Recensão ao livro de Ferreira do Amaral \"Porque Devemos Sair do Euro\"

July 25, 2017 | Autor: Manuel Monteiro | Categoria: Economia Política
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Numa linha de coerência com o que sempre pensou, disse e escreveu, João Ferreira do Amaral publicou mais um livro com o título "Porque Devemos Sair do Euro - O divórcio necessário para tirar Portugal da crise". Neste trabalho, seguindo aliás muitos dos seus anteriores testemunhos sobre a relação de Portugal com a União Europeia – de que destacamos "Contra o Centralismo Europeu - Um Manifesto Autonomista" –, somos conduzidos a uma reflexão objectiva quanto às consequências da manutenção no euro e quanto às vantagens do seu abandono.






Propondo o que designa de "divórcio de mútuo consentimento", um divórcio favorável a Portugal e à União Europeia, Ferreira do Amaral faz ao longo de cinco capítulos uma relevante análise sobre o papel da moeda nas economias e um não menos importante exame quer às consequências da nossa adesão ao euro, quer aos benefícios de regressarmos ao escudo. Rompendo com a orientação oficial difusora e promotora de um único pensamento, o livro em apreço convida-nos a conhecer um caminho alternativo e profundamente distinto daquele que temos vindo a seguir. Esse caminho traduz para o autor uma forma substancialmente oposta de enfrentar a crise em que actualmente estamos envolvidos e uma nova via para a podermos ultrapassar. Conciliando a análise científica com a afirmação de ideias que não desconhecem uma determinada visão do Estado nacional, o texto cuja recensão aqui fazemos demonstra que o cientista da economia não ofuscou o Professor. A sua preocupação em ser entendido pelo maior número de leitores é visível na linguagem adoptada e na estrutura que escolheu para expor as suas ideias e apresentar os seus pontos de vista. É um aspecto nem sempre evidenciado e que revela afinal a diferença entre os que escrevem apenas para os membros dos grupos profissionais que integram e os que escrevem também tendo em vista a comunidade de homens e mulheres a que pertencem, seja qual for a sua actividade ou condição. A análise feita, bem como as ideias e as soluções propostas, não estão blindadas à discordância e à crítica, sendo perfeitamente aceitável, compreensível e até saudável que o contraditório se faça sempre notar. Mas uma coisa será a legítima divergência, natural e normal em qualquer sociedade adulta e mais natural e normal na comunidade académica, outra será ignorar o contributo que agora nos chega, para serenamente pensarmos e serenamente decidirmos o que podemos e queremos fazer daqui em diante. Mesmo que a tarefa de pensar, para além do que quotidianamente nos chega pelos órgãos de comunicação social, seja um exercício para o qual nem todos se manifestam disponíveis, seria no mínimo surpreendente que quantos se dedicam ao estudo e à investigação nas áreas das ciências humanas – e a economia é seguramente uma dessas ciências – não dedicassem algum do seu tempo a ler, ainda que para sustentadamente criticar, o que outros pensam, mesmo que aquilo que pensam seja diferente do que nós próprios pensamos. Essa eventual postura pode ser compreensível para certas escolas de pensamento, mas é manifestamente inadequada para as Escolas do pensamento, nas quais a dúvida não deixa de acompanhar a certeza e a certeza é quase sempre o resultado das dúvidas que se desfazem, precisamente pelo facto de terem sido admitidas.
É assim, neste contexto, que lemos e analisámos o trabalho em questão, reconhecendo a sua pertinência em dois domínios que apesar de interligados se autonomizam. Falamos do Estado nacional e das perspectivas acerca da União Europeia, áreas do conhecimento a que um livro desta natureza não é, e julgamos não querer ser, indiferente. Vejamos, sumariamente, a sua correspondência a cada uma das áreas referidas.
a) No âmbito do Estado nacional, Ferreira do Amaral convida-nos a pensar, ou a repensar, a sua essência, bem como a existência de «instrumentos» de que esse mesmo Estado necessita para plenamente cumprir a sua missão. E é nesse sentido que considera ser "…falta de patriotismo em geral retirar, sem justificação, ao Estado instrumentos importantes para a vida da sociedade que por ele é enquadrada e entregar esses instrumentos a outros Estados ou a instituições internacionais". Saliente-se que esta abordagem do Estado é absolutamente diversa da que pretende sobre ele reflectir, a propósito das funções, se preferirmos das tarefas, que lhe estão ou devem estar atribuídas e que vem sendo identificada como debate da «reforma do Estado». Enquanto neste segundo caso se discutem tarefas ou áreas de intervenção no domínio social e económico, no primeiro reflecte-se a própria fundamentação do Estado e os poderes que têm de lhe estar associados para que de um Estado se possa plenamente falar. É certo que o autor, ao considerar as políticas monetária e cambial como núcleos essenciais desses poderes, fala de «autogoverno», afirmando preferir "…esta designação à de "soberania")", mas independentemente da tradução que possamos fazer da expressão «autogoverno» e da relação que a partir dela estabeleçamos com o conceito de soberania, não deixa de se evidenciar, uma vez mais, como distinta é a sua abordagem quanto ao papel do Estado, por comparação com a polémica que ultimamente tem animado parte do debate que entre nós se tem travado. Do que aqui se trata não é de saber se o "Estado" deve estar presente, e em que termos, na Educação, na Saúde, na Segurança Social e na Economia, mas de compreender se pode continuar a existir Estado soberano, ou independente, se lhe forem retirados determinados «instrumentos», para a sua afirmação e existência. Neste preciso âmbito é para o próprio pensamento político que o autor nos remete, num livro que não separa a política económica da Política e que não isola a discussão referente às questões monetárias e financeiras, das grandes opções que fizemos, que fazemos ou que venhamos a fazer, no que concerne à definição e extensão do próprio poder político soberano.
Este debate, para o qual Ferreira do Amaral nos alerta e incentiva, não está terminado, pela simples razão de que nunca foi verdadeiramente iniciado, nem partilhado com toda a comunidade portuguesa, e as posições agora expressas no livro em análise têm desde logo o inegável mérito de permitir que o tema regresse à vida nacional. Um tema que dizendo respeito à própria Nação, convoca a comunidade para um debate leal, aberto e sem restrições, que nos conduza a decidir se queremos readquirir competências, entretanto transferidas para o plano comunitário, ou se simplesmente entendemos que a comunitarização das políticas económica, monetária e fiscal, deve prosseguir. O assunto, mesmo que agora surja inserido no contexto das temáticas mais directamente relacionadas com a situação económica e financeira, ou aparentemente só a elas diga respeito, transcende estes aspectos e envia-nos para uma inevitável incursão no pensamento político. Uma incursão que nos incita, desde logo, a responder a perguntas, que noutro contexto tivemos já oportunidade de colocar, e que aqui sintetizamos: pode a Nação portuguesa manter o Estado nacional, ainda que revestido de novas funções, sem que nele persista soberania? E poderá a própria Nação, a prazo, persistir diante a ausência de Estado soberano ou sem a possibilidade de evocar a sua soberania, se isso corresponder à vontade dos seus nacionais, para alterar rumos, redefinir alianças, sair de organizações internacionais, modificar a forma como nelas pretende estar, ou aderir a novas organizações que internacionalmente se venham a constituir?
Ora é também nesta dimensão, que podemos e devemos ler o livro de João Ferreira do Amaral, em particular o seu Capítulo 2, "A Moeda e o Estado", no qual o autor primeiro afirma que "dispondo de moeda própria, um país pode ter uma política monetária autónoma…", depois adverte que "…a ausência de uma moeda própria reduz a margem de escolha de um país", e por fim defende "…que para a autonomia de um país é essencial, (…), dispor de moeda própria, nomeadamente para poder financiar o Estado, se necessário". Posições, reiteramos, que procurando dar resposta a problemas prementes da sociedade portuguesa, não deixam de nos questionar sobre quais são afinal os poderes soberanos de que um Estado não deve abdicar e de quais são os «instrumentos», para seguirmos a expressão do autor, necessários ao exercício desses mesmos poderes. O que aqui se discute não é assim apenas a moeda que utilizamos, mas qual o princípio que deve estar subjacente quer à sua emissão, quer à sua utilização. Reafirmando a ideia de que a existência de uma moeda pressupõe a existência de uma comunidade nacional politicamente organizada, Ferreira do Amaral recupera a indispensabilidade de uma reflexão a que ninguém, nomeadamente aqueles que se dedicam ao estudo do pensamento político, seja qual for a sua opinião, se deve furtar.
b) Sobre a União Europeia, e em especial sobre os caminhos seguidos para a adopção da moeda única, o autor reserva mais detalhadamente os Capítulos 3 e 4. No primeiro, Ferreira do Amaral recorda o relatório Werner, de 1970, feito a pedido dos então seis Estados membros da CEE, em 1969, ou seja doze anos após a assinatura do Tratado de Roma (1957), no qual se definiam os passos a dar para uma futura união monetária, e faz uma análise retrospectiva ao caminho percorrido desde então até à entrada em vigor do euro. Mas dessa sumária análise, relevante todavia para recordarmos o Sistema Monetário Europeu e as suas regras de funcionamento, ressalta a convicção do autor segundo a qual a moeda única, sendo um projecto essencialmente político, resulta por um lado de "…uma amálgama de interesses de grandes estados…" e, por outro, de "…uma estranha aliança contranatura de duas ideologias de âmbito e natureza muito diferentes: o federalismo europeu e neoliberalismo". A primeira, apoia a moeda única porque tem "…como finalidade última a criação de um superestado europeu que, em funções essenciais (…), substitua os Estados nacionais e os relegue para o estatuto medíocre de estados federados", enquanto a segunda a "…apoia (…) porque é contra a intervenção do Estado na economia e contra a utilização da política monetária de forma discricionária (…), preferindo que ela seja utilizada apenas para prosseguir uma regra permanente de crescimento razoável da massa monetária".
No Capítulo 4, surge-nos uma apreciação mais detalhada sobre "as grandes mudanças" registadas na Europa comunitária desde meados de 1988, passando pela entrada em circulação da nova moeda europeia, em Janeiro de 2002, até ao presente. Neste capítulo, retomando em vários aspectos pontos abordados nas páginas anteriores, João Ferreira do Amaral, sem descurar as questões de natureza económica quanto às vantagens e às desvantagens da moeda única, procede a uma apreciação política dos passos dados pelos governos da Europa comunitária. Dessa apreciação entendemos realçar:
a ideia de que a moeda única visou responder a preocupações políticas, em particular da França liderada por Mitterrand, resultantes do desmoronamento do então bloco soviético e da futura reunificação alemã;
a ideia de que o novo rumo europeu, traduz uma aliança não natural entre conservadores e socialistas, que permitiram a um só tempo desvirtuar uma Europa que se pretendia unida mas não unificada em torno do quadro definido após a aprovação do Tratado de Maastricht.
Quanto à primeira ideia, considera o autor que a moeda única passando"…a certa altura, a ser encarada como um processo de ajudar a Europa a gerir politicamente esta fase de grande mudança nas relações de poder", traduz a vontade de Miterrand em forçar a Alemanha a abandonar a sua própria moeda, o marco, recebendo esta, em contrapartida, o apoio francês à sua unificação. Fazendo-o em nome do projecto europeu, os franceses e a maioria dos demais líderes europeus viriam, de acordo com o autor, a cometer um erro de enormes proporções, uma vez que "…a moeda única europeia só se realizaria nos termos em que a Alemanha concordasse, tanto mais que a forma de criação da moeda única (…) só foram negociados no final de Maastricht – depois da reunificação alemã e após a implosão da União Soviética…". Nestas condições terá sido, ainda e uma vez mais, o "tradicional" receio da hegemonia alemã na Europa, a ditar a forma e os termos a que o euro se haveria de subordinar. Ele não corresponde assim a um ideal partilhado em que a igualdade dos Estados que a ele aderiram se haveria de afirmar, mas tão só a um modo de condicionar estratégias e vontades nacionais que os maiores Estados, ou um deles, objectivamente não deixaram de possuir. Uns terão querido o euro para impedir o domínio de outros e outros terão aceitado o euro sabendo que, a prazo, esse seu domínio se alcançaria e manifestaria.
Quanto à segunda ideia, Ferreira do Amaral enfatiza a perspectiva segundo a qual "…a partir de Maastricht o projecto europeu passou a ser eminentemente conservador – até ultraconservador, no que respeita ao quadro institucional monetário e financeiro", lamentando o que classifica de "…desvio para a direita por parte do socialismo europeu…", ao aprovarem sem nenhuma objecção o Tratado de Maastricht, o mesmo que "…atacava o modelo social europeu e não dava margem para os partidos socialistas ou social-democratas prosseguirem políticas informadas pelos valores que tradicionalmente defendiam". Este conservadorismo ou até ultraconservadorismo seriam afinal, para o autor, a tradução objectiva de uma outra aliança a que já fizemos referência. A aliança entre federalistas e neoliberais, "…irmanados no mesmo ódio ao estado-nação – o neoliberalismo porque é estado, o federalismo porque é nação –, a convergência contranatura das duas ideologias solidificou-se (…), conspirando afinal e em última análise contra o futuro da Europa e do seu Estado social…".
Não sendo este o lugar apropriado para reflectirmos sobre os posicionamentos ideológicos, ou sobre a classificação que fazemos de quantos intervieram na problemática da arquitectura institucional da União Europeia, não deixaremos de assinalar que uma expressiva maioria de quantos se identificaram, e identificam, com o pensamento conservador, democrático, na Europa comunitária, adoptaram igualmente pontos de vista contrários às teses contestadas no livro em análise. E ainda que as razões de tal posicionamento pudessem ter tido pontos de partida e objectivos distintos, nem por isso deixaram de expressar as suas ideias, as suas razões e as suas alternativas. Poderemos assim questionar o sentido de uma identificação das ideias federalistas e neoliberais, que sustentaram o euro, com as correntes conservadoras, mesmo com aquelas que não se encontram nos Estados que decidiram não aderir à moeda única. No entanto, e independentemente deste aspecto, é de sublinhar a importância do livro que aqui recenseamos. Se tem a seu favor a actualidade do tema, tem principalmente o mérito de permitir que revisitemos matérias que merecem ser continuamente analisadas e reflectidas.

Manuel Monteiro
Professor da Universidade Lusíada do Porto
Julho 2013


Editado pela Grifo, em 2002.
Cf. AMARAL, João Ferreira do, Porque Devemos Sair do Euro - O divórcio necessário para tirar Portugal da crise, Alfragide, Lua de Papel, 2013, p. 121.
Contraditório que podemos encontrar na também recente publicação do Prof. Vitor Bento, Euro Forte, Euro Fraco, editada pela Bnomics.
O que não é seguramente o nosso caso, uma vez que nos identificamos, em geral, com muitas das teses (o que não significa com todas) desde sempre sustentadas neste campo, pelo Doutor João Ferreira do Amaral.
Cf. AMARAL, João Ferreira do, Porque Devemos Sair do Euro…cit, p. 59.
Falamos das «funções» do Estado no sentido de "…actividades específicas ou diferenciadas, duradouras, cujo exercício coordenado por parte de um ou mais órgãos do Estado se dirige à prossecução de um ou mais fins do Estado", distinguindo-se as «funções», dos «poderes» do Estado. Cf. PINTO, Ricardo Leite, CORREIA, José de Matos, SEARA, Fernando Roboredo, Ciência Política e Direito Constitucional – Teoria Geral do Estado, Formas de Governo, Eleições e Partidos Políticos, vol. I, Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2013, p. 183 e pp. 184-187, respectivamente.
Cf. AMARAL, João Ferreira do, Porque Devemos Sair do Euro…cit, p. 59.
Conceito que, de acordo com Martim de Albuquerque, abrange "…coisas tão distintas como doutrina, ideologia e teoria política, para não se falar já na literatura e na filosofia política". Cf. ALBUQUERQUE, Martim de, «Pensamento Político», in Polis, 4, Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, 1986, p. 1127.
Perguntas que fizemos a propósito de um trabalho sobre o Conselho da União Europeia, da autoria do Dr. João Pedro Simões Dias. Cf. MONTEIRO, Manuel, «Prefácio», in DIAS, João Pedro Simões, O Conselho da União Europeia, Coimbra, Quarteto, 2001, p. 17.
Cf. AMARAL, João Ferreira do, Porque Devemos Sair do Euro…cit, pp. 51-61.
Idem, ibidem, p. 51.
Idem, ibidem, p. 55.
Idem, ibidem, p. 56.
Idem, ibidem, pp. 65-73 e 77-108, respectivamente.
Idem, ibidem, p. 72.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem, p. 78.
Idem, ibidem, p. 79.
Idem, ibidem, p. 100.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem.
Idem, ibidem, p. 83.


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