Recombinação de repertórios: criatividade e a integração de aprendizagens isoladas

May 26, 2017 | Autor: H. Neves Filho | Categoria: Criatividade, Análise Do Comportamento, Inovação, Psicologia
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Hernando Borges Neves Filho

Recombinação de repertórios: criatividade e a integração de aprendizagens isoladas Hernando Borges Neves Filho Pontifícia Universidade Católica de Goiás

Epstein, R., Kirshnit, C. E., Lanza, R. P. & Rubin, L. C. (1984). “Insight” in the pigeon: Antecedents and determinants of an intelligent performance. Nature, 308, 61-62.

“Uma tarde, contrariando meus hábitos, tomei café preto e não consegui dormir. Multidões de ideias surgiram; senti-as colidindo até que pares se interligaram, formando uma combinação estável, por assim dizer” (Poincaré, 1913, p. 387)

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Capítulo XVIII | Criatividade

INTRODUÇÃO À ÁREA DE PESQUISA E CONTEXTUALIZAÇÃO DO EXPERIMENTO A criatividade tem sido uma fonte inesgotável de especulações filosóficas e científicas. Seu escrutínio empírico tem sido um trabalho constante na Psicologia desde o início do século XX, e a Análise do Comportamento vem dando uma contribuição importante ao estudo deste tema a partir da análise de processos comportamentais relacionados com a origem de comportamentos novos. No início do século XX, uma das discussões mais acaloradas no meio científico tratava do que separava animais humanos de não humanos, e que tipo de diferenças eram essas (Mas, 2015). Toda essa discussão era suplantada pela efusiva eclosão da teoria da evolução de Darwin, que começava a ganhar adeptos eminentes na Psicologia (Boakes, 1984). Nesse contexto, um trabalho pioneiro e lembrado com frequência em livros texto é o de Wolfgang Köhler (1948) com chimpanzés (Pan troglodytes). Köhler expôs chimpanzés a diferentes tarefas de resolução de problemas e, em alguns casos, descreveu uma solução súbita da tarefa em questão como um “insight”. Este “insight” foi descrito por Köhler como uma topografia de resolução de problema súbita, que ocorria em um lampejo, de forma fluída e direcionada a uma meta (a solução do problema). Um exemplo deste desempenho se deu em uma situação problema na qual

uma banana estava fora do alcance, suspensa por uma corda, e caixotes estavam disponíveis no ambiente. Diversos animais tinham acesso a essa situação simultaneamente. Diversos chimpanzés pularam e esticaram seus braços em direção a banana, sem alcança-la. Até que, subitamente um destes sujeitos, chamado Sultão, se aproxima de uma caixa e a carrega em direção a banana, coloca-a abaixo da posição da banana, sobe na caixa e agarra a banana diante do olhar atento da plateia (de chimpanzés e humanos). Rapidamente foram traçadas analogias antropomorfizadas que tratavam o desempenho de Sultão como similar ao “a-há!” que humanos em uma cultura ocidental costumam emitir ao resolver subitamente um problema (Jung-Beeman et al., 2004). Na época em que Köhler lançou seu livro, seus dados empíricos e suas manipulações experimentais contrastaram com a forma anedótica com a qual a inteligência animal era usualmente tratada em livros clássicos de Psicologia Comparada (Boakes, 1986; Delage & Carvalho Neto, 2010), e consequentemente seu método de teste sistemático de resolução de problema animal chamou a atenção de outros pesquisadores1.

Köhler foi um pioneiro do estudo empírico da cognição animal, mas não foi o único. Pelo menos três de seus contemporâneos foram também pioneiros em suas metodologias empíricas: E. L. Thorndike, L. Hobhouse e R. Yerkes. Köhler (1948, p. 22) contrasta sua metodologia e seus dados aos dados obtidos por Thorndike com gatos em caixas problema. Köhler alinha e encontra pontos de confluência com às propostas de Hobhouse e Yerkes. Esta polarização gerou um longo debate sobre dois supostos tipos de resolução de problemas distintas: uma resolução tentativa e erro (como a obtida por Thorndike) ou uma resolução súbita por Insight (Delage & Carvalho Neto, 2006). A Universidade de Würzburg disponibiliza online em seu website algumas filmagens originais dos experimentos de Köhler (1948) com chimpanzés. 1

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Ao longo dos anos, e com a vasta repercussão dos trabalhos de Köhler, uma série de estudos sobre a resolução de problemas foi realizada com chimpanzés e outros animais em diferentes situações (Neves Filho, 2015). O debate acerca do “insight” chegou até mesmo a chamar a atenção de Pavlov e seus colegas, que adquiriram um casal de chimpanzés com o objetivo de replicar os achados de Köhler (para uma descrição detalhada da série de estudos de resolução de problemas em chimpanzés, realizados nos laboratórios de Pavlov, conferir Razran, 1961; Ladygina-Kots & Dembovskii, 1969; Windholz, 1984; Windholz & Lamal, 1985; Reznikova, 2007). A maioria dos estudos focava a capacidade de animais de diferentes espécies resolverem tarefas em uma primeira apresentação, de forma criativa. Uma menor parcela de estudos, não menos relevante, teve como objetivo explorar qual o efeito da aprendizagem sobre o desempenho súbito de resolução de problemas (Maier, 1931; 1937; Birch, 1945). Foi apenas uma questão de tempo até que pesquisadores de viés analítico comportamental dessem suas contribuições sobre este tópico.

Project3 (Epstein, 1981). Foram abordados fenômenos comportamentais como o auto reconhecimento e a formação de self (Epstein, Lanza & Skinner, 1981), uso de memorandos (Epstein & Skinner, 1981), comunicação (Epstein, Lanza & Skinner, 1980), e até mesmo o comportamento de mentir (Lanza, Starr & Skinner, 1982). Dentre estes estudos, um que ganhou reconhecido destaque foi o que se propôs a identificar quais as variáveis históricas responsáveis pelo “insight” (Epstein, Kirshnit, Lanza & Rubin, 1984). Publicado no tradicional periódico Nature, este estudo trouxe à comunidade científica um novo processo comportamental demonstrado empiricamente, a recombinação de repertórios (ou interconexão de repertórios), e elencou com clareza qual o papel da aprendizagem na resolução súbita de um problema, e alguns dos processos comporEm geral, o termo “comportamento complexo” é pouco claro e cria uma distinção pouco útil (comportamento simples e comportamento complexo). Entretanto, os autores utilizam este termo na série de artigos do Columban Simulation Project para chamar a atenção de Psicólogos Cognitivos (Epstein, 1996). Em uma visão analítico comportamental, a dicotomia comportamento complexo vs. simples é eliminada, na medida em que se parte do pressuposto de que o que distingue diferentes comportamentos são suas variáveis de controle antecedente e consequente, e que em geral, chama-se de “complexo” comportamentos dos quais pouco se sabe sobre suas variáveis de controle (Donahoe & Palmer, 2004, p. 3). 2

O Columban Simulation Project foi uma resposta a febre cognitiva que tomou conta da psicologia experimental estadunidense na época. Neste momento das ciências cognitivas, estava em voga a metáfora do computador, que tinha como pressuposto básico o uso de um computador para simular e estudar fenômenos mentais (Cisek, 1999; Teixeira, 2008). O Columban Simulation Project visava dar uma alternativa biologicamente mais sensata e parcimoniosa: simular e estudar fenômenos tidos como mentais em organismos vivos, no caso, pombos (Epstein, 1981). O Columban Simulation Project hoje é apenas uma nota de rodapé em livros de história, mas seu pressuposto básico de estudar processos ditos mentais em organismos e não em máquinas, tem voltado a ter destaque nas ciências cognitivas, na medida em que a metáfora do computador perdeu força (Lopes, Lopes & Teixeira, 2004), e as abordagens evolutivas do comportamento vem novamente ganhando vigor (Chemero, 2009; Horik, Clayton & Emery, 2012). Um documentário de 1982 sobre o projeto, com a apresentação de B. F. Skinner, está disponível na íntegra no site de R. Epstein: http://drrobertepstein.com/index. php/videos 3

Na década de 1980, B. F. Skinner e alguns colaboradores publicaram uma série de experimentos cujo objetivo foi estudar fenômenos complexos2, ordinariamente chamados de cognitivos, em um tradicional espécime do laboratório de Análise do Comportamento: o pombo (Columba livia). Esses estudos faziam parte do que ficou conhecido como o Columban Simulation 286

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tamentais básicos envolvidos no desempenho criativo.

DESCRIÇÃO DO EXPERIMENTO Objetivo e Método Epstein et al. (1984) adaptaram uma das situações problemas do pioneiro trabalho de Köhler (1948) aos pombos. A tarefa consistiu em empurrar uma caixa em direção a uma banana de plástico afixada no teto da câmara experimental, subir na caixa, e bicar a banana. A banana foi escolhida sarcasticamente para mostrar que pombos, dado o treino adequado, poderiam exibir o mesmo desempenho que os chimpanzés de Köhler. A essa situação problema, deu-se o nome de teste de deslocamento de caixa (Cook & Fowler, 2014). Os autores manipularam explicitamente o treino que estes pombos receberam antes de serem expostos a situação de teste. Onze pombos participaram do experimento, e diferentes números de sujeitos receberam diferentes histórias experimentais antes de serem expostos a situação problema. Quatro sujeitos receberam o treino independente (não encadeado) de dois repertórios pré-requisito: (a) treino de empurrar direcionado (na qual uma caixa deveria ser empurrada em direção a um alvo verde), e; (b) subir na caixa e bicar um alvo (uma banana de plástico afixada no teto da câmara experimental). Todas as respostas foram consequenciadas com acesso a alimen-

to, e os animais foram mantidos em regime de privação alimentar durante o período do experimento. Foram também realizadas sessões de extinção de voar em direção ao alvo. Nestas sessões o alvo ficava disponível, fora do alcance e sem a caixa, e nenhuma resposta era consequenciada. O treino da habilidade de empurrar direcionado consistia na modelagem de respostas de empurrar a caixa em direção a um alvo verde, que ficava afixado em uma das paredes da câmara, em posições alternadas a cada tentativa, na altura do piso. Também foram realizadas sessões de extinção de empurrar na ausência do alvo verde. O alvo do teste final (a banana de plástico) não esteve presente em nenhuma das sessões desta etapa. Durante o treino da habilidade de subir e bicar o alvo, a caixa permanecia fixa no piso da câmara, logo abaixo da posição onde o alvo estava afixado no teto. Tentativas de empurrar e caixa e bicar a mesma não foram consequenciadas. A posição da caixa e da banana foi aleatorizada a cada apresentação. Durante o treino, nenhum critério de aprendizagem foi utilizado, e os autores apenas afirmam que o teste foi realizado após os sujeitos emitirem respostas de empurrar direcionado e subir e bicar confiavelmente na presença de cada estímulo (empurrar na situação caixa e alvo, subir na situação caixa e banana). Posteriormente, Epstein (1996) afirma que a não utilização de critérios de aprendizagem foi 287

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intencional, para assegurar que nenhuma das duas respostas treinadas adquirisse um forte controle discriminativo durante o treino. Além dos quatro pombos que receberam o treino completo dos dois repertórios pré-requisito, dois outros sujeitos aprenderam somente a bicar o alvo, mas não a subir na caixa. Outros dois sujeitos aprenderam a subir na caixa e bicar o alvo, mas não a empurrar a caixa. Um terceiro par de sujeitos aprendeu a subir na caixa e bicar o alvo e a empurrar a caixa, mas de forma não direcionada (sem o alvo verde), e um último sujeito passou pelo treino completo (subir na caixa e bicar a banana, e empurrar direcionado), mas não recebeu as sessões de extinção de respostas de voar. Cada uma destas histórias de treino produziu um desempenho particular na situação de teste.

Resultados e Discussão Os resultados dos quatro sujeitos que receberam o treino completo foram similares e consistentes entre si. No início do teste, os animais exibiram um padrão de respostas que os autores categorizaram como um estado de “confusão”. Este padrão consistia em o sujeito ficar parado, entre a caixa e o alvo, emitindo respostas de olhar alternadamente para a caixa e para a alvo. Após a “confusão”, os sujeitos passaram a ir em direção à banana e tentar alcança-la (nunca pulando ou voando), sem êxito. Após isso, novamente os sujeitos emitiram 288

os mesmos padrões de “confusão” do início do teste. Após estes momentos de “confusão” os sujeitos se aproximaram da caixa, e prontamente começaram a empurrá-la em direção à banana. Todos os sujeitos deste grupo guiavam seus empurrões em direção à banana olhando para a mesma a cada empurrão, corrigindo a rota de deslocamento da caixa se necessário. Todos os sujeitos pararam de empurrar a caixa quando ela estava abaixo da banana, ou próximo dela, e em seguida subiram na caixa e bicaram a banana, resolvendo o problema. Dos sujeitos que não receberam um treino completo dos dois repertórios pré-requisito, os que não haviam sido treinados a subir na caixa, não resolveram a tarefa, e passaram a maior parte da sessão tentando alcançar a banana esticando-se em direção a ela. No teste dos sujeitos que não aprenderam a empurrar a caixa, nenhuma resposta de empurrar foi registrada durante as sessões, logo, a tarefa não foi resolvida. Os sujeitos que não tiveram um treino de empurrar direcionado passaram a maior parte do tempo das sessões empurrando a caixa, em diversas direções, tendo inclusive passado pelo local onde estava pendurado o alvo. Um destes sujeitos resolveu a tarefa eventualmente, após 14 minutos, o outro apenas empurrou a caixa durante toda a sessão. O último sujeito, que recebeu o treino de subir a caixa e bicar o alvo e empurrar direcionado, mas não passou pelas sessões de extinção de voar em direção a banana, apresentou várias respostas em direção à

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banana, como pular e voar, por diversos minutos, até que, após essa etapa inicial, começou a empurrar a caixa em direção à banana, subiu na caixa e bicou a banana. Os resultados deste estudo identificaram o papel da história de treino, como uma variável decisiva na resolução súbita de uma tarefa, já que os animais sem algum dos pré-requisitos comportamentais não resolveram o problema, ou o resolveram acidentalmente, ao passo que os animais que receberam o treino completo dos repertórios pré-requisitos, solucionaram a tarefa com topografia similar à clássica topografia de “insight”. Köhler foi um pioneiro ao mostrar que chimpanzés exibiam comportamentos originais e criativos em situações problemas criadas em um ambiente controlado. Epstein et al. (1984) mostraram a origem e uma forma de se construir estes comportamentos originais a partir de uma história de treino controlada. Epstein et al. (1984) também forneceram uma análise ponto a ponto da solução do problema. No início da resolução, o estado de “confusão” do sujeito é efeito do controle de duas respostas pelo contexto do problema. O alvo, a banana pendurada no teto, controla respostas de bicar, e a caixa controla respostas tanto de subir como de empurrar. A “confusão” é resultado da nova configuração dos estímulos, no caso, banana e caixa presentes, com a caixa afastada da banana. Alguns dos sujeitos começam a sessão subindo na caixa, como a caixa não

está abaixo da banana, a resposta de subir não produz o reforço, portanto entra em extinção. Na extinção, o empurrar ocorre por ressurgência (Epstein & Skinner, 1980), e é controlado pela posição da banana, que adquire controle sobre o empurrar a partir de um processo que os autores chamam de generalização funcional. A generalização funcional seria distinta da generalização tradicional, já que neste caso, não há semelhança física entre os estímulos, apenas um compartilhamento de função. Ao passo que o animal empurra a caixa na direção da banana, o ambiente vai sendo progressivamente modificado, até que a caixa fique em baixo (ou próxima) da banana. Este novo estímulo (caixa em baixo da banana), produzido pelo sujeito, controla a segunda resposta, o subir, que é, na palavra dos autores, encadeada automaticamente ao empurrar, e produz a solução da tarefa. O animal para de empurrar a caixa assim que ela está próxima da banana pois ao produzir o estímulo “caixa em baixo da banana”, o subir se torna mais provável. O conjunto destes processos resultava no que os autores chamaram de recombinação de repertórios. A recombinação de repertórios é o processo comportamental pelo qual repertórios aprendidos independentemente um dos outros (ou seja, não encadeados) podem ser recombinados em uma forma ou sequência nova, dada um controle discriminativo (situação problema) adequada. A recombinação de repertórios passou a ser então uma nova maneira que a AC desenvolveu 289

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para lidar com a criatividade, ou a origem de comportamentos novos, ao lado de outros processos básicos como a generalização de estímulos, a indução, a variabilidade, a modelagem e o encadeamento de respostas. Além disso, a recombinação de repertórios, quando estudada em procedimentos de resolução de problemas, é também um modo de descrever os processos comportamentais envolvidos na solução súbita de um problema, tradicionalmente conhecido na literatura de Psicologia como um “insight”, desde que Köhler (1948) popularizou o termo a partir de seus experimentos com chimpanzés.

DESDOBRAMENTOS Todos os trabalhos do Columban Simulation Project produziram muitas controvérsias. Franz de Waal, um eminente primatologista, chegou a comentar que o trabalho de auto reconhecimento em pombos (Epstein, Lanza & Skinner, 1981) é uma das “maiores bizarrices da ciência comportamental” (de Waal, 2001, p. 60)4. Diversas críticas foram também direcionadas ao traO principal ponto da crítica formulada por de Waal (2001) se pauta no fato de que primatas que apresentam o comportamento de auto reconhecimento em espelhos precisam de pouco ou nenhum treino explícito para que isso ocorra, ao passo que os pombos de Epstein, Lanza e Skinner (1981) precisaram de um treino direto de repertórios pré-requisito. A crítica passa ao largo do ponto principal do trabalho de Epstein, Lanza e Skinner (1981), que é construir em laboratório os pré-requisitos ontogenéticos para que esse desempenho seja observado, independente da espécie. O autor da crítica (de Waal, 2001) também aponta que replicações do estudo de Epstein, Lanza e Skinner (1981) não obtiveram o mesmo resultado. Considerações acerca dessas replicações podem ser encontradas no recente estudo de Uchino e Watanabe (2014) que replicaram adequadamente o trabalho original de Epstein, Lanza e Skinner (1981). 4

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balho de “insight” (Epstein et al. 1984), em geral acusando que o mesmo se tratava de um simples encadeamento de respostas (Ellen & Pate, 1986). Esta crítica não procede, já que a rigor não se trata de um treino de encadeamento, dada a natureza independente dos treinos das habilidades pré-requisito (um treino encadeado asseguraria que a consequência de uma resposta seria também discriminativo de outra). Outra crítica (Ettlinger, 1984) aponta que não houve manipulação de variáveis paramétricas de treino (como treinos de repertórios em contextos distintos), o que sugere que o dado obtido possa ser um artefato metodológico (i.e. a resolução não passa de algo que pombos fazem por não haver outras coisas a não ser uma caixa e uma banana na situação de teste). A crítica de Ettlinger (1984) não se sustenta, graças aos dados com os pombos de Epstein et al. (1984) que não resolveram a tarefa com um treino incompleto dos repertórios pré-requisito, portanto, apesar dos autores não terem testado variáveis adicionais, o efeito do treino é claro. Sem o treino, não há resolução. Apesar destas críticas, maiores foram os impactos positivos do trabalho sobre a comunidade científica, tanto que Shettleworth (2012, pg. 217), especialista em cognição animal, coloca o trabalho de Epstein et al. (1984) como uma das maiores descobertas das ciências comportamentais do século XX, ao lado do pioneiro trabalho de Köhler (1948).

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Desta forma, diversos trabalhos adicionais sobre a recombinação de repertórios foram publicados ao longo dos anos que se seguiram a publicação do trabalho original de Epstein et al. (1984). Com pombos, em variações do teste de deslocamento de caixa, Cook e Fowler (2014) e Neves Filho (2015) replicaram os achados originais de Epstein et al. (1984) envolvendo a recombinação de dois repertórios. Epstein (1985) e Luciano (1991) demonstraram a recombinação de três repertórios, a partir do desmembramento do treino de subir e bicar em dois repertórios independentes, e Epstein (1987) demonstrou a recombinação de quatro repertórios, adicionando uma porta que, se aberta, dava acesso a caixa. A recombinação de repertórios também foi observada em diferentes tarefas, para além do teste de deslocamento de caixa, e com diferentes espécies como: macacos-prego (Delage & Galvão, 2010; Neves Filho, 2010; Delage, 2011; Neves Filho, Carvalho Neto, Barros, & Costa, 2014), ratos albinos (Delage, 2006; Tobias, 2006; Ferreira, 2008, Leonardi, 2012; Neves Filho, Stella, Dicezare & Garcia-Mijares, 2015), corvos da Nova Caledônia (Taylor, Elliffe, Hunt & Gray, 2010; Neves Filho, 2015) e humanos (Sturz, Bodily & Katz, 2009).

CONSIDERAÇÕES FINAIS A recombinação de repertórios é um processo comportamental relacionado a re-

solução de problema e criatividade (Neves Filho & Carvalho Neto, 2013). A publicação do artigo de Epstein et al. (1984) trouxe uma nova linha de pesquisa para a Análise do Comportamento, e a recombinação de repertórios tem o potencial de ser um modelo animal para o estudo de comportamentos novos (Kubina, Morrison & Lee, 2011; Leonardy, Andery & Rossger, 2011; Murari & Henklain, 2013). Assim como procedimentos comportamentais bem estabelecidos, como os esquemas de reforçamento, são amplamente utilizados em pesquisas de neurociências e farmacologia (McKim, 2007), a recombinação de repertórios, como um modelo animal de criatividade, tem o potencial de servir aos mesmos propósitos. Na medida em que um procedimento produz a recombinação de repertórios, novas variáveis podem ser introduzidas, como o efeito de drogas. Será que um animal que aprenda uma das habilidades pré-requisito de um problema sob o efeito de álcool apresenta uma topografia de solução igual a um animal sóbrio? E se o animal estiver sob efeito da droga somente no teste? Estas são perguntas empíricas ainda em aberto. Algumas variáveis de treino já mapeadas indicam que se as habilidades pré-requisito são treinadas com reforços diferentes (água ou comida), a recombinação de repertórios não ocorre em pombos na tarefa de deslocamento de caixa (Neves Filho, 2015). Com macacos-prego, em uma tarefa de dois repertórios (encaixar ferramentas e alcançar alimento usando uma ferramen291

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ta) a recombinação ocorre se os repertórios forem treinados e testados em um mesmo ambiente (Neves Filho, 2010), porém não ocorre da mesma maneira se ao menos um dos repertórios é treinado em um local diferente do local onde a recombinação é testada (Neves Filho, Carvalho Neto, Barros, & Costa, 2014), o mesmo efeito de contexto distinto de treino e teste não é observado em corvos da Nova Caledônia de vida livre5 (Neves Filho, 2015). Uma série de outras variáveis ainda precisa ser analisada, e processos como a generalização funcional e o encadeamento automático precisam ser mais bem estudados e definidos (Luciano, 1991). De qualquer forma, todos estes dados sobre os efeitos de variáveis de treino sobre a recombinação de repertórios apontam que, de fato, para cada situação problema e espécie estudada, um conjunto de variáveis de treino podem ter efeitos distintos sobre a topografia de solução do problema. Diferentes tipos de treino produzem diferentes soluções, ou as inviabilizam. Desta forma, é possível, em tese, mapear que variáveis de treino produzem uma melhor recombinação, em uma tarefa específica, de modo a criar uma “tecnologia de insight”, ou uma “tecnologia da criatividade”, pautada em um método de aprendizagem que facilite Vida livre aqui indica que os animais que participaram do estudo não estavam em um laboratório. Neste estudo (Neves Filho, 2015), corvos da Nova Caledônia (Corvus moneduloides) foram capturados em seu ambiente natural e foram alojados em um aviário, no qual a coleta de dados ocorreu. Ao final da coleta, os animais foram liberados no mesmo local onde ocorreu a captura. Para mais informações sobre estudos de cognição animal em animais de vida livre, em especial corvos da Nova Caledônia, conferir Taylor, Elliffe, Hunt e Gray (2010). E para uma sugestão de algumas vantagens do estudo de animais de vida livre para a Análise do Comportamento, conferir Pritchard et al. (2016). 5

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recombinações em diferentes tarefas. Este amadurecimento da área e do que se sabe sobre a recombinação de repertórios produz o contexto ideal para começarmos a aplicação do que sabemos, e observar, treinar e facilitar a recombinação em ambientes fora do laboratório, como escolas, ambientes de educação à distância, empresas e organizações. Este é o desafio do momento.

PARA SABER MAIS Epstein (1996). Coletânea de artigos de Robert Epstein sobre a recombinação de repertórios e criatividade. No livro constam todos os experimentos do Columban Simulation Project nos quais Epstein esteve envolvido. O livro apresenta diversos comentários sobre o tema e a proposta do autor de uma “teoria generativa do comportamento”, baseada na recombinação de repertórios. Leonardy, Rossger, & Andery (2011). Artigo discutindo a importância da recombinação de repertórios para a Análise do Comportamento a partir de uma revisão de diversas dissertações de mestrado que utilizaram ratos como sujeitos. Neves Filho & Carvalho Neto (2013). Uma introdução à recombinação de repertórios e alguns exemplos interpretativos de onde podemos encontra-la em diversos produtos artísticos humanos. Murari & Henklain (2013). Artigo discutin-

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do como a Análise do Comportamento lida com a criatividade, apresentando diversos processos básicos, incluindo a recombinação de repertórios.

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Capítulo XVIII | Criatividade

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Hernando Borges Neves Filho

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