Recensão crítica ao livro \"O Pintor da Vida Moderna\" de Charles Baudelaire
Descrição do Produto
Recensão crítica ao livro “O Pintor da Vida Moderna”, de Charles Baudelaire Rogério Paulo da Silva
Em O Pintor da Vida Moderna, Baudelaire faz uma abordagem ao conceito de beleza do passado artístico transmitido pelos grandes mestres da pintura, como um marco interessante pelo seu valor histórico, mas também como uma ruptura dos padrões da antiguidade clássica. Referindo-‐se ao belo moderno presente na sociedade parisiense do séc. XIX, Baudelaire traduz este “novo estar” como um tempo que se consome a si próprio. É precisamente nesse ponto que ele defende o artista da vida moderna como aquele que consegue reinventar esse novo paradigma do modernismo através da auto-‐consciência desse presente. É justamente nesse presente, onde Baudelaire se movimenta, que lhe interessa especular e, como ele próprio refere, retirar o prazer da representação do presente, o qual não advém somente da beleza aparente, ou do que os olhos vêem, mas também da qualidade essencial que caracteriza esse presente. É essa estética do tempo que ele nos fala e na qual se manifesta a experiência da modernidade no espírito parisiense. Baudelaire transporta-‐nos através do seu olhar atento e cosmopolita à ideia do belo ligado às modas e ao espírito de felicidade, cruzando o passado com o presente dentro de uma natureza moral e espiritual do homem, como um palco de usos e costumes. Para o autor o belo é construído por dois elementos. O primeiro tem a sua existência em algo que não é transmutável e eterno, difícil de determinar; o segundo está ligado a uma mutação ou a circunstâncias da própria modernidade. Esta dualidade é sugerida por Baudelaire aplicando-‐se também ao autor e à obra de arte e também ao homem em particular como uma consequência fatal da sua existência – por um lado a arte como alma imutável da beleza visual e, por outro lado, a efemeridade física da condição humana. Neste contexto o autor é obrigado, com algum esforço em assumir uma concordância com Stendhal, ao afirmar que o Belo não é senão a promessa da felicidade, facto esse que
transmutaria para uma espécie de leveza espiritual a representação da vida burguesa no séc. XIX. Ao integrar o artista neste mundo acelerado pela moda e pelos costumes da época, Baudelaire assume-‐o como um criador integrado nesses tempos modernos de forma a metamorfosear a sua arte em processos de produção efémera tais como a litografia, tão frívola de aparência, mas abrangendo as temáticas humanas que, segundo o autor, saíam fora da arte mais durável dos grandes pintores das coisas eternas e glorificantes do passado. A esta forma modernista de olhar o mundo, já desenvolvida pela literatura de Balzac através da Comédia Humana, surgiram artistas como Daumier e Gavarni, que de uma forma poética e humana se aproximavam das coisas insignificantes mas verdadeiras da vida. Segundo esta consciência do artista cosmopolita que abandona a pretensão ao estrelato dos grandes pintores e se entrega ao espírito romântico da época relatando e vivenciando a natureza humana, Baudelaire dá-‐nos a conhecer aquele que ele verdadeiramente considera o pintor da vida moderna, Constantin Guys (1805 – 1892) -‐ amante da multidão e do incógnito. Baudelaire fala-‐nos deste homem pintor/ilustrador, que fazia questão em passar despercebido, como um autor de natureza misteriosa cujo trabalho poético era fruto de imagens que lhe enchiam o cérebro. Defensor destes artistas que vivendo na obscuridade mas nem por isso deixavam de ser grandes mestres da representação da vida e da sociedade humana, Baudelaire refere que conheceu primeiro a obra de Constantin Guys – o Sr. G. -‐ através das gravuras publicadas num jornal e passados dez anos finalmente conheceu o seu autor, que não era um artista isolado no seu atelier e do resto do mundo, atribuindo-‐lhe rapidamente o estatuto de homem do mundo. Aquele que se interessa, vive e se preocupa verdadeiramente com as coisas que se passam à sua volta socialmente, com uma espécie de curiosidade permanente e analéptica. Baudelaire assemelha Guys a uma criança insaciável pelo conhecimento que, como ele refere, é possuidor do génio da infância. Naturalmente que, para a época, poder-‐se-‐ia considerar Guys um dandy, aquele que na sua essência tem um carácter e uma inteligência subtil. Por outro lado Baudelaire considera que qualquer dandy aspira à insensibilidade e isso torna-‐o blasé, termo que, para o
autor, claramente não se aplica a Constantin Guys afastando-‐o rapidamente do dandismo tornando-‐o “um homem na multidão” tal como o conto de Edgar Alan Põe -‐ aquele que deambula pela cidade, o flâneur, um fugitivo contemplador, observador acordado do mundo enquanto os outros dormem nesse mesmo mundo. A este espírito inquieto e viajante dos mais elevados objectivos, Baudelaire considera-‐o um escavador da modernidade latente no presente e que provavelmente só alguns terão o privilégio de a entender, ou conseguir retirar das tendências artísticas da época o sentido consciente e poético do mundo. Segundo Baudelaire as exposições de pintura da modernidade serviam assim para mascarar os clássicos vestindo-‐os com uma nova roupagem, uma moda que transformava todo o mistério eterno e imutável da obra de arte clássica numa arte transitória e de mudanças, trazendo uma nova vitalidade aos paradigmas da própria época. Os valores pictóricos dos temas gregos, as deusas e as ninfas são moralmente semelhantes às figuras pintadas no modernismo. Baudelaire considera que para se compreender o carácter da beleza actual da época, não se pode imitar os panejamentos e as pregas do vestuário do passado pois a fisionomia da mulheres antigas não se aplica ao espírito da moda da mulher moderna. Ao deixar-‐se mergulhar no antigo o homem moderno abdica e perde a memória dos valores do presente. Acrescentando que a originalidade do pensamento de cada época vem da marca que o tempo imprime no homem inscrito dentro da sua actualidade. Enquanto alguns artista executam as sua obras sob variados esquemas ou fórmulas visuais de representação, Baudelaire refere a memória prodigiosa de alguns artistas que através da procura do traço e do esboço no papel, representavam com excelência tudo o que o olhar captava. O caso do Sr. G., Baudelaire menciona-‐o como aquele que melhor soube transportar o seu imaginário para o ambiente da guerra da Crimeia através da imprevisível perícia do seu traço, esboçando inquietações e acontecimentos que ficariam impressas em folhas de jornal. O Sr. G. é referido como um visionário que desenha dia após dia, delicada e inteligentemente na superfície do papel, os acontecimentos mais admiráveis e as ocupações mais triviais da vida. As sua representações são transversais a todos os temas da sociedade burguesa da época. O seu olhar é
enriquecido com todas as camadas sociais: militares, homens, mulheres e dandy’s. Tanto as personagens triviais como as que se destacam em “pompa” da “vida elegante” e “galante”, o Sr. G. consegue extrair dessa banalidade uma poética artística que só é visível naquele que da modernidade se ocupa. Este pintor da vida moderna torna-‐se para Baudelaire o principal representante da representação visual da modernidade e principal testemunha da expressão mnemónica da sociedade efémera do séc. XIX. Esta posição de Baudelaire em relação ao génio artístico -‐ o pintor que ilustra e dá a conhecer os acontecimentos do mundo através do sua olhar inteligente e sensível -‐ expressa claramente a sua opinião crítica relativamente à ameaça do surgimento da fotografia, que ele próprio definia como a invenção que tinha como função ser “serva das artes”. Baudelaire reúne nestes textos algumas personagens que ele considera carismáticas da modernidade os quais o Sr. G. -‐ pintor da vida moderna -‐ se apodera delas extraindo-‐lhes a sua essência, retratando-‐as no papel com a inteligência de quem dilacera a própria vida humana. Baudelaire vive no seu presente e neste contexto tem a noção perfeita da arte feita nessa época e das capacidades de representação do verdadeiro pintor. Ele trata neste livro de uma dupla autoridade da modernidade ao lançar o seu olhar crítico e literário às personalidades da moda, cruzando o seu olhar com a visualidade delicada do Sr. G. para nos dar a entender a forma e o corpo de poderosas figuras como o dandy, a mulher moderna e maquilhada ou as raparigas da moda, cujas características incitam-‐nos desta forma a uma vertiginosa deambulação pelos labirintos da beleza daquele presente.
Lihat lebih banyak...
Comentários