Recensão do livro Futebol Português. Política Género e Movimento.

July 11, 2017 | Autor: T. T&e | Categoria: Gender and Sport, Sport Pedagogy
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Tiesler, Nina Clara e Domingos, Nuno (Organizadores) (2012), Futebol Português Política, Género & Movimento, Editora Afrontamento, Porto, 343 páginas. Paula Botelho-Gomes Universidade Lusófona do Porto, Faculdade de Educação Física e Desporto O desporto parece ilustrar bem o conceito de facto social total de Marcel Mauss, entendido como fenómeno complexo pelo qual estruturas sociais tais como, a política, a economia, a família, a educação, a religião e o lazer se manifestam e o todo social pode ser observado; ou seja, mobiliza uma sociedade e as suas instituições. O futebol, pelas instâncias sociais que o atravessam e o suportam, pela sua popularidade, centralidade e universalidade configura, de algum modo, a metáfora de uma sociedade. Decorre do considerado, a importância da edição de Futebol Português - Política, Género & Movimento, para a qual foram convocadas distintas áreas das ciências sociais, contrariando-se uma vez mais a ideia de que, nomeadamente a Sociologia, não reconhece a importância social do desporto, esquecendo que a génese do desporto é não só um problema sociológico, mas também ideário de civilização, como nos adverte Norbert Elias. No livro em apreço, a Antropologia, a Sociologia, a História, e os Estudos sobre as Mulheres ‘vão ao Futebol’, e logo na sua introdução (Nuno Domingos e Nina Clara Tiesler) se clarifica que o ‘futebol português’ possui nesta obra um estatuto descritivo; localiza no tempo e no espaço um conjunto de observatórios de análise que se relacionam indiscutivelmente com a história de Portugal no século XX (...p.15). O livro, escrito a onze mãos, três das quais femininas, organiza-se em quatro partes: História e Política, Colonialismo e Internacionalização, Mulheres e Futebol, e Adeptos, totalizando 12 capítulos, rematando com um Ensaio de Saída. A primeira parte, História e Política, abre com José Nuno Matos em Anarquistas e Desportistas: A Batalha vs. A Batalha, assinalando-se que, em Portugal e no alvorecer do séc. XX, a história do sindicalismo revolucionário e a do anarquismo são inseparáveis, mormente do anarco-sindicalismo. A orientação educativa sindicalista visava a construção do ‘homem novo’, embora se realce que o entusiasmo anarquista se confinou a orientações da Educação Nova, encabeçada por Fémère, que em Portugal recebeu o entusiasmo de, entre outros, António Sérgio, e António Faria de Vasconcelos. A educação física ou educação do físico, de orientação eugenista/ higienista, que com os tempos foi-se atenuando, mas da qual nunca se emancipou, tendo antes actualizado normas profilácticas e cuidados com o corpo, era, à época, considerada fundamental para que se conseguisse mens sana in corpore sano, a harmonia entre músculo e inteligência no trabalhador. Já o Futebol e o Boxe são associados aos demais excessos da vida urbana (p.35), e mal vistos como possibilidade de lazer do operariado. O jornal A Batalha, de confissão anarco-sindicalista é também personagem central deste capítulo, denunciando a supremacia e espectacularização do futebol (hoje em dia dir-seia a ‘loucura da bola’) que deixava na penumbra outras actividades físico - desportivas. Numa nota humorista, relata-se que Olívia se exercitava em jogos de alcofa enquanto o marido se entregava, de corpo e alma, aos excessos do futebol. A paixão pelo futebol. A segunda entrada, pela mão de Francisco Pinheiro, é dedicada ao Futebol e à Política na Ditadura, fazendo o exercício de separar Factos e Mitos. Este capítulo, de facto, ora desmonta ora sublinha um conjunto de ideias do imaginário português, e reporta marcos históricos associados à díade Futebol-Política, compreendidos entre 28 de Maio de 1926 e 25 de Abril de 1974. O exercício tido como reflexivo abre novas pistas de abordagem que se pretendem abertas e inclusivas (p.48). A relação entre 1

Futebol e Política não terá sido um caso de amor à primeira vista, tendo o futebol despertado a atenção de Portugal nos Jogos Olímpicos de 1928, pelo bom desempenho da Selecção Nacional, ferida de morte apenas nos quartos-de-final. O autor aponta distintas fases nesta relação, umas de aproximação a aproveitamento, outras de afastamento, ao sabor de sucessos ou insucessos desportivos, considerando que a doutrinação fascista no Futebol foi moderada. Sucessos desportivos, equipas constituídas por jogadores do Portugal metropolitano e ultramarino – brancos e negros, uma verdadeira representação nacional, reflexo da unidade da nação – foram bandeiras agitadas politicamente por governantes, em momentos importares da história e do espectáculo futebolístico, que a televisão difundia, ilustrando a bondade das políticas desportivas. No capítulo Futebol e Política no Portugal Democrático – A Lógica da Conversão de Capitais, Rahul Kumar, num exercício exploratório, socorrendo-se dos conceitos bourdianos de campo e capital, analisa percursos biunívocos de agentes entre futebol e política. O autor refere que é na tensão entre política e meios de comunicação de massa que determinado tipo de agente do campo da cultura popular opera passagens para o campo da política (p.86), com maior ‘fluidez’ a nível regional e local, mas também a nível nacional. Se, por um lado, a influência do futebol em percursos políticos por si só não pode ser tida como linear, por outro, os partidos políticos não desdenham candidatos com currículo e ascensão na área cultural do futebol. A segunda temática do livro, Colonialismo e Internacionalização, inicia-se com A Força dos Laços Desportivos, Associativismo e a Estruturação Urbana no Moçambique Colonial, contributo de Nuno Domingos para o entendimento da desportivização e da dinâmica do futebol naquele território, nomeadamente em Lourenço Marques, capital da província ultramarina. Para esta desportivização terá contribuído a comunidade inglesa de Lourenço Marques e as suas tradições no tocante ao desporto. Mas como lembra o autor, O papel do futebol como forma particular da experiência urbana em Moçambique deve ser percebido no quadro histórico colonialismo português (…p.116). Das várias associações recreativas e culturais existentes, as desportivas eram maioritárias, reinando o futebol em grande parte delas, fomentando a socialização e o associativismo, ainda que ‘devidamente’ enquadrados por ditames da administração colonial, e não deixaram de facilitar a adaptação dos colonos àquele seu ‘novo mundo’. Reflexos disso serão, por exemplo, os clubes filiais dos da metrópole, com preponderância para o Benfica e para o Sporting, e os que se organizavam com gentes de uma região de Portugal Continental (i.e. Club Transmontano). Não obstante este entusiasmo, o regime político nunca deixou de colocar entraves ao desenvolvimento do associativismo desportivo (p.126), reificou o sistema de segregação (p.124), excluindo sistematicamente a população indígena da organização e do dirigismo desportivo. O brilhantismo de futebolistas africanos em equipas da metrópole e na selecção nacional, isso era uma outra estória, ‘para inglês ver’. Nuno Domingos e José Neves partilham a Entevista a Detlev Claussen, Prof. Emérito da Universidade Leibniz de Hanôver e biógrafo do treinador húngaro de origem judaica Béla Guttmann. Tinham como propósito discutir exactamente a interessante biografia de Guttmann, com um percurso de excelência, também em Portugal, no Futebol Clube do Porto e no Sport Lisboa e Benfica de Coluna e Eusébio. Mas, antes de se de se dedicar a orientar passes de bola e de deixar marcas indeléveis no movimento desportivo da Hungria e na história do futebol, ensaiou passos de dança numa escola fundada por si, em Viena de Áustria. Novas profissões tais como a de treinador e de jogador de futebol ou de professor de dança poderiam contribuir para uma certa 2

ascensão social e uma vida mais desafogada, e assim foi: trabalhou em dois continentes, treze países, vinte e dois clubes. Em Portugal venceu duas Taças dos Campeões Europeus, conquistou o 3º lugar no Mundial de 1966 e ‘ganhou’ o Eusébio para o Benfica. De algum modo a Entevista a Detlev Claussen pode ser tida também como antecâmara da narrativa Béla Guttmann no Benfica: no centro do futebol mundial, da autoria do próprio Detlev Claussen. Béla Guttmann, globetrotter do futebol, foi um treinador avant la lettre. Características apreciadas em treinadores de hoje faziam parte do seu reportório profissional - o futebol rápido e ofensivo, o modo como se impunha no governo da equipa e dos contextos, a gestão das relações com a imprensa nacional e internacional, são alguns exemplos. Isabel Cruz, em “A Virilidade é uma Ideia que as Pessoas têm que os Homens são Melhores”. Discurso sobre os corpos das jogadoras de futebol na imprensa portuguesa dá o pontapé de saída à terceira parte do livro - Mulheres e Futebol. A vinda a Portugal, em 1923, de uma comitiva de atletas francesas para realizar exibições de atletismo e de futebol, modalidades tidas como apropriadas a homens, foi recebida com tal despropósito que suscitou críticas de jornais, mas não invalidou que os estádios se enchessem de espectadores curiosos (voyeurs?) nem que alguma imprensa tecesse comentários moralistas na fronteira do discurso sexista. O cerne da polémica era (é?) o corpo do ‘sexo fraco’ que se julga não apropriado àquelas lides, e um traje desportivo contrário a uma feminilidade recatada. Como refere a autora: As mulheres que invadem os terrenos desportivos considerados masculinos estão sujeitas a discursos mordazes (p. 192). Enfim, Desencontros da História com o Futebol Feminino, como sublinha Inês Paulo Brasão na entrada seguinte. Inês Brasão passa em revista um conjunto de normas e posturas, verdadeiros espartilhos, acerca do que devia ser a prática desportiva do sexo feminino. Organizações do Estado Novo e religiosas, e a Educação Física preocuparam-se com a regulação e a graciosidade dos corpos femininos, ao mesmo tempo que definiam as práticas físicas apropriadas - onde a ginástica imperava -, preparando as raparigas para a maternidade e a domesticidade. Esta disciplina e normalização de corpos, a que a medicina não era alheia, eram de todo incompatíveis com a prática do futebol, desde há muito conotado com a construção da masculinidade. Claramente se definiram os corpos e as práticas legítimas e ilegítimas. Depois do jogo das francesas é possível que mulheres se tivessem organizado para jogar, num registo de recreação e socialmente sem expressão. No entanto, oficialmente regulamentado, o primeiro jogo realizou-se apenas em 1984. Longa foi a noite. O capítulo Um Grande Salto para um País Pequeno: O Êxito das Jogadoras Portuguesas na Migração Futebolística Internacional de Nina Clara Tiesler revela que, apesar de Portugal não constar no Top 30 da FIFA, é um dos países mais expressivos na migração futebolística: ter o futebol como profissão e melhorar os desempenhos obriga a emigrar. Quer as emigrantes, quer as futebolistas filhas da diáspora são uma maisvalia na selecção nacional feminina, pela sua maior experiência e competitividade. A desvalorização do futebol feminino parece-nos ser uma evidência quando se constata que muitos desconhecem, ou depreciam o Mundialito de Futebol Feminino disputado, anualmente, no Algarve, desde 1994! A quarta parte da obra é dedicada aos Adeptos. Muitos clubes, independentemente da sua dimensão ou nível competitivo, têm um ‘12º jogador reforçado’ - a claque, nascida nos pós- 25 de Abril e com influências do Movimento Ultra Italiano. Daniel Seabra, no capítulo dedicado a O Movimento Ultra e as Claques 3

Organizadas em Portugal: seu surgimento e principais fases da sua evolução, caracteriza marcos evolutivos que se seguem ao da Espontaneidade - grupos de amigos, geralmente do núcleo escolar -: Institucionalização-Expansão-Crise-Ressurgimento. Se com uma verdadeira organização do movimento e das claques a festa ganha dimensão sonora e cromática, também ganha alguns conflitos, violência e vandalismo. O autor adverte que as claques são um fenómeno muito mais amplo que não se reduz a este tipo de actos (… , p.271). Nina Clara Tiesler, no registo A Festa dos Emigrantes. A Importância do Futebol na Diáspora Portuguesa atesta a importância e centralidade do futebol na vida dos portugueses espalhados pelos cinco cantos do mundo, quer como prática de lazer, quer como elo de ligação umbilical à pátria. Assistir a um jogo da ‘nossa equipa’ ou da ‘equipa de todos nós’ é um momento de comunhão único; e, se ‘ganhamos’, o coração não cabe no peito. E tanto se chora quando se perde como quando se ganha. O capítulo de Stephen Wagg tem como personagem o futebolista CR 7, um emigrante célebre: Cristiano Ronaldo e Mr. Spleen: a celebridade no futebol global, o Manchester “mítico” e a diáspora portuguesa, onde se discorre sobre a violenta polémica gerada por fanzines acerca de que Ronaldo pretendia rescindir o contrato para aterrar em Madrid, no estádio de Santiago de Bernabéu (inaugurado em 1947 num jogo entre o Real Madrid e o Belenenses!). A este enredo juntavam-se comentários, e reprovações, acerca da sua masculinidade, do corpo ‘enxuto’ e depilado, dos cortes de cabelo, das chuteiras douradas, das fotos ‘à cinema’, do dinheiro a mais, da exibição de companhias femininas ‘escaldantes’, ou notícias de visitas a clubes de strip … O certo é que emigrantes portugueses, seus irmãos de diáspora, também consideram que o seu êxito não o afastou da sua terra natal, o têm como um trabalhador incansável, um jogador exímio e que tudo o resto não o prejudica – é um rapaz de vinte e poucos anos. CR7 é um emigrante de sucesso. Por fim, Ensaio Sobre a Festa, O Futebol e a “Batalha dos Nacionalistas”: uma bandeira não é uma bandeira não é uma bandeira, ensaio de saída de Nina Clara Tiesler, socorre-se do Euro 2004 para mostrar como políticas identitárias se servem do futebol, indevidamente, sem prurido nem cerimónia, e em discussões que corroem o seu potencial inigualável de integração social e intra-social (p.326). No futebol não se ganha nada com a expressão identidades. São as políticas de identidade que ensombram os jogos (p.335). Futebol Português - Política, Género & Movimento. Geografias e narrativas diversas, leitura obrigatória para estudiosos e para quem se diz interessar por Desporto. Paula Botelho Gomes escreve de acordo com a antiga ortografia

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