Recensão ao texto \"Espaços Discursivos da Fotografia: Paisagem/Vista\" de Rosalind Krauss

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Recensão ao texto “Espaços Discursivos da Fotografia: Paisagem / Vista” de Rosalind Krauss Alexandre Alagôa, nº 7120 Teoria da Arte Moderna Mestrado em Arte Multimédia, 1º Ano, 1º Semestre FBAUL, 2015-2016 Índice Introdução ................................................................................................................. 1 Espaços Discursivos ................................................................................................. 3 O Espaço da Exposição: A Parede ............................................................................ 4 A Estereoscopia ........................................................................................................ 6 Paisagem e Vista ....................................................................................................... 8 O Artista, a Obra e o Arquivo.................................................................................... 9 O Ecrã ....................................................................................................................... 11 Considerações Finais................................................................................................. 14 Referências................................................................................................................ 15 Resumo Apresenta-se uma breve leitura do ensaio «Espaços Discursivos da Fotografia» de Rosalind Krauss. Caracterizam-se os dois termos utilizados pela autora: Paisagem e Vista. Expõem-se os géneros de conhecimento em que ambos os termos operam. Discute-se o papel do espaço de exposição na construção do discurso da fotografia do séc XIX. Fala-se ainda do Ecrã como lugar do não-discurso Palavras-Chave: Fotografia, Paisagem, Vista, Ecrã Introdução A imagem fotográfica é, como refere Barthes, uma mensagem sem código. Ela não é simbólica como a palavra, nem icónica como a pintura; ela não possui, na sua génese, qualquer codificação uma vez que funciona, precisamente, como uma reprodução mecânica da realidade. Visto que a fotografia funciona como uma transferência analógia de um referente, quase como uma duplicação física achatada de algo que é captado e transportado para dentro de uma máquina, no fundo, um índice, um vestígio daquilo que esteve diante da objectiva, assemelhando-se assim mais a uma impressão digital e a uma pegada (evocando e aliando aqui as ideias de Bazin e de Pierce) do que à própria pintura, ela pode, de facto, servir como uma ferramenta de registo técnico e documental, de organização catalográfica e de arquivo.

Contudo, como mensagem sem código, a fotografia torna-se numa espécie de depósito para qualquer significado ou interpretação à medida que começa a integrar os discursos de uma varieadade de domínios, de contextos, de ramos do conhecimento, desde as várias disciplinas da ciência, da história e da arte. Estes diferentes espaços tomam a imagem fotográfica para si mesmos e, através de diferentes metodologias e codificações, atribuiem-lhe uma definição/função na sua própria linguagem característica. Desta forma, a fotografia pode, de igual modo, e apesar de toda a sua objectividade, servir a imaginação do artista na materialização de determinados conceitos ou temáticas através da criação de imagens que podem contribuir para a construção de um discurso estético. No seu texto «Espaços Discursivos da Fotografia: Paisagem/Vista», Rosalind Krauss discute que o significado e interpretação de uma determinada imagem dependem então do espaço discursivo em que ela e o seu observador operam. Segundo a autora, a fotografia documental e de registo, possuidora de um carácter objectivo e racional, ocupa um lugar diferente da fotografia e da própria pintura que partem da subjectividade, do imaginação e da experiência de um determinado indivíduo perante um conceito específico. Esta separação entre espaços discursivos é inicialmente apresentada pela autora através de uma comparação entre duas imagens aparentemente semelhantes - uma fotografia de O’Sullivan e a sua reprodução litográfica. Logo imediatamente, com uma questão em torno da função da parede da galeria para a instituição do espaço de exposição e a sua importância para a construção do discurso estético. De seguida, com o papel da estereografia na distribuição de imagens e a relação destas com o público. Adiante, com uma distinção entre dois termos distintos: a paisagem e a vista enquanto o segundo pressupõe uma representação mapeada do mundo, o primeiro constitui um acto de criação visual que desencadeia à contemplação e à sensibilidade estética. E ainda, com uma observação sobre a noção de artista e de obra, e também sobre a questão do arquivo tendo como exemplo a obra de Eugène Atget. Por último, já fora do texto de Krauss, elabora-se um comentário acerca do ecrã de forma a estabelecer uma pequena relação desta questão do espaço discursivo da imagem com a actalidade. O seguinte texto procura então fazer uma breve leitura do ensaio de Krauss com a

finalidade de destacar e analisar as principais questões que são levantadas pela autora, oferecendo ainda alguns pequenos comentários a essas mesmas. Espaços Discursivos Rosalind Krauss dá inicio ao ensaio «Espaços Discursivos da Fotografia: Paisagem/Vista» com a apresentação de duas imagens, quase idênticas, com o mesmo título: Tufa Domes, Pyramid Lake, Nevada. A da esquerda é uma célebre fotografia de Timothy O’Sullivan que se destaca pela sua aura misteriosa e onírica. A da direita é uma cópia litográfica dessa mesma fotografia de O’Sullivan, mas apropriada para integrar um livro de geologia - o Systematic Geology - de Clarence King, apresentando então um carácter mais pormenorizado e de alguma forma banal do que o seu original.

Fig. 1 - Timothy O’ Sullivan, Tufa Domes, Pyramid Lake (Nevada), 1868

Fig. 2 - FotoLitografia a partir de O’Sullivan. Publicada no King Survey, 1875

Contudo, refere Krauss, a diferença entre as duas imagens não é resultado da criatividade do fotógrafo nem da trivialidade da litografia, mas sim devido ao facto de pertencerem a dois domínios culturais diferentes. As duas imagens assumem diferentes expectativas no utilizador, transmitem dois géneros diferentes de conhecimento, funcionam então dentro de dois espaços discursivos distintos. A imagem litográfica pertence ao discurso da geologia e, portanto, da ciência. Assim, para que possa assumir a sua função dentro desse discurso, toda uma série de elementos inerentes à descrição topográfica têm que ser aplicados à fotografia de O’Sullivan. O relevo do terreno tem que ser representado graficamente, as cúpulas vulcânicas, outrora místicas e flutuantes, são convertidas em meros dados geográficos. Há, refere Krauss, como que uma despromoção da imagem que passa de estranha para um lugar-comum, tornando-se assim num mero documento técnico.

É aqui que Krauss vai iniciar uma discussão em torno de qual é realmente o espaço em que a fotografia original de O’Sullivan actua. Ao longo do século XIX, refere a autora, o desenvolvimento do discurso estético organizou-se crescentemente em torno do que é definido como o espaço de exposição. O espaço de exposição, independentemente do lugar em que esteja inserido (museus, feiras, salões, galerias) é constituído principalmente pela superfície contínua da parede, cuja função é, cada vez mais, unicamente, a de mostrar e revelar arte a um público. Este espaço de exposição é, ainda, diz Krauss, simultaneamente o terreno para a crítica: por um lado serve como um campo de reacções à presença física da obra naquele contexto específico e, por outro, como um lugar de eleição onde tudo o que é excluído se torna marginalizado em relação ao seu estatuto como objecto artístico. Visto que a parede funciona como um veículo físico da exposição, ela torna-se assim um indicativo de inclusão, podendo ser vista como constituindo em si mesma uma representação daquilo a que a autora chama de exposicidade. A parede impõe-se como um espaço que confere um novo sentido a qualquer coisa que nela seja fixada e exibida. O próprio acto de pendurar uma imagem na parede de uma galeria confere-lhe o estatuto de objecto artístico; ela como que legitima a própria obra de arte. O Espaço de Exposição: A Parede De seguida, Krauss menciona que, durante a segunda metade do século XIX, a pintura de paisagem vai reagir com um conjunto de representaçãoes perante esta relação com a exposição. A paisagem começa a integrar o próprio espaço de exposição e a representá-lo. A paisagem torna-se rapidamente numa visão aplanada e comprimida do espaço que se estendia lateralmente através da superfície. Esta transformação começa com a nulidade da perspectiva, com a disposição diagonal da superfície através, por exemplo, de fileiras de árvores, mais tarde com as séries de paisagens penduradas umas a seguir às outras, imitando a extensão horizontal da parede (como nas pinturas da catedral de Rouen de Monet), ou paisagens sem horizonte que ocupavam todo ou a maior parte do espaço da parede, e por último, refere Krauss, a paisagem e a parede atingem um sinonimia, tornando-se uma a representação da outra, como nos últimos Nenufares de Monet nos quais o «discurso estético encontra a sua resolução em torno de uma representação do próprio espaço que fundamenta a sua instituição» (Krauss, 2013, p. 413).

É aqui que Krauss afirma que, se nos interrogarmos em que espaço discursivo funciona a fotografia original de O’Sullivan, há que responder que é no discurso estético. Contudo, imediatamente a autora questiona: Mas terá O’Sullivan na sua época, as décadas de 60 e de 70 do século XIX, construído a sua obra para o discurso estético e para o espaço de exposição? Ou tê-la-á ele criado para o discurso cientifico/topográfico, que serve de uma maneira mais ou menos eficaz? Não será a interpretação da obra de O’Sullivan, enquanto representação de valores estéticos - ausência de profundidade, design gráfico, ambiguidade e, para além destes, algumas intenções de significação estética, como a sublimidade e a transcendência -, uma construção retrospectiva concebida para a firmar como arte? E não será esta projecção ilegítima a composição de uma falsa história? (Krauss, 2013, pp. 413-414) Colocadas estas questões, Krauss remete-nos para a história da fotografia que tem vindo a integrar a fotografia que era utilizada nas expedições e nas explorações geográficas. Estas imagens de carácter topográfico entram agora no museu e são lidas e interpretadas numa lógica que insiste no seu carácter representativo dentro do espaço discursivo da arte, numa tentativa de as “legitimar”. Porém, aqui encontra-se uma dificuldade na resposta às questões anteriores. Diz Krauss que as fotografias de O’Sullivan não foram publicadas no século XIX e que a única distribuição que tiveram foi através da estereografia. No texto A Ontologia da Imagem Fotográfica, Bazin discute inicialmente que a arte é movida mais por uma razão psicológica de luta contra a efemeridade do tempo e contra a morte do que propriamente por uma razão estética. Ele argumenta esta ideia, primeiramente, através do exemplo da mumificação que, no antigo Egipto, como se sabe, era uma técnica que servia para eternizar a integridade de um corpo para que a sua alma fosse preservada no mundo dos mortos. De seguida, Bazin dá um outro exemplo ao fazer referência aos Reis cujos corpos já não eram imortalizados através da mumificação mas sim dos retractos e, portanto, da pintura. A pintura de retracto sendo, como a mumificação, feita à semelhança do corpo do modelo, no fundo uma representação realista do referente, tinha a capacidade para conservar a aparência e a existência de um determinado corpo na memória do tempo, na própria história, resguardando-o assim de cair no esquecimento. A história das artes tem então nela impregnada, desde a antiguidade, esta tendência para superar a inevitabilidade através de uma luta contra o tempo que é feita por meio da preservação da semelhança. O corpo original desvanece, mas o seu duplo

permanece vivo. A própria pintura serviu um papel importante para vários países nas expedições, explorações e invasões a outros territórios e culturas. Um exemplo poderá talvez ser a enorme quantidade de pintura orientalista francesa realizada durante a ocupação de Napoleão ao Egipto no final do século XVIII e inicio do século XIX. Desta forma, talvez se possa debater que a própria pintura, já muito antes da invenção e industrialização da fotografia, tem servido propósitos de registo documental, contribuindo para uma espécie de arquivo histórico (e científico) criado a partir da imagem realista do mundo. Mas isso não quer dizer que ela seja desprovida de um valor estético. O problema com a fotografia é que, sendo objectiva, tem este carácter de índice, de transferência, de realismo exacto. Estes exemplos relativos ao texto de Bazin e às expedições servem para ilustrar que as questões introduzidas por Krauss começam então, por conseguinte, a levantar uma série de outras: não poderá a fotografia topográfica ter, ao mesmo tempo, um valor estético, servindo assim simultaneamente a arte e a ciência?; será que a fotografia (ou qualquer outro medium) quando apropriados e utilizados para fins científicos ou comerciais são totalmente desprovidos de um conteúdo artístico?; será que a arte de encomenda, seja ela fotografia, pintura, desenho, é desprovida de qualquer valor estético, visto ser um requisito e não uma criação original do artista?; quando é o fotógrafo considerado realmente artista e quando é o fotografo considerado apenas uma ferramenta?; etc... A Estereoscopia Voltando ao texto e à questão da distribuição estereográfica, Krauss continua com uma comparação entre dois aparelhos distintos - a câmara de chapas 9 x 12 e a câmara para tomadas de vista estereoscópicas - que, assim como as duas imagens, marcam domínios diferentes de percepção. A estereografia, discute Krauss, é o espaço em perspectiva elevado a um outro nível, onde existe uma experiência de recúo inevitável que é ainda mais eficaz devido ao total envolvimento da visão do observador pelo aparelho que é segurado em frente aos seus olhos. Há um isolamento tal do meio que o rodeia, que a própria parede e chão são removidos da visão, obrigando a uma completa atenção na imagem que oferece e impede o deambular visual que é sentido ao caminhar pelo espaço físico e real. Krauss refere que há uma sensação de esforço na focagem da vista quando,

dentro do estereoscópio, o olhar é deslocado de um espaço/objecto mais próximo para um outro a meia distância. Este «reajustamento dos olhos de plano para plano dentro do campo estereoscópico é a representação por uma parte do corpo daquilo que outra parte do corpo, os pés, faria ao avançar através do espaço real» (Krauss, 2013, p. 416). Aqui, Krauss alude para outra diferença entre a estereoscopia e o espaço pictórico: o tempo. Devido ao detalhe da imagem estereoscópica e ao seu carácter imersivo na visão do observador, o tempo que se passava a admirar o conteúdo de cada uma era imenso. Krauss menciona que, para Holmes, “esta análise minunciosa era a reacção apropriada à riqueza «inesgotavél» de pormenor fornecida pela imagem”. Pelo contrário, a pintura não exige esta dilatação temporal de atenção e análise da superfície, e à medida que se torna mais modernista, refere a autora, deixa de a suportar. Ainda que, talvez se possa discutir, várias obras de pintura, como por exemplo o trabalho fascinante de Peter Bruegel e de Hieronymus Bosch, exijam um envolvimento duradouro e uma aproximação profunda com o olhar do observador, fazendo com que deambule pelos vários planos, objectos e figuras representados, o efeito imersivo da imagem estereoscópica parece ir um pouco mais longe ao provocar o próprio esforço muscular dos olhos através de uma ilusão puramente óptica e ainda, claro, devido a ser uma duplicação analógica do real. Regressando ao texto: Quando Holmes caracteriza esta modalidade especial de visualização, onde «a mente penetra, tacteando na própria profundidade da imagem», recorre a estados mentais extremos - como o hipnotismo, «efeitos semimagéticos» e o sonho. «Por fim, o encobrimento dos objectos circundantes e a concentração de toda a atenção que daí resulta produzem uma exaltação semelhante a um sonho», escreve ele, «na qual parecemos abandonar o nosso corpo e navegar por sucessivas cenas estranhas, como espíritos desencarnados». (Krauss, 2013, p. 417) Continuando, Krauss alude para as várias semelhanças entre o dispositivo estereoscópico e o cinema. Ambos isolam o espectador com uma imagem da qual é eliminada qualquer interferência exterior; ambos transportam opticamente o observador para uma outra dimensão, enquanto o seu corpo permanece imóvel; e em ambos há uma experiência de um simulacro acentuado pela dilatação temporal. Esta fenomenologia do cinema começa agora a instalar outros métodos de forma a inovar a experiência virtual e imersiva do utilizador/observador. Um exemplo será talvez o cinema em 3D que, como o estereoscópio, faz uso da visão em profundidade,

de tal modo que a imagem por vezes parece sair do próprio ecrã na nossa direcção. Contudo, apesar do Cinema 3D ser uma tecnologia muito mais recente que a estereoscopia, e que se tem vindo a instalar cada vez mais, maioritariamente, nas salas de cinema tradicional e das massas (o cinema de Hollywood) não só por ser uma novidade ou oferecer uma nova forma de visualização ao espectador mas por ser também uma técnica de atracção a essa mesma experiência, ele (o Cinema 3D) não consegue ainda, parece-me, ser tão eficaz como o estereoscópio. O movimento sucessivo das imagens ao longo do filme e a durabilidade do mesmo afectam o tempo e, por conseguinte, a experiência de imersão do observador na sua relação com o espaço 3D da sala de cinema. O tempo de duração é previamente estabelecido, já está imposto na imagem antes da sua relação com o observador. A realidade virtual dos vídeo-jogos parece ser, talvez, uma experiência algo mais eficaz, pois tira partido de uma interactividade e, portanto, de uma certa comunicação entre o observador e a imagem. As recentes inovações neste universo dos jogos já começam também a instalar o 3D. Porém, ao contrário do cinema, estes jogos tridimensionais não criam a ilusão da imagem que salta do ecrã para o mundo real, em vez disso colocam sim o próprio espectador dentro desse espaço virtual, quase como que tornando o seu corpo num outro sem peso, e assim inserindo o observador no papel do próprio personagem que anteriormente seria controlado apenas pelo comando da consola ou pelo teclado do computador. Assim como o estereograma, estes novos aparelhos são colocados em frente (e até mesmo pegados à cabeça e) aos olhos do espectador (tornado agora também “participante”, visto que actua na imagem), apagando o mundo real e transportando-o para um universo virtual enquanto o seu corpo, em vez de imóvel, move-se em conjunto com o olhar simulando os movimentos de um duplo de si mesmo. Esta questão diz respeito à imersão que tem vindo a evoluir radicalmente desde a relação do ser humano com o ecrã, e com o desenvolvimento tecnológico do mesmo. No caso do estereograma, como do cinema e dos video-jogos, os prazeres desencadeados pelo dispositivo levam à popularidade do instrumento. Diz Krauss que: «Logo em 1857, a London Stereoscopic Company vendeu 500 000 estereoscopios e, em 1859, conseguiu fazer um catálogo com uma lista de mais de 100 000 vistas estereoscópicas» (Krauss, 2013, p. 417).

Paisagem e Vista Rosalind Krauss afirma que o termo “vista” era utilizado pela própria prática da estereoscopia para designar o seu objecto, e através dele torna-se possível localizar a especifidade deste tipo de imagem. Em primeiro lugar, a autora refere que a palavra “vista” indica imediatamente a ideia de profundidade em perspectiva, aspecto que frequentemente era realçado pelos fabricantes dos estereogramas que estruturavam a imagem em torno de um marcador vertical, como um tronco de uma árvore, que permitia centrar o espaço. Muitas das imagens de O’Sullivan organizam-se em torno de um centro como esse, e, na única obra que publicou acerca do seu trabalho utiliza a palavra “vista” em vez de “paisagem”. Vista era ainda, diz Krauss, o termo utilizado nos jornais fotográficos e era a designação que os fotógrafos davam às peças que apresentavam nos salões fotográficos da década de 60 do séc XIX. Em segundo lugar, as empresas distribuidoras das imagens estereoscópicas eram a identidade que possuía os direitos de autor das mesmas enquanto os fotógrafos permaneciam anónimos. Desta forma, o papel do fotógrafo parece ser posto em causa não só como artista mas como autor, sendo tratado como uma mera ferramenta para a criação e divulgação de imagens. A vista, como fenómeno singular, vem ocupar o centro da atenção, transferindo a autoria da subjectividade do artista para as manifestações objectivas da natureza. Por último, Krauss refere que as vistas eram guardadas em armários de arquivo em cujas gavetas era catalogado e armazenado todo um sistema geográfico, quase como uma espécie de atlas topográfico. O arquivo, como espaço, funciona de maneira diferente da parede ou do cavalete, tem a possibilidade de armazenar informação e de a comparar através de um sistema de conhecimento. Krauss diz então que estes arquivos de vistas estereográficas que faziam parte da mobília dos lares da classe média do séc. XIX e das bibliotecas públicas contêm um representação complexa do espaço geográfico. “Vista e levantamento topográfico estão interligados e determinam-se mutuamente”. Deste modo, o discurso formado pela vista não pode ser comparado ao discurso organizado pela paisagem. Uma compõe uma imagem de ordem geográfica e a outra fundamenta uma Arte autónoma que é constituída pela discurso estético organizado no espaço da exposição.

(...) o que se vê emergir desta análise é um sistema de requisitos específicos de cada época histórica que foram satisfeitos pela vista, e em relação aos quais a vista formava um discurso coerente. O facto de este discurso não corresponder àquilo que o discurso estético entende pelo termo «paisagem» é igualmente, espero eu, manifesto. Mas tal como a construção espacial da vista não pode ser assimilada, no plano fenomenológico, ao espaço comprimido e fragmentado daquilo a que Before Photography chama perspectiva analítica, também a representação formada pelo conjunto destas vistas não pode ser comparada à representação formada pelo espaço de exposição. (Krauss, 2013, pag 419)

O Artista, a Obra e o Arquivo Numa última parte do texto, Krauss refere que recentes estudiosos da fotografia começaram assim a tomar várias decisões ao aplicarem o discurso estético à fotografia do século XIX e ao introduzi-la no espaço do museu. Primeiro, definiram que certas imagens são paisagens, e não vistas, de modo a terem a certeza de qual o discurso que representam. Simultaneamente, determinaram que os conceitos fundamentais do discurso estético - o artista (com a sua noção correlativa de carreira) e o conjunto da sua produção, a obra - lhes são aplicáveis. Contudo, como refere a autora ao longo do ensaio, estes são conceitos que a fotografia topográfica não suporta. Krauss refere que o conceito de artista vai além do da autoria, pois sugere que é necessária uma conquista em reclamar esse mesmo estatuto de autor através de um desenvolvimento do indivíduo num círculo de conhecimento que requer uma iniciação, um aprendizagem e todo um processo de êxito e fracasso. Sendo estes os pressupostos implícitos no conceito de artista “será possível”, questiona Krauss, “imaginar alguém que seja artista apenas por um ano?” Ou por qualquer curto período de tempo? Este seria o caso de fotógrafos como August Salzmann, cuja carreira tem apenas a duração de um ano, e ainda de outros mencionados pela autora, como Roger Fenton, Gustave LeGray e Henri LeSecq que têm um envolvimento com o meio fotográfico que duraria menos de uma década. Em relação ao conceito de obra, esta diz respeito ao constante esforço e dedicação do artista na intenção de criar um corpo de trabalho coerente. Aqui encontram-se também práticas que não correspondem ao que o termo abrange. Uma delas, alerta Krauss, é a utilização imperativa dos direitos de autor. Aqui a autora dá o exemplo das obras de Matthew Brady e de Francis Frith que foram, em grande parte, produzidas pelos seus empregados. Uma outra, diz respeito ao inacabamento das obras.

O exemplo dado por Krauss diz respeito à Missão Heliográfica de 1851 em que LeSecq e LeGray realizaram trabalhos de um levantamento topográfico cujos negativos nunca chegaram a ser publicados, exibidos ou copiados. Krauss menciona que existem ainda outras práticas que põem à prova o conceito de obra, que têm que ver com o conjunto de trabalho ser demasiado escasso ou demasiado extenso. É aqui que Krauss nos vai remeter para a arte de Eugène Atget, cuja obra é constituída por um arquivo com mais de 10 000 fotografias, cada uma delas numerada, que integravam um código cuja decifração se considerava revelar o propósito artístico de Atget e a sua concepção estética, no fundo, o significado da sua obra. Contudo, segundo Krauss, o que se encontra neste sistema de classificação de Atget é uma lógica de organização catalográfica que provém das bibliotecas e das colecções para as quais o fotógrafo trabalhava, e cujos temas se organizam pelas categorias de investigação e documentação histórica. Um catálogo não é tanto uma ideia, mas uma mathesis, um sistema de organização. Submete-se menos à analise intelectual do que è institucional. E parece muito claro que o trabalho de Atget é o produto de um catálogo em cuja invenção ele não participou e para o qual a autoria é um termo irrelevante. (...) O Museu encarregou-se de desvendar o código dos números dos negativos de Atget, a fim de descobrir uma alma estética. O que descobriu, em vez disso, foi um ficheiro. (Krauss, 2013, p. 425) O Ecrã Num artigo online acerca deste mesmo ensaio, Matt Davenport alude para um possível terceiro espaço discursivo: o ecrã. Ao inserir-se um determinado termo num motor de busca da internet, como o google, o resultado revelará um número imenso de imagens provenientes de qualquer lugar no mundo - desde Portugal ao Japão e à America - e que podem ainda ser provenientes de qualquer fonte - de uma exposição (galeria ou museu), de um cartaz ou anúncio publicitário ou de um mero telemóvel de qualquer indivíduo. Todas as imagens são colocadas a um mesmo nível e visualizadas fora do seu contexto original, competindo pela atenção do observador e servindo um determinado propósito provavelmente alheio ao que servem no seu discurso inicial e genuíno. Estas imagens integram assim um novo espaço discursivo (Davenport, 2015). Este ecrã em rede torna-se então num espaço algo estranho. Por um lado, tem a

capacidade de tornar uma imagem sempre presente e sempre acessível a um público, não está sujeito à fisicalidade espacial e temporal do mundo real, e a sua audiência consegue ir muito mais além do que em qualquer galeria. Por outro, o público utilizador desta rede não é, na sua maioria, o artista, o crítico ou o apreciador de arte, o que faz com que uma imagem fotográfica de um discurso estético possa facilmente ser retirada do seu contexto original e colocada a servir um propósito completamente diferente ou contraditório. O mesmo acontece para as mais variadas imagens de distintos espaços discursivos. Qualquer imagem pode ser facilmente manipulada para integrar um discurso ao qual não diz respeito, contribuindo para uma certa banalidade da imagem e para um empobrecimento do discurso que infiltrou. De certo modo, pode discutir-se que o ecrã em rede funciona como uma espécie de biblioteca infinita de imagens, na qual a segurança e a organização, apesar de existirem, são facilmente corrompidas. Os ecrãs de luz (desde o computador, a televisão, os telemóveis) têm então esta capacidade de estar constantemente a disparar imagens para o público, como uma arma de munição infinita. E nós, por alguma razão, fazemos delas um ritual de consumo

diário;

tomamo-las

como

verdadeiras,

mesmo

que

nos

mintam

descaradamente, tal é o seu poder... Um exemplo será aquele caso curioso das campanhas políticas, onde os partidos se apropriaram de fotografias de várias pessoas, à partida, desempregradas, e decidiram partilhar as imagens nas redes sociais e em grandes cartazes (estes que de certa forma também funcionam como ecrãs). Contudo veio a verificar-se que as histórias eram falsas. E concerteza não será a primeira nem última vez que a política tira partido da imagem para a encher de codificações e interpretações enganosas para com o público. Parece que, mal saímos à rua, nas grandes cidades principalmente, abre-se o olhar para todo um consumo involuntário de imagens, se esse consumo é voluntário ou involuntário, isso deixa de interessar para o controlador do ecrã, desde que ele exista. Durante as campanhas políticas, os partidos parece que se tornam em empresas de marketing e publicidade. Isto transmite uma grande sensação de estranheza... Toda esta apropriação e manipulação do ecrã e da fotografia para a imposição de um consumo constante perante as massas e perante o indivíduo é, de facto, muito estranha... A constante acessibilidade, instantaneidade e omnipresença que o ecrã começa a

instalar e a intensificar na relação do público com a imagem fotográfica, vem elevá-los (tanto ao ecrã como à fotografia) ao estatuto de ferramenta apropriada para a instituição de poder e controlo por parte de organizações políticas e governamentais, e contudo, ao mesmo tempo, vem colocá-los como um meio expressivo da vida social e privada do indivíduo comum e das multidões. Estes são alguns ecos às ideias salientadas por Susan Sontag na sua obra On Photography, e principalmente no capítulo «Mundo-Imagem», no qual a autora refere que o capitalismo tiraria partido destas questões para adoptar uma política que teria a finalidade de impôr uma cultura e uma organização social assente na produção, no consumo e na dependência da imagem. A imagem fotográfica, ao serviço da sociedade industrial, teria apenas duas funções: 1ª - servir de espectáculo para as massas com o objectivo de estimular a compra e gerar um ciclo vicioso de consumo; 2ª - servir como objecto de vigilância para os governantes e reunir uma interminável quantidade de informação para que esse mesmo ciclo continue em movimento. A fotografia e o ecrã em rede tornam-se num conjunto de ferramentas apropriadas pelas grandes instituições para implantar e projectar uma série de comportamentos específicos no observador e consumidor da imagem. Para além de colocar as imagens a um mesmo nível discursivo e de acessibilidade, a principal função que o ecrã tem vindo a desempenhar para com a fotografia é então o de transformar as imagens em objectos de consumo diários, contribuindo para uma substituição da experiência do mundo real pelo acto de tirar fotografias e de as colocar nesse mesmo fluxo de imagens em rede, dando origem tanto a uma degradação da coisa real como do próprio conteúdo imagético. Um exemplo algo recorrente e que se começa a verificar cada vez mais hoje em dia será o dos grandes eventos, como os festivais ou os concertos de música, nos quais se observa a maior parte do público constantemente a filmar ou a fotografar parte da actuação. A presença e experiência do indivíduo nesse mesmo acontecimento parece só se tornar efectiva ou ligitimada a partir do momento em que há um registo fotográfico ou em vídeo e, imediatamente, uma partilha dessa mesma fotografia ou gravação numa rede social. As multidões passam a experienciar determinados eventos através da máquina fotográfica, de seguida através da fotografia e mais tarde através do ecrã no qual essa imagem é inserida, no fundo, através de uma série de películas e não directamente a partir do próprio olhar.

O ser começa a fragmentar-se a si próprio e à sua experiência do mundo que o rodeia ao transformar o próprio corpo diariamente num duplo de si mesmo, um outro sem peso, imaterial, coisificado, no fundo, em meros dados e códigos inseridos num ecrã criados a partir de imagens fotográficas que já não apenas documentam ou registam um determinado acontecimento, mas começam sim a substituir e a validar esse mesmo como experiência vivida. Needing to have reality confirmed and experience enhanced by photographs is an aesthetic consumerism to which everyone is now addicted. Industrial societies turn their citizens into image-junkies; it is the most irresistible form of mental pollution. (...) Ultimately, having an experience becomes identical with taking a photograph of it, and participating in a public event comes more and more to be equivalent to looking at it in photographed form. (Sontag, 2005, pp. 27-28) O ecrã afirma-se não só como um novo espaço discursivo, mas também como um espaço não-discursivo, e ainda como o lugar da experiência (não) vivida, simulada. Considerações Finais Como considerações finais a esta leitura do texto de Krauss, talvez se possa ponderar que as várias questões que são analisadas e discutidas pela autora ao longo do ensaio servem para elucidar o tamanho papel que a teoria e a história da arte e da fotografia, assim como o espaço de exposição na sua relação com o observador, têm vindo a desempenhar na leitura e na interpretação da fotografia do século XIX. O contexto e o discurso primordial no qual estas primeiras fotografias se integram têm sido, ao longo da história, transfigurados, contribuindo assim para uma produção de incoerência nos mesmos. A grande maior parte destas imagens não surge como uma criação artística, ou com uma finalidade de habitar o museu, mas sim, realmente, como uma ferramenta apropriada e determinada pelos propósitos e expectativas da ciência, da topografia, da conservação documental e do entretenimento imersivo. Krauss argumenta então que a fotografia do século XIX não se insere nos géneros do espaço discursivo estético, apelando assim para uma conservação destes primeiros trabalhos como um arquivo que não deve ser assimilado pelas mesmas categorias que constituiem a arte e a sua história.

Referências: Davenport, Matt (2015), 1.2: Photography in the museum or the gallery? [Consultado em Outubro e Novembro de 2015]. Disponível em Krauss, Rosalind (2013) «Espaços Discursivos da Fotografia: Paisagem / Vista» In Ensaios Sobre Fotografia: de Niépce a Krauss. Lisboa: Orfeu Negro, 1ª Edição. (Introdução, selecção e organização de Alan Trachtenberg; Tradução de Luis Leitão, Manuela Gomes e João Barrento). ISBN: 978-989-8327-19-2, pp. 411-431 Sontag, Susan (2005) On Photography. Nova Iorque: RosettaBooksLLC. ISBN: 0-7953-2699-8

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