Recensão: Ernesto Guerra da Cal: Cultivando o futuro com amor

June 16, 2017 | Autor: Raquel Bello Vázquez | Categoria: Portuguese Studies, Galician Studies, The Lusophone World
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ERNESTO GUERRA DA CAL: CULTIVANDO O FUTURO COM 1 AMOR Raquel Bello 2 O livro de Joel R. Gômez sobre Ernesto Guerra Da Cal (Ferrol, Galiza, 1911-Lisboa, 1994) começa com dois paratextos: o primeiro alude à capacidade de sonhar como a única que nos permitiria sobreviver, embora mantendo a racionalidade de não pedir à vida o que ela não pode dar em cada momento; o segundo, um poema de Da Cal, aconselha: “Cultiva o teu futuro/ com amor/ porque ele é o lugar/ onde tens que passar/ o resto da tua vida”. Ambos sintetizam, do nosso ponto de vista, o que foi a trajetória do crítico literário, poeta, radialista, promotor dos estudos e da cultura de língua portuguesa no quadro internacional (entre outras funções). A partir de uma situação a priori periférica, Guerra Da Cal sonhou com ocupar uma posição central nos estudos literários portugueses e nos estudos de língua portuguesa (portugueses e brasileiros) nos Estados Unidos, mobilizando para isso todos os recursos ao seu alcance e tecendo uma enorme rede de relacionamentos e contatos em Portugal, no Brasil e nos EUA fundamentalmente, que garantiram o sucesso da maioria dos seus empreendimentos e também o seu espaço e legado futuros. Este novo livro é da autoria do maior especialista na trajetória de Ernesto Guerra Da 3

Cal, que adota um formato divulgador para promover os resultados da sua pesquisa acadêmica entre um público alargado. O volume Ernesto Guerra Da Cal, do exílio a galego universal procede de um extenso percurso acadêmico dedicado à figura deste pesquisador, poeta e divulgador galego que desenvolveu o seu trabalho fundamentalmente no exterior por causa do exílio a que se viu forçado na década de 30, na sequência do golpe de estado e posterior guerra civil que teve lugar na Espanha entre 1936 e 1939. A partir da sua chegada a Nova Iorque com um passaporte espanhol republicano que deixaria de ser válido em 1939, Guerra Da Cal assume um novo nome (pois tinha nascido como Ernesto Pérez Güerra) e uma nova nacionalidade (de fato, nunca mais quererá recuperar a nacionalidade espanhola), e encontra um espaço na academia norte-americana precisamente a partir das suas origens galegas, que lhe permitem transitar com facilidade dos estudos hispânicos aos estudos portugueses e daí promover a criação de departamentos de estudos portugueses e brasileiros em universidades americanas. Esta é provavelmente a chave que melhor explica Guerra Da Cal e a sua escolha de Eça de Queirós como tópico para uma tese de doutorado na Universidade de Columbia, de fato a primeira tese sobre literatura portuguesa apresentada nos EUA, e que se converterá em objeto de discussão entre os queirosianistas e, a partir da sua publicação, no fundamento do queirosianismo moderno. Tal e como indica Elias Torres Feijó (orientador dos trabalhos acadêmicos de Gômez) no prólogo ao livro:

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Resenha do livro: Joel R. Gômez. Ernesto Guerra Da Cal, do Exílio a Galego Universal. Santiago de Compostela: Através Editora, 2015. 2 Doutora em Filologia pela Universidade de Santiago de Compostela; Grupo Galabra Universidade de Santiago de Compostela; PPG Letras, UniRitter, Porto Alegre, RS, Brasil Bolsista CAPES PVE. 3 Joel R. Gômez publicou perto de 20 trabalhos dedicados a Guerra Da Cal (acessíveis on-line no site do grupo de pesquisa http://grupogalabra.com) além do livro Fazer(se) um nome. Eça de Queirós - Guerra Da Cal: um duplo processo de canonicidade literária na segunda metade do século XX.

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Provavelmente, sem a sua condição de galego (e galeguista: textos de Eça conheciam divulgação importante, mesmo no órgão político nacionalista A Nosa Terra, já nos inícios da publicação, em cujo número 64, de 30 de agosto de 1918, Eça era precisamente apresentado como fórmula legitimadora da língua e cultura da Galiza e dos “valores próprios”, e modelo para universalização) e utente de português, Da Cal teria mais dificuldades ou mesmo não poderia enveredar por uma via em que seria pioneiro e que lhe daria frutos em termos de capital simbólico, académico e económico notáveis.

A posição alcançada por Guerra Da Cal é bem sintetizada na introdução, em que Gômez elenca os prêmios e distinções conseguidos nos 83 anos de vida do autor em foco (Gômez, 2015: 21-22): [R]ecebeu distinções no seu país de acolhimento (postos de relevo na New York University, na City University of New York; responsabilidades na The Modern Language of America ou na associação de professores de espanhol e português nos EUA; homenagens dos seus pares; acolhimento da Academia de Ciências de Nova Iorque, no Institute of International Education, na Fundação Guggenheim e na Fulbrigth; ou a Medalha da The Hispanic Society of America e a designação de professor universitário emérito ao se aposentar) mas também no exterior, como condecorações de Governos do Brasil (Ordem do Cruzeiro do Sul) e de Portugal (Ordem do Infante Dom Henrique e de Santiago da Espada), além de outras honras de instituições políticas e académicas destes dois países (Medalha Padre Anchieta, Cidadão Honorário do Rio de Janeiro, Doutoramento Honoris Casa pela Universidade da Bahia e Medalha Oskar Nobiling no Brasil; e em Portugal, Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Coimbra, Ordem de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa da Casa Real, os prémios literários Rosalia de Castro e de pesquisa Dom Manuel II, membro da Sociedade de Geografia de Lisboa, da Academia das Ciências ou da Academia Internacional da Cultura Portuguesa). Após a sua morte, o Governo de Portugal apoiou a convocatória, no ano 2000, do prémio internacional de investigação Ernesto Guerra Da Cal dentro das comemorações oficiais centrais do Centenário da Morte de Eça de Queirós; e as câmaras municipais de Cascais e Ferrol dedicaram-lhe ruas, entre outras homenagens.

O livro, estruturado em epígrafes temáticas e arrumado por ordem cronológica dá conta da complexa trajetória de Guerra Da Cal que o levou da periferia à centralidade. A estrutura escolhida pretende facilitar a consulta das pessoas interessadas, indicando aqueles lugares em que a informação poderá ser ampliada. De fato, os contributos do livro de Joel Gômez são mais destacáveis pela imensa solidez documental e bibiográfica, para a qual o pesquisador percorreu desde espólios privados como o de Elsie Da Cal (viúva de Ernesto) a arquivos públicos e privados nos Estados Unidos, Portugal e Brasil. Isto serve para esclarecer as inexatidões que ainda podem ser encontradas em obras de consulta geral, e fixar com rigor e solidez indiscutíveis o estado do conhecimento sobre uma figura da relevância acadêmica internacional de Guerra Da Cal. Embora o livro –pelo seu teor divulgador- não contenha especificamente uma seção desenvolvendo os fundamentos teóricos da pesquisa, estes são referidos na introdução e são perceptíveis na focagem e nos resultados. O autor adota como quadro teórico, em coerência com os trabalhos do grupo de pesquisa GALABRA, da Universidade de Santiago de Compostela, a que o autor se adscreve, as teorias sistêmicas e de campo, que ajudam a alargar o foco da pesquisa a todas as intervenções e tomadas de posição de Guerra Da Cal, sem o estudo das quais seria impossível compreender o sucesso das suas estratégias. Ao mesmo tempo, diante 239

das dificuldades que coloca a abordagem de uma figura como a estudada, com presença e atividade em vários países e fortemente secundarizada e obliterada no seu país de origem, Gômez opta metodologicamente por converter a trajetória do produtor no seu objeto de estudo, o que permite levantar questões relevantes para a compreensão dos campos em que Da Cal atua. Em relação ao Brasil, Da Cal, que manteve intensas relações com a intelectualidade brasileira sua contemporânea, foi responsável pela criação na New York University do Instituto Brasileiro em 1958 e, no ano seguinte, do Junior Year in Brazil, programa de intercâmbio de estudantes desenvolvido em colaboração com a Universidade da Bahia, e sob a coordenação de Alberto Machado da Rosa. O interesse de Da Cal pelo Brasil é sublinhado por Gômez na revisão dos projetos, nunca completados efetivamente, de desenvolver um estudo similar ao levado a cabo com Eça de Queirós sobre Machado de Assis. Mesmo se não chegou a desenvolver um trabalho monumental como Língua e Estilo em Eça de Queirós e a posterior Bibliografia Queirociana, dedicou alguns trabalhos a Machado, como parte da sua estratégia de abrangência nos estudos literários de língua portuguesa. O trabalho de Gômez mostra também Da Cal como divulgador e promotor da sua cultura de origem, particularmente no resto de países de língua portuguesa, onde sempre fez questão de sublinhar a sua nacionalidade galega. Neste propósito teve especial relevância a publicação de Antologia Poética. Cancioneiro Rosaliano (1985), adaptação ao padrão ortográfico internacional da produção de Rosalia de Castro a mais central das autoras ou autores do cânone literário galego, responsável pela primeira publicação moderna nesta língua (em 1863) no contexto do Ressurgimento literário galego. Mas Guerra Da Cal está também diretamente relacionado com os que, provavelmente, são os textos mais populares da literatura galega: os Seis Poemas Galegos do autor espanhol Federico García Lorca, e Joel R. Gômez esclarece definitivamente no seu trabalho as diferentes polêmicas que rodearam a atribuição da colaboração para que Lorca conseguisse compor estes textos numa língua que não falava. Com acesso a documentação privada das pessoas envolvidas, Gômez demonstra que Da Cal foi, nas suas próprias palavras, o “dicionário vivo” de que Lorca se serviu para a composição destes seis textos de relevância internacional. Entre os contributos do livro de Gômez encontra-se o sublinhar como a trajetória de Guerra Da Cal foi apagada na sua Galiza natal. Responsável dos estudos queirosianos modernos, e até da canonização de Eça de Queirós como autor central da literatura portuguesa, ou da implantação dos estudos brasileiros nos EUA, entre outras atividades que o converteram em presença incontornável nos estudos de língua portuguesa na segunda metade do século XX, Da Cal é hoje, na realidade, uma ausência gritante no campo acadêmico galego. Ernesto Guerra Da Cal, do exílio a galego universal, em definitivo, é um livro modelar para compreender os estudos de trajetória, assim como para as pessoas interessadas no conhecimento do campo acadêmico e das suas estratégias. A pesquisa de Gômez deita luz sobre os estudos da estilística que triunfaram nos meados do século passado, as relações nesse contexto entre produção científica e literária, a emergência dos estudos de língua portuguesa nas universidades dos Estados Unidos, os vários papéis que o/a acadêmico/a desenvolve na sociedade e no tempo em que tem de viver (do envolvimento estético ao político, da produção científica à divulgação jornalística), sem esquecer em que modo as lutas acadêmicas e os processos de consagração e de reconhecimento do trabalho científico também podem e devem ser vistos à luz processos sociais e políticos.

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