Recensão: Estado Novo e os Seus Vadios, Susana Pereira de Bastos (1997)

June 3, 2017 | Autor: Pedro Rocha e Melo | Categoria: Marginalized Identities, Estado Novo, Exclusão social
Share Embed


Descrição do Produto






Recensão:
Estado Novo e os Seus Vadios,
Susana Pereira de Bastos (1997)

Autor: Pedro Rocha e Melo
Nº de aluno: 40786
Trabalho realizado no âmbito da cadeira de História Contemporânea (Séc. XX)
Professor José Neves

CONTEÚDOS
Breve resumo 3
Crítica à obra 3
A voz dos vadios 4
Ruptura com o passado 4
O vadio 6
E se os vadios não fossem marginais? 7
Estado regenerador" Bom português " Vadio impuro 8
Abordagem ao vadio 9
Considerações finais 10
Bibliografia 10







Breve resumo
O que intrigou Susana Pereira de Bastos, professora catedrática do Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, ao iniciar esta investigação é o súbito desaparecimento do "mendigo" das ruas portuguesas no início do século XX, ameaçando a existência de um grupo social cuja presença ao longo das eras medieval e moderna é confirmada em diversos documentos. A tradição em torno deste grupo não é linear, uma vez que encontramos, simultaneamente, referências ao mendigo preguiçoso que vagueia pelas ruas em fuga ao trabalho e ao mendigo virtuoso, que se despoja dos seus bens materiais, ou que por nada ter permite aos demais cidadãos a concretização da sua caridade.
Focando a sua análise no período de vida do Estado Novo de António de Oliveira Salazar, a autora verifica que um conjunto de pessoas – vadios – é alvo de uma marginalização originada na relação que o Estado desenvolve com ele. Assim, propõe que o Estado Novo se vai colocar, neste período, como o purificador dos vadios em quem rejeita todas as virtudes que o bom português deve ter. Para levar a sua missão avante, procura retirar estes vadios da vida pública pelo seu risco de contágio do bom português, aquele que verdadeiramente integra os mais altos valores do Estado.


Crítica à obra
Procurando fazer uma análise crítica útil, apoiamo-nos em Bronislaw Geremek, sociólogo polaco do século XX que dedicou parte significativa da sua vida ao estudo da pobreza e dos marginais. Inspirados pelo trabalho que este autor desenvolveu faremos uma seleção de alguns pontos chave na obra em apreciação, cruzando as descobertas e formulações de Susana Pereira de Bastos com a conceituada obra de Geremek.


A voz dos vadios
Damos início à análise da obra com um primeiro apontamento sobre o esforço de Susana Pereira de Bastos na recolha de informação sobre os diversos nacionais marginalizados durante o século passado em Portugal. No seu estudo pretende recriar os diferentes casos que, enquanto "vadios", eram afastados da rua e recolhidos em instituições preparadas para lidar com este tipo de situações – como foram os casos do Albergue da Mitra, em Lisboa, e da Colónia Agrícola do Pisão, em Alcabideche. Uma vez que grande parte dos registos da Mitra se perderam queimados num incêndio, a autora serve-se dos registos disponíveis e, em grande medida, de entrevistas com variadíssimos atores envolvidos nestes processos – nomeadamente polícias, assistentes sociais e, muito importante, mais de 100 acusados de vadiagem internados em qualquer uma das duas instituições mencionadas no período de vida do Estado Novo. A síntese que esta obra representa, em termos de testemunhos na primeira pessoa, do percurso destes "vadios" e do tratamento a que eram sujeitos, é verdadeiramente singular e oferece uma perspetiva única e fundamental sobre a vivência destes fenómenos sociais do século passado.


Ruptura com o passado
A antropóloga sugere ao longo do livro que a década de 30 do século passado significou um momento de quebra com o passado, uma ruptura com a tradição que desde há longos séculos pautava o modo como as sociedades integravam os seus vadios. A autora reconhece que é difícil delinear um percurso suficientemente claro de evolução desta variável, e recorre ao próprio Geremek para sustentar esta visão. No entanto, em vários momentos do seu trabalho insiste que a postura do Estado Novo perante este grupo de pessoas foi, de facto, uma experiência que pretendeu romper com algumas concepções tradicionais e impor uma visão única, fruto da sua ideologia, a todo o povo. Antes de avançarmos para a proposta que é feita pelas elites salazaristas torna-se necessário clarificar, em poucas linhas, quais as características da visão tradicional que o Estado Novo pretendia agora romper.
Geremek alicerça o seu raciocínio sobre a ideia que não houve um itinerário lógico na evolução da reação das sociedades à pobreza e miséria. Entre breves referências a pensadores do século X e, sobretudo, a legislações e outros documentos da sucessão da modernidade pela era medieval, o autor polaco revela que é possível encontrarmos um posicionamento ambíguo das sociedades perante os casos de miséria que acompanha e se multiplicam com o avançar da modernidade, sobretudo com as profundas alterações sociais e económicas da revolução industrial e da economia de mercado capitalista. A visão sagrada da pobreza, materializada na crença de um sistema de prestação e contraprestação, em que o mendigo que recebe a esmola retribui a dádiva com a sua oração e intercessão junto de um Deus de que é próximo, tem muita força na tradição de muitos povos e grupos de lidar com a pobreza. No entanto, é tão antiga a desconfiança do povo sobre alguns desses personagens, detectada nos seus relatos de medo e insegurança ou na sensação de que alguns dos vadios o são pela preguiça do trabalho, num estilo oportunista. Melhor exploraremos esta contradição entre os mendigos por necessidade e os mendigos profissionais mais à frente.
Importa, então, perceber que a mendicidade sempre levantou reações contrárias entre si. A partir da revolução da indústria que, entre outras coisas, provocou grande concentração populacional junto dos grandes centros urbanos, (e à crescente laicização dos Estados, sobretudo no contexto europeu) que pareceu existir uma tendência para a dessacralização destes fenómenos e uma acentuação para a recusa da naturalidade da miséria dentro das sociedades modernas e contemporâneas. Como resultado, assistimos neste tempo a uma sucessiva centralização dos mecanismos de assistência social que estariam na base dos Estados de bem-estar do século XX.
Em Portugal, casos como a Lei das Sesmarias de D. Fernando I no século XIV sugerem que nalguns momentos da nossa história a tolerância (ou inércia) do povo no relacionamento com o vadio teve de ser "educada" pelas elites governamentais. O Estado Novo de Salazar teve uma abordagem agressiva a esta realidade mas a sua postura não é especialmente nova, sobretudo no que toca aos movimentos contemporâneos que se registavam noutros países da Europa. Contudo, e será o que nos ocupará nas restantes páginas desta crítica, a manipulação que as elites salazaristas fazem da imagem do vadio merecem uma análise mais detalhada.

O vadio
Para podermos avançar com outros pontos, parece necessário esclarecer quem é este vadio que é agora reprimido pelas elites salazaristas, cuja eliminação da sociedade portuguesa se torna bandeira do Estado Novo. Como resultado do processo extenso de entrevistas com vários protagonistas das instituições em que a autora se apoiou, partilha no seu livro um conjunto de personagens que seriam alvo da perseguição da polícia do Estado Novo, neste período encarregue de lidar com este tipo de situações. Depois de uma primeira triagem em que, como vimos, pretendiam distinguir o "vadio por necessidade" do "falso vadio", os abrigos que, pretendiam cumprir a função de separar as águas e dar o melhor seguimento aos diferentes casos, encontravam grande dificuldade em fazer sair as pessoas a uma velocidade que se assemelhasse com a que entravam. Assim, os asilos para vadios iam-se enchendo de diversas criaturas que registavam perfis cada vez mais específicos: os loucos, com as mais diversas doenças mentais; as prostitutas; os homossexuais; os alcoólicos; dos tuberculosos; e os reincidentes e os cadrastados.
Entre os testemunhos dos vários homens, mulheres e crianças que preenchiam os espaços da Mitra e do Pisão, deteta Susana Pereira de Bastos alguns traços comuns, por mais diversos que os contextos de partida pudessem ser: desenraizamento e descompromisso social e familiar; desemprego ou emprego instável e mal remunerado; ausência de residência; carências alimentares; migrantes em Lisboa de outras zonas do país. São estes personagens do Portugal do século XX que as elites salazaristas considerariam como impuros, o oposto do "bom português" e que, por isso, deveriam ser retirados da vida pública para que não possam ser má influência junto de um povo que se quer digno da nação.
É interessante refletir o processo de formação deste grupo de vadios que Susana Pereira de Bastos à luz da já abordada dicotomia entre os vadios que o são por necessidade e os que optam "livremente" por sê-lo. Geremek alerta no seu trabalho para o facto de não ser fácil definir os limites da pobreza e a mesma preocupação deve ser também aqui evidente. Por outras palavras, a ideia de usar instituições como as duas que já referimos para realizar uma triagem aos vadios e dar-lhes diferentes encaminhamentos consoante a orientação das suas condutas é trabalhar com fronteiras que não são de todo lineares. A antropóloga portuguesa explora bem esta situação no seu trabalho, desafiando os critérios que aos olhos das elites do Estado Novo justificavam o isolamento e a repressão. O seu trabalho explora os percursos e condições dos diferentes vadios contestando a sua liberdade para seguir outro caminho do que aquele se teria verificado. Aliás, segundo Geremek, os estudiosos da pobreza enquanto fenómeno estigmatizante atribuem um peso muito grande ao impacto dos estigmas de vergonha e má reputação dos pobres na sua tendência pelos comportamentos desviantes.


E se os vadios não fossem marginais?
Outra questão relevante que o livro levanta é a seguinte: e se os vadios não fossem, de facto, marginais? A razoabilidade desta premissa é sustentada pelo relatado confronto entre a visão do Estado e aquela que tinha o povo ou, melhor assim, entre as forças policiais que atuavam a comando das elites do Estado Novo e as gentes portuguesas que, no seu quotidiano, assistiam às variadas formas de repressão que sofriam os vadios. De um lado, a Polícia de Segurança Pública (PSP), incumbida de gerir este processo, queixava-se da "deseducação" do povo português que insistentemente se opunha à sua ação, recusava ser testemunha da vadiagem dos indigentes e zelava pela sua liberdade. Do outro, o povo português, chocava-se com algumas brutalidades dos polícias e não entendia a perseguição aos vadios, quando tantas vezes viam ladrões escapar ilesos.
De um ponto de vista geral, a vida que o vadio leva é muitas vezes percepcionada pelo povo como única alternativa a um conjunto de condições que afectaram o seu percurso e o levaram àquela situação. Detetamos nos testemunhos partilhados por Susana Pereira de Bastos que havia entre o povo uma generalizada tolerância perante muitas das situações que eram consideradas indignas do bom português pelo Estado Novo, o que não é uma realidade exclusivamente nacional como já vimos anteriormente.
Mais interessante se revela o passo seguinte dado pela autora quando sugere que toda esta problemática social – isolamento e correção dos vadios – é marcada por um forte carácter ideológico, sendo que os próprios vadios são alvos de uma construção mítica que pretende servir de oposição ao ideal do já referido "bom português" proposto pelo Estado Novo. Assim, o que é verdadeiramente original no raciocínio de Susana Pereira de Bastos é a forma como as elites salazaristas iriam construir em torno destes vadios uma mitologia que iria reforçar a sua mensagem paternalista e impositiva de uma mentalidade que cria ser a única aceitável e digna de um cidadão nacional.


Estado regenerador" Bom português " Vadio impuro
A ideia de uma triangulação entre
um Estado que purifica os cidadãos impuros enquanto os afasta dos bons cidadãos, impedindo que os primeiros contaminem e influenciem os segundos;
um povo português são e virtuoso que conduz a sua vida pelos mais elevados valores da identidade nacional e que é protegido do mau contágio pelo Estado paternalista;
um conjunto de vadios impuros e indignos proibidos de se juntarem com os demais cidadãos, sob o perigo de os contaminarem com a sua imundice, e que recebem do Estado regenerador a possibilidade de recuperar
é o ponto essencial da tese de Susana Pereira de Bastos neste livro. Afirma ter havido da parte das elites salazaristas do Estado Novo um processo de "desrealização" do vadio, procurando distanciá-lo dos bons cidadãos, procurando interferir na sua tolerância perante os marginalizados assustando-os com o perigo do contagio.


Abordagem ao vadio
Com base no modelo de triangulação dinâmica oferecido por Susana Pereira de Bastos podemos melhor entender a postura geral das instituições governamentais durante o Estado Novo relativamente aos vadios e as medidas práticas que foram tomadas. As experiências feitas no abrigo da Mitra e na Colónia Agrícola do Pisão ao longo das décadas da ditadura salazarista oferecem ao leitor dois casos concretos, unidos na intervenção, da concretização desta filosofia do Estado relativamente aos seus marginais – isolamento e purificação. Uma vez mais, as conversas com vários dos participantes desta dinâmica social e o levantamento de alguns recursos documentais permitem-nos mergulhar nos mecanismos desenvolvidos pelo Estado na sua missão de purificador.
Geremek conclui que, no que toca às diversas abordagens feitas ao vadio, não é possível definir uma série diacrónica que sugira como se deu a evolução geral destes comportamentos. Para este autor, a tão complexa e difícil de conceber alternância de abordagens aos vadios – compaixão e ódio, desprezo e medo, assistência e repressão – era refém da formulação das "preferências da sociedade", das "sensibilidades determinantes", da "mistura entre a ideologia dominante e os hábitos mentais". O ethos cristão da pobreza vai-se desvanecendo à medida que a idade moderna avança e as preocupações sociais pelo controlo social ou pela consciencialização das fracas condições de vida que a rápida industrialização e a economia capitalista provoca na vida de milhares de famílias que se juntam em aglomerados urbanos de crescimento exponencial. O vadio é símbolo do fracasso do capitalismo, em conseguir distribuir de forma mais racional o rendimento pela população ou em criar os mecanismos próprios que combatam a ausência de emprego e consequente afastamento da vida pública moderna.
É neste contexto que vemos erguerem-se e multiplicarem-se as iniciativas públicas e privadas de apoio aos mais carenciados e que procuram combater com todas as suas forças os processos sociais de marginalização de pessoas e grupos seja pela a sua situação de pobreza seja por qualquer outro critério.


Considerações finais
Umas linhas finais para afirmar o interesse deste tipo de debate histórico na medida quem o problema dos vadios é real e profundo no seio das sociedades desenvolvidas. Este tema não pode ser dissociado da reflexão sobre o valor da vida humana, teoricamente evidente, por exemplo, no mundo ocidental mas que nem por isso parecem suficientemente disseminadas em outras culturas entre tantas nações africanas ou asiáticas.
O autor deste documento teve a felicidade de concluir a sua reflexão em Marraquexe (Marrocos) onde sem grande dificuldade encontrou vários dos vadios de Susana Pereira de Bastos mendigando pelas ruas. Certamente, a integração destes na sociedade marroquina nada tem que ver com vivência dos vadios do período salazarista português. No entanto, o mundo desenvolvido, e ainda mais os países do segundo e terceiro mundo, necessita fazer mais e melhor pelos seus cidadãos, reprimindo as desumanas condições em que vivem milhões de pessoas e sempre acolhendo todos os indivíduos de uma forma que o Estado Novo terá falhado em fazer.


Bibliografia
BASTOS, Susana Pereira de (1997). O Estado Novo e os Seus Vadios: contribuição para o Estudo das Identidades Marginais e Sua Repressão. Publicações Dom Quixote, 1ª edição. Lisboa
GEREMEK, Bronislaw (1999). Pobreza. Em Enciclopédia Einaudi, volume 38, pp. 213 – 244. Imprensa Nacional – casa Moeda. Lisboa.
GEREMEK, Bronislaw (1994). Poverty: A History. Blackwell Publishers ltd. Oxford.
HOBSBAWM, Eric (1994). A Era dos Extremos: O Breve Século XX.







2


Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.