Recensão ao texto \"O Pintor da Vida Moderna\" de Charles Baudelaire

Share Embed


Descrição do Produto

Breve Recensão ao texto “O Pintor da Vida Moderna” de Charles Baudelaire Alexandre Alagôa, nº 7120 Teorias da Crítica Mestrado em Arte Multimédia, 1º Ano, 2º Semestre FBAUL, 2015-2016

Nota Introdutória O ensaio “O Pintor da Vida Moderna” de Charles Baudelaire é primeiramente publicado no jornal francês Le Figaro em 1863. Mais tarde, o texto seria integrado na colectânea de escritos do autor com o nome L’art Romantique. O seguinte texto, que pretende elaborar uma breve observação a este mesmo ensaio de Baudelaire, acompanhará a versão e edição publicada em 2015 pela Nova Vega. Recensão ao Texto Baudelaire dá início ao seu ensaio com um comentário acerca do público moderno apreciador de arte que, ao visitar o Museu do Louvre e admirar os grandes antigos mestres artistas (Rafael, Ticiano), pensa então, a partir daí, ter um total domínio sobre a definição histórica e visual do que deve ser uma obra de arte, esquecendo porém os menos conhecidos e as suas novas aproximações. Não só o público, mas grande parte dos próprios pintores, segundo Baudelaire, revelavam-se cegos à beleza da sua época, recorrendo constantemente a esses mesmos modelos do passado como via para a alcançarem. Porém, o que alcançam é o vacúo. Baudelaire iria criticar precisamente esta tendência académica que se apoiava nos modelos clássicos da concepção/produção artística da antiguidade e que acreditava numa teoria absoluta e única do belo, defendendo então que o verdadeiro artista deve ser um homem do presente, da actualidade, aquele que olha para o seu tempo e nele consegue captar algo que escapa a todos os outros. Contudo, é importante salientar que, para Baudelaire, a obra de arte moderna não assenta numa recusa, numa deterioração do passado em prole do presente, mas sim na relação do artista com o seu tempo e na sua capacidade para extrair a essência da beleza passageira (fugaz) que o reveste, assim como outros artistas do passado também o fizeram. O autor acredita então que cada

época tem algo de poético a ser apreendido, e o principal erro dos artistas seus contemporâneos é não terem essa capacidade, como os outros a tiveram antes deles, de representar o que de facto é efémero, que se perde com a inevitabilidade do tempo. Baudelaire vai então, através de um olhar atento e de uma análise sobre a produção artística da sua época, evocar um pintor e sua obra - Constantin Guys (que ao longo do ensaio é apenas referido como “Sr. G.”) - para desenvolver uma noção moderna do Belo assente na ideia do sublime, da transcendência, daquilo que é transitório e eterno, e assim desdobrando, do interior dessa mesma, uma própria concepção de modernidade. Diz-nos Baudelaire que o Belo é constituído por dois elementos principais: por um lado, um eterno, invariável, e por outro, um que é relativo, circunstancial, e que diz respeito à moral, à moda, à paixão que constituem uma época específica. Este último elemento envolve todo o primeiro; sem ele, o primeiro torna-se impossível de ser materializado pois é precisamente nessa transformação, nessa metamorfose histórica, que se esconde e, ao mesmo tempo, expressa o que há de único e irrepetível nas tendências da moda, nos costumes de uma determinada sociedade. A dimensão do belo, para Baudelaire, tem então uma inevitável componente histórica e assim, também, claramente, uma dimensão temporal, pois o belo manifesta-se precisamente a partir desta mutação temporal das tendências de cada período histórico. Daí que ele utilize a ideia de croqui (esboço, rascunho, desenho rápido) dos costumes: nessa metamorfose imparável das coisas é necessário que o artista capte tudo o que se move com igual velocidade; é essencial que ele esteja atento a tudo, a todos. Constantin Guys é então considerado por Baudelaire a figura que se destaca como o célebre exemplo do sujeito moderno criativo e original. Mais do que um mero artista, um simples artesão, um especialista na pintura, Guys é, para Baudelaire, um “homem do mundo”, um viajante apaixonado, um cidadão espiritual do universo, um artista em constante estado de convalescença, um indivíduo que compreende o mundo envolvente e as razões misteriosas e legítimas de todos os seus costumes; um ser sensível, um profundo curioso que se comporta como um miúdo que procura incessantemente questionar, compreender e admirar tudo o que acontece em seu redor, na superfície das manifestações e interacções da natureza humana.

Como menciona Baudelaire, a curiosidade é um retorno à infância, é uma paixão irresistível e fatal. A inspiração do artista deve ter origem na mesma alegria com que a criança absorve a forma e a cor; o génio do artista moderno é, no fundo, apenas a redescoberta da infância agora sem limites. Para a criança, nenhum aspecto da vida é indiferente, ela vê tudo como novidade, interessa-se intensa e magicamente pelas coisas, mesmo por aquelas que parecem ser as mais triviais; a sensibilidade ocupa todo o seu ser. Guys (ou seja, o artista moderno) é portanto não só um homem do mundo mas também um homem-criança, sendo ainda, aliado a estas suas duas dimensões, e aqui Baudelaire introduz um termo interessante, um flâneur. O flâneur é o sujeito da vitrine que se vê a si mesmo como aquele que contempla. É aquele que deambula livremente pelas ruas observando passivamente, ouvindo e registando em silêncio todas as transformações, alterações e oscilações do espaço urbano; é o infiltrado curioso e indiscreto que permanece (in)visível ao olhar de todos mantendo-se simultaneamente camuflado, incógnito e desconhecido, sempre atento, sempre desperto, com a sua visão de águia, ao mais subtil movimento, ao mais ínfimo pormenor e detalhe, a tudo aquilo que à partida parece insignificante, registando na sua mente tudo o que para o cidadão comum passa despercebido. É, no fundo, um observador não-observado, uma presença ausente que se coloca a si mesma no centro do mundo porém mantendo-se oculta ao mesmo, que contempla e absorve com prazer a paisagem infinita da vida fugidia e instável das grandes cidades, diluindo a sua mente e imaginação com os pensamentos e vivências que se deslocam em todo o seu redor, em todos os sentidos possíveis. Este flâneur alimenta-se da metamorfose da crescente e intensa urbanização, industrialização e da vida metropolitana da cidade de Paris, agora reconstruída por Haussman. A reestruturação arquitectónica e a esquematização de espaços livres, vastos, abertos, estimulava agora ao movimento, à marcha, à agitação. O sujeito comum diluia-se agora na paisagem mutante da nova cidade, no espaço público em constante mudança, na inquietação das massas, e é nesse refúgio, nesse isolamento dos outros e de si mesmo, que o flâneur dá início à sua actividade. A multidão compõe assim o seu universo como a água compõe o dos peixes. É nela que procura a sua fonte de energia, é nela que constrói o seu habitat, é nela, e a partir dela, que expande a sua memória. E aqui iria destacar-se precisamente essa mesma questão: a memória.

Mas antes de mais, é ainda importante referir que Baudelaire não concorda com a noção tradicional de obra de arte enquanto um espelho do mundo exterior, físico e real. Para o autor, o verdadeiro artista moderno não é aquele que se limita a imitar a natureza ao recorrer a processos de representação realista do universo exterior do ser humano, mas sim, de facto, aquele que tem o potencial para empregar a sua imaginação, aquele que exprime a sua dimensão de fantasia indo mais além do que a mera superficialidade das coisas, aquele que tem a capacidade para sonhar: «it is a happiness to dream» (BAUDELAIRE, 2013, p. 102). O artista deve portanto desenhar a partir da imagem inscrita no seu cérebro, a sua memória deve estar em constante funcionamento; deve conseguir absorver com uma rapidez incansável toda a multiplicidade de detalhes que o modelo, esse fantasma, contém. Colocadas estas várias questões, Baudelaire indica então que a tarefa deste cidadão universal, deste homem-criança, deste artista-flâneur, deste artista-mnemónico é exactamente ir ao encontro da verdadeira representação de Modernidade. A Modernidade é definida por Baudelaire a partir de duas metades: uma que corresponde ao transitório, efémero e contigente, e a outra composta pelo eterno e imotável. Assim, ao contrário das tendências comuns dos artistas na época de Baudelaire para representarem as suas personagens com base nos temas da Idade Média, do Renascimento e do Oriente, ou seja, do passado, a principal função do digno e honesto artista moderno é, portanto, através do seu mergulho na mutação caótica, na transformação e no tempo que nunca pára, ter a capacidade para captar a beleza misteriosa que a sua época possa conter, materializando essa efemeridade (agora imortalizada) e podendo agora revelá-la ao público que até então se mostrava alheio à sua presença. Diz-nos Baudelaire que cada período histórico tem o seu olhar característico, o seu traje, a sua expressão, o seu sorriso, o seu penteado, o seu modo de andar. Deste modo, não há qualquer direito em desprezar estes elementos passageiros, isso seria um caminho para uma beleza vazia, oca, insignificante. Para que a Modernidade se afirme como digna de tornar em Antiguidade há então que tirar da moda e dos costumes desse período a essência poética que “a vida humana coloca involutariamente nela”; no fundo, é necessário saber “extrair o eterno no transitório”. De uma maneira simples, talvez se possa dizer que a Modenidade, para Baudelaire, é uma característica própria do presente de cada período histórico. A Modernidade diz

respeito ao momento, ao instante imediato, à constante passagem do tempo e àquilo que ele traz que se destaca inevitavelmente como novidade/evolução em relação ao que já passou. A Modernidade está na especificidade de cada época, naquilo que é susceptível de se perder na condição efémera das coisas e dos fenómenos sujeitos à imposição do tempo, caso ninguém os consiga agarrar. E o papel do artista-moderno é então ter a capacidade não meramente técnica, mas também intelectual (observação-imaginação), para extrair desses vários momentos fugidios o que há de Belo, e que, sem ele, seria perdido para sempre, nunca esquecido pois nunca seria sequer lembrado, nunca tornado presente ou sequer passado. Referências: BAUDELAIRE, Charles (2015) O Pintor da Vida Moderna. Lisboa: Nova Vega, 7ª Edição. (Tradução e posfácio de Teresa Cruz). ISBN: 978-972-699-788-7. BAUDELAIRE, Charles (2013) «O Público Moderno e a Fotografia» In Ensaios Sobre Fotografia: de Niépce a Krauss. Lisboa: Orfeu Negro, 1ª Edição. (Introdução, selecção e organização de Alan Trachtenberg; Tradução de Luis Leitão, Manuela Gomes e João Barrento). ISBN: 978-989-8327-19-2, pp. 99-104

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.