Recensão - Percepções de adolescentes Trans holandeses sobre a terapêutica de bloqueio da puberdade.

May 22, 2017 | Autor: Filipe Couto Gomes | Categoria: Health Citizenship, Transgender Health, Medicalization, Subjective Experience, Transgender Youth
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Filipe Couto Gomes

PÓS-GRADUAÇÃO EM SEXOLOGIA 2016

Vrouenraets, L., Fredriks, A., Hannema, S., Cohen-Kettenis, P., de Vries, M. (2016). Perceptions of Sex, Gender, and Puberty Suppression: A Qualitative Analysis of Transgender Youth. Archives of Sexual Behavior, 45, 1697-1703.

Enquadramento Mantenho contacto clínico com pessoas transgénero1 adultas no âmbito de uma das consultas de apoio especializado no Serviço Nacional de Saúde, a do Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. Para a infância e adolescência, no entanto, não existe suporte análogo, e alguns adolescentes são referenciados para esta equipa. Pais destes jovens têm demonstrado esta carência (vide iniciativas da associação AMPLOS em https://amplosbo.wordpress.com). Alguns países têm unidades especializadas na diversidade de género pediátrica; a de Amesterdão tem mais de vinte anos de experiência (Cohen-Kettenis & cols, 2011). Os modelos clínicos de apoio a percursos de transição de género na infância ou na adolescência (modelos afirmativos) têm-se mostrado preferíveis, pelos dados disponíveis sobre a progressão clínica dos casos e pela reflexão ética, a outros - designadamente os de reparação de género e os de protelação da transição até idade adulta (Swann & Herbert, 2000; Hidalgo & cols., 2013). Os modelos afirmativos preveem atenção aos variados fatores psicossociais e culturais, mas também intervenções médicas, e entre estas, terapêuticas endocrinológicas de fase 1 e 2. A fase 1 consiste no tratamento continuado com fármacos que bloqueiam o desenvolvimento pubertário, os análogos da hormona libertação de gonadotrofinas, GnRH (Hewitt & cols., 2012). Este tratamento de bloqueio da puberdade procura prevenir consequências nefastas da disforia de género no funcionamento psíquico, social e escolar destes jovens, e também, otimizar os resultados de uma eventual reconstrução sexual a partir dos 16 anos. Nos centros que o disponibilizam, é oferecido a jovens a partir dos 12 anos, a quem se adeque o diagnóstico de disforia de género na adolescência. A partir dos 16 anos, pode seguirse a fase 2, o tratamento com estrogénios/antiandrogénios ou com testosterona para reconstrução sexual. A escolha deste artigo prende-se com a falta de apoio clínico nesta área em Portugal, como exposto, e é também motivado por se tratar de uma opção terapêutica que levanta pertinentes questões éticas relativas à interferência com o desenvolvimento somático e ao contexto familiar e social de vivências de género não-normativas na adolescência. 1

Opto pelo termo transgénero como designação lata de um conjunto heterogéneo de populações com vivências não-normativas de género, embora a palavra tenha outros usos. As pessoas transexuais compõem a maioria dos casos em acompanhamento por questões relativas à identidade de género.

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Resumo O artigo reporta a um estudo qualitativo, que teve o propósito de recolher e analisar as perceções de um conjunto de adolescentes. Estes encontravam-se em acompanhamento clínico por disforia de género e foram questionados acerca da terapêutica farmacológica para bloqueio da puberdade. Este tratamento, explicam os autores, é um polo de controvérsia nesta área clínica: aponta-se a ausência de estudos que demonstrem quais as consequências psíquicas e físicas, a longo prazo, desta intervenção, a fluidez da identidade de género nestas faixas etárias e a imaturidade dos jovens para decidir sobre este tratamento. Os autores sublinham que, nesta discussão sobre a supressão pubertária farmacológica, pouco se tem sido conhecido acerca das perspetivas dos próprios adolescentes. A população escolhida para o estudo foi a de adolescentes acompanhados numa clínica especializada em disforia de género pediátrica, localizada num hospital universitário da cidade holandesa de Leiden. Foi composta uma amostra não-randomizada, abordando-se quando foram à sua consulta, de modo consecutivo, catorze adolescentes. O estudo foi explicado a estes adolescentes e seus tutores. Apenas um jovem não participou, por recusa do tutor. Esta amostra de 13 adolescentes (cinco do sexo masculino e oito do sexo feminino) não foi reunida de modo a ser representativa das características sociodemográficas e clínicas dos jovens acompanhados nesta unidade. Estes adolescentes, entre os 13 e os 18 anos à admissão no estudo (mediana de 17 anos e 4 meses), receberam tratamento de bloqueio da puberdade. Uma adolescente foi exceção, dado que, tendo 18 anos, foi já elegível para terapêutica hormonal de fase 2. Os autores não indicam qual a idade de cada jovem ao começar tratamento, mas referem uma média de 15 anos e 10 meses à data de início (não constando desvio-padrão). Os adolescentes foram entrevistados por um psicólogo clínico com experiência em infância e adolescência, exterior à unidade. A entrevista consistiu em tópicos gerais e questões abertas, baseados na revisão da literatura e aberta à inclusão de novas temáticas que fossem emergindo nas entrevistas anteriores – sendo de notar que os autores não indicaram a existência de um guião. Foi feita gravação áudio das entrevistas, tendo sido transcrito esse conteúdo. O texto da transcrição foi codificado, procurando identificar-se conceitos de relevo. A partir dos conceitos encontrados nas entrevistas, identificaram-se temáticas. A inclusão de mais entrevistados no estudo continuou enquanto foram emergindo categorias teóricas e novas questões de estudo. Quando as entrevistas deixaram de oferecer conteúdo novo (saturação temática), a admissão de participantes cessou.

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Da análise das entrevistas resultaram três temáticas: (1) a dificuldade em determinar qual a idade mínima para iniciar o tratamento de bloqueio da puberdade; (2) não serem bem conhecidos pelas equipas clínicas os efeitos a longo prazo do tratamento de bloqueio da puberdade; (3) o papel do contexto social. A 3.ª temática era composta por dois subtemas: (a) o aumento da atenção mediática, nomeadamente na televisão e internet; (b) os estereótipos. Relativamente a (1), a maioria dos adolescentes teve dificuldade em definir um limite mínimo de idade adequado. O limite de 12 anos, praticado na Holanda, foi a referência para a resposta destes jovens. Reconhecendo o benefício de evitar alterações pubertárias irreversíveis, há quem tenha valorizado o tempo para pensar sobre esta opção antes de se atingir a idade mínima, e quem tenha sugerido que as raparigas “amadurecem mais cedo” e poderiam ter um limite aos 11 anos e os rapazes aos 13 anos. Há ainda quem tenha colocado dúvidas sobre a competência de crianças mais jovens (que os 12 anos) para tomar este tipo de decisão. No que toca a (2), a maioria dos adolescentes referiu que a falta de conhecimento pelos clínicos sobre os efeitos a longo prazo não seria um obstáculo à vontade de aceder a este tratamento. Os adolescentes valorizaram a possibilidade de poder “viver uma vida feliz” e o seu papel como precursores para que possam surgir dados sobre este tratamento. Sobre (3), os jovens notaram que a mediatização permite que algumas pessoas reconheçam ter sentimentos de disforia de género, saibam não ser os únicos nessa situação e conheçam a possibilidade de tratamento médico. Alguns adolescentes apontam para um estereótipo mediático que não tem em conta a diversidade de experiências, como sejam alguns traços de feminilidade de pessoas autoidentificadas como homens ou vivências de género mais fluidas. Os autores contrastaram as entrevistas dos jovens com um outro estudo seu, em que entrevistaram profissionais acerca deste mesmo assunto. A preocupação com a falta de conhecimento sobre os efeitos a longo prazo surgiu de forma marcada nas entrevistas a alguns profissionais, mas não no estudo com adolescentes. Enquanto alguns profissionais ponderam intervenções antes dos 12 anos, os jovens têm dificuldades em estabelecer uma idade em que considerem haver competência para tomar esta decisão. Por fim, os autores propõem novos estudos com sujeitos em idade mais jovem, com adolescentes que não tenham recebido esta terapêutica e em contextos culturais diferentes do holandês.

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Discussão A investigação qualitativa de problemas clínicos permite obter conhecimento que não está acessível aos métodos quantitativos. No contexto dos métodos qualitativos, não existe o propósito de obter uma amostragem representativa, pois não se pretende uma generalização estatística dos resultados (Britten, 1995; Malterud, 2001). A seleção da amostragem tem por base a noção de saturação dos dados, pela qual se entende que, a partir de um certo número de entrevistas, deixam de surgir novos conteúdos para análise (Guest & cols., 2006). Tal acontecerá particularmente em amostras homogéneas com sujeitos altamente conhecedores do assunto em análise (Guest & cols., 2006). Isto poderá aplicar-se à amostra de adolescentes desta unidade holandesa, tendo em conta as suas características sociodemográficas e a experiência que já detêm sobre o tópico estudado. O uso de triangulação na abordagem qualitativa permite agregar diferentes perspetivas sobre um mesmo assunto. No caso, foi possível contrastar as opiniões de clínicos e utentes. Este foi um estudo com jovens que (1) tinham acesso a uma unidade pública especializada em diversidade de género na infância e adolescência e (2) reuniram critérios de elegibilidade e aptidão para terapêutica de supressão pubertária. O acesso a esta unidade sugere que estes jovens ultrapassaram barreiras socioeconómicas (acesso a informação, transportes) e culturais (famílias que aceitam uma avaliação e intervenção clínicas) que, possivelmente, impediram outros de ter este contacto (Cruz, 2014). Por outro lado, de acordo com o protocolo usado na Holanda, estes são jovens com intensa disforia de género, iniciada ou agravada pela puberdade, sem marcada instabilidade médica ou psicossocial e com apoio familiar para a transição de género (de Vries & Cohen-Kettenis, 2012). As perspetivas deste grupo podem não coincidir com as de jovens em situação diferente, nomeadamente os que não têm acesso à unidade ou não são elegíveis para esta terapêutica. Por fim, tendo em conta o seu papel central neste processo, é particularmente importante acrescentar, às perspetivas de profissionais e jovens, as opiniões dos pais/tutores sobre esta terapêutica e as dificuldades sentidas. Destaco, das respostas dos jovens entrevistados, as tentativas para definir uma idade mínima para este tratamento. Trata-se de uma questão ainda em aberto entre os clínicos (Dreschner & Byne, 2012). O protocolo da unidade de Amesterdão define uma idade mínima de 12 anos, a par de um desenvolvimento pubertário mínimo definido, em endocrinologia, pelo segundo ou terceiro estádio no modelo de Tanner, critério adotado pela generalidade das equipas (Costa & cols., 2016) e patente nas linhas de orientação clínica da World Professional Association for Transgender Health - WPATH -, que são referência internacional (2011). Por

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seu lado, o consentimento em idade pediátrica é um tema complexo, multidimensional (Katz & Webb, 2016). Note-se que na Austrália os pais não são considerados competentes para consentir um tratamento de supressão pubertária, tendo este de ser aprovado por um Tribunal (Hewitt & cols., 2012). Assim, será útil olhar para este tópico através do modelo bioecológico de Urie Brofenbrenner (2005). A família – particularmente os pais – assume uma posição central, dado que os jovens estão a ela vinculados por laços afetivos, desenvolvimentais, socioculturais e económicos. Dificilmente estes jovens poderão fazer uma transição de género sem apoio da sua família. A transição de género frequentemente passa por uma revelação à família, pela obtenção de autonomia económica, pelo distanciamento da família ou acontece mesmo apenas quando um familiar morre (Pinto & Moleiro, 2015). A dinâmica, conflitos, contexto sociocultural, valores e repertório adaptativo, a par de fatores socioculturais – deontologia profissional, conceções sobre a responsabilidade parental, legislação, decisões judiciais – constrangem as decisões sobre a terapêutica (Katz & Webb, 2016). Quanto à componente biológica, parece existir um desfasamento entre o desenvolvimento das estruturas cerebrais responsáveis pelas emoções e socialização, mais precoce, e o das implicadas na reflexividade, as quais só concluem a sua maturação durante a terceira década de vida; este desenvolvimento cerebral contínuo não se conforma às categorias legais (Katz & Webb, 2016). Perante esta diversidade de aspetos, uma equipa multidisciplinar e o acesso a consultores de várias áreas – saúde, ciências sociais, Direito – poderão fortalecer o apoio a uma decisão que, no fim de contas, será do jovem e seus tutores legais (Katz & Webb, 2016). Por fim, é de notar que, havendo barreira legislativa ou uma discordância entre tutores e equipa clínica, e perante uma ameaça à vida – particularmente, o risco suicida – a decisão poderá ter de ser judicial (Katz & Webb, 2016). Tal aconteceu em 2009 em Espanha: uma decisão judicial permitiu que uma jovem de 16 anos, com história de várias tentativas de suicídio, acedesse à reconstrução sexual cirúrgica (Tremlett, 2010). Este artigo visibiliza a opinião dos adolescentes em terapêutica de supressão pubertária, que deve ser tida em conta no desenho dos serviços. Por outro lado, é importante que os jovens participem das decisões terapêuticas, informados sobre efeitos adversos da terapêutica e formas de os minorar e acedendo a estratégias de adaptação psicossocial e interpessoal. A necessidade de informação e competências abrange também as famílias e os espaços comunitários (escola, cuidados de saúde primários, etc.). O acesso a este apoio está dependente da formação dos profissionais de diversos sectores e da existência de mais recursos alocados a esta área (por exemplo, possibilidade de profissionais experientes oferecerem formação em áreas geográficas mais distantes das equipas especializadas).

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Bibliografia Britten, N. (1995). Qualitative interviews in medical research. British Medical Journal, 311, 251-253. Brofenbrenner, U. (2005). The bioecological theory of human development. In U. Brofenbrenner (Ed.), Making human beings human: bioecological perspectives on human development (pp. 3-15). Thousand Oaks, CA: Sage.

Cohen-Kettenis, P., Schagen, S., Steensma, T., de Vries, A. & Delemarre-van de Waal, H. (2011). Puberty Suppression in a Gender-Dysphoric Adolescent: A 22-Year FollowUp. Archives of Sexual Behavior, 40, 843-847. Costa, R., Carmichael, P., & Colizzi, M. (2016). To treat or not to treat: puberty suppression in childhood-onset gender dysphoria. Nature Reviews Urology, 13, 456-462. Cruz, T. (2014). Assessing access to care for transgender and gender nonconforming people: a consideration of diversity in combating discrimination. Social Science & Medicine, 110, 65-73. de Vries, A., & Cohen-Kettenis, P. (2012). Clinical management of gender dysphoria in children and adolescents: the Dutch approach. Journal of Homosexuality, 59, 301-320. Drescher, J. & Byne, W. (2012). Gender dysphoric/gender variant (GD/GV) children and adolescents: summarizing what we know and what we have yet to learn. Journal of Homossexuality, 59, 501-510. Guest, G., Bunce, A., & Johnson, L. (2006). How many interviews are enough?: an experiment with data saturation and variability. Field Methods, 18, 59-82. Hewitt, J., Paul, C., Kaslannan, P., Grover, S., Newman, L. & Warne, G.. (2012). Hormone treatment of gender identity disorder in a cohort of children and adolescents. Medical Journal of Australia, 196, 578-581. Hidalgo, M., Ehrensaft, D., Thiselman, A., Clark, L., Garofalo, R., Rosenthal, S., Spack, N. & Olson, J.. (2013). The gender affirmative model: what we know and what we aim to learn. Human Development, 56, 285-290. Katz, A. & Webb, S.. (2016). Informed consent in decision-making in pediatric practice. Pediatrics, 138:2, e20161485. Malterud, L. (2001). Qualitative research: standards, challenges, and guidelines. The Lancet, 358, 483-488. Pinto, N., & Moleiro, C. (2015). Gender trajectories: transsexual people coming to terms with their gender identities. Professional Psychology: Research and Practice. 46(1), 12-20.

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Swann, S. & Herbert, S.. (2000). Ethical issues in the mental health treatment of gender dysphoric adolescents. Journal of Gay & Lesbian Social Services, 10:3-4, 19-34. Tremlett, G. (2010, 12 de Janeiro). Sixteen-year-old becomes Spain’s youngest transsexual. The Guardian. Retirado de http://www.theguardian.com WPATH. (2011). Standards of care for the health of transsexual, transgender, and gender nonconforming people, 7th version. Retirado de http://www.wpath.org

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