Recensão * Por que escrevo e outros ensaios (G. Orwell)

May 31, 2017 | Autor: Patrícia Fernandes | Categoria: George Orwell
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RECENSÃO ORWELL, GEORGE, POR QUE ESCREVO E OUTROS ENSAIOS, TRAD. PORT. DESIDÉRIO MURCHO, LISBOA, ANTÍGONA, 2008, 154 PP.

Esta pequena antologia publicada pela Antígona recolhe oito ensaios escritos por Eric Blair, ou George Orwell, na década de 1940 – com exceção de um escrito de 1931, ainda assinado precisamente como E. Blair. Desidério Murcho, na introdução, chama a atenção para esta faceta menos conhecida de Orwell como ensaísta: “A seleção de ensaios que John Carey preparou para a Everyman’s Library (2002) tem 1369 páginas.” Esta edição portuguesa compreende os seguintes oito dessa publicação inicial: 1) Por que escrevo (Why I write, 1946) 2) A política e a língua inglesa (Politics and the English language, 1946) 3) Verdade histórica (As I please - 10, 1944) 4) Linguagem religiosa (As I please - 14, 1944) 5) As fronteiras entre a arte e a propaganda (The frontiers of art and propaganda, 1941) 6) Literatura e totalitarismo (Literature and totalitarianism, 1941) 7) Um enforcamento (A hanging, 1931) 8) O leão e o unicórnio: o socialismo e o génio inglês (The lion and the unicorn: socialism and the English genius, 1941)

Para um leitor habitual das obras de Orwell, a leitura destes ensaios sobre a sua atualidade, particularmente marcados pela segunda guerra mundial e os regimes totalitários, torna possível reconstruir as linhas de reflexão que orientam a sua escrita ficcional. Nesse sentido, podemos encontrar em «A política e a língua inglesa», «Verdade histórica» e «Literatura e totalitarismo» (escritos entre 1941 e 1946) elementos fundamentais das obras ficcionais de Orwell. É disso exemplo a análise da relação entre linguagem e política e a chamada de atenção para o modo como aquela pode ser usada para fazer suspender o nosso juízo: Os ruídos brotam da sua laringe, mas o seu cérebro não está envolvido no processo, como teria de estar se estivesse a escolher as palavras que usa. (…) E este estado de reduzida consciência, se não é indispensável, é em qualquer caso favorável ao conformismo político. (p. 38)

Igualmente a defesa de que um dos elementos caracterizadores do século XX se tornará o facto de que a história será escrita pelos vencedores – e nessa medida, “[o] que há de realmente

assustador no totalitarismo não é o cometer de ‘atrocidades’, mas o ataque ao conceito de verdade objetiva, ao afirmar que controla o passado como controla o futuro” (p. 47). Ou a ideia de que [o] totalitarismo aboliu a liberdade de pensamento com uma intensidade de que jamais se ouviu falar em qualquer época anterior. E é importante ter consciência de que o seu controlo do pensamento não é apenas negativo, mas também positivo. (…) O estado totalitário procura, em qualquer caso, controlar os pensamentos e emoções dos seus súbditos pelo menos tão completamente quanto controla as suas ações. (p. 63)

Estas são reflexões caracteristicamente orwellianas – presentes nas suas obras mais conhecidas do público, como Mil novecentos e oitenta e quatro (1949), O triunfo dos porcos (1945) ou Homenagem à Catalunha (1938). A sua batuta foi sempre a preocupação com a injustiça e, consequentemente, com o totalitarismo e o modo como este interfere com a linguagem e a verdade. E aqui torna-se claro o seu posicionamento liberal, que o próprio define como “o hábito mental (…), que concebe a verdade como algo fora de nós, algo descobrir, e não como algo que podemos inventar à medida que precisamos.” (p. 48) Há, neste sentido, uma íntima relação dos escritos de Orwell com o seu tempo, como ele próprio reconhece em «Por que escrevo»: “Numa época pacífica poderia ter escrito livros ornamentais ou meramente descritivos, e poderia ter ficado quase sem ter consciência das minhas convicções políticas. Mas fui forçado a tornar-me uma espécie de panfletário.” (p. 18) Afinal, O que mais desejei fazer ao longo dos últimos dez anos foi tornar a escrita política uma arte. O meu ponto de partida é sempre um sentimento de militantismo, um sentido de injustiça. Quando me sento para escrever um livro, não digo a mim mesmo: “Vou produzir uma obra de arte.” Escrevo porque há uma mentira qualquer que quero denunciar, um facto qualquer para o qual quero chamar a atenção, e a minha preocupação inicial é ser ouvido. (pp. 19-20)

Apesar dessa dimensão panfletária, Orwell não abdicou nunca de uma postura crítica dos seus próprios pontos de partida, apreciando sempre o modo como a esquerda ou os socialistas privilegiavam a defesa ideológica da sua visão do mundo em detrimento de uma visão mais pragmática ou verdadeira (cf. «Linguagem religiosa», «As fronteiras entre a arte a propaganda», «Literatura e Totalitarismo» e «O Leão e o Unicórnio: o socialismo e o génio inglês»). Finalmente, o aspeto mais rico das reflexões orwellianas parece-me ser o de ampliarem a nossa capacidade de refletirmos sobre o nosso próprio tempo. Os receios de Orwell quanto ao totalitarismo tornam-se avisos poderosos em face de uma sociedade atual obcecada com o controlo de pessoas, movimentos e pensamento. Os mesmos perigos totalitários que Orwell identificou continuam a existir, talvez agora encobertos por outros nomes e designações. E é essa intemporalidade que faz os grandes escritores. Patrícia Fernandes, 2016

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