grossas, em duas faces cansadas.   Mãe-Negra tem voz de vento, voz de silêncio batendo nas folhas do cajueiro...   Tem voz de noite, descendo, de mansinho, pela estrada...   Que é feito desses meninos que gostava de embalar?...   Que é feito desses meninos  que ela ajudou a criar?... Quem ouve agora as histórias que costumava contar?...   Mãe-Negra não sabe nada...   Mas ai de quem sabe tudo, como eu sei tudo Mãe-Negra!...   Os teus meninos cresceram, e esqueceram as histórias que costumavas contar...   Muitos partiram p’ra longe, quem sabe se hão-de voltar!...   Só tu ficaste esperando, mãos cruzadas no regaço, bem quieta bem calada.   É a tua a voz deste vento, desta saudade descendo, de mansinho pela estrada..

Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei

(1951)

lusofonias

Brasil com Manuel Bandeira Do

(1930)

Vou-me embora pra Pasárgada Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca de Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d’água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcaloide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada.

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014

III

Da

Cabo Verde com Jorge Barbosa De

P

oeta maior da caboverdianidade, Jorge Barbosa nasceu na cidade da Praia, em 1902, falecendo em Almada, em 1971. Em 1935, publicou Arquipélago, obra fundacional da poesia de Cabo Verde. Seguida, em 1941, por Ambiente, em 1955, por Caderno de um Ilhéu, mais os livros perseguidos e proibidos que foram Meio Milénio, Júbilo e Panfletário. A Jorge Barbosa se foi pedir o seu indispensável Poema do Mar para voltar a reflectir sobre “Este desespero de querer partir/ e ter que ficar!”

Jorge Barbosa Poema do Mar (1941)

O drama do Mar, O desassossego do Mar, sempre sempre dentro de nós! O Mar! cercando prendendo as nossas Ilhas, desgastando as rochas das nossas Ilhas! Deixando o esmalte do seu salitre nas faces dos pescadores, roncando nas areias das nossas praias, batendo a sua voz de encontro aos montes, baloiçando os barquinhos de pau que vão por estas costas... O Mar! pondo rezas nos lábios, deixando nos olhos dos que ficaram a nostalgia resignada de países distantes que chegam até nós nas estampas das ilustrações nas fitas de cinema e nesse ar de outros climas que trazem os passageiros quando desembarcam para ver a pobreza da terra!

Agnello Regala

Moça com José

N

N

com

ascido em Campeana, na região de Tombali, no sul da Guiné-Bissau, em 1952, Agnelo Augusto Regalla é hoje um dos mais importantes e originais poetas guineenses. Tendo ocupado vários cargos na áera da informação. De Director Geral da Rádio Difusão Nacional da Guiné-Bissau a secretário de Estado, Agnello foi um dos promotores da criação da União Nacional dos Artistas e Escritores da Guiné-Bissau e muito activo colaborador na recolha dos materiais que deram origem à primeira antologia poética guineense, “O Eco do Pranto”, o preciso título do poema que aqui se oferece à descoberta de uma literatura fazendo das terras férteis guineenses aquilo que elas só podem vir a merecer no futuro: estabilidade e prosperidade.

Agnello Regalla O Eco do Pranto (1990)

Não me digas Que essa é a voz de uma criança Não...

É suave e mansa É uma voz que dança... Não me digas Que essa é a voz de uma criança Parece mais

O Mar! saudades dos velhos marinheiros contando histórias de tempos passados, histórias da baleia que uma vez virou a canoa... de bebedeiras, de rixas, de mulheres, nos portos estrangeiros...

Um eco

Este convite de toda a hora que o Mar nos faz para a evasão! Este desespero de querer partir e ter que ficar!

Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 • LUSOFONIAS

De

ascido em Maputo falecido também n em 2003, José João C reconhecidamente o m moçambicano, o prim africano galardoado c tante Prémio Camões sua biografia é sobeja cida e a sua obra cons trimónio fundamental em língua portuguesa em Craveirinha o poe com que o grande esc cano recordava a sua entre 1965 e 1969, fa uma célula da 4ª Regi -Militar da Frelimo. A língua que foi servind os movimentos de em antigas colónias portu se transforma em líng de libertação, em rigo poesia em língua port

De

Po

Fernand

A voz da criança

O Mar! a esperança na carta de longe que talvez não chegue mais!...

O Mar! dentro de nós todos, no canto da Morna, no corpo das raparigas morenas, nas coxas ágeis das pretas, no desejo da viagem que fica em sonhos de muita gente!

IV

Guiné-Bissau

Um grito sem esperança

Partindo de fundo de um beco Não me digas Que essa é a voz de uma criança, Essa é doce e mansa É uma voz que dança... Esta parece mais Um grito sufocado sob um manto - O Eco do Pranto.

N

asceu em nio Noguei se transformo culo no mais portugueses. F anos, com um escrevendo no 29 de Novemb tima frase em what tomorro sei o que o am no dia seguint que o futuro grar como um do mundo qua conseguiu pub português, a editada em 19 em inglês est em 1918 e 192 a sua educaçã Durban, na Áfr te, Pessoa de sima, complex aberta a mui ainda mais ad seus vários h Caeiro, se foi tranho Poema

lusofo

ambique é Craveirinha

o, em 1922, na capital, Craveirinha é maior poeta meiro escritor com o impors, em 1991. A amente conhestitui hoje pal da literatura a. Revisite-se ema Aparências critor moçambiprisão quando, azia parte de ião PolíticoA exacta mesma do para reprimir mancipação nas uguesas aqui gua de poesia or, em grande tuguesa.

ortugal com

do

Pessoa

1888 Fernando Antóira Pessoa aquele que ou no último meio séuniversal dos poetas Faleceu cedo, aos 47 ma cirrose hepática, o leito do hospital, a bro de 1935, a sua úlm inglês “I know not ow will bring” (Não manhã trará). Morreria te. Não sabia mesmo haveria de o consam dos grandes poetas ando, em vida, apenas blicar uma obra em célebre Mensagem, 934, mais três títulos tampados em Lisboa, 21, assim recordando o primária e liceal em rica do Sul. Felizmeneixou-nos obra vastísxa, quase misteriosa, itas interpretações e dmirações. A um dos heterónimos, Alberto pedir este quase esa do Menino Jesus.

onias

José Craveirinha Aparências Amigos! Apesar das aparências estarem de acordo com as circunstâncias não sou eu quem morre de medo.   Antes Durante E após os interrogatórios (Inclusive nos quotidianos trajectos de jipe) a minha língua é que se torna de papel almaço E minhas desavergonhadas rótulas de borracha Coitadas é que tremem.   Ao bom evangelho dos cassetetes ouvir avoengos pássaros bantos cantarem algures nos ombros velhas melodias de feridas.   E depois à sedutora persuasão das ameaças pela décima segunda vez humildemente pensar: Não sou luso-ultramarino SOU MOÇAMBICANO!   Será suficiente esta confissão Sr. Chefe dos cassetetes da 2ª. Brigada?

Poema do Menino Jesus Num meio-dia de fim de Primavera Tive um sonho como uma fotografia. Vi Jesus Cristo descer à terra. Veio pela encosta de um monte Tornado outra vez menino, A correr e a rolar-se pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de longe. Tinha fugido do céu. Era nosso demais para fingir De segunda pessoa da Trindade. No céu tudo era falso, tudo em desacordo Com flores e árvores e pedras. No céu tinha que estar sempre sério E de vez em quando de se tornar outra vez homem E subir para a cruz, e estar sempre a morrer Com uma coroa toda à roda de espinhos E os pés espetados por um prego com cabeça, E até com um trapo à roda da cintura Como os pretos nas ilustrações. Nem sequer o deixavam ter pai e mãe Como as outras crianças. O seu pai era duas pessoas Um velho chamado José, que era carpinteiro, E que não era pai dele; E o outro pai era uma pomba estúpida, A única pomba feia do mundo Porque nem era do mundo nem era pomba. E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. Não era mulher: era uma mala Em que ele tinha vindo do céu. E queriam que ele, que só nascera da mãe, E que nunca tivera pai para amar com respeito, Pregasse a bondade e a justiça! Um dia que Deus estava a dormir E o Espírito Santo andava a voar, Ele foi à caixa dos milagres e roubou três. CONTINUA NA PÁGINA SEGUINTE > LUSOFONIAS • Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014

V

< CONTINUADO DA PÁGINA ANTERIOR

Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido. Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz E deixou-o pregado na cruz que há no céu E serve de modelo às outras. Depois fugiu para o Sol E desceu no primeiro raio que apanhou. Hoje vive na minha aldeia comigo. É uma criança bonita de riso e natural. Limpa o nariz ao braço direito, Chapinha nas poças de água, Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. Atira pedras aos burros, Rouba a fruta dos pomares E foge a chorar e a gritar dos cães. E, porque sabe que elas não gostam E que toda a gente acha graça, Corre atrás das raparigas Que vão em ranchos pelas estradas Com as bilhas às cabeças E levanta-lhes as saias. A mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as coisas. Aponta-me todas as coisas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas Quando a gente as tem na mão E olha devagar para elas. Diz-me muito mal de Deus. Diz que ele é um velho estúpido e doente, Sempre a escarrar para o chão E a dizer indecências. A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia. E o Espírito Santo coça-se com o bico E empoleira-se nas cadeiras e suja-as. Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica. Diz-me que Deus não percebe nada Das coisas que criou “Se é que ele as criou, do que duvido.” “Ele diz por exemplo, que os seres cantam a sua glória, Mas os seres não cantam nada. Se cantassem seriam cantores. Os seres existem e mais nada, E por isso se chamam seres.” E depois, cansado de dizer mal de Deus, O Menino Jesus adormece nos meus braços E eu levo-o ao colo para casa. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano que é natural. Ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei com toda a certeza Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. E a criança tão humana que é divina É esta minha quotidiana vida de poeta, E é por que ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre. E que o meu mínimo olhar Me enche de sensação, E o mais pequeno som, seja do que for, Parece falar comigo.

Damo-nos tão bem um com o outro Na companhia de tudo Que nunca pensamos um no outro, Mas vivemos juntos e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda. Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No degrau da porta de casa, Graves como convém a um deus e a um poeta, E como se cada pedra Fosse todo o universo E fosse por isso um grande perigo para ela Deixá-la cair no chão. Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens E ele sorri porque tudo é incrível. Ri dos reis e dos que não são reis, E tem pena de ouvir falar das guerras, E dos comércios, e dos navios Que ficam fumo no ar dos altos mares. Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade Que uma flor tem ao florescer E que anda com a luz do Sol A variar os montes e os vales E a fazer doer aos olhos dos muros caiados. Depois ele adormece e eu deito-o. Levo-o ao colo para dentro de casa E deito-o, despindo-o lentamente E como seguindo um ritual muito limpo E todo materno até ele estar nu. Ele dorme dentro da minha alma E às vezes acorda de noite E brinca com os meus sonhos. Vira uns de pernas para o ar, Põe uns em cima dos outros E bate palmas sozinho Sorrindo para o meu sono. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Quando eu morrer, filhinho, Seja eu a criança, o mais pequeno. Pega-me tu ao colo E leva-me para dentro da tua casa. Despe o meu ser cansado e humano E deita-me na tua cama. E conta-me histórias, caso eu acorde, Para eu tornar a adormecer. E dá-me sonhos teus para eu brincar Até que nasça qualquer dia Que tu sabes qual é. ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... Esta é a história do meu Menino Jesus. Por que razão que se perceba Não há-de ser ela mais verdadeira Que tudo quanto os filósofos pensam E tudo quanto as religiões ensinam ?

A Criança Nova que habita onde vivo Dá-me uma mão a mim E outra a tudo que existe E assim vamos os três pelo caminho que houver, Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso segredo comum Que é saber por toda a parte Que não há mistério no mundo E que tudo vale a pena. A Criança Eterna acompanha-me sempre. A direcção do meu olhar é o seu dedo apontado. O meu ouvido atento alegremente a todos os sons São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.

VI

Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 • LUSOFONIAS

lusofonias

São Tomé e Príncipe com Caetano da Costa Alegre

Timor-Leste com Francisco Borja da Costa

P

C

De

oeta hoje muito pouco conhecido, Caetano da Costa Alegre nasceu em São Tomé, em 1864, no seio de uma família de emigrantes cabo-verdianos que se expressavam em crioulo. Em 1882, estudou durante oito anos em Portugal, formando-se como médico naval que nunca viria a ser, falecendo em 1890 vítima de tuberculose. A sua poesia singular foi reunida e publicada em 1916 pelo esforço do seu amigo, o jornalista Cruz Magalhães, destacando uma poética romântica em que se celebra a saudade de São Tomé e se elogiam as culturas africanas. Criador da poesia da negritude viriam depois a designar o precursor que é verdadeiramente Caetano da Costa Alegre, a seguir recordado nos seus Cantares Santomenses.

Caetano da Costa Alegre Cantares Santomenses Branca a espuma e negra a rocha, Qual mais constante há-de ser, A espuma indo e voltando, A rocha sem se mexer?   Não creias que em teu jazigo Alguém parta o coração, No mundo quem morre, morre, Quem cá fica come pão.   Não me dizem quanto tempo Tenho ainda que viver, Ficava ao menos sabendo Quando finda o meu sofrer.   Se eu me casasse contigo, Fazia um voto de ferro, De deixar-te unicamente No dia do meu enterro.   Todos me dizem: “esquece Essa paixão, que te abrasa”. Que serve fechar a porta Ao fogo que tenho em casa?   Não havia tanta cara De asno, de tolo e pedante, Se falasse, quem censura, Com um espelho adiante.   Brotam espinhos da rosa, O incêndio brota do lume. A traição brota das juras, Brota do amor o ciúme.   Numa loja conhecida O que é cem custa duzentos, Levam dinheiro em fazendas E o tempo nos cumprimentos.   Macaco, chamaste tolo Ao meu pequeno sagüi. Também queria que ouvisses O que ele disse de ti.   Por teu desdém não me mato, Não faço tamanha asneira, Se o meu amor tu não queres, Há muita gente que o queira.   Quem pode num campo vasto O joio apartar dos trigos? Quem conhece dentre os falsos Os verdadeiros amigos?

lusofonias

De

onhecido por ser o autor da letra de Pátria, o hino nacional da República Democrática de Timor, Francisco Borja da Costa nasceu em Manatuto, em 1946, sendo morto a 7 de Dezembro de 1975 no preciso primeiro dia da conhecida e muito dramática invasão das terras timorenses pelo poderoso exêrcito da Indonésia. Poeta com textos dispersos por vários jornais e revistas, aguardando conveniente reunião e estudo, retirou-se da sua obra curta, maioritariamente escrita em tetum, este poema mais referenciado intitulado Um Minuto de Silêncio.

Francisco Borja da Costa Um Minuto do Silêncio Calai Montes Vales e fontes Regatos e ribeiros Pedras dos caminhos E ervas do chão, Calai Calai Pássaros do ar E ondas do mar Ventos que sopram Nas praias que sobram De terras de ninguém, Calai Calai Canas e bambus Árvores e «ai-rús» Palmeiras e capim Na verdura sem fim Do pequeno Timor, Calai Calai Calai-vos e calemo-nos POR UM MINUTO É tempo de silêncio No silêncio do tempo Ao tempo de vida Dos que perderam a vida Pela Pátria Pela Nação Pelo Povo Pela Nossa Libertação Calai - um minuto de silêncio...

LUSOFONIAS • Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014

VII

Macau com José dos Santos Ferreira (Adé) De

E

ncerre-se esta receita de Ano Novo com um Poéma di Macau escrito por essa figura maior da cultura macaense que foi José dos Santos Ferreira, mas que por Adé foi mais simplesmente conhecido. Nascido em 1919 de pai de origens portuguesas e mãe macaense, em Adé se descobre uma vasta obra, ainda muito dispersa, em que se vai destacando a defesa e divulgação do patuá, mais um continuado comprometimento na promoção das culturas macaenses enquanto encruzilhada fundamental entre civilizações, culturas e linguagens. Essas mesmo que fazem de Macau ponte imperdível entre Oriente e Ocidente de que os macaenses são tão herdeiros quanto depositários. Por Hong Kong faleceu Adé, em 1993, mas deixou-nos textos e poesias suficientemente generosos a merecer novas edições rigorosas e estudo sério. Para que conste. Para que fique.

José dos Santos Ferreira (Adé) Poéma di Macau II (1983)

Vôs, Macau, co passado alegre, triste, Sã lembrá céu di laia-laia côr: Têm dia, olá Sol brilhá co chiste, Têm ora, núve iscuro pintá dôr. Vôs têm sosségo, lô vêm calmaria, Tudo gozá, soltá cacada, ri! Virá lestada, suprá ventania, Quim sentá churá, quim botá fuzil   (Leitura: Tu, Macau, de passado alegre e triste, Fazes lembrar o céu quando varia de cor: Dias em que o Sol brilha com graça, Horas em que núvens escuras retratam dor. Se estás em sossego, há tranquilidade, Todos gozam, riem às gargalhadas! Vem a lestada, fustiga a ventania, Uns ficam a chorar, outros se põem a fugir!)

VIII

Segunda-feira, 06 de Janeiro de 2014 • LUSOFONIAS

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