Recensão sobre o livro do Embaixador Carlos Fernandes, «O Cônsul Aristides de Sousa Mendes: a Verdade da Mentira»

July 26, 2017 | Autor: D. Protásio | Categoria: Holocausto, Salazarism, Aristides De Sousa Mendes
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Aristides de Sousa Mendes: herói ou fraude? Aristides de Sousa Mendes: hero or fraud?

FERNANDES, Embaixador Carlos, O Cônsul Aristides de Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira, Lisboa, Edição de autor, 2013, 326 p.

Daniel Estudante Protásio Doutor em História Institucional e Política Contemporânea pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa

Palavras-chave: historiografia do século XX; memória coletiva; judaísmo. Key words: XX century historiography; collective memory; judaism.

O Embaixador Carlos Fernandes, diplomata português com vasta experiência, professor universitário e autor de uma extensa bibliografia sobre várias temáticas, publicou em 2013, em edição de autor, uma obra em que reúne uma série de dados e de afirmações que há alguns anos divulga, a propósito de Aristides de Sousa Mendes. O livro, intitulado O Cônsul Aristides de Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira, é assumidamente polémico, servindo de resposta, segundo o autor, à segunda edição da obra de Rui Afonso, Aristides de Sousa Mendes: um Homem Bom. Pretende contrariar o que considera ser um conjunto de falsidades históricas e de mitos e lendas à volta da vida, carreira consular e ação de Aristides de Sousa Mendes. Em Junho de 1940, este cônsulgeral de Portugal em Bordéus (França) desobedeceu às ordens diretas de António de Oliveira Salazar, presidente do conselho de ministros e ministro dos Negócios Estrangeiros, para não emitir vistos aos refugiados que fugiam da invasão alemã, em plena Segunda Guerra Mundial. Estes parecem ser os factos essenciais da obra que se pretende recensar. O contexto geral em que a obra é publicada, em 2013, quando em Portugal se vive não só uma crise

económica mas também uma crise de identidade cultural e de valores coletivos, fruto da recessão e da altíssima taxa de desemprego, não deve ser desligado da temática abordada. O Embaixador Carlos Fernandes, nascido em 1922, pretende exercer uma ação de cidadania pedagógica, publicando um livro que contém documentos que afirma serem inéditos e esclarecedores e que, sobretudo, nasce do conhecimento direto e da experiência profissional que o autor teve, não só da carreira consular de Aristides e César de Sousa Mendes, irmãos gémeos, mas também da vivência do que foi o Estado Novo, regime que vigorou em Portugal entre 1933 e 1974. A obra em questão vem, assim, enriquecer um debate no centro do qual estão não só interpretações do que foi e do que significou o Estado Novo (regime homónimo do que existiu no Brasil, no século XX), mas sobretudo o que foi a neutralidade portuguesa durante a Segunda Guerra Mundial, perante os horrores do Holocausto. Tais temáticas, riquíssimas de estudos e de bibliografia técnica em todo o mundo – e naturalmente também em Portugal, com obras de António Telo, Fernando Rosas, João Medina e Francisco Louçã, para citar apenas alguns nomes – refletem aquilo que são as valorizações e as omissões históricas e memorialísticas da atual sociedade portuguesa. Já em 2007, aquando da votação promovida pelo canal 1 da Radiotelevisão Portuguesa, a televisão oficial do Estado, sobre os Grandes Portugueses, Salazar e Sousa Mendes tinham sido das figuras mais votadas, colocando-as, assim, como que num panteão histórico virtual em que, aparentemente, representam extremos opostos da política e actuação públicas durante a Primeira República (1910-1926), Ditadura Militar (19261933) e Estado Novo (1933-1974). Acaba por ser curioso e sintomático de uma demanda coletiva sobre a necessidade de uma memória histórica nacional, alicerçante de uma sociedade que se quer à altura de vencer os desafios do século XXI, que este debate sobre Aristides de Sousa Mendes e António de Oliveira Salazar, a propósito dos refugiados estrangeiros, decorra sobretudo na blogoesfera, nos jornais e com a publicação de um livro em edição de autor; e não tanto nos «canais oficiais» da universidade e imprensa especializada, científica, de Portugal. Como é bom de ver, nem o Embaixador Carlos Fernandes nem Rui Afonso, autor que mais contribuiu para que a memória dos atos de de Sousa Mendes não ficassem esquecidos, de há vinte anos para cá, são historiadores ou formados em História. Isto é: não possuem aquilo que é definido como os requisitos técnicos para poderem escrever um texto com características próprias do ramo científico da História. Porém, tal como

tantas vezes sucede, sem o jornalista Rui Afonso ou o Embaixador Carlos Fernandes, provavelmente o debate sobre os atos, personalidade e vida de Aristides de Sousa Mendes não teria o impacto mediático que o assunto merece. O que apenas pode resultar de uma omissão dos investigadores e historiadores portugueses em abordarem um assunto que prende a atenção do público, por envolver um dos assuntos centrais na história do século XX: o da fuga ao regime nacional-socialista de Adolfo Hitler e à solução final defendida para com judeus, comunistas, opositores ao regime nazi e outros elementos considerados indesejáveis e ditos «anti-sociais»1. A obra do Embaixador Carlos Fernandes assume, assim, uma importância considerável por resultar da experiência, reflexões e observações de um técnico, isto é, de alguém com um profundo conhecimento da carreira diplomática, dos legalismos e subtilezas de um mundo sócio-profissional que tantas vezes contribui para definir a natureza e especificidades dos regimes políticos que os diplomatas (tal como os cônsules, na sua carreira própria) servem, defendem ou, muitas vezes, contrariam, nas suas decisões e normas. Os diplomatas de carreira com frequência têm assumido – para enriquecimento do conhecimento histórico – um papel ativo na preservação, estudo e reflexão sobre factos, figuras e documentos políticos e diplomáticos; desde o visconde de Santarém ao falecido Embaixador José Calvet de Magalhães, passando pelo historiador Pedro Soares Martinez, a história de Portugal muito lhes deve. Porém, nem sempre um diplomata experiente, culto e tecnicamente competente nas áreas profissionais percorridas (como, no caso do Embaixador Carlos Fernandes, a diplomática, a jurídica e a universitária) consegue atingir a isenção e equilíbrio que é esperado de um historiador. São áreas culturais, técnicas e científicas afins, as da diplomacia, da universidade e da história, mas não totalmente permeáveis. Temos, pois, que um diplomata de carreira pode ser um excelente professor universitário, mas o inverso não tem obrigatoriamente de ocorrer; tal como um historiador pode nunca ser professor universitário e muito menos diplomata de carreira. Aliás, não só não existe uma ordem sócio-profissional dos historiadores em Portugal, como sucede no caso dos advogados ou

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Nesta altura, no Verão de 2014, já aparecem no mercado editorial português outros títulos sobre Aristides de Sousa Mendes, os quais podem ser considerados como um segundo momento nesta polémica entre Fernandes e Afonso, fugindo, assim, ao âmbito da presente recensão.

médicos, como o contributo dos historiadores «leigos», amadores ou sem preparação técnica é importante, nem que seja como fontes primárias, diretas, dos acontecimentos. Esse parece ser o papel primordial do Embaixador Carlos Fernandes e, necessariamente, do autor que se propõe corrigir, Rui Afonso. O papel de Rui Afonso foi (e é) o de inegavelmente não deixar cair no esquecimento a figura e ação de Aristides de Sousa Mendes, desde 1987 até ao presente, entrevistando familiares do cônsul, refugiados e descendentes dos refugiados que passaram por Portugal em 1940, pesquisando e organizando documentos e memórias familiares e históricas que, de outro modo, se perderiam irremediavelmente. O papel do Embaixador Carlos Fernandes, em entrevistas à imprensa e neste seu livro, é o de não deixar passar sem reparo uma mensagem – que considera incorreta – às atuais e futuras gerações, sobre Aristides de Sousa Mendes. Ambos os autores desempenham, assim, um papel indispensável num debate que é importante para o conhecimento do que foi a neutralidade do Estado Novo perante a Segunda Guerra Mundial e os seus dramas humanos coletivos. Vejamos, então, quais são os méritos e as fragilidades da obra O Cônsul Aristides de Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira. Em primeiro lugar, a sua natureza de edição de autor representa, por parte de quem o escreveu, um ato de coragem e de cidadania, pois o mercado editorial e livreiro português nem sempre é justo nas suas escolhas e nas suas estratégias de divulgação comercial, deixando de fora textos com qualidade e interesse para o público leitor. Esse foi um aspeto que o autor conseguiu superar, não só através de ampla divulgação na internet (Facebook e blogues), mas também através do jornal em papel O Diabo, com várias reportagens, entrevistas e chamadas de primeira página. A capa e contracapa do livro, em cor branca com título e textos a preto, pretende transmitir uma imagem de isenção, de neutralidade, própria de um Livro Branco, característica que aliás o autor deseja atribuir à sua obra, parecendo esquecer-se que um Livro Branco é, por norma, institucional, coletivo e não pessoal e individual. O índice – tal como, de resto, a contracapa – demonstram à saciedade que o autor quer tornar inquestionáveis as suas conclusões e a afirmações, dotando a sua obra com uma quantidade considerável de matérias, o que poderá dificultar a própria leitura e compreensão dos assuntos a tratar. De facto, o Embaixador Carlos Fernandes responde aos vinte capítulos do livro de Rui Afonso Aristides de Sousa Mendes: um Homem Bom

com outras tantas divisões, o que não pode deixar de contribuir para a dispersão das conclusões que pretende divulgar. Um dos objetivos primordiais do Embaixador Carlos Fernandes é o desmistificar a personalidade, carreira consular, ação em Bordéus e posterior vida de Aristides de Sousa Mendes, isto é, demonstrar que ele não foi nem um herói, nem alguém digno de admiração. Em parte, consegue-o, revelando alguns aspetos pouco conhecidos do percurso político e profissional de Sousa Mendes e, sobretudo, enfatizando o seu posicionamento ideológico de homem conservador, monárquico e inicialmente adepto da Ditadura Militar, instituída em 1926. Esta especificidade do posicionamento e percurso político e ideológico de Sousa Mendes é importante, mas não é nem totalmente desconhecida – Rui Afonso faz menção delas – nem completamente original: basta pensar-se em Humberto Delgado ou noutros opositores do Estado Novo que começaram por trabalhar com o regime, para acabarem por querer alterá-lo mais ou menos profundamente ou opor-se-lhe em algum aspeto específico. Por outro lado, o autor demora-se nos vários processos disciplinares que Aristides de Sousa Mendes sofreu, ao longo da sua longa carreira consular, pretendendo demonstrar que o cônsul não foi um profissional íntegro nem idóneo, para lá de todas as conjunturas políticas. Também aqui não se trata de algo que Rui Afonso tenha ignorado, tanto nas suas duas edições de Aristides de Sousa Mendes: um Homem Bom como em Injustiça. Mas trata-se de um aspeto importante, em termos morais, éticos e culturais: o de contestar a classificação de uma figura histórica como heróica quando há provas tangíveis de que aquela nem sempre foi correta, num processo um tanto ou quanto paralelo ao necessário para a beatificação ou canonização de um mártir. Como é por demais sabido, também a sociedade civil precisa dos seus mártires e heróis; o processo é que não será necessariamente o mesmo. Em terceiro lugar, o Embaixador Carlos Fernandes analisa a personalidade e vida familiar de Aristides de Sousa Mendes, pai de 14 filhos (11 vivos, em 1940), revelando as fraquezas de uma personalidade complexa, multifacetada, de uma piedade e fervor católico intensos, mas adúltero. Tais ambivalências e contradições não só perpassam pela obra de Rui Afonso como estão bem espelhadas num filme que parece tê-lo tido por inspiração, O Cônsul de Bordéus, realizado por Francisco Manso e João Correa.

Um quarto aspeto pode ser resumido como o do processo disciplinar, aposentação e rendimentos auferidos por Sousa Mendes, de 1940 a 1954, quando morreu, supostamente na penúria. Aqui, o Embaixador Carlos Fernandes demonstra, com perícia técnica, que Aristides de Sousa Mendes não foi perseguido por António de Oliveira Salazar nem morreu pobre, pois continuou a receber uma pensão até ao final dos seus dias. Se encararmos o Estado Novo como um regime legalista, em que a Constituição de 1933 proibia a perseguição religiosa ou política dos indivíduos, permitindo a liberdade de expressão e de reunião, esse ponto de vista está correto. Se a isso adicionarmos a existência de censura prévia e de leis de excepção e uma série de outras subtilezas técnicas, poderemos entender como um homem idoso, doente, que fica viúvo e paralisado de um lado do corpo, impedido de trabalhar como advogado por não ter experiência na área e com onze filhos a cargo, viu a sua propriedade de família delapidada e a maioria dos filhos obrigados a emigrarem. Isto, a acreditarmos no que escreve Rui Afonso. Não sendo testemunhas presenciais dos factos, apenas nos podemos guiar pela lógica e pela verosimilhança dos processos políticos do Estado Novo. Cada um deve e pode tirar as conclusões por si mesmo, até porque as testemunhas presenciais, sejam elas quais forem, podem não ser idóneas; e sem confrontação de documentos, de factos e testemunhas, o conhecimento histórico não pode ser alcançado nem sucessivamente enriquecido. Um quinto e último aspeto que há que destacar na obra do Embaixador Carlos Fernandes diz respeito à perseguição nazi que acabou por desencadear o Holocausto e, curiosamente, o papel do Estado de Israel e da comunidade judaica na reabilitação e recuperação da memória de Sousa Mendes. Se, por um lado, é por demais evidente o papel dos judeus perseguidos pelo nazismo e do emergente Estado de Israel na investigação e preservação documental dos crimes de guerra e contra a humanidade do Estado nazi alemão, com um papel central de instituições arquivísticas e científicas como o Centro Simon Wiesenthal em Viena e Los Angeles e o Yad Vashem em Jerusalém, por outro é natural – embora preocupante – que tenha sido na comunidade judaica americana, tal como na comunidade portuguesa expatriada, que a memória de Aristides de Sousa Mendes foi recuperada, avivada e divulgada. É preocupante tal facto, por demonstrar um desinteresse e um alheamento, por parte do Estado português, antes e depois da revolução do 25 de Abril de 1974, por tal estudo. A memória histórica produzida é falível, tal como todas as memórias de factos e figuras. É dada a exageros, incorreções e apropriações indevidas, tal como pintar Sousa Mendes como um homem que não conservador, católico,

monárquico e aristocrático. Mas há que não esquecer que Sousa Mendes, tal como tantos outros homens com essas mesmas características, um pouco por toda a Europa, discordou de determinadas decisões políticas nos tempos desumanos da Segunda Guerra Mundial. O problema da divulgação da memória e atos de Aristides de Sousa Mendes não residirá tanto na transmutação da sua memória como a de um super-homem perfeito, um progressista de esquerda, na linha de outros opositores ao regime como Humberto Delgado ou Mário Soares. Essa descaraterização das figuras históricas pela imprensa nãoespecializada, pelo cinema, pelo teatro, pela televisão, pela banda desenhada, nos manuais de ensino, não é controlável pela comunidade científica em geral e pelos historiadores e investigadores da História, em particular. O que me parece particularmente grave e preocupante na obra do Embaixador Carlos Fernandes são algumas sugestões, aparentemente inócuas, de que não tendo a Solução Final formalmente existido antes de 1942, a atuação de Aristides de Sousa Mendes não possuiu o impacto que geralmente lhe é atribuída nem, por fim, foram dezenas de milhares ou milhares os vistos passados pelo cônsul-geral. Em pleno século XXI, que tal suceda numa obra de um diplomata de carreira (FERNANDES 2013, p. 22, 37, 99-100, 153 e 261), tal como de resto em alguns blogues que divulgam a obra e na entrevista que o autor deu ao jornal O Diabo a 2 de Julho de 2013 (BRANQUINHO 2013, p. 13), assemelha-se emocionalmente a esse fenómeno que é o negacionismo do Holocausto. O problema do número de refugiados que obtiveram vistos passados por Sousa Mendes pode ser, pelo menos em parte, documentado, senão presencialmente, pelo menos através das redes sociais que agrupam familiares e descendentes de refugiados. Há que acreditar que, num futuro mais ou menos breve, poderemos ter uma ideia aproximada e documentada do número de vistos em questão. Por esta e todas as outras razões invocadas no presente artigo, a figura frágil, humana e contraditória de Aristides de Sousa Mendes merece continuar a ser estudada por aquilo que tem de mais exemplar: a recusa da indiferença perante o sofrimento alheio, do refúgio na obediência à hierarquia e às ordens formais. E é para esse estudo que a obra do Embaixador Carlos Fernandes contribui de forma decisiva, com documentação enriquecedora, pontos de vista polémicos mas a merecerem ponderação cuidada, pois o conhecimento histórico não pára enquanto a sociedade humana persistir em recordar. Cabendo, a cada um de nós, na medida das suas possibilidades e preparação técnica, dar

um contributo construtivo para um diálogo salutar sobre esta e outras figuras do século XX.

Referências bibliográficas

AFONSO, RUI. Injustiça: o caso Sousa Mendes, Lisboa: Editorial Caminho, 1990 ___________. Aristides de Sousa Mendes: um Homem Bom. Aristides de Sousa Mendes: o «Wallenberg Português», Lisboa: Editorial Caminho, 1995, 354 p. BRANQUINHO, Duarte. A verdade sobre Aristides de Sousa Mendes (entrevista com o Embaixador Carlos Fernandes), Lisboa: O Diabo, ano XXXVI, n. 1095, 2 de Julho de 2013, p. 11-13. FERNANDES, Embaixador Carlos. O Cônsul Aristides de Sousa Mendes: a Verdade e a Mentira, Lisboa: edição de autor, 2013, ISBN 978-989-20-3880-3, 326 p. MANSO, Francisco e CORREA, João (realizadores). O Cônsul de Bordéus, 2011, média metragem com duração de 90 minutos.

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